• Princípio do devido processo legal no processo administrativo

  • Antonio Cecilio Moreira Pires

  • Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

É com muita alegria que voltamos a nos debruçar sobre o tema do devido processo legal, alvo de nossa dissertação mestrado, intitulada como O princípio do contraditório e da ampla defesa no processo administrativo.

Não podemos deixar de registrar que nosso interesse se deu em razão das aulas dos professores Luiz Alberto David Araujo e Lucia Valle Figueiredo, que tão bem souberam despertar o meu interesse sobre as possibilidades do devido processo legal.

Ainda que de uma forma bastante sintética procuramos, no presente trabalho, tecer considerações acerca das questões históricas do devido processo que, a nosso ver, é absolutamente necessário para se entender a evolução de tão complexo princípio.

Trouxemos à baila questões relativas ao devido processo legal procedimental, com especial relevo ao processo administrativo, e o seu desenvolvimento através dos anos, notadamente no que diz respeito a necessidade de um efetivo e real atendimento ao princípio do contraditório e ampla defesa, que vem a obrigar o Estado a ofertar e propiciar reais chances de defesa a todos aqueles que litigam, não só em sede judicial, mas principalmente em sede administrativa.

Por último, não nos furtamos ainda de trazer a pelo algumas considerações acerca do devido processo substancial, tema dos mais apaixonantes e que, apesar disso, ainda não explorado em toda a sua magnitude.

Enfim, esperamos que o presente trabalho, ainda que modesto, mas tão importante para a concretude do Estado Democrático de Direito seja capaz de ensejar novas discussões sobre o tema.


1. O exercício do poder


O homem é um ser gregário e, portanto, um ente social. Entretanto, o convívio social não é livre, pois estamos envolvidos por uma teia de normas disciplinadoras de comportamento.

Essa teia de normas decorre dos mais diversos grupos sociais que o homem frequenta. É dizer, que as normas exercem função básica de ditar o comportamento do ser humano de modo a se estabelecer a conduta desejada em determinado grupo social.

Impende considerar que a criação, imposição e aceitação das normas, a qualquer título que seja, passa pelo exercício do poder que, de sua vez, traz consigo inúmeras possibilidades, podendo ser considerado do ponto de vista daquele que o exerce, sob o aspecto de quem a ele se sujeita, ou ainda de forma mais específica, poder social e político.1

Não temos por objetivo desenvolver um ensaio sobre o exercício das mais diversas espécies de poder. Pretendemos, ainda que em rápidas pinceladas, abordar o poder político, considerado enquanto elemento sine qua non para a imposição da norma jurídica. 

A positivação da norma jurídica depende de um poder legítimo e efetivo, pelo que os titulares de poder deverão estar investidos dos títulos necessários para tanto, e exerce-los em consonância com as lei já estabelecidas, implicando no atendimento da necessária legalidade.2 

Desnecessárias maiores reflexões para se concluir que o exercício do poder, com especial destaque para aquele de caráter absoluto, pode levar o seu titular ao inaceitável cometimento de arbitrariedades, notadamente quando exercido de acordo com valores de ordem pessoal.

Conquanto o exercício do poder político seja uma imposição necessária ao convívio social, a questão da liberdade do homem não pode ser desconsiderada, pois o homem nunca dela declinou, pois que de todos os seus bens, a liberdade, é um dos mais preciosos.

Logo, o equilíbrio entre o exercício do poder e a liberdade do homem é medida que se impõe, isto porque o ser humano nasceu para ser livre, sem prejuízo de se sujeitar a um mínimo de restrições necessárias ao bem comum e ao convívio social.

A história nos mostra que o homem, desde as civilizações mais antigas se debate, com vistas a alcançar ou preservar a sua liberdade. Deveras, se a liberdade se amplia por demais, corre-se o risco de se chegar à anarquia e se, pelo contrário, o poder não for contido, descambando para a arbitrariedade, podemos chegar à mais opressiva e indesejável ditadura tirânica.

Etienne de La Boétie, em sua obra, dirige-se ao povo alvo da tirania estatal, criticando o fato de que as nações modernas ainda tenham que se sujeitar ao domínio de um único homem, a um único senhor, pois sempre lhe será dado a opção de ser mau, como no Estado monárquico.3 

É, em razão de tudo isso, aliás, que surge o direito de resistência que, em certas circunstâncias pode ser invocado para possibilitar a franca oposição a leis injustas e à opressão. Maria Helena Diniz afirma:

“Quando houver abuso de poder para exercer opressão irremediável surge o direito de resistência, que, no sentido amplo, reconhecer aos cidadãos, em certas condições, a recusa à obediência, a oposição a leis injustas, a resistência à opressão e à revolução. Tal direito concretiza-se pela repulsa à norma discordante da noção popular de justiça; à violação do governante da ideia de direito de que procede o poder, cujas prerrogativas exerce; e pela vontade de estabelecer uma nova norma jurídica, ante a falta de eco da ordem vigente na consciência jurídica dos mesmos da coletividade.”4 

Verifique-se, pois, que o direito de resistência não pode ser considerado um ataque a aquele que se encontra investido de autoridade é, antes de tudo, uma forma de ataque à opressão e proteção à ordem jurídica.

A nossa Lei Fundamental traz em seu bojo diversos comandos que têm por objetivo a materialização do direito de resistência, tais como o art. 5º, II e LV, que consagra o princípio da legalidade e o princípio do devido processo legal, respectivamente.

Sem desprestigio dos demais dispositivos que podem ser classificados enquanto materializadores do direito de resistência, interessa-nos o princípio do devido processo legal que sem sombra de dúvida se constitui em garantia fundamental do cidadão, como, aliás, muito bem demonstra a sua trajetória histórica.

A textura e relevância do princípio do devido processo, enquanto instrumental de contenção do poder, leva-nos a afirmar que ele se constitui no princípio dos princípios eis que nele se assenta quase todos os princípios de ordem processual, isso sem falar de sua concepção material, com vistas a impedir o abuso de poder e, consequentemente, elidir a tão indesejada injustiça.

O instituto do devido processo legal, embora mais do que consagrado no direito anglo-saxão, no Brasil, somente no século XX, é que os juristas passaram a dar uma maior atenção e reconhecer a sua relevância, notadamente no que diz respeito à sua concepção adjetiva, mas com tímida utilização naquilo que diz respeito ao aspecto substancial.


2. Aspectos históricos do devido processo legal


A literatura jurídica acerca do nascimento do “due process of law” afirma que o devido processo legal nasceu no ano de 2015, na |Inglaterra, sob o reinado do Rei João Sem Terra, como uma espécie de resposta da coroa inglesa aos Barões de Runnymede, como, aliás, afirmamos em nossa dissertação de mestrado.

Contudo, nossos estudos acerca do instituto do devido processo legal não cessaram, eis que, em razão da nossa atividade profissional, realizamos um continuo revisitar do instituto em questão, haja vista que a Administração Pública brasileira, após quase trinta anos da promulgação de nossa Lei Fundamental, ainda encontra significativa resistência de se submeter e obedecer ao princípio do devido processo legal.

Em nossos estudos, e até por conta de uma certa preferência de nossa parte, a questão histórica do devido processo legal e sua trajetória através dos tempos sempre nos despertou grande interesse.

Mais interessante nos pareceu a questão histórica quando da leitura da obra denominada “O princípio de devido processo legal substantivo”, de Ruitemberg Nunes Pereira que, com esteio em William Sttubs, afirma que o princípio do devido processo legal nasceu na Alemanha e não na Inglaterra.

De qualquer modo, não podemos nos furtar de trazer à pelo algumas considerações de ordem histórica, até porque esse enquadramento nos parece ser extremamente útil para entender a verdadeira concepção do devido processo legal.


2.1. Aspectos históricos do devido processo no direito alemão


Com a eleição de Conrado II, o Sálico, no ano de 1024, inicia-se uma fase do império germânico que, paradoxalmente, se caracterizou por uma época de maior esplendor e de maior humilhação experimentada pelos seus imperadores. A fim de lidar com os constantes conflitos internos e, ao mesmo tempo, assegurar o domínio germânico junto aos territórios conquistados, era necessário envidar todos os esforços para constituir aliados, sobretudo em âmbito militar, em um primeiro momento e, posteriormente, junto aos pequenos proprietários feudais, cavaleiros e oficiais administrativos.5 

Afora isso, uma das preocupações da Dinastia Sálica era adaptar a estrutura de governo a uma nova realidade social, que se constituía na uma expansão comercial, na revivescência econômica decorrente da estabilidade auferida pela monarquia saxônica, pelos movimentos sociais e pela hegemonia germânica no Continente Europeu, iniciada com a coroação de Carlos Magno, 962.6 

Foi com esse objetivo que Conrado II, no ano de 1037 fez publicar um decreto que passaria para a história como o primeiro documento escrito do direito feudal e as práticas necessárias à produção da propriedade. William Stubbs assinala que o decreto em questão teve um caráter universal, em razão de não se limitar a regular direitos privados relativos à propriedade mas, principalmente, por positivar valores sociais mais amplos, com destaque para o ideal de justiça das relações privadas. No referido decreto, em sua primeira ordenança temos:

“(...) nenhum homem seria privado de um feudo sob o domínio do Imperador ou de um senhor feudal (mesme lord), senão pelas leis do Império (laws of empire) e pelo julgamento de seus pares (judement of his peers), expressões que, reitere-se, foram escritas em 1037 (...).”7 

Das considerações precedentes dessume-se que ai se encontra os fundamentos do reconhecimento do primado da lei, independentemente da vontade do soberano e, que mais tarde, será recepcionada ou, melhor dizendo, praticamente copiada pelo direito inglês.


2.2. Aspectos históricos do devido processo no direito inglês 


O Rei João Sem Terra, ao assumir a Coroa, após a morte de seu irmão Ricardo Coração-de-Leão, além de descurar dos interesses do reino passou a exigir tributos significativamente elevados, exercendo um governo verdadeiramente tirânico, como muito bem acentua Pontes de Miranda:

“Os desastres cincas e arbitrariedades de novo governo foram tão assoberbantes, que a nação, sentindo-lhe os efeitos envilecedores, se indispôs, e por seus representantes tradicionais reagiu. Foram inúteis as obsecrações. A reação era instintiva, generalizada; e isso, por motivo de si mesmo explícito: tão anárquico fora o reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos nossos dias se repete, a decadência, então, de toda a Inglaterra. Atuou sobre todas as camadas sociais; postergou regras jurídicas sãs de governo; descurou dos interesses do reino e as humildes, ameaçava desnervas a energia nacional, que se revoltou.”8 

Seja como for, o Rei João Sem Terra, ameaçado de guerra interna, concordou com os anseios dos Barões de Runnymed, apondo o seu selo real no documento que ficou conhecido como Magna Carta de Libertatibus, ou Great Charter. A partir de então a Coroa Inglesa estava obrigada a respeitar os direitos, franquias e imunidades ali concedidas, salvaguardando as liberdades dos revoltosos.

Posteriormente, a Carta Magna que, em princípio, estava limitada a disciplinar direitos feudais estendeu os direitos e garantias ali contidas para todas as pessoas que integravam o reino. Paulo Fernandes Silveira afirma:

“Em sua origem, um documento limitado relativamente a certos específicos direitos feudais, a Magna Carta, gradualmente, passou a ser reverenciada como fonte de um vasto conglomerado de direitos e liberdades antigas, os quais foram considerados como nascimentos do direito do povo inglês. (...) Tal aconteceu na Idade Média, através de dois atos do Parlamento Inglês. Pelo primeiro, estenderam-se as garantias da Magna Carta, para além da nobreza, a todas as pessoas do reino. Pelo segundo, introduziu-se a expressão ‘due process of law’:

No man, of what Estate or Condition that he be, shall b put out of Land or Tenente, nor taken, nor impresioned, nor put to Death, without being brought in answer by due Process of Law’ (28 Edw.III, c.3 (1354).

O ‘No man’ quis dizer ‘nenhuma pessoa’, estendendo o benefício do devido processo, albergado na Magna Carta, a todo súdito inglês, independentemente de seu estado ou condição social.”9 

Um dos maiores direitos do homem foi assegurado pela Carta Magna: a liberdade, imanente à própria natureza do ser humano, e a todos concedida. Pari passu, a cláusula do devido processo legal, redigida de forma a não deixar qualquer dúvida, dispôs que nenhuma pessoa, a qualquer título que fosse, não estaria acima da lei, devendo ser observado como regra de caráter absoluto o due process of law.10 

Ainda que eventual disceptação de caráter histórico possa ensejar dúvidas quanto à origem do devido processo legal, não podemos negar que a Magna Carta inglesa, interpretada e reinterpretada em sua longa viagem através dos séculos, foi capaz de trazer consigo um ideal de liberdade, que extrapolou os limites da velha Bretanha, e se espraiou para o mundo, chegando, inclusive, nas terras coloniais inglesas.


2.3. Aspectos históricos do devido processo no direito americano


Conforme dissemos, a cláusula do devido processo legal migrou do direito inglês para o direito norte-americano. De modo a melhor contextualizar a questão, temos que o art. 39 da Magna Carta foi o dispositivo que reconheceu o direito do homem a um julgamento justo, quando submetido a um litígio. Para isso, a Carta Magna foi ratificada duas vezes por Enrique III, em 1216 e 1225. Foi no ano de 1225 que o art. 39 prevaleceu, sob o de número 29, dada a redução do número de artigos. Finalmente, em 1354, Eduardo III confirmou a Carta Magna, desta vez no idioma inglês, substituindo a expressão per legem terrae por due process of law.11   

De toda sorte, é lógico inferir que os colonos norte-americanos, em grande parte dissidentes protestantes ingleses, aportaram nas colônias inglesas já arraigados aos fundamentos do common law. Prova maior de tal fato é que outorgaram, às cortes de justiça coloniais, a aplicação da legislação, nos termos da common law herdada da velha Inglaterra. Releva salientar que os primeiros passos, que culminaram com a adoção do devido processo legal do direito inglês remontam ao período pós Guerra da Independência, com a assinatura do tratado de Paris em 1783, onde as 13 colônias foram consideradas Estados livres e independentes, ainda que continuassem sob a égide dos “Artigos da Confederação” que instituíam um poder central fraco e uma associação dos Estados soberanos, ainda que muito frágil.12 

Posteriormente, sobreveio a Constituição dos Estados Unidos da América, em 17 de setembro de 1787, mas foi apenas na Emenda nº 5 que o devido processo legal passou a integrar a Carta Fundamental Estadunidense.13 Na Emenda nº 14 restou aprovado que os direitos expressos no Bill of Rights da Constituição Federal seriam estendidos a todo indivíduo nascido ou não nos Estados Unidos.14 

Desta feita, a cláusula do devido processo legal ampliou-se, a ponto de ofertar proteção aos indivíduos nascidos ou naturalizados nos Estado Unidos, perante as leis e Constituições Estaduais.

Deveras, o que mais chama nos chama atenção, naquilo que diz respeito ao devido processo legal no direito norte-americano é o seu singular desenvolvimento, posto que, afora o seu aspecto procedimental, materializando-se no contraditório e ampla defesa, assumiu, doutra parte, o seu aspecto substantivo.15 Isso quer dizer, em outro giro, que a tarefa legislativa também deveria observar a um due process law. O Ministro Adhemar Ferreira Maciel ao examinar o conteúdo da Emenda nº 14 observa com bastante propriedade:

“Se observarmos bem, veremos que a Emenda n. XIV, sobretudo pela proximidade da cláusula da 'igual proteção das leis' (equal protection of laws), fornece inteligência mais abrangente ao due process of law do que aquela da Emenda n. V. Em Bolling v. Sharpe, por exemplo, a Suprema Corte disse: 'A quinta Emenda, que é aplicável ao Distrito de Columbia, não contém, a cláusula da igual proteção tal como a décima quarta Emenda, a qual se aplica somente aos Estados. Mas os conceitos de igual proteção e devido processo, ambos provindos do ideal americano de retidão (fairness), não são mutuamente excludentes. A (cláusula) equal protection of the laws é uma salvaguarda mais explícita de proibição de iniquidade (unfairness) do que a (cláusula) due process of law.” O chief Justice Willian Howard Taft, ao que tudoo indica, foi o primeiro juiz da Suprema Corte a tirar ilações no sentido da íntima associação entre as cláusulas da equal protection e do due process.”16 

Assim, considerando que o direito norte-americano não possui, até hoje, um controle abstrato da constitucionalidade, pela via de ação direta, mas somente o concentrado pela via de exceção, o aspecto substantivo do devido processo transformou-se em exercício criativo jurisdicional, naquilo que diz respeito à constituição.

Em última análise, atribuiu-se às cortes judiciais dos Estados Unidos, com especial destaque para cortes federais, a função de garantir os direitos e liberdades civis, mediante contínua interpretação da Constituição Federal, verificando, perante o caso em concreto se as leis e regras de modo geral encontram-se sintonizados com a Lei Fundamental do país.

Enfatize-se, por pertinente, que o judiciário, em razão de uma nova concepção da cláusula do devido processo legal, ascendeu a uma posição que o permitiu adentrar nos aspectos do mérito do ato editado pelo Poder Público, analisando o conteúdo das normas, desde que verificada uma state action.

Maria Rosynete Oliveira Lima observa que o state action se caracteriza pelo cumprimento de dois requisitos: i) propositura de ação onde o autor alega que o réu violou alguns dos direitos constitucionalmente assegurados; e ii) o réu alega em sua defesa a impossibilidade de imputar-lhe essa violação porque ele não é um agente do Estado.17 

Note-se que a teoria do state action, no contexto do direito norte-americano, é bastante compreensível, eis que, como dissemos anteriormente, inexiste nos Estados Unidos o controle abstrato da Constitucionalidade.


2.4. Aspectos históricos do devido processo no direito pátrio


O exame das Cartas Constitucionais brasileiras é suficiente para se concluir que, afora a Constituição de 1824, todas as demais admitiram a hipótese de aplicação de outros direitos e garantias decorrentes dos regimes e vetores principiológicos adotados pela Lei Fundamental.

Decorrente disso, é possível afirmar que a porta de entrada do devido processo legal no direito brasileiro se deu em razão da disposição constitucional sobredita. Aliás, é bom que se diga desde logo, que a doutrina há muito já entendia que o devido processo legal já se encontrava consagrado, mesmo antes da Constituição Federal de 1988, em razão dos art. 8º e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.18 Isso tanto é verdade que José Frederico Marques no ano de 1968 já afirmava:

“No direito pátrio, está implícita entre as garantias constitucionais, a do chamado ‘due process of law’ (ou ‘devido processo legal’) em face do que diz o art. 150, § 35, da Constituição do Brasil de 1967, ‘in verbis’ (...)

Desse modo, também entre nós: ‘ninguém será privado da vida, da liberdade, ou da propriedade sem o devido processo legal.”19 

Ainda que a doutrina entendesse que o devido processo legal já se encontrava consagrado no direito brasileiro, se palmilharmos as decisões judiciais, bem assim, as lições de juristas de nomeada, vamos verificar que a efetiva utilização do princípio, com suas múltiplas possibilidades, se revelou bastante tímida. Isso se deve, não temos dúvidas, ao princípio da legalidade, base do sistema jurídico brasileiro, que exige expresso arrimo em lei deste ou daquele instituto.

Logo, é de se concluir que um vetor implícito, com duplo aspecto – devido processo legal procedimental e substantivo – foi subutilizado, na medida em que se reconhecia apenas o aspecto procedimental do princípio, limitando-se, pois, ao contraditório e ampla defesa, com raras menções ao duplo sentido da cláusula que, mesmo quando expressamente mencionada, era rapidamente esquecida.20


3. A natureza jurídica dos princípios


A natureza jurídica dos princípios é sempre matéria envolvente e intrincada, em razão dos seus múltiplos aspectos. De qualquer modo, entendemos o princípio enquanto espécie de norma, que podem encontrar-se explicitamente previstos na Lei, ou, simplesmente integrar o sistema jurídico sem, necessariamente, encontrarem-se explicitados.

Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que o princípio deve ser entendido como o mandamento nuclear de um sistema, que se irradia para as mais diversas normas. Assevera, ainda o autor:

“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de seus comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. 

Isto porque, ao ofendê-lo abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda estrutura nele esforçada.”21  

Com efeito, ainda que os princípios sejam dotados de fluidez e abstração são eles que devem nortear todo o sistema, propiciando, assim, uma verdadeira harmonia sistêmica, concretizando, ainda que indiretamente, a subsunção do fato ao direito.

Gomes Canotilho em posição diametralmente oposta afirma que os princípios beneficiam-se de uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensa de estarem consagrados em preceito legal positivado.22 

Com todo o respeito ao jurista português precitado, não vislumbramos nos princípios qualquer objetividade, ainda que a sua presença normativa seja sentida, prescindindo de qualquer positivação, mas servindo de vetor ao intérprete de modo a permitir que o caso em concreto seja devida e corretamente submetido ao crivo do direito.

Ainda que mediante rápidas considerações, não podemos esquecer que certos princípios, ditos de caráter estruturante, carecem de outros princípios que venham a densificar os primeiros, sem prejuízo da incidência de outras normas.23 

São esses vetores, de caráter estruturante, os princípios constitucionais que trazem em seu bojo a síntese de uma ideia, de um pensamento, tido como primordial em determinada ordem jurídica.

Nesse passo, temos que o Estado Democrático de Direito é um princípio estruturante, que tem no princípio do devido processo legal um de seus vetores concretizadores.


4. O princípio do devido processo legal procedimental


A consagração do devido processo legal, na Constituição de 1988, encontra-se gizada no art. 5º, inciso LIV, que prevê, in verbis: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”

Com isso, resta claro, que o legislador magno teve por objetivo determinar que ninguém será afetado na sua esfera de direitos sem a sua prévia oitiva, garantindo-se, assim, uma proteção processual ao indivíduo, constituindo-se, pois, em um direito fundamental, inerente ao Estado Democrático de Direito.

Por sua vez, o art. 5º, inciso LV, disciplina que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, como os meios e recursos a ela inerentes.” 

Observe-se que o dispositivo constitucional em apreço inovou ao dispor sobre a obediência ao princípio do contraditório e ampla defesa em sede administrativa, não estando, portanto, restrito ao processo judicial. É dizer, ainda, que a nossa Lei Fundamental assegurou a obediência ao princípio do contraditório e ampla defesa no processo administrativo em que haja litigantes e acusados.24 

Avulta enfatizar que o art. 5º, inciso LV, de nossa Lei Fundamental, ao determinar que aos litigantes, em processo administrativo ou judicial, terão direito ao contraditório e ampla defesa, estabeleceu que, em razão de interesses contrapostos, o atendimento ao devido processo legal procedimental é medida que se impõe.

Sob o aspecto procedimental do devido processo legal, notadamente no contexto do contraditório e ampla defesa, importa reconhecer, naquilo que diz respeito à sua incidência no processo administrativo, a necessária sucessão de atos administrativos previstos em Lei, tendentes a minimizar a restrição indevida à esfera de direitos do particular.

É de se ver, portanto, que o descumprimento das formalidades processuais administrativas significa entrar em testilha com a cláusula do devido processo legal procedimental, isso sem falar das disposições da Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que disciplina o processo administrativo federal.

Nesse passo, qualquer violação aos dispositivos relativos à comunicação dos atos, instrução, decisão, recurso e revisão administrativa poderão ensejar a invalidação de todo o procedimento, como no caso dos processos sancionatórios em que a invasão do Estado na esfera de direitos do particular é amplamente sentida, em especial quando se trata de atos de caráter auto executório.

Contudo, o devido processo procedimental não se esgota com a questão da obediência às formalidades, até porque o apego a meros procedimentos ritualísticos pode levar ao indesejável culto às formas. É preciso mais. É preciso que se atenda os aspectos intrínsecos da cláusula em destaque.

Impende, pois, considerar que o atendimento ao princípio do devido processo legal deve ser efetivo, não se limitando ao atendimento de meros prazos e questões que, em última análise, dizem respeito à forma. É preciso verificar se ao acusado ou litigante estão sendo ofertadas efetivas chances de defesa. Calha aqui, por pertinente que é, trazer a pelo decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nos idos de 1991:

“Sabemos que o postulado do devido processo legal – de que a amplitude da defesa constitui uma de suas específicas projeções concretizadoras – não se satisfaz, no plano da defesa técnica, com a simples observância de meros ritos formais. Antes impõe e exige que o defensor, ainda que dativo, exerça e desenvolva efetiva atividade defensiva.

A presença formal de um defensor dativo, sem que a ela corresponda a existência efetiva de defesa substancial, nada significa no plano do processo penal e no domínio tutelar das liberdade públicas.

(...)

O processo penal, pela relevância do interesse que nele está em jogo, a liberdade do acusado, pelas gravíssimas consequências que acarreta uma decisão condenatória, não pode se satisfazer com uma simples aparência de defesa. Esta deve ser real, concreta efetiva, atuante e combativa, pouco importando a condição socioeconômica do acusado, ou mesmo, a natureza do delito (RT 519/383)”.25 

Embora o trecho do voto do Ministro Celso de Mello tenha sido emitido no âmbito do processo penal, é indubitável que a sua aplicação, no contexto do processo administrativo é perfeitamente possível, eis que o princípio do devido processo legal não pode ser encarado apenas do ponto de vista instrumental, mas, principalmente, sob o seu aspecto intrínseco. Quer dizer, portanto, que o só fato de haver uma discordância – uma litigância – caberá à Administração ofertar efetivas e reais chances de defesa, não podendo negar a intervenção do interessado no processo.

Conquanto a questão já esteja devidamente sacramentada, não é demais dizer que a obediência ao devido processo legal procedimental não está circunscrita apenas aos processos disciplinares, onde existe a figura do acusado, mas se espraia para todas as situações em que o ato da Administração Pública tenha repercussão nos direitos individuais do administrado.26 

Perpassando os olhos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal percebe-se que a tese de obediência ao devido processo legal procedimental cada vez mais foi ganhando adesões. Nesse sentido, não podemos deixar de citar um trecho do emblemático e precioso voto do Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Mandado de Segurança impetrado em Minas Gerais, onde explicitou os direitos decorrentes do art. 5º, LV, com sustentáculo no direito alemão:

“Direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contraria os atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

Direito de manifestação (Recht auf Ausserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;

Direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Beruckichtigung), que exige do julgador a capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähiggkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (...).

Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (Recht auf Berückichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar que envolve não só o dever de tomar conhecimento (kenntnissnahmepflicht), como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungspflicht) (...).”27 

Note-se que o contraditório e ampla defesa somente restará atendido se o interessado efetivamente participar do processo, principalmente naquilo que diz respeito ao direito de ser ouvido, e, notadamente quanto ao direito de ver seus argumentos enfrentados e apreciados pelo órgão julgador da contenda.

Em razão da necessidade de atendimento dessa questão intrínseca do devido processo legal procedimental, que diz respeito à sua efetividade, entendemos que ai reside, também, um aspecto substancial, que, mais à frente será examinado.

Por último, tema intocado até o presente momento, mas que não podemos nos furtar a tecer algumas considerações, é a questão da ausência de previsão de obediência ao devido processo legal procedimental em diploma legal infraconstitucional.

Deveras, as garantias do contraditório e da ampla defesa estendem-se para além da mera literalidade, em razão de sua vasta amplitude. Hodiernamente, afastamos qualquer disceptação doutrinária que seja pela impossibilidade de ausência de contraditório e ampla defesa em razão da ausência de expressa disposição legal. Para arrematar a questão Celso Antônio Bandeira de Mello já ensinou em seu magistério:

“Deixamos dito que os princípios do procedimento administrativo haveriam de ser considerados como vigorantes obrigatoriamente mesmo à falta de lei que os enuncie, por serem decorrência de cânones constitucionais explícitos ou projeções naturais dos princípios informadores da Constituição brasileira.

Com isto está-se a dizer que em todos os casos em que seja obrigatório um procedimento administrativo externo irromperão princípios constitucionais dele informadores, ainda que sua normação careça de minudencias ou seja omissa no que concerne à vigência de tais princípios.”28 

Válido é mencionar ainda o voto do ministro Celso Mello nos autos do Ag.Reg. no Recurso Ordinário em mandado de Segurança impetrado em razão de declaração de inidoneidade em que se alegou a inobservância da ampla defesa:

“A jurisprudência dos Tribunais, notadamente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida ou não, de caráter punitivo (...).

Isso significa, pois, quer assiste, ao interessado, mesmo em procedimento de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do ‘due process of law’ (independentemente, portanto, de haver, ou não previsão normativa nos estatutos que regem a atuação do Estado) (...).”29 

Em última análise, independentemente de qualquer previsão legal, todos têm direito a um devido processo legal procedimental, consistente em um juiz natural que deverá conceder um efetivo e adequado direito de defesa, no contexto das formalidades do procedimento, que, ao final, deverá ensejar uma decisão motivada do julgador.


5. O devido processo legal substantivo


Sob o aspecto substantivo ou material do devido processo legal, temos que o Estado, na edição da lei ou do ato administrativo não pode restringir, de forma arbitrária, os direitos fundamentais do indivíduo.

Enquanto aluno da Professora Lucia Valle Figueiredo, no mestrado e no doutorado, tivemos a honra e o privilégio de vê-la dissertar sobre o devido processo legal. Para a professora, o aspecto substancial da cláusula traz em seu bojo a “igualdade na lei” que é muito maior que a mera “igualdade perante a lei”. Em seu texto, Estado de Direito e devido processo legal, Lúcia Valle Figueiredo, com peculiar maestria, enfatizou:

“9. O princípio da igualdade, já averbamos, coloca-se como vetor fundamental no texto Constitucional. Em consequência, como vetor fundamental do devido processo. 

A generalidade da norma jurídica deve conduzir à igualdade perante a lei, porém também a 'equal protection of law', tal seja, à igualdade na lei. 

O princípio da igualdade é a mola propulsora do Estado de Direito; sem seu cumprimento o exercício da função administrativa seria realmente sem sentido. Não se concebe possa estar a função administrativa debaixo da lei e sem respeitar o princípio fundamental, matriz de todos os outros. 

Em decorrência, o princípio da igualdade deve, de ponta a ponta, nortear toda atividade da Administração e os provimentos, por esta emanados, só serão válidos à medida que estejam atendendo ao princípio. 

A exata dimensão do princípio da igualdade é de cabal importância também ao entendimento da discricionariedade, pois, se atento se estiver ao cumprimento do princípio, ver-se-á quando a Administração pode desigualar, quando pode agir adotando certos discrimines e quando não pode como, por exemplo, em atos administrativos gerais. 

Em San Tiago Dantas vamos encontrar o exato conceito do que seja a igualdade na lei. O que significa a igualdade? 

Primeiro, San Tiago Dantas diz que a lei, quando discrimina, não pode escolher aleatoriamente as situações. Tem de haver razoabilidade nas classificações. Caso não haja, não se poderá dizer cumprido o due process of law, mas, antes, haverá undue process of law, se não houver a predita razoabilidade das classificações. 

10. Dessarte, somente se concebe a igualdade na lei, se as classificações forem lógicas, razoáveis, obedientes a descrimines próprios.”30  

Da lição sobredita, extrai-se que juntamente com a denominada igualdade na lei, há de se observar, ainda, o princípio da proporcionalidade, que deverá ser o elemento norteador do discrímen.

Por sua vez, Carlos Roberto Siqueira de Castro, refere-se ao devido processo legal substantivo atrelado à ideia da razoabilidade das leis. Posiciona-se, assim, o autor.

“É digno de nota, a propósito do título escolhido ao presente trabalho, que, muito embora o cânone da ‘razoabilidade’ suprimido na fase de elaboração da nova Constituição do Brasil tivesse pertinência direta com os atos administrativos, a sua aplicação à generalidade das regras jurídica, expressão onde se incluem as leis formais e toda sorte de ato normativo editado pelo pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, constituiria resultado inafastável da interpretação extensiva e sistemática de tal dispositivo constitucional. Ainda que assim não se entendesse, por excessivo apego ao método literal e sobremodo precário de interpretação das normas jurídicas, restaria de todo induvidoso, conforme temos buscado demonstrar ao longo da exposição, que o postulado da ‘razoabilidade da lei’ promana forçosamente de aplicação de caráter ‘substantivo’ (substantivo due process) da cláusula do devido processo legal, a ser empreendida como criatividade e sendo de justiça pelos órgãos incumbidos da salvaguarda da supremacia da Constituição, máxime, aqueles integrantes do Excelso Poder Judiciário.

(...)

Mas, por outro lado, acolheu-se no elenco dos direitos fundamentais a garantia mais abrangente e magnânima de todas as suas congêneres – a clausula due process of law, onde se inclui não só o princípio da ‘razoabilidade’, como ainda a exigência de ‘motivação’ dos atos estatais (...).”31

Em que pese o fato do autor reconhecer apenas a razoabilidade enquanto integrante do devido processo legal substantivo, para nós, a cláusula abarca também o princípio da proporcionalidade, pois, ainda que com conteúdos jurídicos distintos, ambos os princípios, de certa maneira, se revelam intercambiáveis.

A propósito, Bartolomé Fiorini observou que, com relação ao exercício do poder de polícia, o administrador não poderia constranger os direitos do indivíduo, sem que se observasse as regras da razoabilidade: justificação, adequação, proporcionalidade e restrição.32 

É dizer, em última análise, que os princípios da razoabilidade e proporcionalidade são concretizadores do devido processo legal substantivo. Por conseguinte, se assim pensarmos, os princípios em comento são subprincípios da cláusula do due process of law substantive, motivo pelo qual somos obrigados a concluir que estamos perante um “super-princípio” que, em linhas gerais, tem por finalidade a contenção do Poder Estatal, se espraiando para todos os campos do direito.33 

Com efeito, o devido processo legal substantivo tem por condão proibir os excessos perpetrados pelo Estado. Nessa linha de entendimento, interessante se faz trazer a texto a classificação de José Joaquim Gomes Canotilho que ensina que três são os subprincípios imanentes ao princípio da proibição do excesso estatal, também conhecido como princípio da proporcionalidade em sentindo amplo: i) princípio da conformidade ou adequação dos meios – a medida escolhida deve ser apropriada à consecução do interesse público; ii) princípio da exigibilidade ou da necessidade – funda-se no pensamento de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível; iii) princípio da proporcionalidade em sentido restrito – caracteriza-se pela justa medida.34  

É evidente que os atos Estatais – promulgação da lei e edição do ato administrativo – devem ser providos de uma ponderação de valores, para aplicação da supremacia do interesse público em face do interesse ou direito individual.

Carlos Roberto de Siqueira Castro observa em seu magistério que “a questão da lei justa ou da lei injusta, com toda a sua carga dialética e axiológica, também deságua na temática do devido processo legal eu sua dimensão substantiva e superiormente desenvolvida”.35 

Logo, se o a Lei ou o ato administrativo for submetido ao crivo do Poder Judiciário, nada impede de o magistrado censura-los, se tiver sido produzido de forma desarrazoada ou desproporcional à finalidade pretendida, penetrando assim no aspecto material, substancial do ato estatal.

Em outras palavras o ato legislativo ou administrativo poderá ser declarado inconstitucional por desobediência ao devido processo legal substantivo.



6. Conclusão


O devido processo legal, já em seu nascedouro, se constituiu em um dos instrumentais de contenção do poder, seja na Alemanha ou na velha Inglaterra, e posteriormente, migrou para os Estados Unidos.

Nos Estados Unidos, além do aspecto procedimental, agregou-se ao seu bojo um aspecto substancial, material da lei ou do ato administrativo editado pelo Estado.

No que diz respeito ao direito brasileiro, embora a doutrina e jurisprudência pátria já apresentasse discussões acerca do tema, o seu reconhecimento se deu pela Constituição Federal de 1988, consoante expressa disposição do art. 5º inciso LIV e LV.

À época da promulgação da Constituição Federal, a grande novidade acerca do contraditório e ampla defesa foi a sua inserção no processo administrativo, posto que no processo penal e no processo civil a sua obediência já se encontrava há muito consagrada.

Não há que se pôr a dúvida, que a cláusula do devido processo legal procedimental é a sua dimensão mais conhecida e se constitui em uma sucessão de atos tendentes a minimizar a restrição indevida à esfera de direitos do particular.

Entretanto, o devido processo procedimental não se esgota com a questão da obediência às formalidades, até porque o apego a meros procedimentos ritualísticos pode levar ao indesejável culto às formas. 

Impende, pois, considerar que o atendimento ao princípio do devido processo legal procedimental deve ser efetivo, não se limitando ao atendimento de meros prazos e questões que, em última análise, dizem respeito a formalidades sem qualquer finalidade. É preciso verificar se ao acusado ou litigante foram ofertadas efetivas chances de defesa que, dentre outras, se constituem no direito de ser ouvido, no direto de argumentar e participar do desenrolar do procedimento. 

Doutra parte, quanto ao aspecto substantivo do devido processo, embora a sua compreensão e utilização tenha se mostrado bastante lenta, é fato que a sua aplicação permite o questionamento da substancia do ato estatal, de sorte a se verificar se o discrimem utilizado encontra-se pautado por critérios de razoabilidade e proporcionalidade, de acordo com os cânones de justiça.

É de se concluir, portanto, que independentemente do aspecto do devido processo legal, procedimental ou substantivo, estamos perante uma das expressões do Estado Democrático de Direito, na medida em que se revela em um instrumento de contenção do Poder Estatal, concretizando o Estado Democrático de direito.

Enfim, o não atendimento do devido processo legal, implica, pois em flagrante inconstitucionalidade.


Notas

1 CHALITA, Gabriel. O poder, p. 9.

2 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica, p. 363.

3 LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária, p. 11.

4 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica, p. 365.

ABRANSON, M.; GUREVITCH, A.; KOLESNITDKI, N. Apud PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido legal substantivo, p. 12.

6 BARRACLOUCH, G. Apud PEREIRA, Ruitemberg Nunes. Op. cit. p. 16.

7 STUBBS, Willian. Apud PEREIRA, Ruitemberg Nunes. Op. cit. pp. 19-20.

8 PONTES DE MIRANDA. História e prática do habeas-corpus, p. 11.

9 SILVEIRA, Paula Fernando. Devido processo legal, pp. 17-18.

10 “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra”. (SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal, p. 17).

11 PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. O princípio do devido processo legal: direito fundamental do cidadão, pp. 86-87.

12 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal, p. 23.

13 A Emenda de nº 5 foi aprovada com a seguinte redação: “Ninguém será detido para responder por crime capital ou outro crime infamante, salvo por denuncia ou acusação perante um Grande Júri , exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças da terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização.”

14 A Emenda de nº 14 foi aprovada com a seguinte redação: “1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.”

15 As considerações ao devido processo legal procedimental e devido processo legal substantivo serão melhor examinadas ao lume do direito pátrio. 

16 MACIEL, Adhemar Ferreira. Due process of law. Revista scientia jurídica, pp. 371-372.

17 LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal, pp. 137.

18 PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. O princípio do devido processo legal: direito fundamental do cidadão, p.113.

19 MARQUES, José Frederico. A garantia do “due process of law” no direito tributário. Revista de direito público, p. 28.

20 O Ministro Castro Nunes do Supremo Tribunal Federal reconhecendo o devido processo legal no direito brasileiro, grafou: “A cláusula americana ‘without due process of law’ não tem correspondente em nosso texto constitucional. A esse propósito escrevi: ‘Não temos em nossa Lei Magna uma cláusula especial como a americana, condicionando o exercício do poder de polícia, nas suas diferentes modalidades. Mas as garantias enumeradas no art. 72, compreendendo particularizadamente os direitos concernentes à vida (§17), bem como a ampliabilidade de outras garantias não expressas, mas subentendidas nas finalidades do regime (art. 78)’. Equivalem, por construção jurisprudencial, à cláusula americana, ‘due process of law’”. Teoria e prática do poder judiciário, p. 617 (a Constituição Mencionada é aquela de 1891). 

21 BANDEIRO DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 913. 

22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1137.

23 Entenda-se por princípios estruturantes aqueles que trazem consigo uma ideia básica e genérica, de ordem constitucional, como, por exemplo, o princípio do Estado Democrático de Direito.

24 Deixamos de trazer à baila a velha discussão sobre a existência de processo e procedimento administrativo. Em nosso entendimento, a partir do momento que a Constituição Federal fez expressa menção a um processo administrativo, como no caso do art. 5º quis o legislador constitucional referir-se a instituto específico informado por princípios específicos. Registramos que em nosso entender a expressão processo administrativo dever ser utilizado em face da existência de acusados e, portanto, em face de um litígio, ficando a terminologia procedimento administrativo para aquelas questões de caráter não contencioso.

25 STF, Habeas Corpus 68.926-MG, rel. Min. Celso de Mello, j. 10.12.91, RTJ 142:582.

26 “ATO ADMINISTRATIVO – REPERCUSSÕES – PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE – SITUAÇÃO CONSTITUÍDA – INTERESSES CONTRAPOSTO – ANULAÇÃO – CONTRADITÓRIO. Tratando-se de anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde de observância do contraditório, ou seja, de instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de legitimidade do ato administrativo praticado, que não pode ser afastada unilateralmente porque é comum à Administração e ao particular. STF, RE 158.543-9/RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. 30.08.1994.

27 STF, MS 24.268/MG, rel. Min. Ellen Gracie, j. 17.09.2004.

28 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. pp. 518-519.

29 STF, Ag. Reg. Em Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 28.517/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 25.03.2014.

30 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Estado de Direito e devido processo legal. Revista diálogo jurídico.

31 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, pp. 380-381.

32 FIORINI, Bartolomé. Poder de polícia, p. 149

33 Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz ensina que o “devido processo legal se manifesta em todos os campos do direito, em seu aspecto substancial, sendo exemplos: o princípio da legalidade, no direito administrativo; o princípio da autonomia de vontade, no direito privado; o princípio da atipicidade dos negócios jurídicos privados (o que não é proibido é permitido); princípio da submissão da administração à lei (vedação da administração agir contra legem ou praeter legem, mas sempre secundum legem, ou seja, de conformidade com a lei e dentro dos limites dados por ela); princípio da razoabilidade das leis (toda lei que não for razoável é contrária ao direito e deve ser controlada pelo Judiciário); liberdade de contratar; garantia do direito adquirido; proibição de retroatividade da lei penal; garantia do comércio exterior e interestadual, fiscalizados da anualidade, legalidade, da incidência única-non bis in idem; proibição de preconceito racial; e garantia dos direitos fundamentais do cidadão entre outros.” (PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. O princípio do devido processo legal: direito fundamental do cidadão, p. 276).

34 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 268.

35 CASTRO, José Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, p. 151.

Referências

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2001.

CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

CHALITA, Gabriel. O poder. 2. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 1999.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Estado de Direito e devido processo legal. Revista diálogo jurídico, nº 11. Salvador, jan., 2002. Disponível em:  <http://www.direitopublico.com.br/pdf_11/DIALOGO-JURIDICO-11-FEVEREIRO-2002-LUCIA-VALLE-FIGUEIREDO.pdf>. Acesso em: 03.12.2016.

FIORINI, Bartolomé. Poder de polícia. Buenos Aires: Editorial Alfa, 1958.

LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982.

LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1999.

MACIEL, Adhemar Ferreira. Due process of law. Revista scientia jurídica. Universidade do Minho, 1994.

MARQUES, José Frederico. A garantia do “due process of law” no direito tributário. Revista de direito público, nº 05. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 1968.

PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. O princípio do devido processo legal: direito fundamental do cidadão. Coimbra: Editora Almedina, 2009.

PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido legal substantivo. Rio de Janeiro: São Paulo: Recife: Renovar, 2005.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas-corpus. 7. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.

SILVEIRA, Paula Fernando. Devido processo legal. 3. ed., rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.


Citação

PIRES, Antonio Cecílio Moreira. Princípio do devido processo legal no processo administrativo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/95/edicao-2/principio-do-devido-processo-legal-no-processo-administrativo

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017

Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

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