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Estado de Direito
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Oscar Vilhena Vieira
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Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Abril de 2017
A ideia de Estado de Direito, que tem origem na Idade Média, como forma de contenção do poder absoluto,1 ressurgiu nas últimas décadas como um ideal extremamente poderoso para todos aqueles que lutam contra o autoritarismo e o totalitarismo, transformando-se num dos principais pilares do regime democrático.2 Para os defensores de direitos humanos, o Estado de Direito é visto como uma ferramenta indispensável para evitar a discriminação e o uso arbitrário da força.3 Ao mesmo tempo, a ideia de Estado de Direito, ao ser renovada por libertários como Hayek em meados do século XX, passou a receber forte apoio das agências financeiras internacionais e instituições de auxílio ao desenvolvimento jurídico, como um pré-requisito essencial para o estabelecimento de economias de mercado eficientes.4 Do outro lado do espectro político, até mesmo os marxistas, que viam antigamente o Estado de Direito como um mero instrumento superestrutural, voltado à manutenção do poder das elites, começaram a vê-lo como um “bem humano incondicional”.5 Seria difícil encontrar qualquer outro ideal político louvado por públicos tão diversos.6 Porém, a questão é: estamos todos defendendo a mesma ideia? Obviamente não. Cada concepção de Estado de Direito, bem como as características que lhes são atribuídas refletem distintas concepções políticas ou econômicas que se busca avançar.
O conceito clássico de Estado de Direito foi submetido a uma severa reavaliação nas primeiras décadas do último século. Pensadores como Max Weber em Economia y Sociedad¸7 alertaram-nos acerca do processo de desformalização do Direito como consequência das transformações na esfera pública. Os anos que se seguiram após os trabalhos de Weber foram marcados por uma tensa luta política e intelectual sobre a capacidade do Rechtsstaat de se adequar aos novos desafios apresentados pela Constituição socialdemocrata de Weimar. Essa luta pode ser vista no debate entre conservadores como Carl Schmitt e socialdemocratas representados por Franz Neumann.8 Hayek responde a essas perspectivas céticas sobre o Estado de Direito em seu influente O Caminho da Servidão, de 1944.9
Para Hayek, a intervenção estatal na economia e o crescente poder discricionário dos burocratas de estabelecer e buscar a realização de objetivos sociais ameaça a eficiência econômica; como consequência das transformações nas funções do Estado, houve um processo de declínio da condição do Direito como instrumento substantivo na proteção da liberdade. A noção de que o Estado não tem apenas a obrigação de tratar os cidadãos de maneira igual perante a lei, mas também o dever de assegurar a justiça substantiva, foi acompanhada pelo argumento, proposto por novos teóricos do direito, de que o conceito tradicional de Estado de Direito se tornou incompatível com o mundo moderno. Diferentes teorias jurídicas, como o positivismo, o realismo jurídico ou a jurisprudência de interesses construíram uma versão formal do Direito, liberando o Estado das inerentes limitações impostas por uma concepção substantiva.
Para superar tal situação de “opressão”, na qual o Estado pode exercer coerção sobre seus cidadãos – através de atos normativos – sem a necessidade de justificar suas ações em uma lei abstrata e geral, seria necessário retornar às origens do Estado de Direito. Para isso, Hayek revisitou a história e formulou uma lista de elementos normativos essenciais do Estado de Direito, visto como instrumento par excellence para assegurar a liberdade. De acordo com essa versão, ele não pode ser comparado ao princípio da legalidade desenvolvido pelo direito administrativo, porque o Estado de Direito representa uma concepção material referente ao que o Direito deveria ser. Essa concepção material o configura como uma doutrina meta legal e um ideal político, que serve à causa da liberdade, e não como uma mera concepção de que a ação governamental deva estar de acordo com as normas. O Estado de Direito deveria ser formado, para Hayek, pelos seguintes elementos: (a) a lei deveria ser geral, abstrata e prospectiva, para que o legislador não pudesse arbitrariamente escolher uma pessoa para ser alvo de sua coerção ou privilégio; (b) a lei deveria ser conhecida e certa, para que os cidadãos pudessem fazer planos – Hayek defende que esse é um dos principais fatores que contribuíram para a prosperidade no Ocidente; (c) a lei deveria ser aplicada de forma equânime a todos os cidadãos e agentes públicos, a fim de que os incentivos para editar leis injustas diminuíssem; (d) deveria haver uma separação entre aqueles que fazem as leis e aqueles com a competência para aplicá-las, sejam juízes ou administradores, para que as normas não fossem feitas com casos particulares em mente; (e) deveria haver a possibilidade de revisão judicial das decisões discricionárias da administração para corrigir eventual má aplicação do Direito; (f) a legislação e a política deveriam ser também separadas e a coerção estatal legitimada apenas pela legislação, para prevenir que ela fosse destinada a satisfazer propósitos individuais; e (g) deveria haver uma carta de direitos não taxativa para proteger a esfera privada.10
Dessa maneira, a concepção de Estado de Direito defendida por Hayek engloba uma visão substantiva do Direito, uma noção estrita da separação de poderes e a existência de direitos liberais que protejam a esfera privada, moldada assim para servir como um instrumento de proteção da propriedade privada e da economia de mercado. O maior problema dessa concepção é que, através dela, o Estado de Direito se torna refém de um ideal político particular.
Em reação a esse e a outros tipos de formulações substantivas do Estado de Direito, como aquela mais direcionada ao aspecto social que resultou do Congresso de Delhi, organizado pela Comissão Internacional de Juristas em 1959, Joseph Raz propõe uma concepção mais formalista, que evitaria a confusão entre diversos objetivos sociais e ideológicos e as virtudes intrínsecas do Estado de Direito. Para ele, “se o Estado de Direito for um Estado governado por boas leis, então explicar a sua natureza é difundir uma filosofia social completa. Porém, dessa maneira, o termo perde qualquer utilidade”.11
Para Raz, o Estado de Direito em seu sentido amplo “significa que as pessoas devem obedecer às leis e serem reguladas por elas. Porém, em uma teoria política e jurídica, ele deve ser lido de uma maneira mais estrita, no sentido de que o governo deve ser regulado pelas leis e submetido às mesmas”.12 A construção de Raz requer que as leis devam ser entendidas como regras gerais, para que possam efetivamente direcionar ações. Nesse sentido, o Direito não é apenas um fato decorrente do poder, precisa, ao contrário, possuir uma forma particular. Raz, no entanto, não compartilha da ideia defendida por Hayek, segundo a qual apenas normas abstratas e gerais podem constituir um sistema de Estado de Direito. Para Raz, seria impossível governar apenas com normas gerais; qualquer sistema concreto deve ser composto por normas gerais e outras específicas, que em contrapartida devem ser consistentes com as primeiras. Para concretizar o objetivo de um sistema jurídico que possa guiar a ação individual, Raz cria sua própria lista com os princípios do Estado de Direito, de acordo com os quais as leis devem ser prospectivas, acessíveis, claras e relativamente estáveis; a edição de normas específicas deve ser guiada por outras que sejam, por sua vez, acessíveis, claras e gerais.
Porém, essas regras somente farão sentido se houver instituições responsáveis pela sua aplicação consistente, a fim de que o Direito possa se tornar um parâmetro efetivo para guiar a ação individual. A formulação de Raz requer, desse modo, a existência de um judiciário independente, porque, se as normas fundamentam racionalmente as ações e o judiciário é responsável por aplicá-las, seria inútil guiar nossas ações pelas leis se as cortes pudessem levar em consideração outras razões que não as leis ao decidir casos concretos. Pela mesma razão, os princípios do devido processo, como o direito das partes a serem ouvidas e a imparcialidade, devem ser contemplados. O Estado de Direito também requer que as cortes devam ter competência para rever atos de outras esferas do governo, a fim de assegurar a conformidade desses com o Estado de Direito. As cortes devem ser facilmente acessíveis para que não se frustre o Estado de Direito. Por último, os poderes discricionários das instâncias responsáveis pela prevenção criminal devem ser reduzidos no intuito de não se deturpar as leis. Nem o promotor nem a polícia devem ter a discricionariedade para alocar seus recursos destinados ao combate ao crime com base em outros fundamentos que não aqueles estabelecidos legalmente.13
Dentro dessa perspectiva, o Estado de Direito é um conceito formal de acordo com o qual os sistemas jurídicos podem ser mensurados, não a partir de um ponto de vista substantivo, como a justiça ou a liberdade, mas por sua funcionalidade. A principal função do sistema jurídico é servir de guia seguro para a ação humana. Essa é a primeira razão pela qual as concepções formalistas do Estado de Direito, semelhantes à formulada por Raz, recebem amplo apoio de diferentes perspectivas políticas. É extremamente importante para os governos em geral contarem com um eficiente instrumento para guiar o comportamento humano. Contudo, servir de ferramenta para distintas perspectivas políticas não significa que mesmo a concepção formalista de Estado de Direito seja compatível com todos os tipos de regimes políticos. Por favorecer a previsibilidade, a transparência, a generalidade, a imparcialidade e por dar integridade à implementação do Direito, a ideia do Estado de Direito se torna a antítese do poder arbitrário.14 Dessa maneira, as perspectivas políticas distintas que apoiam o Estado de Direito têm em comum uma aversão ao uso arbitrário do poder; essa é uma outra explicação sobre por que o Estado de Direito é defendido por democratas, liberais igualitários, neoliberais e ativistas de direitos humanos. Apesar de suas diferenças, eles são todos a favor de conter a arbitrariedade. Em uma sociedade aberta e pluralista, que ofereça espaço para ideais concorrentes acerca do bem público, a noção de Estado de Direito se torna uma proteção comum contra o poder arbitrário.
Existe, no entanto, uma explicação menos nobre para o apoio amplo ao Estado de Direito que deve ser mencionada. Tendo em vista que o Estado de Direito é um conceito multifacetado, se usarmos cada um de seus elementos constitutivos separadamente, eles serão extremamente valiosos na promoção de valores ou interesses diferentes e muitas vezes concorrentes, como eficiência de mercado, igualdade, dignidade humana e liberdade. Para aqueles que defendem reformas de mercado, a ideia de um sistema jurídico que proporcione previsibilidade e estabilidade é de extrema importância. Para os democratas, a generalidade, a imparcialidade e a transparência são essenciais e, para os defensores de direitos humanos, a igualdade de tratamento e a integridade das instâncias de aplicação da lei são indispensáveis.
Portanto, a leitura parcial desse conceito multifacetado, feita por concepções políticas distintas, também ajuda a entender a atração de público tão amplo pelo Estado de Direito. Assim, quando nós encontramos alguém defendendo o Estado de Direito, precisamos ser cautelosos e verificar se ele não está apenas exaltando uma das virtudes do Estado de Direito. Apenas a virtude que justamente sustenta os objetivos sociais que ele quer promover.
1. Conformidade com o Estado de Direito
Um dos problemas fundamentais com as concepções de Estado de Direito acima mencionadas (tanto a substantiva quanto a formal) é que elas não nos ajudam a entender quais são as condições externas (sociais, econômicas e políticas) que favorecem a adesão de um sistema jurídico aos seus ideais; nem a responder por que tanto os agentes públicos quanto os indivíduos obedeceriam à lei. Essa é a razão pela qual Maravall e Przeworski demonstram profundo desapontamento com a espécie de listas formuladas por juristas, tal como acima apresentadas: são “implausíveis como descrição” e “incompletas como explicação”.15 Dessa maneira, o primeiro desafio que aqui se coloca é buscar compreender quais condições ou mecanismos incentivam a obediência ao Estado de Direito. Por que qualquer governo com controle indisputável sob os meios coercitivos se submeteria ao Estado de Direito? Além disso, por que qualquer um de nós deveria respeitar a lei? Deixe-me começar pela primeira questão.
1.1. Por que um governante respeitaria a lei?
De acordo com Stephen Holmes, a principal tese de Maquiavel sobre esse assunto é que “os governos devem ser levados a tornar o seu próprio comportamento previsível em busca de cooperação. Os governos tendem a se comportar como se eles fossem ‘limitados’ pela lei, ao invés de usar a imprevisibilidade da lei como uma vara para disciplinar as populações a eles submetidas, (...) porque eles possuem objetivos específicos que requerem um alto grau de cooperação voluntária (...)”.16 Assim, a lei seria usada com parcimônia pelo governante a fim de obter cooperação por parte de grupos específicos dentro da sociedade, o que ele não teria sem mostrar algum respeito pelos seus interesses. Na medida em que o governante precisar de mais apoio, mais grupos serão incluídos na proteção proporcionada pela lei e, em troca desse apoio, eles se beneficiarão do tratamento previsível do governante.
Liberalismo e democracia, no entanto, requerem a expansão do Estado de Direito para todos. Foi assim, de fato, que o Estado de Direito se desenvolveu desde a Idade Média, através da expansão de privilégios a diferentes grupos. A Magna Carta é talvez o primeiro símbolo desse processo de expansão de direitos legais que culminou na Carta Internacional de Direitos Humanos no século XX e nas cartas de direitos das democracias constitucionais contemporâneas.
A distribuição de direitos, capaz de fortalecer as pessoas, torna-se, assim, o fator chave para obter cooperação. T.H. Marshal, em seu clássico Cidadania, Classe Social e Status (1967)17 proporciona uma clara descrição da evolução da cidadania nos países ocidentais, através do processo de inclusão do povo na proteção proporcionada pela lei. Tem sido através do embate político que novos grupos conseguem obter status jurídico por intermédio dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos, recebendo, como contrapartida por sua cooperação, diferentes níveis de inserção no Estado de Direito. Assim, mesmo que nós não possamos confundir o Estado de Direito com os direitos dos cidadãos, é muito difícil historicamente dissociar o processo de expansão da cidadania da ampliação do Estado de Direito. A generalidade e a aplicação imparcial da lei, como virtudes internas do Estado de Direito, estão diretamente associadas à noção de igualdade perante a lei obtida pela expansão da cidadania.18
Nos regimes democráticos contemporâneos, nos quais a legitimidade/cooperação depende de um alto grau de inclusão, os direitos tendem a ser distribuídos mais generosamente. No entanto, mesmo em um regime democrático, o governo não necessita de cooperação de todos os grupos em termos iguais, o que faz com que não haja incentivo para tratar todos igualmente perante a lei todo o tempo. Mais do que isso, tendo em vista que os grupos possuem recursos sociais, econômicos e políticos desproporcionalmente distribuídos dentro da sociedade, o custo para que eles cooperem também é desproporcional, o que significa dizer que a lei e sua aplicação serão moldadas conforme diferentes camadas de privilégios.
Isso significa que qualquer aproximação com a ideia do Estado de Direito depende não apenas da expansão de direitos no papel, mas também, e talvez de maneira mais crítica, de como esses direitos são consistentemente implementados pelo Estado. Aqui está o paradoxo enfrentado por muitos regimes democráticos com altos níveis de desigualdade social. Embora direitos iguais sejam reconhecidos nos livros, como uma medida simbólica para obter cooperação, os governos não se sentem compelidos a respeitar as obrigações correlatas a esses direitos iguais, nos mesmos termos para todos os membros da sociedade. A partir do momento em que os custos para exigir a implementação dos direitos através do Estado de Direito são desproporcionalmente maiores para alguns membros da sociedade do que para outros, ele se torna um bem parcial, favorecendo essencialmente aqueles que possuem poder e recursos para conseguir vantagens com isso. Em outras palavras, a igualdade formal proporcionada pela linguagem dos direitos não se converte em acesso igualitário ao Estado de Direito ou à aplicação imparcial das leis e dos direitos.19 Dessa maneira, é possível ter direitos, mas não possuir suficientes recursos para exigir a sua implementação. Nesse sentido, é apropriado pensar no Estado de Direito não em termos de sua existência ou inexistência, mas sim em graus de inclusão. O processo democrático pode expandir o Estado de Direito. Porém, mesmo os regimes democráticos em sociedades com extremos níveis de desigualdade, onde as pessoas e os grupos possuem recursos e poder desproporcionais, o Estado de Direito tende a ser menos capaz de proteger os economicamente desfavorecidos e de fazer os poderosos serem responsabilizados perante a lei.
No entanto, o controle do poder estatal e sua submissão à lei não é apenas uma consequência de como o poder está socialmente distribuído. Nas sociedades modernas, as instituições são criadas para moldar o comportamento, através de inúmeras formas de incentivo. Instituições também podem ser desenhadas para controlar umas às outras. Conforme notado por Madison: quando a ambição é institucionalmente direcionada para restringir a ambição, a possibilidade de ter o governo sob controle aumenta.20 Os momentos fundacionais se tornam assim muito importantes. Quando poderes sociais concorrentes não são suficientemente fortes para superar uns aos outros, eles tendem a se comprometer com a criação de estruturas políticas dotadas de poderes fragmentados e contrapostos. Os grupos menos favorecidos podem se beneficiar do resultado desses conflitos de elite. Essa é a lógica básica que informa o constitucionalismo moderno.
Contudo, o Estado de Direito tem como objetivo mais do que ter um governo submetido ao controle constitucional e legal. Ele também procura guiar o comportamento individual e a interação social. Dessa forma, também é necessário explorar por que as pessoas se comprometeriam com o Direito. Assim é importante buscar compreender quais são as razões que todos nós levamos em consideração quando obedecemos ao Direito.
1.2. Por que as pessoas respeitam a lei?
Razões cognitivas. O primeiro conjunto de razões para que haja o cumprimento individual das leis é certamente cognitivo e diz respeito à capacidade de entendimento dos conceitos jurídicos básicos, como a noção de regras e direitos. Sem essas concepções culturais básicas, nós não podemos pensar na possibilidade de respeitar o Direito. Essa não é uma questão trivial. Em muitas sociedades, a ideia de que as pessoas sejam possuidoras de direitos iguais e de que o Direito deva ser aplicado imparcialmente é, com frequência, contrária à experiência diária. Privilégios existentes, direitos decorrentes de classe e de hierarquia estão cravados em diferentes sistemas culturais, fazendo com que a experiência da generalidade do Direito não seja observável. Além de entender a função estrutural dos conceitos jurídicos básicos, é importante que as pessoas compreendam as regras fundamentais que governam suas próprias sociedades, suas obrigações e direitos. Nas sociedades com alto grau de concentração de pobreza e de analfabetismo, essa condição quase nunca é satisfeita.21
Razões instrumentais. O segundo conjunto de razões para a obediência ao Estado de Direito está ligado à nossa habilidade de raciocinar instrumentalmente, calcular riscos e potenciais benefícios nas ações que tentamos realizar. As pessoas respeitam as leis e os direitos dos demais para obter recompensas ou escapar de punições. Se utilizarmos uma visão instrumental estrita, o respeito ao Direito é reforçado se o seu descumprimento acarretar claramente um custo para o nosso bolso, liberdade, imagem, estado psíquico ou integridade, e se respeitá-lo for igualmente benéfico pelas mesmas razões. Para ter um valor instrumental, respeitar o Estado de Direito deve gerar algum tipo de benefício para a pessoa. Através dessa razão instrumental, os indivíduos buscam maximizar os seus ganhos econômicos, políticos ou sociais. Duas razões instrumentais sustentam a discussão nesse contexto – o medo da coerção estatal e a reciprocidade mutuamente vantajosa.
Na medida em que as pessoas temem e esperam punição ou recompensa estatal, elas tendem a respeitar o Estado de Direito. Essa ideia poderia ser chamada de argumento hobbesiano. A coerção estatal pode ser instrumento eficiente para promover o respeito ao Direito em algumas circunstâncias, sendo também uma condição necessária, porque certo grau de comportamento antissocial irá sempre existir, sem que possa de outra maneira ser controlado. Desse modo, a impunidade causada pela ineficiência estatal, corrupção ou seletividade colocam em risco a capacidade de ameaça da coerção como um meio de obter obediência. Deve ser levado em consideração também que o Estado, em muitas circunstâncias, deve ser provocado por indivíduos antes de exercer a coerção. As pessoas devem com frequência preencher reclamações, ingressar com processos judiciais, ou apenas informar à polícia certos fatos ilícitos para que o Estado tome alguma atitude. Dessa maneira, a falta de recursos ou desconfiança nas autoridades pode produzir um forte impacto na mobilização do poder estatal, permitindo àqueles que não obedecem à lei agir impunemente.
É difícil para qualquer sociedade, no entanto, arcar com o custo do grau de coerção estatal necessário para assegurar a obediência aos parâmetros legais. Imagine, por exemplo, que a ameaça de uma multa ou prisão fosse a única razão pela qual as pessoas deixariam de ultrapassar o sinal vermelho no semáforo de trânsito. A experiência dos Estados totalitários mostra que conseguir obediência pela constante vigilância é algo extremamente caro e, mesmo se os custos pudessem ser suportados, seria absolutamente indesejado.
As razões instrumentais para obedecer à lei deveriam, assim, ser estendidas para além da estrutura coercitiva do Estado. As pessoas fazem parte de círculos sociais, grupos e comunidades que moldam e determinam suas ações.22 Portanto, a segunda razão instrumental para respeitar a lei é a expectativa de represália ou benefício por parte da comunidade ou círculo social ao qual se pertence ou pelo qual se transita. A fraude no mercado ou no casamento possui sérias consequências. A credibilidade é um bem de grande importância em qualquer grupo. Perdê-la, por desrespeitar a lei, pode prejudicar a posição pessoal e diminuir a sua capacidade de entrar em novas relações voluntárias com outros membros daquele círculo social. Essa é a razão pela qual as pessoas comumente agem de acordo com o Direito, mesmo na ausência de autoridade estatal.23
Numa relação mutuamente vantajosa, a regra de ouro é: não faço aos outros o que eu não gostaria que fizessem comigo. Por não ser um princípio moral substantivo, essa regra não afirma nem nega a existência de uma estrutura moral mais profunda. Relações mutuamente vantajosas, no entanto, podem auxiliar na obtenção da obediência à lei, ainda que em termos frágeis. Partindo de uma estrutura de vantagem mútua, em circunstâncias de disparidade de poder, indivíduos têm um incentivo para trapacear: o meu interesse é que todos os outros cooperem e que eu não o faça.24 Pressões amistosas também podem ser problemáticas, porque o meio social pode ser influenciado por uma cultura de desrespeito, ou pior, por uma cultura interna de respeito que desafie o Estado de Direito, como no caso da máfia e de outras formas de crime organizado. Consequentemente, as razões instrumentais representadas pela coerção ou por arranjos de vantagem mútua (auto interessada) não conseguem explicar totalmente por que as pessoas obedeceriam à lei. Embora importantes, elas são insuficientes como explicação completa da questão.
Razões morais. A moralidade tem sido negligenciada por muitas análises recentes da eficácia do Direito, especialmente por aquelas elaboradas por pensadores jurídicos formalistas ou estudiosos ligados à escolha racional.25 Nesse sentido, o argumento de Lon Fuller de que a reciprocidade moral é um elemento fundamental para a existência de um sistema legal se torna particularmente interessante.26 A implementação do Estado de Direito seria consideravelmente mais fácil naquelas sociedades em que os indivíduos construam o seu pacto de reciprocidade baseado não apenas no auto interesse, mas na noção de que cada indivíduo é dotado de igual valor moral, devendo, portanto, merecer igual respeito e consideração.27 Os direitos igualmente distribuídos não são um presente dos céus, mas sim uma construção social; uma decisão feita pela comunidade para valorizar os indivíduos em termos equitativos e para fundamentar o exercício do poder nesses direitos básicos.28 Isso significa que as decisões coletivas são apenas válidas se derivarem da vontade de indivíduos autônomos e se eles respeitarem a esfera da dignidade humana delineada por esses mesmos direitos.29
Esse é um sistema governado por regras, no qual cada cidadão recebe o status de sujeito de direito, sendo a ele conferida uma esfera de proteção ao entrar em contato com outros cidadãos e com o Estado, este último também subordinado ao princípio da reciprocidade. Nesse sentido, a autocontenção, que implica respeito pelos direitos dos outros, é a base fundamental para a generalização de expectativas relacionadas com o estabelecimento do Estado de Direito. Na medida em que essas expectativas de respeito aos direitos de todos são generalizadas, a implementação de um autêntico Estado de Direito também se torna possível.
Pode-se argumentar, no entanto, que a reciprocidade sempre tem uma origem utilitária, ou seja, que o meu respeito pelos outros não surge por eu lhes ter concedido algum valor (reciprocidade kantiana), mas sim pelo fato de que nós firmamos um pacto de não agressão que serve aos nossos interesses (reciprocidade hobbesiana).30 Como eu havia argumentado acima, existe uma diferença entre a reciprocidade moral baseada na noção da dignidade humana e a reciprocidade mutuamente vantajosa, com fundamento no cálculo estratégico. Voltando ao exemplo do semáforo de trânsito, de acordo com a concepção moral de reciprocidade, eu pararia meu carro porque acreditaria firmemente que os outros motoristas ou pedestres têm o mesmo direito que eu possuo de atravessar o cruzamento, portanto, eu tenho a obrigação correlata de parar. Numa comunidade limitada pela reciprocidade moral, baseada em direitos, a lei deveria ser mais fácil de ser implementada. Evidentemente que são inúmeros os empecilhos para se obter ou construir reciprocidade moral, dificuldades essas que são ainda maiores em sociedades modernas e consumistas caracterizadas por disparidades socioeconômicas profundas entre seus membros.
A ideia da moralidade, contudo, poderia ser mais formal, como a articulada por autores contratualistas como Rousseau. Nesse caso, a justificativa moral para o respeito à lei não deriva do fato de que um dado sistema jurídico esteja em harmonia com um conjunto pré-estabelecido de valores embutidos nos direitos. O respeito à lei é devido ao fato de que os próprios cidadãos, sob um procedimento especial justo, produzem leis reguladoras das relações sociais e da esfera pública. A justiça do procedimento garantiria que a maximização do auto interesse fosse neutralizada, assim o povo poderia deliberar em termos de bem público, o que criaria uma obrigação moral sobre todos os cidadãos de aceitar esses resultados.31 Se nós seguirmos aqui a teoria de Rousseau acerca do Estado de Direito, não apenas os procedimentos deveriam ser justos, mas também o resultado deveria ser veiculado através de meios específicos que assegurassem a imparcialidade. Ou seja, por meio de leis gerais. Neste sentido é importante enfatizar que a justiça procedimental não está limitada a processos para edição de leis gerais, o que seria aceito por todos os participantes no processo político, mas também trata da maneira pela qual essas leis são implementadas pelo Estado. Novamente seguindo Rousseau, uma das maiores causas do declínio da democracia é a distorção na aplicação de leis gerais feita por magistrados que tendem a defender seus próprios interesses privados em detrimento da vontade geral expressa pela lei.32 Dessa maneira, a justiça da aplicação das leis é tão importante quanto a justiça referente a sua produção. Se a aplicação do direito não for levada a cabo com imparcialidade, de acordo com parâmetros de devido processo apresentados pela própria lei, o Estado de Direito perderá sua autoridade e, consequentemente, o povo não o verá como uma diretriz aceitável para a sua ação.33
Para resumir o argumento aqui elaborado, a obediência individual à lei é sustentada por três conjuntos principais de razões: cognitiva, instrumental e moral. Conforme tentei argumentar, todas essas razões são importantes para explicar por que os indivíduos (cidadãos e agentes públicos) agem em conformidade com o Estado de Direito, mesmo que o peso de cada razão varie de acordo com a natureza da ação, os atores envolvidos e as circunstâncias ou os círculos sociais nos quais as ações ocorrem.
Notas
1 BRACTON, Henry. On the laws and customs of England.
2 O´DONNELL, Guillermo. Why the rule of law matters. Journal of democracy, pp. 32-46.
3 VIEIRA, Oscar Vilhena. A violação sistemática dos direitos humanos como limite à consolidação do Estado de Direito no Brasil. Direito, cidadania e justiça.
4 CAROTHERS, Thomas. Promoting the rule of law abroad in search of knowledge, pp. 3-13.
5 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores, p. 357.
6 TAMANAHA, Brian. On the rule of law, pp. 137-141.
7 WEBER, Max. Economia y sociedad, pp. 603-620.
8 UNGER, Roberto Mangabeira. O direito na sociedade moderna: contribuição à crítica da teoria social, pp. 225-228.
9 HAYEK, Friedrich August von. A. O caminho da servidão.
10 HAYEK, Friedrich August von. A. O caminho da servidão.
11 RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality, p. 211.
12 RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality, p. 212.
13 Idem, pp. 216-217.
14 RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality, p. 220.
15 MARAVALL, José Maria; PRZEWORSKI, Adam (org). Democracy and the rule of law, p. 1.
16 HOLMES, Stephen. Lineages of the rule of law. Democracy and the rule of law, p. 20.
17 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status.
18 BENDIX, Reinhard. Nation-building and citizenship, p. 92.
19 Agradeço a Persio Arida por essa observação.
20 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers, cap. 51.
21 Com relação a isso, é importante destacar que o grau de conhecimento sobre a constituição política na América do Sul é muito baixo; apenas 30% dos latino-americanos sabem alguma coisa ou muito sobre a sua Carta Magna e apenas 34% conhecem os seus deveres e obrigações, Latinobarometro, p. 14.
22 GALLIGAN, Denis J. Law in modern society, pp 310-326.
23 ELLICKSON, Robert C. Order without law: how neighbours settle disputes, pp. 281-283.
24 BARRY, Brian. Justice as impartiality, p. 51.
25 BECKER, Gary. Crime and punishment: an economic approach. Journal of political economy, pp. 169-217.
26 FULLER, Lon L. The morality of freedom, pp. 21-25.
27 DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue, theory and practice of equality.
28 HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy, p. 119.
29 Idem, p. 82.
30 REISS, Hans. Kant: political writings.
31 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The social contract, pp. 339-340.
32 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The social contract, p. 418.
33 TYLER, Tom. Why people obey the law.
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Citação
VIEIRA, Oscar Vilhena. Estado de Direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/78/edicao-1/estado-de-direito
Edições
Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1,
Abril de 2017
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