O processo de democratização no país, tendo como marco institucional e legal a Constituição Brasileira de 1988, propiciou a organização de uma ordem legal urbana configurando o direito urbanístico brasileiro. A ordem legal urbana confere um papel preponderante ao Município como ente federativo para atuar no campo legislativo, administrativo e econômico na promoção das políticas de desenvolvimento urbano, no planejamento e ordenamento de uso e ocupação de seu território (urbano e rural), e na promoção de políticas públicas que propiciem o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade e do bem-estar de seus habitantes. Essa responsabilidade preponderante do Município não exclui de forma alguma as responsabilidades e competências da União e dos Estados para enfrentar os problemas urbanos.
A nova ordem legal urbana que vem sendo constituída no Brasil a partir da Constituição Brasileira de 1988, na esfera federal conta em especial com as seguintes legislações: Lei Federal de Desenvolvimento Urbano – Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001); Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/1979); lei sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei 11.124/2007); lei sobre o Sistema Nacional de Saneamento Ambiental (Lei 11.445/2007); lei sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010); lei sobre o Patrimônio da União que disciplina a regularização fundiária das terras urbanas e rurais da União (Lei 11.381/2007); lei que dispõe sobre o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Lei 7.661/1988); lei que instituiu o Programa Minha Casa Minha Vida e tratou da regularização fundiária de assentamentos irregulares em área urbana (Lei 11.977/2009); lei que tratou da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal 12.587/2012); lei que tratou da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei Federal 12.608/2012); e mais recentemente, o Estatuto da Metrópole (Lei Federal 13.089/2015). Algumas normas específicas contidas na lei sobre o sistema nacional de recursos hídricos (Lei 9.433/1997), nos códigos civil, florestal e tributário e na Lei de Registros Públicos também devem ser consideradas para a compreensão do direito urbanístico no Brasil.
1. Direito urbanístico e política urbana
1.1. Compreensão do direito urbanístico
O direito urbanístico para a ciência do direito, é o ramo do direito com interface com o direito público que sistematiza e organiza o conjunto de princípios e normas jurídicas voltadas à organização planejada do espaço urbano com a finalidade do bem-estar de seus habitantes. Para o direito objetivo, é o ramo do direito público que reúne, sistematicamente, todas as normas, atos e fatos jurídicos que visam à harmonização das funções do meio ambiente urbano, na busca pela qualidade de vida equilibrada e justa de todos os cidadãos.
Contextualização do termo. Até a Constituição Federal de 1988, o direito urbanístico brasileiro tinha como foco a ordenação das cidades brasileiras. O Estado editava normas jurídicas para ordenar a ocupação do espaço urbano em sua localização e uso (lei de zoneamento) e as especificações das construções (altura, número de andares, recuos – código de posturas).
A Constituição Federal de 1988 trouxe a previsão explícita do direito urbanístico, no art. 24, I, atribuindo competência legislativa concorrente à União e aos Estados membros dispor sobre a matéria. Ao Município está estabelecida competência privativa para executar a política urbana e a ordenação do território (Constituição Federal, art. 30, VIII, e 182). Sobre seu conteúdo, a Carta Magna dispõe de capítulo próprio para a Política Urbana (Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira, Capítulo II – Política Urbana, arts. 182 e 183) inaugurando uma nova estrutura para o direito urbanístico brasileiro incluindo o bem-estar dos habitantes e o planejamento como elementos indissociáveis da organização do espaço urbano, previsto no caput do art. 182.
Em 2001, foi publicada a Lei Federal 10.257/01, chamada de Estatuto da Cidade, que editou as normas gerais voltadas para a política urbana estabelecendo normas sobre planejamento urbano, diretrizes, princípios, instrumentos, competências e sanções para descumprimento das normas cogentes.
Desde a Constituição Federal de 1988, o Direito Urbanístico Brasileiro ganhou intenso substrato normativo em todas as esferas federativas, bem como nos três Poderes, garantindo realidade, efetividade e complexidade. A inclusão da finalidade do bem-estar dos habitantes de maneira textual no Texto Constitucional legitimou a possibilidade de inserção de produções normativas não institucionalizadas, conforme referido na definição de direito urbanístico em seu aspecto objetivo. Os espaços urbanos brasileiros, com toda sua complexidade social e ambiental, é o objeto do Direito Urbanístico Brasileiro contemporâneo.
1.2. A política urbana na Constituição brasileira de 1988
A Política Urbana, ou política de desenvolvimento urbano, é tratada no Capítulo II do Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira da Constituição da República de 1988. Como política pública, materializa-se na forma de um programa de ação governamental voltado à ordenação dos espaços habitáveis, abrangendo, dessa forma, tanto o planejamento quanto a gestão das cidades.
A execução da atividade urbanística, ora compreendida como a intervenção estatal voltada à ordenação dos espaços habitáveis, é uma típica função pública, a ser desempenhada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em suas correspectivas esferas de competência, mediante a necessária participação da sociedade civil, em cooperação com a iniciativa privada e demais setores da sociedade e em condições isonômicas com os agentes privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização.
O protagonismo dos Municípios nesta seara é inegável, uma vez que cabe ao Poder Público Municipal, por expressa determinação constitucional, a execução da política de desenvolvimento urbano, conforme as diretrizes gerais fixadas por meio de lei federal (CF, art. 182, caput). Entre os diplomas normativos voltados ao estabelecimento das diretrizes gerais da Política Urbana destacam-se o Estatuto da Cidade, editado em 2001 na forma da Lei Federal 10.257, e o Estatuto da Metrópole, editado em 2015 na forma da Lei Federal 13.089.
Incumbe aos Municípios fixar, por meio dos seus respectivos Planos Diretores – editados por meio de lei municipal e obrigatórios para cidades com população superior a vinte mil habitantes – as exigências fundamentais de ordenação da cidade (CF, art. 182, § 2º) bem como delimitar as áreas em que o Poder Público municipal poderá exigir, mediante lei específica, nos termos da lei federal, o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, não utilizado ou subutilizado, por meio da aplicação sucessiva dos instrumentos enumerados no art. 182, § 4º, da Constituição, a saber: notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, imposto predial e territorial progressivo no tempo e desapropriação-sanção. Reputa-se, assim, cumprida a função social da propriedade na medida em que o proprietário dê ao imóvel urbano o devido aproveitamento, conforme as exigências fundamentais de ordenação da cidade apontadas pelo Plano Diretor (CF, art. 182, § 2º).
A política de desenvolvimento urbano tem dois objetivos constitucionais essenciais: a ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, na forma que dispuser o Plano Diretor, e a garantia do bem-estar de seus habitantes (CF, art. 182, caput). Ambos os objetivos guardam íntima relação com a concretização dos direitos sociais enunciados no art. 6º da Constituição da República, em especial com os direitos sociais ao trabalho, à moradia, ao transporte e ao lazer os quais, na classificação proposta pela Carta de Atenas, correspondem às quatro funções essenciais da cidade.
A menção à garantia do bem-estar dos habitantes da cidade remete, ainda, ao caput do art. 225 da Constituição, que enuncia o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
A conjugação entre os arts. 182 e 225 da Constituição da República permite afirmar que o modelo de desenvolvimento a ser promovido pela Política Urbana Brasileira é o do desenvolvimento urbano sustentável, pautado pelo equilíbrio entre crescimento econômico, inclusão social e preservação ambiental e pela solidariedade inter-geracional. Esta opção constitucional implícita pelo modelo de desenvolvimento urbano sustentável é confirmada pela enunciação explícita da garantia do direito às cidades sustentáveis como diretriz geral da política urbana brasileira feita pelo art. 2º, inciso I, do Estatuto da Cidade.
2. Princípios do direito urbanístico
2.1. Princípio das funções sociais das cidades
2.1.1. Funções sociais da cidade como princípio constitucional da política urbana
As funções sociais da cidade, como princípio constitucional dirigente da política urbana, foram introduzidas na Constituição Brasileira pelo caput do art. 182 de forma vinculada com a garantia do bem-estar de seus habitantes. Com esta vinculação dos objetivos, o interesse em que as funções sociais da cidade sejam plenamente desenvolvidas é dos habitantes da cidade, o que abrange qualquer pessoa, qualquer grupo social. Com isso, não há o estabelecimento de categorias entre os cidadãos pelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independente da origem social, condição econômica, raça, cor, sexo ou idade.
Cabe aos Municípios como principal ente federativo na promoção da política urbana definir quais são e de que forma deve ser desenvolvidas as funções sociais da cidade tendo como principal instrumento o plano diretor. De forma geral os Municípios brasileiros têm definido as funções sociais da cidade como o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, ao acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento socioeconômico e ambiental. Os componentes das funções sociais da cidade têm sido compreendidos como os mesmos componentes do direito a cidades sustentáveis previstos no Estatuto da Cidade: terra urbana, moradia digna, saneamento ambiental, infraestrutura urbana, transporte, serviços públicos, trabalho, sossego e lazer.
As funções sociais da cidade como princípio constitucional é uma evolução das tradicionais funções urbanísticas concebidas pelo urbanismo modernista do início do século XX referente ao trabalho, habitação, transporte e lazer. A preocupação social é ampliada para as questões do desenvolvimento econômico e do meio ambiente na concepção construída das funções sociais das cidades
2.1.2. Do desenvolvimento das funções sociais da cidade
O desenvolvimento das funções sociais da cidade, por ser interesse de todos os habitantes da cidade, se enquadra na categoria dos interesses difusos, pois todos os habitantes são afetados pelas atividades e funções desempenhadas nas cidades: proprietários, moradores, trabalhadores, comerciantes e migrantes têm como contingência habitar e usar um mesmo espaço territorial. Logo, a relação que se estabelece entre os sujeitos é com a cidade, que é um bem comum.
O desenvolvimento das funções sociais da cidade através da política urbana significa a priorização de funções destinadas a combater e reduzir as desigualdades sociais e territoriais, a combater e eliminar a pobreza, a promover a justiça social, a satisfazer os direitos fundamentais das pessoas de terem condições de vida digna, como à moradia e um meio ambiente sadio.
O pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade deve ser entendido como um interesse difuso dos seus habitantes de proteger e promover o direito à cidade. Os habitantes da cidade são sujeitos de direito, podendo, perante as esferas do Poder Público e do Poder Judiciário, exigirem o cumprimento do direito à cidade, nas situações em que o desempenho de atividades e funções exercidas nas cidades resulte em conflitos de interesses urbanos de intensa litigiosidade e complexidade -- tais como a instalação de uma penitenciária, ampliação e abertura de estradas e de avenidas, destinação de áreas para aterros sanitários e usinas de tratamento de lixo em bairros residenciais, implantação de condomínios habitacionais de alto padrão, horizontais e verticais.
Para a solução pacífica destes conflitos deve ser aplicado o princípio das funções sociais da cidade de forma conjunta com os demais princípios voltados à solução de litígios e controvérsias, como o princípio da paz, da igualdade e da razoabilidade.
A incorporação da função social das cidades como preceito que deve balizar a política urbana à luz do desenvolvimento sustentável aponta para a construção de uma nova ética urbana, em que os valores da paz, da justiça social, da solidariedade, da cidadania, dos direitos humanos predominem no desempenho das atividades e funções da cidade, de modo que estas sejam destinadas à construção de uma cidade mais justa e humana.
2.1.3. Das violações ao princípio das funções sociais da cidade
O não cumprimento do princípio das funções sociais da cidade deve acarretar responsabilidade civil, administrativa e criminal pelos agentes públicos ou privados que causarem lesão a este princípio. O pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade está associado aos interesses difusos dos habitantes da cidade caracterizando situações de violação e lesão deste princípio, ações e omissões, medidas legislativas, administrativas e judiciais e práticas sociais que resultem por exemplo:
em restrições ou impedimento na manutenção da memória e identidade cultural, das formas de convivência pacífica;
em restrições e impedimento das formas de uso social e cultural dos espaços públicos, e de atividades econômicas sociais;
no impedimento, recusa, dificuldade da participação política coletiva dos grupos sociais e de habitantes na gestão da cidade, bem como no cumprimento das decisões e das prioridades definidas nos processos participativos que integram a gestão da cidade.
Configura também violação ao princípio da função social da cidade, a omissão dos agentes públicos, que implique na não aplicação desse princípio em qualquer das esferas governamentais: no campo administrativo, envolvendo a elaboração e execução de projetos, programas e planos; na esfera legislativa, por meio da edição de leis, controle dos recursos públicos e ações de governo e na esfera judicial, nos julgamentos e decisões sobre conflitos coletivos e difusos referentes a assuntos de interesse urbano.
2.1.4. Tutela das funções sociais da cidade e da ordem urbanística
Para assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais como um interesse difuso de todos os habitantes da cidade, é conferida a legitimidade de ação na esfera administrativa e judicial a qualquer habitante, de grupo de moradores, de grupos sociais vulneráveis (como de mulheres pobres chefes de família de um bairro de periferia), de organizações populares, de associações comunitárias e de organizações não governamentais para atuar não somente na defesa do direito à cidade de um determinado agrupamento social, como também na defesa deste direito em razão do interesse de todos os habitantes da cidade.
O art. 53 do Estatuto da Cidade altera o art. 1° da Lei 7.347/1985 que dispõe sobre a ação civil pública e a tutela dos interesses difusos e coletivos, incluindo a ordem urbanística no rol destes interesses A ordem urbanística é respeitada quando os princípios, diretrizes, objetivos e instrumentos da política urbana forem aplicados nos termos do texto constitucional e do Estatuto da Cidade entre esses princípios o do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.
Na esfera do Poder Judiciário, o princípio das funções sociais da cidade deverá ser aplicado nos julgamentos e decisões sobre os conflitos de interesses coletivos e difusos, que sejam referentes a atividades e funções desenvolvidas nas cidades, e que resultem na lesão dos interesses difusos dos habitantes em ter uma vida digna e na violação ao direito a cidades sustentáveis.
A existência de atividades, usos e formas de ocupação e apropriação dos espaços urbanos que ocasionem lesão ao princípio das funções sociais da cidade configura lesão à ordem urbanística cabendo o uso da ação civil pública para evitar dano ao direito material, neste caso, dano ao direito a cidades sustentáveis.
A inércia ou omissão do Poder Público ou a ação de grupos de habitantes -- proprietários de imóveis urbanos e agentes privados que não resultem na proteção, recuperação, manutenção e ampliação dos espaços públicos, na urbanização e regularização fundiária das áreas ocupadas por população de baixa renda, na priorização dos investimentos sobre mobilidade urbana para o transporte públicos, na inexistência de canais e formas de gestão democrática da cidade são exemplos de descumprimento das funções sociais da cidade e de configuração de um dano à ordem urbanística .
Na existência de lesão ou ameaça da ordem urbanística cabe a ação civil pública na defesa dos interesses e necessidades sociais e ambientais e culturais dos habitantes da cidade, de modo a ampliar o acesso à Justiça e potencializar o papel do judiciário de buscar soluções justas e pacíficas nos conflitos urbanos de alta litigiosidade e complexidade, que afetem as funções sociais da cidade e o direito a cidades sustentáveis.
Os órgãos governamentais e conselhos com competência em políticas de desenvolvimento urbano previstos no Estatuto das Cidades como por exemplo os Conselhos das Cidades que possibilita a participação de representantes da sociedade civil nesses organismos colegiados de caráter público devem também promover a tutela do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.
A proteção do direito à cidade deve ser promovida por instituições essências a função da justiça como o Ministérios Público e Defensoria Públicas. Os organismos universitários de direitos humanos como Núcleos de Prática Jurídica, Escritórios Modelos e Clínicas de Direitos humanos que atuam no campo da advocacia popular também podem promover a tutela do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.
2.2. Princípio da função social da propriedade urbana
A Função social da propriedade urbana é princípio de Direito Urbanístico e atinge a todas as propriedades imóveis urbanas, entretanto resolve-se diferentemente em razão de seu regime jurídico. Está positivado na Constituição Federal nos arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, §§ 2º e 4º. Localiza-se como princípio, pois não é mero exercício de faculdade, norma impositiva ou proibitiva. Cinge-se como elemento garantidor do próprio direito de propriedade. Traz sua positivação por meio de Plano Diretor municipal aprovado na forma da lei e torna-se efetivo com o devido cumprimento das normas jurídicas incidentes sobre a propriedade imóvel urbana, conforme disposto no art. 182, § 2º da Constituição Federal.
Com relação a função social da propriedade imóvel privada urbana toda a positivação da função social da propriedade urbana na Constituição Federal refere-se à propriedade imóvel privada urbana.
Referente a função social da propriedade imóvel pública urbana a Constituição Federal não traz dispositivo específico sobre a função social da propriedade imóvel pública urbana. Por interpretação sistemática do Texto, ao dispor que o desenvolvimento urbano tem como finalidade o bem-estar dos habitantes (Constituição Federal art. 182), todo o espaço urbano deve estar voltado para a consecução das finalidades constitucionalizadas. Ex: a propriedade imóvel pública urbana cumpre sua função social ao destinar área sua sem uso a programas de moradia social; a propriedade imóvel pública urbana cumpre sua função social ao promover pleno funcionamento de hospitais e escolas.
3. Instrumentos de política urbana
3.1. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios
O parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios são obrigações que recaem sobre proprietários de imóveis urbanos não edificados, não utilizados ou subutilizados, com previsão constitucional no art. 182, § 4º, e fundamento no princípio da função social da propriedade. Integram uma tríade de instrumentos de aplicação sucessiva, cujas etapas seguintes são a aplicação do IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.
A competência para promover as notificações para o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios é do Poder Executivo Municipal com base em previsão no Plano Diretor e em lei municipal específica, que delimitarão as circunstâncias e a abrangência da aplicação desse instrumento urbanístico. Embora a Constituição Federal anuncie o instrumento como uma faculdade do Poder Público, deve-se interpretar o dispositivo à luz dos princípios da ordem urbanística e da administração pública, o que coloca tal poder na condição de um poder-dever de agir diante do descumprimento da função social da propriedade urbana nos casos delimitados pela lei municipal.
Definição de imóveis subutilizados, não utilizados e não edificados
A notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios aplica-se nas hipóteses em que ficar configurada alguma das situações constitucionalmente previstas, a saber: solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado.
A única definição constante em legislação nacional está presente na Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que considera como subutilizado o imóvel cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente (art. 5o, § 1o). Não há definições de solo urbano não edificado e não utilizado, ficando a cargo dos Municípios o papel de legislarem sobre tais situações.
Além das hipóteses de aplicação, cabe ao Plano Diretor a delimitação das áreas urbanas onde o instrumento poderá ser aplicado. Não existe obrigatoriedade de incidência em todo o perímetro urbano, podendo haver ser restrito a determinadas regiões. Como parâmetros orientadores do planejamento municipal, o Estatuto da Cidade indica a existência de infraestrutura e de demanda para utilização. Isso significa que o instrumento não é recomendado para áreas sem infraestrutura ou muito remotas, fatores de desestímulo para o aumento da ocupação e do adensamento populacional.
Procedimento de notificação
Em conformidade com o Estatuto da Cidade, a notificação far-se-á preferencialmente por funcionário do órgão público municipal competente, ao proprietário do imóvel ou, no caso de este ser pessoa jurídica, a quem tenha poderes de gerência geral ou administração. Nos casos em que houver três tentativas frustradas, a notificação poderá ser editalícia, com publicação em Diário Oficial.
Uma vez realizada a notificação, imediatamente são produzidos efeitos em relação ao proprietário do imóvel. O principal efeito é o início da contagem de prazos para que seja efetivada a função social da propriedade. O Estatuto da Cidade assegura aos proprietários os prazos mínimos de: I - um ano, a partir da notificação, para que seja protocolado o projeto no órgão municipal competente; e II - dois anos, a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras do empreendimento. O Município, no entanto, tem autonomia para estabelecer prazos distintos desde que respeitados os limites mínimos do Estatuto da Cidade. Ainda, caso o empreendimento seja considerado de grande porte, a lei municipal específica poderá prever a conclusão em etapas.
Uma vez realizada a notificação, o Poder Público deve requerer sua averbação na matrícula do imóvel junto ao cartório competente. Como consequência, a imposição estabelecida grava o imóvel, configurando-se em uma obrigação que acompanhará a coisa mesmo que seja transferida a terceiros. Em outras palavras, caso o imóvel venha a ser transmitido, o encargo será exigido do novo proprietário nas mesmas condições e prazos estabelecidos na notificação original (art. 6º), independente de sua vontade. Nessa hipótese, o município não precisa efetuar nova notificação, pois a averbação na matrícula é elemento suficiente para transmitir a obrigação.
A averbação não é condição para que a notificação produza seus efeitos em relação ao proprietário do imóvel, o que ocorre de imediato. Entretanto, sem o ato registral, não há como obrigar os terceiros de boa-fé que, porventura, venham a adquirir o imóvel. A averbação cumpre, portanto, um duplo papel: (i) informar eventuais adquirentes do imóvel sobre a existência de um encargo; (ii) servir de mecanismo inibidor de fraudes, protegendo o interesse público para assegurar a aplicação do instrumento nos mesmos prazos e condições previstos na notificação.
3.2. IPTU progressivo no tempo
Segundo dispõe o art. 182, § 4º, inciso II da Constituição da República, o Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU pode ter alíquotas progressivas no tempo, com o objetivo de compelir o proprietário de imóvel não-edificado, não-utilizado ou subutilizado, localizado em área demarcada pelo Plano Diretor, a dar-lhe a devida destinação, sob pena de incorrer na desapropriação sanção do imóvel.
Essa progressividade no tempo, que não se confunde com a progressividade e seletividade fiscais do IPTU tratadas no art. 156, § 1o, incisos I e II, da Constituição Federal, tem caráter eminentemente extrafiscal, pois visa realizar objetivos de política urbana e não aumentar a arrecadação. Trata-se de medida sancionatória voltada a constranger o proprietário de imóvel urbano retido em especulação a dar-lhe a destinação apontada pelo Plano Diretor, dando assim cumprimento à sua função social.
O procedimento para instituição e cobrança do IPTU progressivo no tempo foi regulado pelo Estatuto da Cidade, em seu art. 5º e seguintes, o que não dispensa os Municípios que desejarem instituí-lo de editar a correspondente legislação específica em âmbito local.
Em linhas gerais, notificado o proprietário do imóvel não-edificado, subutilizado ou não-utilizado a dar ao mesmo a devida destinação, transcorridos sem cumprimento os prazos mínimos de um ano, para protocolo do projeto na repartição municipal competente, ou de dois anos, a partir da aprovação do projeto, para início de obras, o Município deve aplicar o IPTU progressivo no tempo, elevando as alíquotas na forma da lei específica ano a ano, pelo prazo máximo de cinco anos, observado o limite máximo de 15% (quinze por cento). Ano a ano, a alíquota não pode ultrapassar o dobro do valor referente ao ano anterior.
Os limites legais à progressividade da alíquota no tempo, impostos pelo Estatuto da Cidade, visam conferir ao imposto o devido e excepcional caráter sancionatório, sem incorrer indiretamente na expropriação do imóvel, conciliando, desse modo, o princípio da função social da propriedade com o princípio da vedação da utilização de tributo com efeito confiscatório.
Dado o caráter eminentemente sancionatório da exação, há quem questione, na doutrina, a natureza tributária do IPTU progressivo no tempo, uma vez que o art. 3º do Código Tributário Nacional define tributo como toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção e ato ilícito.
Decorridos os cinco anos de cobrança do IPTU progressivo no tempo, mantendo-se inerte o proprietário, deve o Município proceder à desapropriação-sanção do imóvel, indenizável mediante títulos da dívida pública municipal, resgatáveis em até 10 anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e juros legais de seis por cento ao ano, vedado o poder liberatório para pagamento de tributos.
Observe-se, finalmente, que quando da edição da Constituição da República de 1988, parte da doutrina firmou entendimento de que a instituição do IPTU progressivo no tempo só seria aplicável uma vez editada a lei federal regulamentando os instrumentos previstos no art. 182, § 4º. Com a edição do Estatuto da Cidade, e adaptação dos Planos Diretores Municipais às suas disposições, esperar-se-ia que grande número de cidades implementassem os instrumentos voltados à garantia do cumprimento da função social da propriedade de imóveis urbanos. Entretanto, decorridos já mais de quinze anos da edição do Estatuto da Cidade, apenas o Município de Maringá ingressou validamente na etapa de instituição do IPTU progressivo no tempo.
3.3. Desapropriação para fins de reforma urbana
A desapropriação para fins de reforma urbana é o terceiro e último instrumento urbanístico previsto no Art. 182, § 4º, da Constituição Federal de 1988, para induzir o cumprimento da função social da propriedade urbana. Sua aplicação está vinculada à incidência prévia da notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e do IPTU progressivo no tempo por, no mínimo, 5 anos.
Na desapropriação para fins de reforma urbana, não se está diante das típicas hipóteses de desapropriação por utilidade ou necessidade públicas ou por interesse social. O que se pretende, em verdade, é sancionar o proprietário, razão pela qual o instrumento é também conhecido como desapropriação-sanção. Por isso, as garantias previstas no art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal de 1988 – justa e prévia indenização em dinheiro –, não se aplicam ao caso.
A Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) determina que o cálculo da indenização deverá ter como ponto de partida o valor da base do IPTU – valor venal previsto na planta genérica de valores do município –, descontado o montante incorporado em função de obras realizadas após a notificação pelo Poder Público na área onde o imóvel esteja localizado e não sendo computados expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios (art. 8º, § 2º). Há nítida diferença em relação às indenizações das demais modalidades de desapropriação, que buscam refletir o valor de mercado dos imóveis e consideram as expectativas de ganhos, os lucros cessantes e os juros compensatórios, conforme estabelece o Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941.
Outra distinção marcante é que o pagamento da indenização não ocorrerá previamente, nem em dinheiro, mas sim em títulos da dívida pública resgatáveis em dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas. Esses títulos, de acordo com o Estatuto da Cidade, não terão poder liberatório para pagamento de tributos, de forma que o expropriado não poderá se valer deles para negociar com a Fazenda Pública (art. 8º, § 3º).
A lei nacional prevê também que, uma vez realizada a desapropriação, o município deverá promover o adequado aproveitamento do imóvel em até cinco anos após sua incorporação ao patrimônio público, dando-lhe a devida destinação conforme sua função social (art. 8º, § 4º). Isso pode acontecer por meio dos próprios esforços da gestão municipal, de alienação ou de concessão do imóvel a terceiros. Registre-se, porém, que as mesmas obrigações de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios ficam mantidas para o município ou para o adquirente do imóvel.
Em relação à emissão dos títulos da dívida pública, é necessária a prévia aprovação pelo Senado Federal. No entanto, com a Emenda Constitucional 3, de 17 de março de 1993, estabeleceu-se que, até 31 de dezembro de 1999, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios somente poderiam emitir títulos da Dívida Pública no montante necessário ao refinanciamento do principal devidamente atualizado de suas obrigações, representadas por essa espécie de títulos (art. 5º). No âmbito do Senado Federal, a matéria foi regulada pelas Resoluções do Senado Federal 69, de 14 de dezembro de 1995 (revogada), 78, de 1º de julho de 1998 (revogada) e 43, de 21 de dezembro de 2001 (em vigor), nas quais a proibição de emissão dos títulos foi mantida até o ano de 2020.
Diante da impossibilidade de emissão de títulos da dívida pública, os municípios poderão manter a aplicação do IPTU progressivo no tempo por mais de cinco anos, até que se cumpra a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.
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