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Estados-membros
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Elival da Silva Ramos
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Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022
A expressão “Estado-membro” qualifica as entidades regionais de um Estado do tipo federal. Nas Federações, os Estados-membros são peças indispensáveis do arranjo institucional federativo, o que justifica a expressão de largo uso. São eles, de fato e de direito, membros da Federação, compondo união indissolúvel com a coletividade central e, eventualmente, com unidades menores, de perfil comunitário. Este estudo tem por objetivo discorrer sobre estas unidades federativas.
1. Origem e conceito
A expressão “Estado-membro” nos remete diretamente a duas instituições jurídicas, a confederação de Estados e o Estado federal.
Aquela (a confederação de Estados) é apontada como o antecedente próximo do Estado de tipo federativo, em razão dos eventos históricos que assinalaram o nascimento do primeiro Estado federal, os Estados Unidos da América, ao ensejo da entrada em vigor da Constituição de 17 de setembro de 1787.1
Com efeito, após a declaração formal de independência das Treze Colônias em relação à Grã-Bretanha, em 4 de julho de 1776, buscaram elas manter-se em regime de cooperação para enfrentar o inimigo comum, tendo, para tanto, celebrado um tratado, conhecido como Artigos da Confederação, concluído em 1º de março de 1781. Esse acordo de vontades, como é sabido, consubstanciou um tratado entre Estados soberanos, institucionalizando não um novo Estado e sim mera união de Estados, cada qual preservando a sua condição de pessoa jurídica soberana de direito internacional.2 Essa afirmação vem corroborada pelo que dispôs o artigo II do referido tratado, segundo o qual, “cada Estado conserva sua soberania, liberdade e independência, assim como todo seu poder, jurisdição e direito não delegados expressamente por esta Confederação aos Estados Unidos quando atuem por meio de seu Congresso”.
A consequência imediata do caráter contratual do ato fundante da confederação de Estados era a possibilidade de qualquer um deles romper o vínculo confederativo, denunciando o tratado e afastando, pois, as suas disposições.
As partes de uma confederação de Estados permanecem sendo Estados propriamente ditos, razão de ser da expressão “Estados-membros” (da confederação).
Conforme atestam os primeiros artigos de O Federalista,3 a erosão iminente da união estabelecida entre as antigas Treze Colônias foi o que levou os founding fathers a propor, na Convenção de Filadélfia de 1787, a evolução do regime jurídico confederativo para o de um vínculo mais sólido entre os Estados-membros, que passariam a ser regidos em sua atuação não mais por um tratado internacional e sim por uma autêntica Constituição,4 ato normativo de direito interno.
Os Estados confederados abdicaram, ainda que voluntariamente, por meio do penoso procedimento de ratificação da Constituição, de sua soberania, daquilo que se poderia intitular de competência da competência,5 passando a integrar um único Estado soberano, então denominado de Estados Unidos da América.
Deixaram, a bem de ver, de ser Estados, no sentido próprio do termo. Porém, como evocação da soberania passada de que dispunham, permaneceu a expressão “Estados-membros” para designar as unidades políticas integradas ao novo tipo de Estado então gerado, o denominado Estado federal.
As confederações de Estados, que surgiram na Antiguidade, persistindo até meados do século XIX,6 foram superadas por modelos institucionais mais adequados aos objetivos colimados. Na esfera internacional, foram sucedidas pelas organizações internacionais, pessoas jurídicas de direito internacional, dotadas de estrutura governativa própria. No âmbito interno, pelo Estado federal, associação indissolúvel entre coletividades nacionais e as coletividades parciais que as integram, sendo asseguradas a todas elas autonomia política, administrativa e financeira.
Portanto, sob o prisma conceitual, Estados-membros são entidades que compõe, estruturalmente, um único Estado soberano, denominado Estado federal ou Federação, sendo dotados de personalidade jurídica de direito interno, porém não de direito internacional, prerrogativa exclusiva do Estado visto em sua unidade.7
Os Estados do tipo federativo são Estados que não se limitam a descentralizar competências administrativas (o que existe em qualquer modelo de Estado, em maior ou menor grau), promovendo autêntica descentralização política, o que, como bem sublinha Machado Horta, implica, necessariamente, em poder normativo.8 Ou seja, no Estado federal não há um único centro emissor de normas jurídicas e sim vários, correspondendo aos governos das entidades federadas.
Vale observar que a descentralização política não é atributo exclusivo do Estado federal, estando presente também no Estado unitário, politicamente descentralizado, e no Estado dito regional.
A diferença entre o Estado federal e as demais modalidades de Estado politicamente descentralizado reside em algumas características peculiares àquele, muito embora se reconheça alguma fragilidade nos critérios de distinção usualmente adotados.9
Assim é que somente na Federação, as coletividades regionais (Estados-membros) participam do governo nacional, notadamente no plano da elaboração legislativa, por meio de um órgão do Poder Legislativo central destinado à sua representação.10 Todavia, como adverte Ferreira Filho, “hoje, na maioria dos Estados federais, os senadores estão presos a partidos e não propriamente aos Estados em que se elegem”.11
Os Estados-membros de uma Federação, ademais, gozam do poder de auto-organização, por meio do qual estão aptos a estabelecer as normas básicas de sua estrutura governativa, o que implica na existência de um Poder Constituinte estadual,12 ao menos se da expressão se inferir a capacidade de editar normas de porte constitucional, mediante procedimento distinto daquele adotado para a edição de normas ordinárias. O poder de auto-organização, por conseguinte, aparece associado à adoção de Constituição rígida para estruturar o Estado federal, descentralizando-se o poder normativo atinente às normas básicas das unidades regionais, também estampadas em documentos constitucionais dotados de rigidez.
Nos Estados unitários politicamente descentralizados as coletividades regionais são organizadas por meio de lei ordinária, de competência da coletividade central, ao passo que nos Estados regionais as normas que estruturam o governo das Regiões ou constam da Constituição nacional ou são objeto de estatutos, uniformes ou não, de competência do Parlamento nacional. De todo modo, a incidência de princípios e regras variados, limitadores do poder de auto-organização dos Estados-membros pode conduzir ao amesquinhamento dessa potestade, atenuando, sobremodo, também essa nota diferenciadora.13
Não obstante a atenuação das diferenças entre os diversos modelos de Estado politicamente descentralizado, é certo que a distinção entre o Estado unitário politicamente descentralizado e o Estado federal permanece bastante nítida em um aspecto de nuclear importância: a sede jurídico-normativa da descentralização (política). No caso do Estado federal, a descentralização política é promovida pela Constituição que o organiza, Constituição essa necessariamente dotada de rigidez, para que não possa o legislador ordinário eliminá-la ou alterar a sua formulação. Ao contrário, no Estado unitário politicamente descentralizado a autonomia política das entidades regionais é objeto de legislação emanada do governo central, que pode reduzi-la, ampliá-la ou até mesmo eliminá-la.14
No que concerne aos Estados regionais, a nota diferenciadora sofre alguma atenuação, porquanto também estes são Estados em que a descentralização política se opera por força de disposições constitucionais qualificadas pela rigidez. Sucede, porém, que não são essas normas cláusulas pétreas, isto é, não são imunes à reforma constitucional. De outra parte, nos Estados federais não apenas a descentralização política representa uma decisão do Poder soberano, juridicamente denominado de Poder Constituinte originário, incorporando-se ao ato jurídico fundante, que é a Constituição (federal). A descentralização e a autonomia política das coletividades regionais que dela decorre são imunizadas em relação ao próprio Poder Constituinte de revisão, integrando o núcleo intangível da Constituição.15
Nesse ponto, é possível compreender toda a carga de significado da expressão “Estado-membro”, que qualifica as entidades regionais de um Estado do tipo federal. As coletividades regionais dos Estados unitários politicamente descentralizados e dos Estados regionais não são consideradas partes indispensáveis da estrutura do aparato estatal, podendo, no limite, serem destituídas de sua autonomia política ou até mesmo eliminadas. Nas Federações, os Estados-membros são peças indispensáveis do arranjo institucional federativo, o que justifica a expressão de largo uso. São eles, de fato e de direito, membros da Federação, compondo união indissolúvel com a coletividade central e, eventualmente, com unidades menores, de perfil comunitário.16
2. Autonomia estadual
Como já assentado, os Estados-membros de uma Federação não gozam de soberania, atributo exclusivo desta, que se manifesta, no plano internacional, pela unidade personativa e pelos princípios da independência nacional e da autodeterminação dos povos,17 e, no plano interno, pelo poder normativo supremo, representado pelo Poder Constituinte originário e sua obra máxima, a Constituição Federal. Por constituir emanação da soberania estatal, não está o Poder Constituinte originário subordinado a nenhum outro, sendo juridicamente ilimitado. Essa característica do Poder Constituinte (originário) precisa ser bem compreendida, pois não é incompatível com as crescentes constrições a que os Estados, voluntariamente, se submetem na esfera internacional e que decorrem da necessidade de conviverem, harmonicamente, com outros Estados e com entidades interestatais, bem como de viabilizarem a regulação de atividades de pessoas, físicas e jurídicas, de natureza privada, que se projetam para além de suas fronteiras.18 De igual modo, no plano interno, se é certo que, sob o prisma exclusivamente jurídico, todas as possibilidades estão abertas à regulação de nível constitucional, não se pode afirmar o mesmo sob o prisma da efetividade político-social.
A potestade própria de entidades intrafederativas é a autonomia, inconfundível com a soberania. Nesse ponto, inexcedível a lição de Sampaio Dória:
“Autonomia política é o poder, em certos agrupamentos de indivíduos, de constituir os órgãos de seu governo, dentro de normas que um poder mais alto lhes haja ditado. O poder que dita, o poder supremo, aquele acima do qual não haja outro, é a soberania. Só esta determina a si mesma os limites de sua competência. A autonomia não. A autonomia atua dentro de limites que a soberania lhe tenha prescrito”.19
A autonomia reconhecida a toda e qualquer entidade federada há que compreender, necessariamente, a capacidade de legislar, ou seja, de editar normas gerais e abstratas de nível primário, isto é, situadas logo abaixo do nível constitucional.20
De outra parte, é cediço que a autonomia se desdobra nos planos político, administrativo e financeiro, razão de se falar em autonomia política, administrativa e financeira da União, dos Estados (membros) e dos Municípios.
Pois bem, a autonomia política é a que se associa, propriamente, ao poder normativo. Todavia, no que concerne aos Estados-membros, como já se viu, esse poder normativo se manifesta não apenas no nível infraconstitucional primário, mas, também, na seara constitucional, expressando a denominada capacidade de auto-organização ou de estabelecer suas instituições básicas por meio de Constituição dotada de rigidez, conquanto subordinada à Constituição do Estado federal.
Porém, não se esgota a autonomia política estadual na auto-organização e na autolegislação, compreendendo, outrossim, o poder de escolha ou de investidura dos próprios governantes no âmbito territorial, pessoal e jurídico da unidade federada, observadas as normas constitucionais (federais e estaduais) pertinentes.21
José Afonso da Silva, ao tecer comentários sobre a autonomia política dos Estados, agrupa as três facetas já mencionadas, conectando-as aos seus fundamentos diretos no texto da Constituição Federal brasileira:
“A capacidade de auto-organização e de auto-legislação está consagrada na cabeça do art. 25, segundo o qual os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
A capacidade de autogoverno encontra seu fundamento explícito nos art. 27, 28 e 125, ao disporem sobre os princípios de organização dos poderes estaduais, respectivamente: Poder Legislativo, que se expressa por Assembleias Legislativas; Poder Executivo, exercido pelo Governador; e Poder Judiciário, que repousa no Tribunal de Justiça e outros tribunais e juízes”.22
A mais básica das funções estatais associadas às competências autonômicas é a administrativa. Em face da amplitude e da essencialidade dessa função de Estado, constata-se que mesmo em Estados unitários, de pequena extensão territorial, está presente, em alguma medida, a descentralização administrativa, conquanto inteiramente ausente a descentralização política.
Nos Estados federais, em que a descentralização política alcança o seu mais elevado grau, as entidades federadas dispõem, por conseguinte, para além da autonomia política consectária da forma de Estado adotada, de autonomia administrativa.
Se administrar é aplicar a lei de ofício,23 ao se reconhecer capacidade legislativa própria a um ente federado, estar-se-á, ipso facto, dotando-o do poder de executar a legislação por ele elaborada. Não se pense, contudo, que a autoadministração estadual importa unicamente na aplicação de leis estaduais. Primeiro, porque o emprego da técnica de repartição vertical da competência legislativa24 leva a Administração Estadual a, forçosamente, aplicar as normas gerais editadas pela União, que se somam às normas suplementares estaduais para compor a disciplina da matéria na circunscrição do Estado-membro. Segundo, porque nem sempre as competências administrativas que a Constituição defere aos Estados dizem respeito a matérias cuja disciplina legislativa também lhes cabe.25
O que vale sublinhar é que a autonomia estadual também abarca a potestade de organizar aparato administrativo próprio, de modo a viabilizar o exercício de atividades administrativas de competência regional, abrangendo prestação de serviços públicos, exercício de poder de polícia, atividades de fomento, etc.
Por último, há que se destacar a dimensão financeira da autonomia estadual, aspecto fundamental e que descortina a complexidade da discriminação de rendas em Estados compostos, como são os Estados federais. Afinal, de um lado há que se assegurar às entidades regionais e locais recursos suficientes para o exercício de suas competências administrativas; e, de outro, não se pode ignorar a relação umbilical entre política fiscal e desenvolvimento econômico, que deve ser harmônico, permitindo que o conjunto do País dele se beneficie.26-27
Nessa ordem de ideias, os atos fundantes das Federações (Constituições Federais) ocupam-se de assegurar aos entes federados recursos financeiros indispensáveis ao pleno florescer de sua autonomia e o fazem por meio da chamada discriminação de rendas. Como ensina Ferreira Filho, sob o prisma da autonomia dos entes regionais e locais, a técnica de rateio que pontifica é a distribuição horizontal das receitas tributárias, a qual, todavia, pode gerar efeitos perversos no plano do desenvolvimento harmônico e integrado do País, razão de ser da criação do sistema de quotas de participação.28
Os fundos de participação e as transferências tributárias diretas constituem técnicas de distribuição de receitas em sintonia com o modelo de federalismo cooperativo ou de equilíbrio, implantado entre nós a partir da Constituição de 34, superando o anterior modelo de federalismo clássico ou dualista.29
3. Limites constitucionais à autonomia estadual
Do próprio conceito de autonomia estadual se deduz a existência de limites ao seu efetivo exercício pelas unidades federadas. A bem de ver, esses limites, fincados na Constituição Federal, auxiliam na conformação da potestade autonômica dos Estados-membros. Em outras palavras, a autonomia, como todo e qualquer instituto jurídico-constitucional, não existe como fórmula abstrata, sendo conferida aos Estados (e também ao Distrito Federal e aos Municípios) por decisão soberana do Poder Constituinte, no bojo da Constituição Federal, que lhe atribui sentido e conteúdo.30
Os limites que a Constituição antepõe à autonomia estadual abarcam, como não poderia deixar de ser, todas as suas facetas. No entanto, como a auto-organização é a mais abrangente delas, traduzindo em normas constitucionais locais a autonomia legislativa, administrativa e financeira de que dispõem os Estados-membros, pode-se examinar o tema sob a ótica das limitações que a Constituição Federal impõe à auto-organização dos Estados. Importa salientar que esse é o rumo pelo qual tem enveredado a doutrina brasileira.
Não é o caso de se fazer um longo e pouco produtivo inventário das diferentes classificações doutrinárias que circulam a propósito das normas constitucionais limitativas da autonomia organizatória dos Estados-membros.
Por sua estrutura lógica e ao mesmo tempo singela, adota-se a classificação dessas normas em limites sensíveis e estabelecidos.31
Os primeiros são aqueles elencados no art. 34, inciso VII, alíneas de “a” a “e”, da Constituição Federal brasileira e que apresentam como nota característica o fato de autorizarem a decretação de intervenção federal no caso de serem violados pelos Estados ao editarem as respectivas Constituições e subsequentes atos de revisão. O menoscabo a essas normas limitadoras põe em risco a ordem constitucional idealizada pelo Poder Constituinte originário, em seus aspectos nucleares (ou sensíveis),32 razão pela qual autorizam a compressão da autonomia do Estado infrator, ainda que possa satisfazer ao restabelecimento da normalidade institucional a simples edição de decreto suspensivo da execução da (s) disposição (ões) discrepantes pelo Presidente da República.33
Já os limites constitucionais estabelecidos são aquelas normas (princípios ou regras), explícitas ou implícitas, que impõem restrições à auto-organização dos Estados-membros, sem chegar ao ponto de sujeitá-los, em caso de descumprimento, à intervenção federal.
Bastante sugestiva a proposta de distribuição dessas limitações em três grupos formulada por Machado Horta, em trabalho que se tornou clássico. Na concepção do constitucionalista mineiro, ora revisitada, os limites estabelecidos corresponderiam a normas de preordenação, a normas de competência e a princípios constitucionais de abrangência federativa.34
As normas de preordenação, como bem revela a terminologia adotada, procuram se antecipar à manifestação do Poder Constituinte derivado estadual, estabelecendo na própria Constituição da República os pilares da organização dos Estados-membros. Desse teor, são as normas dos arts. 27, 28 e 125 da Constituição, de 5 de outubro de 1988, que delineiam, desde logo e respectivamente, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário dos Estados.
As normas que discriminam as competências legislativas, administrativas ou jurisdicionais das unidades federadas (União, Estados, DF e Municípios), por outro lado, consubstanciam autênticas limitações constitucionais implícitas à autonomia dessas entidades.35
Finalmente, explorando a ideia de que a Constituição Federal não é uma lei da União e sim o corpo normativo que estrutura o Estado federal em seu perfil unitário e, simultaneamente, plural, temos os princípios constitucionais que se voltam, expressamente ou não, para todas as unidades da Federação.
As disposições do art. 37 da Constituição de 88, por exemplo, deitam as bases organizativas da Administração Pública, direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, consoante expressa dicção do seu caput. De igual natureza, as normas que configuram as limitações constitucionais do poder de tributar, expressamente, dirigidas aos três níveis federativos.36
Todavia, nem todos os princípios constitucionais de dimensão federativa são normas explícitas. O princípio da separação dos Poderes, revelado no preceito do art. 2º da Constituição brasileira, impõe-se, inequivocamente, mesmo à mingua de texto expresso, ao conjunto das entidades federadas, na medida em que o Poder Constituinte originário o inseriu no núcleo irreformável da Constituição, o que denota a sua abrangência máxima.
4. Constituições Estaduais
O poder de auto-organização dos Estados-membros dá ensejo à elaboração de Constituições Estaduais, atos normativos que fixam as bases da governança regional.
Ao contrário da Constituição da República, manifestação do poder soberano que se reconhece, com exclusividade, no âmbito interno, ao Estado Federal, as Constituições Estaduais refletem a autonomia política das unidades federadas, estando sujeitas às restrições impostas pela Lei Maior desde o seu nascedouro.37
Não deixam de consubstanciar, entretanto, atos normativos de natureza constitucional, quer quanto à matéria, quer quanto à forma.
Quanto à matéria, porque estabelecem as bases da organização dos Estados-membros, observados os princípios e regras limitativos.
Quanto à forma, porque apresentam as duas notas características da constitucionalidade formal: a organicidade (ou documentalidade) e a rigidez.
De fato, as Constituições editadas pelos Estados-membros compõem um todo ordenado de regras e princípios fundamentais (em nível regional), compendiados em um ato normativo de expressão formal unitária, ou seja, um autêntico código constitucional estadual. De outra banda, essas Constituições estão hierarquicamente situadas no ápice do ordenamento jurídico estadual, não sendo passíveis de alteração senão por meio do procedimento especial de emenda ou reforma, disciplinado por elas próprias.38
5. Controle de constitucionalidade estadual
Conforme se demonstrou em outra passagem, a supremacia hierárquica da Constituição está diretamente associada à supremacia política do Poder que a elabora. Na medida em que o Poder Constituinte originário emana da fonte soberana que dá nascimento ao Estado federal, é mais do que compreensível que a sua produção normativa seja igualmente incontrastável. Dessa supremacia hierárquico-formal, decorre a característica da rigidez das normas constitucionais, inalteráveis pela legislação oriunda dos Poderes constituídos.39
Ora, a opção do Poder Constituinte originário pela forma federativa de Estado está associada à atribuição aos Estados-membros que integram a Federação de um Poder Constituinte secundário ou de segundo grau, utilizado para institucionalizar as respectivas bases governativas em termos relativamente estáveis. Essa estabilidade relativa da formatação jurídica das coletividades regionais, reflexo da rigidez também reconhecida às Constituições Estaduais, é bem menos pujante do que a do Estado federal em si.
Com efeito, as normas constitucionais estaduais são passíveis de derrogação por duas vias: a da revisão por meio dos procedimentos previstos na Constituição local e a da revisão do próprio texto da Constituição Federal, que venha a trazer incompatibilidade com as normas até então vigentes na esfera estadual.
De toda sorte, as Constituições Estaduais gozam, inquestionavelmente, do atributo da rigidez, situando-se no ápice da ordem jurídica regional, uma vez elaboradas pela potestade mais elevada nesse plano, que é Poder Constituinte decorrente inicial dos Estados-membros, submetido apenas à soberania do Estado federal e de sua obra jurídica, a Constituição (Federal).
Resta, nesse ponto, explorar, na esfera federativa regional, a segunda implicação da supremacia hierárquico-formal das Constituições Estaduais, que é o controle de constitucionalidade estadual.
De nada adiantaria afirmar a intangibilidade das Constituições dos Estados em face da produção legislativa dos Poderes constituídos locais40 se inexistisse um mecanismo preordenado a coibir as situações de inobservância de suas disposições pelos Poderes subalternos. Esse mecanismo consiste, precisamente, no controle de constitucionalidade, conjunto de procedimentos por meio dos quais se assegura a efetividade da sanção de invalidade imposta aos atos contraventores da Constituição, seja ela Federal ou Estadual.41
De todo o exposto, resulta evidenciada a necessidade de existir um sistema de controle de constitucionalidade estadual, o que também é a prática dos Estados federais da atualidade.
Esse sistema de controle pode ser modelado de maneira bastante diversificada, valendo-se o Constituinte Estadual do arsenal de técnicas de fiscalização disponíveis. Assim, observadas as prescrições da Constituição Federal, é possível um controle de constitucionalidade estadual de natureza política ou jurisdicional, preventivo ou repressivo, concentrado ou difuso, principal ou incidental, abstrato ou concreto, objetivo ou subjetivo. Por seu turno, as decisões de controle podem ostentar eficácia subjetiva inter partes ou erga omnes. No tocante à projeção temporal, podem apresentar cunho meramente declarativo, com aparência de retroatividade, ou natureza desconstitutiva negativa, com modulação de sua eficácia temporal.42
No âmbito do Estado federal brasileiro, sempre se reconheceu a existência de sistemas de controle direcionados à proteção das Constituições Estaduais. Assim é que, no processo legislativo estadual, sempre se praticou o controle político preventivo, por meio dos institutos do veto governamental e dos pareceres das Comissões de Constituição e Justiça das Assembleias Legislativas.
Em relação ao controle jurisdicional repressivo, espinha dorsal do sistema de controle brasileiro em ambos os níveis de organização do Poder Judiciário (federal e estadual), jamais se questionou a existência do controle difuso e incidental, manejado por todo e qualquer órgão, monocrático ou colegiado, da Justiça Estadual. Afinal, as notas características da difusão da competência de controle (todo e qualquer órgão judiciário a detém, nos limites de sua competência processual) e da incidentalidade (resolução do conflito lei versus Constituição enquanto questão prejudicial à apreciação do pedido) acompanham o exercício da jurisdição ordinária, ressalvados os ordenamentos em que a fiscalização de constitucionalidade é deferida a uma jurisdição especializada (sistema europeu ou kelseniano).43
Em face das evidentes implicações no tocante ao arranjo institucional resultante da separação dos Poderes, o controle principal ou abstrato,44 exige previsão constitucional expressa, o que alimentou acesa polêmica entre nós acerca da possibilidade ou não de as Constituições Estaduais contemplarem essa modalidade de fiscalização de constitucionalidade.
A Constituição Federal em vigor pôs fim à controvérsia, estatuindo, em disposição expressa, que “cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão”.45
A rigor, o controle abstrato estadual se ocupa, unicamente, do confronto entre leis ou atos normativos estaduais (ou municipais) e normas autônomas da Constituição Estadual, tanto as que não encontram paradigma na Constituição Federal, quanto as que consubstanciam normas de reprodução facultativa (normas de imitação). Todavia, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sob severa crítica doutrinária, alargou o âmbito do controle abstrato estadual, ao admitir que a alegação de inconstitucionalidade tenha como parâmetro normas de reprodução obrigatória de preceitos da Constituição da República.46 Não se admitiu, contudo, que leis ou atos normativos municipais possam ser confrontados diretamente com a Constituição Federal por meio de ações diretas de nível estadual, julgadas pelos Tribunais de Justiça dos Estados.47
6. Competências legislativas dos Estados
Não se afigura exagerada a afirmação de que o cerne da autonomia reconhecida aos Estados-membros de uma Federação está na capacidade de que desfrutam de editar atos normativos de nível constitucional (auto-organização) e de nível primário, considerado o escalonamento normativo regional (autolegislação).
Delimitado o espaço de atuação do Poder Constituinte estadual e examinadas as decorrências de sua manifestação, cabe, agora, deitar o foco sobre as técnicas que o constitucionalismo tem empregado para discriminar a competência legislativa das entidades que integram um Estado do tipo federal.48
Com a autoridade de especialista na matéria, Fernanda Dias Menezes de Almeida sublinha que “o primeiro modelo, típico do federalismo clássico, vem da Constituição dos Estados Unidos, que adotou a técnica de especificar os poderes da União, deixando para os Estados todos os demais poderes que não atribuiu à autoridade federal e nem vedou às autoridades estaduais”.49
Essa forma de repartição de competências, notadamente as de cunho legislativo, foi seguida por inúmeras Constituições, incluindo as brasileiras do período republicano.50 Corresponde à técnica de repartição horizontal, assim denominada “porque separa competências como se separasse setores no horizonte governamental”, tendo vicejado no federalismo de padrão dualista, na medida em que assegura às diferentes esferas da Federação competências privativas ou reservadas.51
A evolução das democracias liberais para democracias sociais impactou, no plano do Estado federal, o modelo de discriminação de competências legislativas, passando a coexistir a técnica de atribuição de poderes reservados ou exclusivos com outra inteiramente diversa, que pressupõe a cooperação entre as unidades federadas, na medida em que concorrem na disciplina de determinado assunto. Nessa última hipótese, como não poderia deixar de ser, cabe à Constituição estabelecer como se deve dar a contribuição de cada qual. Essa técnica foi alcunhada pela doutrina de vertical, “porque separa em níveis diferentes o poder de dispor sobre determinada matéria”, o que “favorece a coordenação no tratamento de uma questão por parte de diversos entes federativos”.52
O objetivo de assegurar aos entes federativos, notadamente os Estados-membros, maior autonomia, por meio da atribuição de competências legislativas privativas, foi, por conseguinte, revisitado sob o influxo do constitucionalismo social-democrático, passando inúmeras matérias a comportar concorrência legiferante. A percepção que passou a acompanhar o Estado federal é a de que a autonomia das unidades federadas não pode se sobrepor à eficiência econômico-social do arranjo federativo, havendo que se encontrar um justo equilíbrio entre ambos os objetivos.
A Constituição brasileira de 1988 se enquadra, à perfeição, no padrão do federalismo de cooperação, de matiz social-democrático.
No que concerne à capacidade legislativa, foram discriminadas as competências da União (art. 22) e, ainda que por meio de cláusula geral, a dos Municípios (art. 30, inciso I), cabendo aos Estados-membros a legislação remanescente, salvo se a matéria for objeto de legislação concorrente.
De outra parte, após arrolar as matérias de legislação concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal,53 cuidou o Constituinte de 88 de delimitar a contribuição de cada nível federativo na disciplina desses núcleos temáticos.
Destarte, coube à União o estabelecimento das normas gerais (art. 24, § 1º, da CF), o que não significa que possa o Congresso Nacional exaurir o tratamento normativo desses temas. A competência legislativa da União encerra um poder, mas, também, uma limitação, não podendo desbordar do âmbito das normas gerais, ainda que isso não seja passível de aferição precisa, razão de aflorarem inúmeros conflitos federativos tendo tal indefinição como pano de fundo.
As normas gerais federais em matéria de legislação concorrente devem ser complementadas por normas editadas pela própria União, pelos Estados-membros (Distrito Federal) e pelos Municípios, se predominar o interesse local no tratamento da matéria.54 Na hipótese, cada vez mais remota, na medida em que os anos de vigência da Constituição avançam, de inexistência de lei federal sobre normas gerais, compete aos Estados (e Municípios) o exercício de competência legislativa plena na matéria, com a ressalva de que a superveniência de lei federal sobre normas gerais afasta55 a eficácia da legislação dita supletiva estadual (ou municipal).
Não se pode deixar de anotar que as técnicas de discriminação da competência legislativa coexistem com a realidade histórico-cultural de cada Federação, o que explica o fato de o emprego da mesma técnica apresentar resultados tão discrepantes.
No Brasil e nos Estados Unidos da América, a Constituição “limitou” a capacidade legislativa da União aos poderes enumerados, no intuito de reservar aos Estados-membros considerável parcela da competência legiferante. Todavia, o caráter centrífugo de nosso federalismo, em que um Estado unitário foi sucedido por um Estado federal, e a cultura centralizadora, remanescente do período colonial, certamente explicam a abrangência descomunal do elenco de competências privativas da União (art. 22). Essa cultura de desconfiança em relação à descentralização legislativa, por outro lado, tem influenciado o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, na exegese dos dispositivos que regulam a competência concorrente, franqueando à União o abuso do poder de editar normas gerais.
Em suma, a despeito da utilização de técnicas de repartição similares, ao menos no âmbito das matérias de competência legislativa privativa, o que se verifica é a reduzida importância da legislação estadual no Brasil, comparativamente ao que sucede nos Estados Unidos, em que a federação emergiu por agregação, em movimento centrípeto.
A compreensão de que o rol de matérias de competência legislativa privativa da União é extenso demais parece ter sido também a do Legislador Constituinte, o que o levou a admitir que lei complementar autorize “os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas” no sobredito art. 22. A despeito de se abrir um flanco à descentralização legislativa, não se deve esperar que o dispositivo venha a alterar o cenário atual, de amesquinhamento da competência legislativa dos Estados-membros.56
7. Autogoverno
A faculdade de autogoverno reconhecida aos Estados-membros e que integra, como visto, a sua esfera de autonomia política, não demanda considerações mais alongadas.
No plano dos Poderes de representação política (Legislativo e Executivo), trata-se da eleição dos governantes (Deputados e Governadores) pelo eleitorado com domicílio eleitoral no Estado.
Em Estados federais de tendência descentralizadora, esse autogoverno se reforça com a possibilidade do estabelecimento de regras próprias para as eleições estaduais, bem como para a disciplina do exercício do mandato.
Não é o caso da Federação brasileira, em que o critério para o cálculo do número de Deputados Estaduais foi fixado pela Constituição Federal (art. 27, caput), assim como a duração da legislatura (art. 27, § 1º), tendo ainda sido estendidas a esses parlamentares as regras da Constituição (Federal) sobre “sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas” (art. 27, § 1º).
De igual modo, o procedimento para eleição dos Governadores e Vice-Governadores dos Estados foi delineado pela Constituição Federal (art. 28, caput), tomando como paradigma o procedimento de investidura do Presidente e do Vice-Presidente da República.
No que se refere ao Poder Judiciário, a prerrogativa do autogoverno importa na eleição dos órgãos diretivos dos tribunais estaduais pelos seus próprios integrantes.
A Constituição de 1988 consagrou, expressamente, essa projeção da autonomia estadual, incluindo-a no elenco de garantidas institucionais do Poder Judiciário.57 É certo, contudo, que, de modo similar ao que ocorre com a escolha dos representantes políticos na esfera estadual, esse predicamento sofre as constrições decorrentes de normas de organização judiciária veiculadas pela Constituição Federal (arts. 93, 94 e 125) e por lei complementar federal intitulada de Estatuto da Magistratura.58
8. Autonomia administrativa
Pelas razões expostas no item 2, talvez a autonomia administrativa seja a mais ampla expressão da autonomia estadual ou, ao menos, a sua face mais visível.
A fórmula de rateio das competências administrativas em Estados federais costuma ser a mesma da discriminação de competências legislativas.
Assentada essa premissa, sob o influxo do federalismo clássico ou dualista, são reservadas aos Estados-membros todas as competências administrativas que não foram deferidas com exclusividade à União (ou aos Municípios).
Vale ressaltar, ainda uma vez, que o elenco de competências legislativas privativas da União não corresponde com precisão ao elenco de suas competências administrativas exclusivas. Tanto é assim, que a Constituição brasileira de 88 se viu na contingência de compor dois conjuntos distintos: no artigo 21 tratou das competências administrativas privativas da União e no artigo 22 de suas competências legislativas privativas, sendo certo que o primeiro não é mero reflexo do segundo.
Como já anotado,59 por vezes, os Estados executam prescrições normativas de competência exclusiva da União, o que lhes assegura uma atuação administrativa mais abrangente do que a legislativa.
Sob a influência do federalismo cooperativo, passaram as Constituições a consagrar o compartilhamento da competência administrativa entre os entes federados, algo que tem se mostrado um pouco menos problemático do que o exercício da competência legislativa concorrente.
A Constituição Federal em vigor cuidou da matéria em seu art. 23, que declara de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios as atividades administrativas arroladas em seus incisos, nem sempre correspondentes ao elenco de competências legislativas concorrentes do art. 24.
No intuito de se buscar a racionalidade na atuação administrativa comum das unidades federadas, estipulou o Constituinte que “leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. Essas normas não poderão implicar na subtração da competência administrativa das entidades territorialmente menores, assegurada nos incisos do artigo 23. O que deve ser objeto das leis complementares mencionadas são os mecanismos de estímulo à cooperação entre as diversas esferas federativas, o que, invariavelmente, importará em delegação de competências administrativas da União para os Estados (Distrito Federal) e Municípios.60 Esse viés interpretativo é ratificado pelo disposto no art. 241 da Constituição, segundo o qual “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.
9. Autonomia financeira
A Constituição, de 5 de outubro de 1988, atenta à necessidade de assegurar aos Estados-membros da Federação brasileira recursos financeiros suficientes para o suporte de suas múltiplas atividades, notadamente no plano administrativo, cuidou de lhes deferir, privativamente, a instituição de certos impostos, incidentes sobre: os atos de transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; as operações relativas à circulação de mercadorias e as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação; a propriedade de veículos automotores.61 Além desses impostos, os Estados detêm a competência privativa para instituir as taxas correspondentes ao exercício do poder de polícia estadual ou à utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis por eles prestados ou postos à disposição dos contribuintes. O mesmo se diga em relação à instituição de contribuições de melhoria referentes a obras públicas de sua responsabilidade.62
Como já assinalado,63 a Constituição brasileira em vigor, inspirada no federalismo cooperativo, complementou o quadro de receitas tributárias privativas dos entes estaduais com receitas, por assim dizer, concorrentes, carreadas ao Fundo de Participação dos Estados,64 apropriadas pelos Estados enquanto instância arrecadadora65 ou arrecadadas e transferidas diretamente pela União.66
Sob o império de Constituições analíticas, o exercício da autonomia financeira estadual sofre as limitações impostas pelas normas constitucionais que estruturam o sistema tributário nacional.67 No caso brasileiro, também devem os Estados observar as normas gerais de tributação editadas pela União, com fulcro no permissivo do art. 147, inciso III, alíneas de “a” a “d”, da Constituição Federal, e as normas editadas pelo Senado Federal sobre endividamento e operações de crédito.68
Contudo, o que se afigura mais nefasto à efetividade desse predicado autonômico pelos Estados é a atribuição de receitas próprias, privativas ou compartilhadas, que, totalizadas, não permitem às entidades regionais o pleno cumprimento de sua missão constitucional, especialmente no que concerne às atividades administrativas de fomento, exercício do poder de polícia e prestação de serviços públicos.
A despeito da elevada carga tributária que incide sobre o contribuinte brasileiro, é bastante disseminada a sensação de que as receitas não foram rateadas de forma equânime pelo Constituinte, o que se revela quer pela quantidade de tributos privativos da União, quer pelo seu potencial arrecadatório.69
Trata-se de problema que tem contribuído para a fragilidade do arranjo federativo brasileiro, ao lado dos fatores histórico-culturais já mencionados, e que mereceu palavras candentes de Oswaldo Trigueiro:
“Talvez em nenhuma Federação os Estados-membros sofram maior penúria de recursos tributários próprios. Esta peculiaridade acentua o artificialismo do nosso regime federal, cuja autonomia se caracteriza hoje por sua extrema debilidade”.70
Nos últimos anos, a insuficiência de recursos estaduais próprios tem se agravado por culpa das próprias unidades federadas, que movidas por um discurso pseudo-desenvolvimentista demagógico e irresponsável, não se pejam em descumprir mandamento constitucional expresso, segundo o qual depende de deliberação colegiada dos Estados e do Distrito Federal a concessão e a revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais no âmbito do ICMS, procedimento deliberativo esse que se manteve, provisoriamente, regulado pela Lei Complementar Federal 24, de 7 de janeiro de 1975.71 A multiplicação de leis e decretos estaduais, de formato variado, concessivos de benefícios fiscais ao arrepio da Constituição, registre-se, não teria ocorrido sem a falta de energia do Supremo Tribunal Federal em lidar com essa predatória “guerra fiscal”, tão perniciosa à autonomia financeira dos Estados-membros.72
10. Criação, modificação e extinção de Estados
Na medida em que os Estados-membros constituem pilares do edifício federativo, a criação e a extinção de Estados, bem como a mera alteração de sua configuração territorial e populacional, devem receber disciplina constitucional específica, sob pena de restarem inviabilizadas.73
A Constituição de 1988 disciplinou a matéria em seu artigo 18, § 3º, que estabelece, in verbis:
“Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar”.
Não se trata, ao contrário do que possa parecer, de dispositivo de simples interpretação.
Em primeiro lugar, “incorporar-se entre si” se afigura como algo incompreensível, à primeira vista, pois, como bem observa José Afonso da Silva, “não há propriamente incorporação entre si, incorporação entre dois; há incorporação de um a outro”.74
Com a expressão “incorporar-se entre si”, o Constituinte de 88, na verdade, aludiu a dois procedimentos distintos: a incorporação propriamente dita, em que um Estado é absorvido inteiramente por outro, deixando de existir (extinção de um Estado e ampliação territorial e populacional de outro); e a fusão, em que um ou mais Estados se aglutinam, deixando de existir para darem nascimento a nova unidade federada.75
A subdivisão de Estados opera em sentido inverso ao da fusão, havendo a extinção de um deles para proporcionar o nascimento de dois ou mais novos e diferentes Estados.
Já o desmembramento de Estados-membros foi assim descortinado por José Afonso da Silva:
“Desmembramento é processo diverso da subdivisão. Desmembrar é separar uma ou mais partes de um todo, sem perda da identidade do ente primitivo. Desmembramento de Estado, portanto, quer dizer separação de parte dele, sem que ele deixe de ser o mesmo Estado. Continua com sua personalidade primitiva, apenas desfalcado do pedaço de seu território e população separados. A parte desmembrada poderá constituir novo Estado, ou anexar-se a outro, ou formar Território Federal”.76
Portanto, os procedimentos referidos no § 3º do artigo 18 da Constituição importam ora em extinção sem criação (incorporação), ora em criação e extinção simultâneas (fusão e subdivisão), ora em criação sem extinção (desmembramento para criar novo Estado), ora em alteração estrutural sem criação ou extinção (desmembramento para anexação da parte destacada a Estado já existente).
Mais nebulosa ainda é a condição imposta pelo Constituinte para o conjunto dessas modalidades de criação, extinção e modificação de Estados, consistente na “aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito”.
Na hipótese de incorporação (propriamente dita), há que se contar com a aprovação das populações do Estado a ser incorporado e do Estado incorporador; na fusão, a população de cada um dos Estados a serem fundidos também deve se manifestar favoravelmente; de igual modo, na subdivisão, a população do Estado que pretende se subdividir deve aprovar a operação.
A incerteza avulta em relação ao desmembramento de parcela do território e da população de um Estado, para anexação a outro ou para formação de um novo, havendo acesa controvérsia sobre a necessidade de se obter a anuência da população total do Estado a ser desmembrado ou apenas da parte do território que pretende se separar.77
O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de apreciar a questão, ao ensejo do julgamento da ADI 2.650/DF, em que, pela unanimidade de seus membros, declarou a constitucionalidade do disposto no artigo 7º da Lei Federal n. 9.709, de 18 de novembro de 1998, que regulamenta o exercício direto do poder pelo povo (eleitorado) mediante plebiscito, referendo ou iniciativa popular.
Com efeito, no tocante ao tema em discussão, assim dispôs o legislador infraconstitucional:
“Art. 7º Nas consultas plebiscitárias previstas nos art. 4º (incorporação, fusão, subdivisão ou desmembramento de Estados) e 5º (incorporação, fusão, subdivisão ou desmembramento de Municípios) entende-se por população diretamente interessada tanto a do território que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá desmembramento; em caso de fusão ou anexação, tanto a população da área que se quer anexar quanto a da que receberá o acréscimo; e a vontade popular se aferirá pelo percentual que se manifestar em relação ao total da população consultada.”
Andou bem, a meu juízo, o Pretório Excelso, porquanto não faz sentido atribuir primazia à população da parcela territorial de um Estado que pretende dele se desmembrar, em relação ao restante da população desse mesmo Estado, obviamente também diretamente interessada na delicada decisão. Não se deve fazer aqui paralelo com a situação dos enclaves nacionais de certos Estados soberanos, com pretensões separatistas, fenômeno esse, ademais, regido pelas injunções da política internacional e não do direito das gentes propriamente dito. Isso sem falar nas consequências desastrosas da diretriz pró autonomia das partes, que redundaria na fragmentação exacerbada da divisão regional do Estado brasileiro.78
Após a aprovação da população diretamente interessada, devem se manifestar as Assembleias Legislativas dos Estados afetados pela operação.79 Em sintonia com a Constituição Federal, a Lei 9.709/98 atribuiu a essa manifestação caráter meramente opinativo (não vinculativo), fornecendo “ao Congresso Nacional os detalhamentos técnicos concernentes aos aspectos administrativos, financeiros, sociais, econômicos da área geopolítica afetada”, cabendo-lhe, consequentemente, ao votar o projeto de lei complementar de incorporação, fusão, subdivisão ou desmembramento, tomar “em conta as informações técnicas a que se refere o parágrafo anterior”.80
Finalmente, aperfeiçoa-se a operação de alteração da estrutura regional brasileira por meio de lei complementar, aprovada pelas duas Casas do Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República.
11. Perspectivas institucionais
Ao longo do século XX, o federalismo enfrentou dificuldades advindas de tendências centralizadoras de diferentes matizes.
Por se cuidar de poderoso antídoto ao abuso de poder,81 a fórmula federalista foi duramente golpeada nos Estados em que a própria democracia feneceu, como sucedeu, entre nós, no período do Estado Novo, sob a égide da Constituição de 1937.82
Porém, mesmo nos Estados que se mantiveram fieis à democracia e suas instituições, a demanda por maior intervenção estatal, que acompanhou a superação do Estado liberal pelo Estado social-democrático, redundou no recrudescimento da centralização político-administrativa, resultando na substituição do federalismo dual pelo federalismo cooperativo.
Os Estados federais dessa nova cepa buscaram equilibrar a autonomia das entidades territoriais menores, essencial para a limitação do poder do governo central, com a eficiência na alocação de recursos e prestação de serviços públicos, sem o que não se empresta efetividade aos direitos sociais, nem se alcança um desenvolvimento econômico regionalmente equilibrado.83
A despeito da complexidade que a evolução do sistema político democrático impôs ao arranjo federativo, não se vislumbra o abandono de seus princípios básicos, dentre os quais avulta a exigência de se assegurar autonomia política, administrativa e financeira aos Estados-membros da Federação.
Em suma, enquanto permanecer vivo o ideal democrático a forma federativa de Estado continuará a despertar forte interesse, quer pela limitação espacial do poder que encerra, quer pela maior eficiência governativa que proporciona.
No Brasil, o Estado federal, a par do desafio de conciliar autonomia estadual com desenvolvimento integrado, terá que superar o constatável enraizamento superficial na cultura política, fruto da história de nossas instituições.
Não se nega que a Constituição de 1988 tenha tentado reavivar o Estado federal brasileiro, eclipsado pela centralização política incontrastável promovida pelo regime autoritário burocrático-militar.84 Contudo, os resultados obtidos após quase trinta anos de vigência ficaram aquém da profissão de fé federalista, insculpida nos seus arts. 1º, caput, e 60, § 4º, inciso I.
Nos limites destas breves considerações sobre os Estados-membros, sua natureza e competência, não se pode fazer mais do que indicar alternativas promissoras no sentido de reforçar as bases, não apenas jurídicas, mas socioculturais, da Federação brasileira.
Caberia, de início, fazer uma criteriosa revisão do amplo elenco de matérias de competência legislativa privativa da União, de modo a deslocar algumas delas, senão para o campo da competência reservada estadual, ao menos para o da competência legislativa concorrente. Nesse sentido, o permissivo do parágrafo único do art. 22 da Constituição poderá abrir espaço para algum experimentalismo institucional que, depois, se positiva a iniciativa, venha a se consolidar por meio do mecanismo de reforma.
No tocante à legislação concorrente, fonte da qual emanam inúmeros conflitos federativos, é preciso dar contornos um pouco menos fluidos à competência da União para estabelecer normas gerais sobre as matérias de disciplina verticalizada. Não é tarefa simples, mas também não é algo inviável, inserir no texto constitucional uma fórmula minimamente satisfatória a esse propósito.
Em relação às competências administrativas os caminhos da delegação e da cooperação entre os diversos níveis federativos já estão abertos, bastando neles perseverar.
É certo que a Constituição de 88 procurou reduzir as limitações à auto-organização dos Estados. Entretanto, a prática pós-88 revela que ainda há muito a ser eliminado. Apenas a título exemplificativo, não se afigura defensável, à luz dos princípios federalistas, o nível de padronização imposto pela Constituição da República ao disciplinar o regime jurídico dos servidores e agentes públicos dos três níveis de governo, notadamente em matéria remuneratória.85
A indispensável revisão na discriminação de rendas, quiçá ao ensejo da anunciada e sempre adiada reforma do sistema tributário nacional, deverá ampliar a descentralização de recursos financeiros, sob pena de se tornar ainda mais aguda a crise fiscal de Estados e Municípios, sempre sem se descurar das regras de boa-governança e do princípio da responsabilidade fiscal.86
Por último, ainda que não se vislumbre a oportunidade imediata para a atribuição assimétrica de competências aos Estados-membros, não resta dúvida de que no horizonte de nossa experiência federativa haveremos de passar por esse debate,87 do mesmo modo que o avanço da democracia brasileira precisa ajustar contas com a representação desproporcional das populações dos Estados, consagrada pela execrável fórmula do § 1º do art. 45 da Constituição.
A revitalização do Estado federal brasileiro e, em consequência, das entidades regionais que o integram, muito depende da consciência cidadã no tocante à adequação da descentralização político-administrativa à nossa realidade. Essa consciência em favor das virtudes do federalismo há que se refletir na representação política, no Congresso e na Presidência da República, instigados, certamente, pelos governos estaduais.
Mas há um ator que poderá ser decisivo nesse descortinar de expectativas autonômicas: o Supremo Tribunal Federal. Que a nossa Suprema Corte revisite com vigor e humildade sua jurisprudência hostil à descentralização política, com o que se mostrará à altura do papel institucional que o Constituinte de 88 lhe reservou, enquanto Corte Constitucional e, portanto, associada ao Estado brasileiro em sua unidade, pouco importando que sua manutenção seja assegurada pelos cofres da União.
Notas
1 Considera-se que a Constituição dos Estados Unidos da América entrou em vigor no dia 4 de março de 1789, quando, efetivamente, começaram a operar as instituições governamentais moldadas pela nova Constituição.
2 Como observa Charles Durand, a propósito dos Estados confederados, pode-se dizer que seguiram sendo Estados, ao passo que a confederação não era um Estado, “senão um agrupamento de Estados, um agrupamento de direito internacional” (El Estado federal en el derecho positivo. Federalismo y federalismo europeo, p. 178).
3 Denominação atribuída aos artigos que Hamilton, Madison e Jay fizeram publicar na imprensa da Cidade de Nova Iorque entre outubro de 1787 e maio de 1988, em defesa da ratificação da Constituição aprovada pelos convencionais de Filadélfia.
4 Sobre o assunto, veja-se o texto Da confederação à federação. A trajetória da fundação dos Estados Unidos da América, de Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha e Romeu Costa Ribeiro Bastos (O federalista atual: teoria do federalismo, p. 46-59).
5 Na explanação abalizada de Durand, o Estado soberano “é competente para fixar os limites de sua própria competência” (DURAND, Charles. El Estado federal en el derecho positivo. Federalismo y federalismo europeo, p. 177).
6 Assim, em pleno século XIX, a união de Estados, formalizada em modelo confederativo, existiu na Suíça (até 1848) e na Alemanha (até 1866).
7 Veja-se, nesse sentido, o artigo As relações exteriores das unidades federadas à luz do Direito Internacional e do Direito Constitucional, de Ricardo Victalino de Oliveira (O federalista atual, p. 144), invocando o disposto no art. 2º da Convenção de Montevidéu, de 1933, sobre os direitos e deveres dos Estados, in verbis: “O Estado federal constitui uma só pessoa ante o Direito Internacional”.
8 Conforme ensinava o mais acurado de nossos cultores do federalismo, “autonomia provém, etimologicamente, de nómos e designa, tecnicamente, a edição de normas próprias, que vão organizar e constituir determinado ordenamento jurídico” (HORTA, Juliana Campos. Autonomia do Estado no Direito Constitucional brasileiro. Direito constitucional, p. 331).
9 É o que aponta, dentre outros autores, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em seu renomado Curso de direito constitucional, p. 54.
10 Trata-se do Senado, na nomenclatura da Constituição estadunidense, ou do Senado Federal, na nomenclatura da Constituição brasileira em vigor. Em outras Federações, adotam-se outras designações (p. ex., Conselho Federal, na Alemanha).
11 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 54.
12 No que concerne ao tema, indispensável a leitura da monografia de Anna Cândida da Cunha Ferraz (Poder Constituinte do Estado-membro). A referida autora registra a existência de controvérsia doutrinária sobre a natureza do poder de auto-organização dos Estados-membros, posicionando-se de forma convincente a favor da existência de um Poder Constituinte, conquanto inconfundível com o Poder Constituinte dito originário, emanação direta da soberania estatal: veja-se, especialmente, pp. 58-65.
13 A observação arguta, mais uma vez, é de Ferreira Filho (Curso de direito constitucional, pp. 54).
14 É essa a lição conspícua dos autores clássicos, como Charles Durand: “No Estado unitário descentralizado basta a lei ordinária para fixar e modificar o regime jurídico das coletividades internas. No Estado federal essa função incumbe não à lei ordinária, senão a uma Constituição rígida, vale dizer, não intangível, porém mais difícil de se modificar do que a lei ordinária” (El Estado federal en el derecho positivo. Federalismo y federalismo europeo, p. 180, com tradução livre para o português do texto em espanhol).
15 Na senda de todas as nossas Cartas republicanas, a Constituição de 1988 estatuiu que não pode ser sequer “objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, inc. I).
16 Sirva de exemplo, mais uma vez, a Constituição do Brasil, que assim prescreve: “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. Note-se que apenas na Carta de 5 de outubro de 1988 os Municípios foram declarados parte integrante da associação federativa, não sendo comum nos Estados federais, até mesmo pelos eventos históricos já invocados, tal deferência às coletividades locais.
17 Ambos os princípios foram arrolados pela Constituição de 88, enquanto diretrizes para atuação do Estado brasileiro na esfera internacional: cf. art. 4º, I e III.
18 As relações entre o fenômeno da globalização e suas múltiplas dimensões e a estratégia de criação de blocos regionais para o eficaz enfrentamento de seus desafios foram muito bem exploradas por Enrique Ricardo Lewandowski, na monografia Globalização, regionalização e soberania. À guisa de conclusão, assinalou o Professor Titular de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que, não obstante a crescente integração entre os Estados no plano internacional, “mantém-se ainda intacto o padrão westfaliano de relacionamento horizontal entre os Estados, enquanto modelo fundado na soberania” (Idem, p. 301). Em outra passagem, explicita: “As mudanças trazidas pela globalização, portanto, não tiveram o condão de abalar os fundamentos da soberania. No plano interno, o soberano continua dispondo da decisão final sobre todas as competências, ao passo que, na esfera externa, segue mantendo a independência que lhe possibilita assumir ou não determinadas obrigações” (Idem, p. 300).
19 DÓRIA, A. Sampaio. Direito constitucional, v. 1, t. 2, p. 478.
20 Veja-se a nota de rodapé n. 8, que invoca excerto doutrinário de Machado Horta.
21 A. Sampaio Dória dá grande destaque a esse aspecto da autonomia política regional e local, ao prelecionar que “a eleição do chefe do executivo e dos legisladores, nas províncias e nos municípios, pelas respectivas populações, em vez de suas designações pelo governo central, é o primeiro passo da autonomia política” (Direito constitucional, v. 1, t. 2, p. 478).
22 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, pp. 617-618.
23 Frase célebre de FAGUNDES, Seabra, em sua obra seminal O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, pp. 4-5.
24 Sobre a distinção entre as técnicas horizontal e vertical de discriminação da competência legislativa no Estado federal, veja-se Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Curso de direito constitucional, p. 55).
25 O exemplo mais notório se dá no campo da aplicação da lei penal. A legislação penal é de competência privativa da União (art. 22, inc. I, da CF), porém às polícias civis estaduais, “dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares” (art. 144, § 4º, da CF). Outro exemplo pode ser encontrado em sede de legislação de trânsito, que, igualmente, é da exclusiva alçada da União (art. 22, inc. XI, da CF). Não obstante a competência legislativa federal plena na matéria, o Constituinte de 88 atribuiu aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios competência (administrativa comum) para “estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito” (art. 23, inc. XII).
26 Nesse sentido, as observações de Oswaldo Trigueiro em seu Direito constitucional estadual, p. 225: “A distribuição das rendas públicas entre a União Federal e os Estados-membros, que a compõem, apresenta-se como um dos problemas mais árduos da ciência política do nosso tempo. Essa distribuição é considerada indispensável, para evitar conflitos prejudiciais ao desenvolvimento integrado do país e das coletividades políticas em que ele se divide. É evidente que, nos Estados unitários, o problema é inexistente ou, pelo menos, de solução singela. (...) Nos Estados compostos, porém, o problema é fundamental, porque dele depende a efetiva autonomia e até a sobrevivência das coletividades menores”.
27 A Constituição de 88, ao mesmo tempo em que consagra o desenvolvimento econômico como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, prescreve a necessidade de se assegurar a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incs. II e III).
28 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, pp. 55-56.
29 Para uma sintética visão acerca dos modelos ou tipos de federalismo, veja-se Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Idem, pp. 56-57). A correlação entre os mecanismos de fundos de participação e a concepção de federalismo de equilíbrio ou cooperativo foi bem apontada por Machado Horta no artigo “Tendências atuais da federação brasileira” (Direito constitucional, pp. 426-428).
30 O silogismo é o seguinte: o Estado federal pressupõe a existência de unidades parciais (correspondentes às porções de competência territorial que manejam) dotadas de autonomia, nos termos e limites estabelecidos pelo ato normativo fundante da Federação, que é a Constituição (Federal). Logo, a autonomia é um poder que decorre da Constituição, nela encontrando seus limites conformativos. A fórmula está estampada no art. 18, caput, da Constituição de 1988, segundo a qual “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
31 A classificação binária ora adotada é prestigiada, dentre outros, por José Afonso da Silva, notório estudioso da matéria, para quem “(...) os princípios, que circunscrevem a atuação do Constituinte Estadual, podem ser considerados em dois grupos: (a) os princípios constitucionais sensíveis; (b) os princípios constitucionais estabelecidos”. Veja-se Curso, cit., p. 620. Registre-se, apenas, que a expressão “princípios” não se mostra adequada à atual compreensão das normas constitucionais, subdivididas em princípios e regras, porquanto muitas das limitações impostas pela Carta Magna à auto-organização dos Estados consubstanciam regras e não verdadeiros princípios. No tocante à distinção, quantitativa e qualitativa, entre princípios e regras, reporto-me à obra de minha autoria Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, pp. 166-168 e pp. 183-90.
32 Com efeito, o exame do rol do inciso VII, do art. 34, da CF descortina a proteção dos princípios democrático (abrangida a forma republicana de governo, a prestação de contas na Administração Pública, o sistema representativo e o sistema de direitos da pessoa humana) e federativo, bem como a salvaguarda das vinculações de receita que visam dar efetividade às políticas de educação e saúde.
33 Art. 36, § 3º, da CF de 88.
34 A rigor, Machado Horta, no célebre artigo intitulado O Estado-membro na Constituição Federal brasileira, alude a 4 categorias de normas limitativas da auto-organização estadual, distinguindo duas modalidades de normas principiológicas (“princípios desta Constituição” e “princípios constitucionais”), que aqui foram reunidos em uma única categoria: princípios constitucionais de abrangência federativa. Direito constitucional, pp. 300-303.
35 Vem bem a propósito, a lição de José Afonso da Silva: “Quando a Constituição, por exemplo, arrola no art. 21 a matéria de estrita competência da União, implicitamente veda ao Constituinte Estadual cuidar dela; assim, igualmente, quando dá à União competência privativa para legislar sobre a matéria relacionada no art. 22” (Curso de direito constitucional, pp. 623-624).
36 Art. 150 da CF de 88.
37 O tema aqui diz respeito aos limites ao Poder Constituinte derivado decorrente dos Estados-membros, na terminologia consagrada entre nós a partir dos ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Conforme assinala o mestre, há duas espécies de Poder Constituinte derivado, partindo-se do pressuposto, já aceito anteriormente, de que se deve atribuir a condição de Poder Constituinte ao poder de editar normas material e formalmente constitucionais, ainda que subalternas. E arremata: “Uma é o poder de revisão. Trata-se do poder, previsto pela Constituição, para alterá-la, adaptando-a a novos tempos e novas exigências. Outra é o Poder Constituinte dos Estados-Membros de um Estado federal. O chamado Poder Constituinte decorrente. Este deriva também do originário mas não se destina a rever sua obra e sim a institucionalizar coletividades, com caráter de estados, que a Constituição preveja” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 28). Pois bem, esse Poder Constituinte decorrente institucionalizador deve observar os limites e condições que a Constituição do Estado federal prescreve para sua manifestação fundante. Obedece a essa ordem de ideias o disposto, por exemplo, no art. 11 do ADCT da Constituição de 88 (limitação temporal).
38 Para um estudo abrangente da matéria atinente ao Poder Constituinte decorrente dos Estados-membros, em suas duas modalidades (inicial e de revisão), descortinando um amplo panorama das limitações que a elas se impõem no plano do Direito Comparado, invoque-se, ainda uma vez, a monografia Poder Constituinte do Estado-membro, de Anna Cândida da Cunha Ferraz.
39 Vejam-se as considerações que fiz sobre o tema na obra Controle de constitucionalidade no Brasil: perspectivas de evolução, pp. 41-5. Conforme assinalei nesse estudo, “o princípio da supremacia hierárquica das normas constitucionais, mesmo que, no plano da normogênese, apareça simultaneamente às normas impositivas da rigidez constitucional, ostenta precedência lógica (a exigência de que a alteração da Constituição se faça de modo solene provém da supremacia formal e não o contrário) e cronológica (tendo em vista o processo constituinte) em relação ao princípio da rigidez”.
40 Importa observar que, no caso da Federação tripartite brasileira, também as normas constantes das Leis Orgânicas dos Municípios (de natureza constitucional) e da legislação ordinária comunal podem conflitar, em algumas situações, com as Constituições dos respectivos Estados, ex vi do disposto no art. 29, caput, da Constituição Federal.
41 Cabe aqui ter presente as relações que se estabelecem entre os conceitos de vício, sanção e controle de constitucionalidade. Cf. o meu livro Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., pp. 47-53.
42 Acerca das classificações das técnicas de controle e das decisões a elas associadas, veja-se o meu citado trabalho Controle de constitucionalidade no Brasil, pp. 53-90.
43 Nesse sentido as considerações que fiz no Controle de constitucionalidade no Brasil, p. 342.
44 Conforme deixei consignado no Controle de constitucionalidade, p. 78, “o controle principal, isto é, desenvolvido por meio de processos constitucionais de controle, intitulados de ações diretas, adquire, em geral, feições abstratas”. Mas, ressalvei que “excepcionalmente, podem-se encontrar ações diretas de inconstitucionalidade cuja configuração leve em conta a situação pessoal, de direito material, afetada pelo ato legislativo impugnado”, como é o caso do recurso constitucional (verfassungsbeschwerde) alemão.
45 A expressão “representação de inconstitucionalidade” foi a utilizada pelo legislador constituinte brasileiro, desde a promulgação da EC n. 16, de 1965, à Constituição de 1946, para se referir às ações diretas genéricas de inconstitucionalidade, que instrumentalizam controle principal. Dada a ambiguidade do vocábulo “representação”, rompeu o Constituinte de 88 com essa tradição em nível federal (art. 102, I, a), não tendo os trabalhos de sistematização ajustado o texto do art. 125, § 2º.
46 Essa orientação do Pretório Excelso foi cristalizada no julgamento da Reclamação n. 383-SP, atuando como Relator o Min. Moreira Alves.
47 A título de exemplo, invoque-se o acórdão proferido pelo STF na ADI n. 347-0/SP, em que a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da expressão “Federal”, que constava da redação originária do art. 74, inc. XI, da Constituição paulista, in verbis: “Artigo 74 – Compete ao Tribunal de Justiça, além das atribuições previstas nesta Constituição, processar e julgar originariamente: (...) XI – a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, contestados em face da Constituição Federal.”
48 Cuida-se de matéria constitucional por sua natureza, na lição de Machado Horta, seguindo doutrina sedimentada, que remonta ao pensamento kelseniano: “Sendo a repartição de competência o instrumento de atribuição a cada ordenamento de sua matéria própria, a preservação desse processo no tempo e a realização de sua própria finalidade de técnica aplacadora de conflitos, impõem a localização da repartição de competências no documento fundamental da organização federal. (...) A relação entre Constituição Federal e repartição de competências é uma relação causal, de modo que, havendo Constituição Federal, haverá, necessariamente, a repartição de competências dentro do próprio documento de fundação jurídica do Estado Federal” (Cf. HORTA, Raul Machado. Repartição de competências na Constituição Federal de 1988. Direito constitucional, p. 310).
49 ALMEIDA, Fernanda Menezes de. Competências na Constituição de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 32.
50 A Constituição de 1988, fiel à tradição republicana, prescreveu em seu art. 25, § 1º, que “são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”. Conforme já salientado, no tópico sobre os limites da autonomia estadual, a atribuição de determinadas competências à União ou aos Municípios importa, ipso facto, no impedimento dos Estados de seu exercício.
51 Veja-se FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, pp. 55-57.
52 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 55.
53 Na verdade, também os Municípios participam da elaboração da legislação concorrente, ainda que não tenham sido mencionados no dispositivo-matriz da competência legislativa concorrente, o art. 24 da CF. A essa conclusão se chega por meio do elemento sistemático, tendo presente o disposto no art. 30, inc. II, da Lei Maior, segundo o qual compete às Municipalidades “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”.
54 Essa a leitura correta do § 2º do art. 24 da Constituição de 88, porquanto também a União e os Municípios exercem competência legislativa suplementar, e não apenas os Estados.
55 A dicção do § 4º do art. 24, da CF é no sentido de que tal superveniência “suspende” a eficácia da legislação supletiva. Todavia, a interpretação teleológico-sistemática do dispositivo aponta para a revogação dessa legislação, sob pena de se admitir a repristinação normativa, fenômeno verberado pela melhor doutrina e pela própria diretriz do art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942).
56 Esse é o entendimento de Fernanda Dias Menezes de Almeida, ao assinalar que “nada indica que os Estados devam esperar muito da regra do parágrafo único do artigo 22”. Primeiro, porque se trata de “mera faculdade aberta ao legislador federal, que dela, se quiser, poderá nem fazer uso”. Segundo, porque a delegação de competência depende da aprovação de lei complementar, aprovada pelo maioria absoluta dos integrantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 69 da CF). Finalmente, porque se, “por um lado, quaisquer das matérias de competência privativa da União são delegáveis, nunca será possível delegar a regulação integral de toda uma matéria”, mas unicamente a regulação de “questões específicas” das matérias dos incisos do art. 22 (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Curso de direito constitucional, pp. 90-93).
57 Preceitua o art. 96, inc. I, alínea a, da CF, que “compete privativamente aos tribunais (em geral) eleger seus órgãos diretivos (...)”.
58 O Estatuto da Magistratura desdobra as regras e princípios do art. 93, tendo a iniciativa do respectivo projeto de lei complementar sido adstrita ao Supremo Tribunal Federal, com exclusividade, o que não se mostrou salutar, haja vista a demora injustificável no encaminhamento ao Congresso Nacional de projeto de lei que propicie a renovação do Estatuto atual, em vigor desde 1979.
59 Item 2, nota de rodapé 25.
60 Nesse sentido, há um certo paralelo entre os parágrafos únicos dos art. 22 e 23 da CF.
61 A instituição desses impostos também foi atribuída ao Distrito Federal, entidade essa cuja autonomia muito se aproxima daquela assegurada aos Estados pela Carta de 88. No entanto, no que tange à discriminação de rendas, o DF cumula os impostos estaduais com aqueles da competência dos Municípios (art. 147 da CF), inexistentes em seu território.
62 Cf. art. 145, II e III, da CF.
63 Item 2, retro.
64 De acordo com o disposto no art. 159, inc. I, da CF, 21,5% (vinte e um inteiros e cinco décimos por cento) do produto da arrecadação do IR pela União devem ser destinados ao Fundo de Participação dos Estados e do DF.
65 É o caso do produto da arrecadação do IR, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, pelos Estados e por suas autarquias e fundações (art. 157, I, da CF).
66 Nesse sentido, 10% (dez por cento) da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados – IPI é entregue aos Estados e ao DF, proporcionalmente ao valor das respectivas exportações desses produtos, sendo também eles entregues 29% (vinte e nove por cento) da arrecadação da contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no art. 177, § 4º, da CF (relativa às atividades de importação e comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível).
67 No caso do Brasil, ganham destaque as limitações ao poder de tributar dos art. 150 e 152 da CF.
68 O Senado regula a matéria por meio de resoluções, fundadas no art. 52, inc. V, VI, VII e IX, da CF.
69 Dos três impostos que mais arrecadam no País, dois são de competência exclusiva da União (IR e IPI), que, ademais, pode, por meio de lei complementar, instituir impostos residuais (art. 154, I, da CF), bem como instituir empréstimos compulsórios (art. 148 da CF). Isso sem mencionar que boa parte da arrecadação federal advém da cobrança de contribuições sociais de intervenção no domínio econômico (art. 149, caput, da CF), cujo produto, em geral, não é compartilhado com os Estados e Municípios.
70 TRIGUEIRO, Oswaldo. Direito constitucional estadual, p. 237.
71 Cf. art. 155, § 2º, inc. XII, alínea “g”, da CF e art. 34, § 8º, do ADCT.
72 É difícil aquilatar se o caso é de incapacidade ou “falta de vontade política” do STF, porém, o certo é que a rápida concessão de liminares nas inúmeras ações diretas de inconstitucionalidade propostas, tendo por objeto atos normativos promotores de “guerra fiscal”, certamente teria coibido a prática.
73 Em atenção a esse ponto, nas palavras de Machado Horta, “as Constituições Federais Brasileiras sempre dispensaram especial atenção à criação de novos Estados, tornando inequívoca a possibilidade de alteração na estrutura territorial do Estado Federal”: cf. HORTA, Raul Machado. O Estado-membro na Constituição Federal brasileira. Direito constitucional, p. 293.
74 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, p. 477.
75 No mesmo sentido a doutrina de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, p. 477).
76 Idem, p. 478.
77 José Afonso da Silva, em seu festejado (Curso de direito constitucional positivo, p. 478), posiciona-se de forma incisiva em favor da segunda hipótese: “População diretamente interessada, no caso, é a da parte desmembranda, é a da parte que quer separar-se.” O restante da população do Estado a ser desmembrado, nessa linha de raciocínio, seria apenas indiretamente interessada.
78 Merecem transcrição os itens de 1 a 4 da ementa do v. acórdão então proferido pelo STF (j. 24-8-2011), sob a condução do eminente relator, Ministro Dias Tóffoli: “1. Após a alteração promovida pela EC 15/96, a Constituição explicitou o alcance do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios e, portanto, o significado da expressão populações diretamente interessadas, contida na redação originária do § 4º do art. 18 da Constituição, no sentido de ser necessária a consulta a toda a população afetada pela modificação territorial, o que, no caso de desmembramento, deve envolver tanto a população do território a ser desmembrado, quanto a do território remanescente. Esse sempre foi o real sentido da exigência constitucional – a nova redação conferida pela emenda, do mesmo modo que o art. 7° da Lei 9.709/1998, apenas tomou explícito um conteúdo já presente na norma originária. 2. A utilização de termos distintos para as hipóteses de desmembramento de estados-membros e de municípios não pode resultar na conclusão de que cada um teria um significado diverso, sob pena de se admitir maior facilidade para o desmembramento de um estado do que para o desmembramento de um município. Esse problema hermenêutico deve ser evitado por intermédio de interpretação que dê a mesma solução para ambos os casos, sob pena de, caso contrário, se ferir, inclusive, a isonomia entre os entes da federação. O presente caso exige, para além de uma interpretação gramatical, uma interpretação sistemática da Constituição, tal que se leve em conta a sua integralidade e a sua harmonia, sempre em busca da máxima da unidade constitucional, de modo que a interpretação das normas constitucionais seja realizada de maneira a evitar contradições entre elas. Esse objetivo será alcançado mediante interpretação que extraia do termo população diretamente interessada o significado de que, para a hipótese de desmembramento, deve ser consultada, mediante plebiscito, toda a população do estado membro ou do município, e não apenas a população da área a ser desmembrada. 3. A realização de plebiscito abrangendo toda a população do ente a ser desmembrado não fere os princípios da soberania popular e da cidadania. O que parece afrontá-los é a própria vedação à realização do plebiscito na área como um todo. Negar à população do território remanescente o direito de participar da decisão de desmembramento de seu estado restringe esse direito a apenas alguns cidadãos, em detrimento do princípio da isonomia, pilar de um Estado Democrático de Direito. 4. Sendo o desmembramento uma divisão territorial, uma separação, com o desfalque de parte do território e de parte da sua população, não há como excluir da consulta plebiscitária os interesses da população da área remanescente, população essa que também será inevitavelmente afetada. O desmembramento dos entes federativos, além de reduzir seu espaço territorial e sua população, pode resultar, ainda, na cisão da unidade sociocultural, econômica e financeira do Estado, razão pela qual a vontade da população do território remanescente não deve ser desconsiderada, nem deve ser essa população rotulada como indiretamente interessada. Indiretamente interessada - e, por isso, consultada apenas indiretamente, via seus representantes eleitos no Congresso Nacional - é a população dos demais estados da Federação, uma vez que a redefinição territorial de determinado estado-membro interessa não apenas ao respectivo ente federativo, mas a todo o Estado Federal”.
79 Reza o art. 48, inc. VI, da CF, que compete ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor sobre “incorporação, subdivisão ou desmembramento de áreas de Territórios ou Estados, ouvidas as respectivas Assembleias Legislativas”.
80 Art. 4º, §§ 3º e 4º, da Lei Federal 9.709/1998.
81 Dentre os principais instrumentos de limitação do poder que o Direito Constitucional produziu em dois séculos de existência há que se mencionar, além da própria Constituição e do controle de constitucionalidade, a separação dos Poderes, as liberdades públicas e a forma federativa de Estado.
82 Como bem exposto por Machado Horta, a despeito da modelagem federalista adotada na Carta de 37, tratava-se de um federalismo nominal, logo suplantado por normas infraconstitucionais de cunho unitarista: “O federalismo nominal da Carta de 1937 nem sequer durou no texto constitucional, pois, na realidade, dali desapareceu em virtude de singular processo de desconstitucionalização. A lei ordinária substituiu a estrutura federal nominal pela estrutura legal do Estado unitário. A rigidez da Carta curvou-se ao voluntarismo dos decretos-leis e o texto constitucional adquiriu flexibilidade no contato dominador da vontade legislativa monopolizada pelo Presidente da República. A mudança da Carta ocorreu também no domínio do precário federalismo nominal. O instrumento dessa transformação foi o Decreto-Lei n. 1.202, de 8 de abril de 1939, que dispunha sobre a administração dos Estados e dos Municípios” (Cf. Autonomia do Estado no direito constitucional brasileiro. Direito constitucional, p. 395).
83 Autores clássicos, como Charles Durand, chegaram mesmo a divisar no federalismo cooperativo, então denominado de neofederalismo, o ocaso do Estado politicamente descentralizado: “Tudo isso se relaciona, evidentemente, com uma decadência do interesse das populações pela autonomia do Estado membro. (...) Ao federalismo qualificado de dualista se quis opor o neofederalismo, no qual os Estados membros não teriam praticamente mais do que o legislador federal lhes quisera deixar. Porém, então não se rechaça o federalismo para se deslizar, na verdade, rumo à noção de descentralização administrativa?” Cf. DURAND, Charles. El Estado federal em el derecho positivo. Federalismo y federalismo europeo, pp. 212-213, com tradução livre de minha responsabilidade.
84 Por todos, invoque-se o testemunho invulgar de Machado Horta: “A Constituição Federal de 1988 promoveu a reconstrução do federalismo brasileiro, estabelecendo a relação entre a Federação e os princípios e regras que individualizam essa forma de Estado no conjunto das formas políticas. (...) O federalismo constitucional de 1988 exprime uma tendência de equilíbrio na atribuição de poderes e competências à União e aos Estados. Afastou-se das soluções centralizadoras de 1967 e retomou, com mais vigor, soluções que despontaram na Constituição de 1946, para oferecer mecanismos compensatórios, em condições de assegurar o convívio entre os poderes nacionais-federais da União e os poderes estaduais-autônomos das unidades federadas. As bases do federalismo de equilíbrio estão lançadas na Constituição de 1988” (Cf. HORTA, Raul Machado. Autonomia do Estado no direito constitucional brasileiro. Direito constitucional, pp. 413-416).
85 O propósito, aparentemente louvável, de evitar abusos estipendiários revela, de modo indisfarçável, a desconfiança no exercício da cidadania em nível local e regional.
86 Pode-se extrair o princípio da responsabilidade fiscal, aplicável às três esferas da Federação, do disposto no caput e parágrafos do art. 169 da CF.
87 Ao dissertar sobre o federalismo assimétrico e seus objetivos, assim se manifestou Ricardo Victalino de Oliveira: “Em verdade, o federalismo assimétrico pode ser compreendido como um esforço voltado a explicar e a informar os sistemas de descentralização política adotado por Estados que buscam construir um modelo alternativo e juridicamente viável de articulação do poder. São múltiplos os fatores que podem chamar a assimetria para o texto constitucional estruturante da Federação, mas o certo é que os mecanismos dela derivados sempre irão objetivar a pacificação institucional por meio da diferenciação racionalmente controlada do exercício das competências materiais e legislativas titularizadas pelas partes federadas. E essas desigualdades jurídicas plasmadas nos dispositivos constitucionais tendem a converter-se em habilidoso e eficiente meio de assegurar a convivência pacífica e ordenada entre realidades dissonantes e, não raro, hostis entre si.” Excerto extraído da obra Federalismo assimétrico brasileiro, p. 30.
Referências
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FAGUNDES, Seabra. O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Poder constituinte do Estado-membro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GUIMARÃES, Maria Elizabeth; ROCHA, Teixeira; BASTOS, Romeu Costa Ribeiro. O federalista atual: teoria do federalismo. Dircêo Torrecillas Ramos (coord.). Belo Horizonte: Arraes, 2013.
HORTA, Juliana Campos. Autonomia do Estado no direito constitucional brasileiro. Direito constitucional. 5. ed., atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Globalização, regionalização e soberania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.
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RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 39. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2016.
TRIGUEIRO, Oswaldo. Direito constitucional estadual. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
Citação
RAMOS, Elival da Silva. Estados-membros. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/72/edicao-2/estados-membros
Edições
Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1,
Abril de 2017
Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2,
Abril de 2022