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Aspectos gerais da Lei Anticorrupção
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Maurício Zockun
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Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017
1. As relevantes inovações trazidas pela denominada Lei Anticorrupção
1. A Lei federal 12.846, de 2013, veiculou o que passou a ser referido pela grande mídia como a “Lei anticorrupção”, fruto de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.1 Sucede que esta afirmativa encerra um agudo vício de índole jurídica.
Isto porque as disposições veiculadas nessa lei federal pretendem preservar o patrimônio público nacional e estrangeiro de condutas que lhe esgarcem ilegitimamente por serem, respectivamente, atentatórias aos princípios informadores do regime jurídico administrativo e aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Assim, o objeto juridicamente tutelado pela Lei federal 12.846 é consideravelmente mais abrangente do que a imposição de sanção contra quem comete o crime de corrupção ativa, ilícito definido pelo art. 333 do Código Penal como o ato de “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”.
Primeiro porque não só quem comete corrupção ativa incide no ilícito tipificado pela Lei federal 12.846, de 2013.2 Tanto mais porque aquele que custeia a sua prática, diretamente ou por meio de interposta pessoa, física ou jurídica, é igualmente autor do comportamento censurado por esta nova lei.
Segundo porque, além de repreender o ilícito acima referido, esta lei também qualifica como ilícitas as condutas que, praticadas dolosamente, (i) resultem na ilícita frustração da instauração e/ou processamento de licitação pública e/ou, ainda, do seu propósito competitivo, aí se incluindo a ilegítima cooptação, tentada ou realizada, para que um potencial interessado não aflua ao certame; (ii) venham a fraudar licitação pública ou o contrato administrativo dela decorrente, no que também se contempla a alteração de suas disposições contratuais e/ou sua prorrogação, tal como a cláusula garantidora do denominado equilíbrio econômico-financeiro da avença travada; e (iii) procurem dificultar as investigação dos ilícitos previstos na lei.
Neste particular, esta lei pretende acautelar a escorreita tutela do interesse público por meio da função administrativa em face de atos que, de modo fraudulento, resultem na vulneração dos princípios vetores das licitações e contratações públicas.
Terceiro porque a Lei federal 12.846 não pretende apenas salvaguardar a Administração pública nacional3 destas deletérias condutas; protege-se também a Administração estrangeira. Acautela-se, pois, a expedita persecução do interesse público, independentemente da pessoa estatal que desempenhe este mister.
2. Daí ser manifestamente equivocado designar a Lei federal 12.846 como “Lei anticorrupção”. Este rótulo apequena o real conteúdo, sentido e alcance da lei em comento; é rótulo divorciado da substância da lei, ainda que seja bastante sonoro, especialmente aos ouvidos dos leigos.
Em rigor, a lei em apreço exige que as pessoas jurídicas se relacionem com o Poder público de modo reto e lhano, na amplitude e limitações por ela fixadas. Trata-se, em rigor, de uma “Lei de probidade administrativa empresarial” e não de uma “Lei anticorrupção”, ainda que este último rótulo já seja empregado de forma corrente e equivocada, pois inexiste um conceito jurídico de corrupção, como acertadamente observam Emerson Gabardo e Gabriel Morettini e Castella.4
Em que pese o fundado equívoco desta designação, referimo-nos à Lei federal 12.846, de 2013, como Lei anticorrupção. E assim fazemos para facilitar o discurso e a compreensão do objeto referido, evitando-se uma batalha logomáquica destituída de fundado propósito material.
2. A responsabilização sancionatória objetiva da pessoa jurídica pela Lei 12.846
3. A grande inovação desta lei resulta, contudo, de um dos seus aspectos mais controvertidos e, por isto mesmo, já contrastada no Supremo Tribunal Federal por meio da Ação direta de inconstitucionalidade 5.261, proposta pelo Partido Social Liberal, atualmente sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio.
Isso porque a lei responsabiliza objetivamente, no âmbito civil e administrativo, a pessoa jurídica pelo cometimento dos ilícitos anteriormente referidos.
Alega-se que esta previsão é incompatível com a Constituição da República porque (i) a pessoa jurídica sempre age por meio de seus agentes, não se podendo sancionar uma empresa em razão de uma conduta praticada por um dos seus prepostos; e, ainda que isto fosse possível, (ii) essa penalização não poderia advir de sua responsabilização objetiva. Vejamos se estas objeções procedem.
2.1. A responsabilização sancionatória da pessoa jurídica
4. O direito cria as suas próprias realidades. A simples existência de pessoas jurídicas – de direito público e de direito privado – é a prova desta incontestável virtude do sistema de direito positivo, já que essas entidades são meras ficções jurídicas.
Por esta razão, é induvidoso que as pessoas jurídicas atuam no mundo fenomênico por meio de quem a represente.5 Sob uma ótica material, quem atua em nome da pessoa jurídica é, sempre, uma pessoa física.
Desse modo, quando um ato jurídico é praticado por uma pessoa jurídica a quem a ordem jurídica comina a sua realização? À própria pessoa jurídica ou à pessoa física que atua em seu nome?
5. Criando suas próprias realidades, o direito positivo ordinariamente comina à própria pessoa jurídica a prática de atos jurídicos, ainda que contrários ao sistema normativo. Apenas excepcionalmente, nas hipóteses e sob as circunstâncias descritas pela própria ordem jurídica, pode-se imputar o ato praticado ao agente que materialmente o realizou em nome da entidade. Não sem razão criou-se incidente de desconsideração da pessoa jurídica, destinado especificamente a esse propósito, nos termos dos arts. 133 e ss. do novo Código de Processo Civil.
Vê-se, pois, que a atribuição de uma conduta à pessoa jurídica ou à pessoa física que, em seu nome, praticou um ato jurídico (faltoso ou não; lícito ou ilícito) é, portanto, um problema jurídico-positivo e não lógico-jurídico.
6. E quanto a possibilidade de se imputar uma sanção em desfavor de uma pessoa jurídica, relembre-se que o nosso sistema normativo já contempla esta possibilidade; e no altiplano constitucional. Com efeito, o art. 225, § 3°, da Constituição da República, prescreve, com os nossos destaques, que “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. No mesmo sentido também prevê o art. 173, § 5°, da Carta Magna, ao dispor que “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.
Em vista destes dois perceptivos, procederiam a objeções anteriormente lançadas contra a lisura da Lei anticorrupção? Parece-nos que não, pelas seguintes razões.
7. Em memorável artigo, Nelson Hungria observou que “A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico...Assim, não há falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal”. Daí concluir, com apoio em Beling, que “...a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau: está na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com outra. O ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal”.6
Logo, não há distinção morfológica entre a infração civil, administrativa, trabalhista, tributária ou penal etc.; todas decorrem do descumprimento da ordem jurídica. Por esta razão, a prática de uma conduta vedada pela ordem jurídica resulta, sempre, no cometimento de um ilícito e a imposição de uma sanção em desfavor do seu autor, ainda que haja possibilidade de serem adotadas outras medidas judiciais que procurem recompor a situação lesada ao status quo ante.7
Daí porque, pautado nesta ideia, sustentamos que a responsabilização civil do Estado é uma espécie de sanção.8
8. Haveria, todavia, possibilidade de sancionar um terceiro com base na teoria da responsabilidade objetiva, sendo desnecessário, pois, demonstrar o dolo ou culpa do agente no cometimento do ilícito?
2.2. A responsabilização sancionatória objetiva da pessoa jurídica
9. Adiantamo-nos esclarecendo que o direito positivo já contempla a responsabilidade sancionatória da pessoa jurídica.
É o que se sucede, por exemplo, no art. 37, § 6º, da Constituição da República, que responsabiliza objetivamente o Estado pela prática de um dano ilícito, não sendo, contudo, o único.
O mesmo se depreende do exame do art. 931 do Código Civil, que reconfirma o acerto desta afirmativa. Isso porque, segundo este dispositivo, “Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Prevê-se, aqui, uma hipótese de responsabilidade sancionatória objetiva da pessoa jurídica.
Mas haveria um limite para a responsabilização objetiva da pessoa jurídica em vista de ilícitos cometidos por seus prepostos ou de terceiros que lhe pretendem ilegitimamente beneficiar? A resposta é afirmativa.
10. A sanção imposta em vista de uma infração pode resultar no esgarçamento do direito de propriedade ou do direito de liberdade.9 E, neste campo, há que se ponderar o que merece maior guarida na ordem constitucional: (i) a recomposição patrimonial e a sanção do infrator segundo a responsabilização objetiva, ou, alternativamente, (ii) a recomposição patrimonial objetiva e a penalização do infrator na medida da sua culpabilidade?
Ainda que existam vozes dissonantes – e sempre existirão –, aceita-se que o direito de liberdade só possa ser tolhido na medida da culpabilidade do agente faltoso; ou seja, segundo sua responsabilidade subjetiva no cometimento do ilício. E isso porque se adotou, para estes casos, uma teoria de causalidade viabilizadora apenas da responsabilização subjetiva.10
O mesmo não se pode dizer quanto ao tolhimento do direito de propriedade em vista dos mesmos fatos ilícitos, campo em que se admite a responsabilização objetiva (sem a necessidade, pois, de demonstração de dolo ou culpa do infrator no cometimento do ilícito). Adota-se aqui teoria diversa do nexo de causalidade, acolhedora da responsabilização objetiva, bastando apenas que o agente tenha deflagrado a conduta que redundou no ilícito, pouco importante se teve ou não interesse nesse resultado.
Neste contexto, a Lei anticorrupção prevê a responsabilização objetiva da pessoa jurídica?
2.3. A responsabilização objetiva da pessoa jurídica pela Lei anticorrupção
11. O art. 1º da Lei anticorrupção assinala explicitamente o propósito de atribuir à pessoa jurídica a responsabilização objetiva pelo cometimento dos ilícitos nela assinalados.
Sucede que a prática dos ilícitos descritos no art. 5º desta lei – que deflagram a responsabilização objetiva da pessoa jurídica – só podem ser cometidos de modo doloso. Sua ocorrência no plano fenomênico demanda, portanto, um agir da pessoa com o deliberado propósito de realizá-los.
12. Com efeito, o art. 5º, I, da lei ora em exame prevê como infração “prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada”. Só há possibilidade de praticar esta conduta de modo intencional e, portanto, doloso.
No mesmo sentido, o art. 5º, II, assinala como infração “comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei”. Não se pode imaginar que o abastecimento financeiro das condutas ilícitas previstas na lei decorra de negligência, imprudência ou imperícia, senão que de prática dolosa do agente faltoso.
Prossegue a lei assinalando no art. 5º, III, que incide nas sanções nela previstas quem “comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados”. Uma vez mais, só se poderá praticar este ilícito de modo intencional.
Se os demais ilícitos listados na lei seguem o mesmo iter, de que modo subsiste a responsabilização objetiva?
13. Ao nosso juízo, só há uma possibilidade de contabilizar a responsabilização objetiva da pessoa jurídica em razão de atos ilícitos cuja prática se aperfeiçoa de forma dolosa: conceber a existência de duas normas jurídicas que, conjugadas, fazem nascer a referida responsabilização. Nesse sentido, vislumbra-se a existência de (i) uma norma dispositiva do cometimento do ilícito, necessariamente vinculado ao comportamento subjetivo do agente faltoso; e por agente faltoso, considere-se a pessoa física que, representando a pessoa jurídica, pratica o ilícito; e, gravitando ao seu redor, (ii) uma segunda norma prevendo a responsabilização objetiva da pessoa jurídica tendo, por pressuposto (ou hipótese de incidência), o ilícito cometido.
Assim, o nascimento do ilícito é apurado segundo o comportamento subjetivo do agente, na medida de sua culpabilidade. Uma vez ocorrido este ilícito, deflagra-se a responsabilização objetiva da pessoa jurídica.
3. Acordo de leniência da Lei Anticorrupção
14. Previu-se na Lei anticorrupção a figura jurídica do acordo de leniência, espécie do gênero ato jurídico convencional.
Trata-se de ato convencional pois, por meio dele e preenchidos certos pressupostos, Administração e administrado estipulam a mitigação ou a supressão de um plexo de penalidades passíveis de imposição à pessoa jurídica pelo cometimento doloso, por pessoa física, de atos ilícitos que proporcionem à entidade privada o desfrute de ilegítimo benefício patrimonial ou extrapatrimonial.
15. É certo que são inúmeras as hipóteses de ato convencional formado sob o regime jurídico de direito administrativo, como se dá, por exemplo, na transação em matéria tributária. Nestes casos, a obrigação tributária e o litígio que lhe tem por objeto podem ser extintos em razão de mútuas concessões, nos termos da lei (arts. 156, III e 171 do Código Tributário Nacional). Mais frequente no campo do direito administrativo, contudo, é o Termo de Ajustamento de Conduta, previsto no art. 5º, § 6º, da Lei de ação civil pública.
Neste contexto preocupa-nos saber se o acordo de leniência é produzido no exercício de competência discricionária ou deve ser entabulado de modo vinculado; e mais: se os efeitos decorrentes da sua celebração têm seus confins fixados ao motivado arbítrio das autoridades administrativas envolvidas ou se, pelo contrário, existe mitigada discricionariedade neste campo.
3.1. A conciliação nas hipóteses de lesão cometida em desfavor de interesse público
16. A discussão em pauta tem sua gênese na redação do art. 16, caput, dessa lei, segundo a qual, com o nosso destaque, “A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo”.
O debate neste particular é batido: saber se a expressão “poder” acima referida encerra uma faculdade ou um dever-poder (ou seja: se, sempre que possível, este ato convencional deve ser entabulado entre a Administração e o administrado); e mais: se (i) o Ministério Público, Tribunal de Contas ou mesmo a Advocacia Pública têm liberdade para afluir ou não acordo de leniência subscrevendo os seus termos; e/ou (ii) se o Ministério Público, Tribunal de Contas ou mesmo a Advocacia Pública tem prerrogativa para, autonomamente, celebrar estes acordos de leniência neste campo, especialmente em razão do disposto no art. 20 da Lei anticorrupção, que explicitamente confere ao Ministério Público a prerrogativa de postular a imposição das sanções previstas na Lei federal 12.846, de 2013.
17. Deve-se considerar, como pressuposto, que o acordo de leniência é um dos meios concebidos pela ordem jurídica para tutela do interesse público, permitindo não só a identificação do ilícito ou do seu agente, mas a recondução das práticas da entidade faltosa aos trilhos da legitimidade, sem prejuízo da recomposição do dano causado ao erário. Desse modo, não apenas se evita a perpetuação de situação de ilicitude como, adicionalmente, premia-se a solução pacífica de um conflito, sem prejuízo da integral preservação do patrimônio público.
O acordo de leniência é, pois, um ato convencional restritivo de direito, no qual a entidade faltosa reconhece o cometimento de um ato ilícito lesivo ao interesse público, acordando com o Poder público o modo por meio do qual ela recomporá o bem jurídico esgarçado. Por esta razão, este ato convencional é uma singular modalidade de sanção.
18. E tem sido este o caminho que o sistema normativo passou a prestigiar e fomentar para solução dos conflitos, inclusive envolvendo interesses indisponíveis: a conciliação e a mediação, do qual a acordo de leniência é uma espécie.
É o que se pode concluir pela edição da recente Lei federal 13.140, de 2015, cujo art. 3º admite a conciliação entre Administração e administrado sobre interesses disponíveis e indisponíveis transacionáveis, sendo que, neste último caso, exige-se homologação judicial com a presença e anuência do Ministério Público.
Por esta razão, mesmo na hipótese em que um ato lesivo caracterize lesão a bens juridicamente protegidos pela Lei anticorrupção, pela Lei de improbidade administrativa ou, ainda, por leis disciplinadoras de licitações e contratações públicas, a conciliação administrativa terminativa do conflito e reparado do erário é, não apenas possível, mas desejável.
3.2. Pressupostos para celebração do acordo de leniência segundo a Lei Anticorrupção
19. As hipóteses autorizadoras da formação do acordo de leniência exigem a ocorrência de alguns pressupostos objetivos, legislativamente fixados.11
Logo, atendidos estes requisitos, estarão reunidas as condições necessárias à celebração do acordo de leniência, viabilizando a concretização do interesse público preconizado pela Lei anticorrupção pela identificação do ilícito e/ou seus agentes, interrupção da prática ilícita. Assim, a Administração não goza de margem de liberdade para celebrar ou não o acordo de leniência uma vez constatada a ocorrência dos seus pressupostos e instado a tanto pela pessoa jurídica faltosa. Isso porque a lei elegeu este ato negocial como o meio mais adequado para tutela do interesse público, tanto mais porque sua formação também poderá se aperfeiçoar no transcurso de uma ação judicial que tenha por objeto os ilícitos descritos nesta lei.
Em síntese: se a pessoa jurídica em desfavor de quem se imputa o cometimento do ilícito disciplinado pela Lei anticorrupção identificar os demais infratores que incidiram nas condutas nela vedadas ou carrear documentos e informações que permitam identificar esses ilícitos, mas não necessariamente os seus autores, e, nos dois casos, cesse a prática dessas condutas ilegítimas, então essa entidade faltosa terá direito subjetivo de celebrar acordo de leniência.
Essa mesma conclusão se estende ao acordo de leniência passível de celebração em razão do suposto cometimento de ilícitos atentatórios à disciplina normativa afeta às licitações e contratações públicas, tal como preconiza o art. 17 desta lei.
20. Ao mesmo tempo em que nos parece que a proposta do acordo de leniência é obrigatória, há igual vinculação a certos efeitos decorrentes desse ato negocial.12
Deveras, o art. 16, § 2º, da Lei anticorrupção prevê que a celebração do acordo de leniência suspende (i) a publicação extraordinária da decisão que reconheça o cometimento, pela entidade infratora, das condutas nela vedadas, e (ii) qualquer medida restritiva do direito de licitar e contratar da entidade proponente.
Estas consequências decorrentes da celebração do acordo de leniência, na extensão acima indicada, eclodem, automática e infalivelmente – parafraseando Alfredo Augusto Becker13 –, da incondicional previsão legal. Com isto, os agentes públicos autorizados a celebrar o acordo de leniência não podem embaraçar a deflagração destes efeitos, senão que ao objetivo preenchimento dos pressupostos viabilizadores da formação desse ato negocial. Há, aqui, exercício de competência pública vinculada ao atendimento dos requisitos legais, cujos efeitos, contudo, escapam da órbita decisória dos agentes públicos: é deliberação ope legis.
Sem embargo, há margem de discricionariedade dos agentes públicos para, em vista da celebração do acordo de leniência, mitigar o alcance das sanções pecuniárias passíveis de imposição à pessoa jurídica faltosa. Registre, neste particular, que a inexistência de uma pauta objetiva capaz escalonar a mitigação dessas penalidades – senão que para dosar sua imposição –, causa inegável desconforto à entidade leniente, especialmente em razão das pesadas multas que lhe são imponíveis. A superação deste aparente gargalo perpassa pela servil obediência, pelas autoridades públicas, dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da adequação dos atos administrativos à finalidade pública perseguida pela Lei anticorrupção.
21. Em vista disto, poderia o Poder público, pura e simplesmente, optar por não aderir ao acordo de leniência ou, ainda, criar embaraços desarrazoados para, deste modo, iniciar ou prosseguir com a adoção de medidas administrativas e judiciais em razão do cometimento destes ilícitos?
Ao nosso juízo a resposta é negativa, pois a intransigência do Poder público neste sentido desaguaria na ilegítima perpetuação de um conflito jurídico que, segundo a dicção legal, pode ser composto mediante a estrita obediência de uma pauta objetiva de pressupostos, desaguando na formação de um acordo de leniência.
Afinal, não apenas a Lei anticorrupção – mas o próprio sistema normativo –, sopesando os interesses em jogo, deu especial relevância à solução consensual de um conflito nos casos em que a conduta particular proporcionou lesão ao interesse público. Logo, em sendo possível, o acordo de leniência deve (e não pode) ser celebrado, em prejuízo, pois, à via contenciosa administrativa ou mesmo judicial.
22. E, por estas razões, (i) tendo sido cometido um ilícito prescrito pela Lei anticorrupção, inclusive na hipótese de ele poder ser preservado por meio da propositura de ação de improbidade administrativa e/ou ação civil pública e, ademais, (ii) estiverem presentes os pressupostos para celebração do acordo de leniência, o Poder público deve processar o pedido de acordo de leniência formalizado pelo particular. E, preenchidos os pressupostos legais autorizadores de sua celebração, deve o Poder público agir de modo urbano, fixando condições razoáveis e proporcionais a serem atendidas pelo agente faltoso, viabilizando a formalização deste ato convencional. Ademais, as condições para celebração deste ato convencional entre o Poder público e o particular devem ser fixadas na medida e intensidade necessárias para atender e curar o interesse público tutelado pela Lei anticorrupção, qual seja: solução pacífica dos conflitos, recondução da conduta do faltoso aos trilhos da legalidade e recomposição do patrimônio público lesado. Nada aquém ou além disto.
4. Competência legislativa afeta à produção da Lei Anticorrupção
23. Afirma-se a legitimidade formal da edição da Lei anticorrupção pela União, ao fundamento de que, por meio dela, legislou-se sobre responsabilidade civil e seu processo, o que seria autorizado pelo art. 22, I, da Constituição da República. Este pensamento, concessa venia, não nos parece acertado.14
É inegável que a ementa da Lei anticorrupção afirma que ela se dispôs a disciplinar a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas pela prática de um especial rol ilícitos. Sucede que a responsabilização em pauta não poderia demarcar os ilícitos ensejadores da sua eclosão, campo no qual inovadoramente também obrou a lei.
Aliás, é o que, vis a vis, se dá em relação ao meio ambiente, campo no qual não se confunde sua tutela jurídica com a responsabilização daqueles que lhe causem prejuízo, deflagrando a correspondente responsabilização civil.
24. Convence-nos outro argumento, que se encontra no pórtico do comentário já lançado inicialmente. Com efeito, a Lei anticorrupção versa sobre uma especial faceta da probidade administrativa: a probidade administrativa empresarial. E de qual instituto constitucional emerge a probidade administrativa? Do princípio da moralidade.
Daí porque, em absoluto rigor, a Lei anticorrupção veicula uma forma qualificada de moralidade administrativa, a exemplo do que também se dá com a improbidade administrativa. Há, pois, um condomínio legislativo dos entes políticos para dispor sobre a moralidade e suas formas qualificadas. E, por esta razão, radica no art. 24, §1º, da Constituição da República, a competência da União editar normas gerais sobre a probidade administrativa empresarial, sem embargo de isto não afastar a prorrogativa legislativa dos Estados e Municípios para editar normas especiais sobre este bem jurídico.
Notas
1 A saber: (i) Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997, promulgada entre nós por meio do Decreto federal 3.678, de 2000; (ii) Convenção Interamericana contra a Corrupção, de 29 de março de 1996, incorporada em nosso sistema normativo pelo Decreto federal 4.410, de 2002; e, por fim, (iii) Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, que passou a integrar o direito positivo brasileiro com a publicação do Decreto federal 5.687, de 2006.
2 Registre-se, muito a propósito, que os confins normativos deste ilícito penal não estão reproduzidos na Lei federal 12.846, de 2013; é infração semelhante, porém com traços próprios.
3 Assim definida no art. 37, caput, da Constituição da República.
4 GABARDO, Emerson Gabardo; MORETTINI E CASTELLA, Gabriel. A nova lei anticorrupção e a importância do compliance para as empresas que se relacionam com a administração pública. A&C – Revista de direito administrativo & constitucional, nº 60, pp. 129-147.
5 Hely Lopes Meirelles foi especialmente feliz catalogando as múltiplas teorias que, no direito público, propõe um modelo teórico justificador da imputação da vontade da pessoa natural à pessoa jurídica [MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, pp. 58-59 (especialmente nota de rodapé 1)].
6 HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de direito administrativo, nº 1, pp. 24-31.
7 Sobre o assunto, recomenda-se a leitura da obra de Vicente de Paulo Vicente de Azevedo (Crime, dano, reparação).
8 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado.
9 Ainda que a liberdade e a propriedade não sejam direitos, mas sim poderes, como acertadamente observa Santi Romano (Fragmentos de un diccionario jurídico).
10 Daí porque, no seio da Lei federal 9.605, de 1998, a ação penal ajuizada contra a pessoa jurídica exige idêntica medida em detrimento da pessoa física, pois aquela infração não subsiste sem esta. E sendo esta sanção imposta na medida da culpabilidade do agente, a isonomia impõe idêntico tratamento às pessoas jurídicas.
11 As condições para celebração deste acordo estão arroladas no art. 16 da Lei anticorrupção.
12 Daí porque nos parece incompleto o pensamento de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo, Augusto Neves Dal Pozzo, Beatriz Neves Dal Pozzo e Renan Marcondes Facchinatto, ao afirmarem que “A Administração Pública não deverá, assim, oferecer o acordo, mas verificar se estão presentes as condições para aceitá-lo, caso seja de sua conveniência e oportunidade” (Lei anticorrupção, p. 135). Os pressupostos para o processamento do acordo de leniência vinculam a autoridade administrativa, o mesmo não se podendo dizer em relação aos seus termos.
13 Em seu Teoria geral do direito tributário.
14 A Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que as infrações civis e administrativas não poderiam ser veiculadas na Lei federal 12.846, pois compete a cada ente política lesado pelas condutas vedadas pela lei dispor sobre o tema. Já com relação à responsabilização civil das pessoas jurídicas, a União poderia dispor sobre a matéria com fundamento no art. 22, I, da Constituição da República, pensamento que ousamos dissentir (Direito administrativo, p. 999).
Referências
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. Campinas: Lejus, 1998.
DAL POZZO, Antonio Araldo; DAL POZZO, Augusto Neves; DAL POZZO, Beatriz Neves; FACCHINATTO, Renan Marcondes. Lei anticorrupção. 2. ed. São Paulo: Contracorrente, 2015.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zenella. Direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
GABARDO, Emerson Gabardo; e MORETTINI E CASTELLA, Gabriel. A nova lei anticorrupção e a importância do compliance para as empresas que se relacionam com a administração pública. A&C – Revista de direito administrativo & constitucional, nº 60, ano 15. Belo Horizonte: Fórum, abr./jun. 2015.
HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de direito administrativo, n. 1, ano 1. Rio de Janeiro: FGV, jan/mar 1945. Disponível em:
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
ROMANO, Santi. Fragmentos de un diccionario jurídico. Buenos Aires: Editorial EJEA, 1964.
VICENTE DE AZEVEDO, Vicente de Paulo. Crime, dano, reparação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1934.
ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
Citação
ZOCKUN, Maurício. Aspectos gerais da Lei Anticorrupção. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/6/edicao-1/aspectos-gerais-da-lei-anticorrupcao
Edições
Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1,
Abril de 2017
Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2,
Abril de 2022
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