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Marx: um pioneiro da análise econômica do Direito
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Willis Santiago Guerra Filho
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Tomo Direito Econômico, Edição 1, Março de 2024
Há momentos em que a teoria jurídica formalista, aferrando-se a um positivismo normativista, para não dizer mesmo legalista, vê-se forçada a ceder à “revolta dos fatos”, abdicando de se manter ocupada apenas com a construção de uma sistemática conceitual abstrata, voltada para a manutenção da harmonia e coerência da ordem jurídica, sem a devida preocupação com o que mais importa ao Direito, a saber, a compor conflitos sociais. É quando surgem, por exemplo, em diversas épocas e países, os realismos jurídicos, escolas de cunho mais sociológico, preocupadas com a inserção do Direito e de seu conhecimento na sociedade. Karl Marx pode ser tido como pioneiro numa abordagem desse tipo do Direito, já em escritos da primeira fase de seu pensamento, quando os estudos de economia política ainda não se colocavam no centro de suas preocupações, ou seja, antes do encontro com o seu grande parceiro Friedrich Engels. Era quando Marx tinha feito seus estudos de Direito na Universidade de Berlim e obtido um doutorado em filosofia, filiando-se ao pensamento hegeliano dito “de esquerda”.
Não se pode, contudo, deixar de reconhecer uma diferença essencial entre a abordagem marxista das diversas versões de realismo e sociologismo jurídicos, em que pese a coincidência de todas no tratamento das questões do Direito como questões sociais. Essa diferença pode ser bem compreendida considerando que aquela se estearia numa concepção da sociedade baseada no que se pode chamar de “modelo de conflito”, ao passo que dentre as demais há diversas fiéis ao modelo oposto, “modelo integrativo ou de equilíbrio”, havendo ainda, no primeiro caso, um comprometimento com a modificação da realidade social, como resultado do esforço de conhecê-la, enquanto no segundo modelo e mesmo dentre os que adotam o primeiro, em não sendo marxistas, em geral o engajamento se faz no sentido de manutenção da ordem social que se estuda.
Nesse sentido, é possível sustentar que a contribuição de Marx há de ser necessariamente apropriada por quem pretenda fazer um estudo científico do Direito, o que significa o mesmo que se referir a quem tem por intenção fazer um estudo do Direito com um sentido emancipatório, pois o ideal científico implica necessariamente exposição e crítica do conhecimento dado, bem como promoção do gênero humano a um estado mais liberto das circunstâncias adversas que o afligem.
1. O procedimento analítico pré-marxista de Marx
No que se segue, parte-se da reconstrução de uma perspectiva estritamente marxiana, antes de ser propriamente marxista, sobre o estudo do Direito, ou seja, levando em conta elementos fornecidos exclusivamente por Marx em um período de seu pensamento, logo no início, antes dele dedicar a maior parte de seus esforços teóricos à economia política.
Para tanto, serão levados em conta resultados de pesquisa empreendida pelo filósofo do direito e brasilianist alemão, o falecido professor emérito da Universidade de Frankfurt am Main, Wolf Paul. Essa pesquisa, apesar de concluída já há meio século,1 ainda é pouco conhecida no Brasil, pela dificuldade de acesso mais amplo ao material, predominantemente em língua alemã. A conclusão a que se chega vai convergir com o que se vem sustentando, com cada vez mais frequência e aprovação, quanto à relevância, na atualidade, do aspecto epistemológico-jurídico do pensamento marxiano.
A contribuição de Marx para a teoria epistemológica do direito dá-se a partir da crítica a que submete o modelo de ciência proposto, pioneiramente, na chamada Escola Histórica do Direito,2 cujo representante máximo era um ex-professor seu na Faculdade de Direito da Universidade de Berlim, F. K. von Savigny. É claro que, como já se pode antever, ao explorarmos essa perspectiva, logo nos depararemos com uma questão bastante tormentosa: a teoria da ciência jurídica de Marx traria uma contribuição para a expansão do paradigma científico jurídico, o modelo dogmático de estudo do Direito, ou, na verdade, o que Marx propõe não chega a configurar uma ciência jurídica alternativa, uma ruptura do paradigma dominante. Bem, antes de decidirmos sobre a compatibilidade entre a teoria jurídica marxiana e aquela tradicional, o que não é escopo do presente estudo, atentemos para a sua contribuição pioneira, ainda pouco considerada, examinando o procedimento adotado por Marx ao tratar da dogmática jurídica com o caso, por ele analisado, do roubo de lenhas. Daí emerge com pioneirismo uma análise econômica do Direito, com feição também crítica.
1.1. A lei do roubo de lenha
Trata-se de assunto que viria a ser regulado por uma das leis produzidas pelo então “Ministro para Legislação” da Prússia, ninguém menos que Friedrich Karl von Savigny, o célebre ex-professor de Marx, que se notabilizou por sua defesa do direito costumeiro contra “a vocação de nosso tempo para a legislação”. O que Marx fez foi, a partir da análise de um problema concreto — a colheita de pedaços de madeira caídos nas florestas à beira do Reno —, examinar o tratamento legislativo a ser dado ao assunto em projeto de lei, que passava a considerar como roubo de lenha esse fato, prevendo pena de multa ou trabalhos forçados, prestados ao dono da floresta, por quem praticasse tal ato. 3 Uma encenação cinematográfica de como se daria a implementação de uma tal lei se encontra logo na abertura do filme “O jovem Marx”,4 onde também se pode ter notícia do contexto jornalístico em que o texto de Marx a respeito foi produzido, para a Gazeta Renana (Rheinische Zeitschrift), da qual chegou a ser redator-chefe, obtendo grande repercussão, levando ao fechamento forçado pelas autoridades prussianas. O artigo foi publicado em partes, na terceira e última série desses artigos sobre Direito, da lavra de Marx, publicado sob o pseudônimo de “um renano” (ein Rheinländer).
Em primeiro lugar, Marx não dá como aceita de antemão a compatibilidade de semelhante lei com a ordem jurídica pelo simples fato de emanar de um poder autorizado para produzir tal norma. E se hoje isso nos parece trivial, embora ainda haja quem pense dessa forma, à época é que não era mesmo, tendo sido feito por Marx graças à postura crítica, negadora do que é dado, própria do método dialético hegeliano tal como por ele adotado. Seu conhecimento da cultura clássica também certamente colaborou, sendo sua tese de doutorado sobre os materialistas gregos. É que já temos tal postura claramente esboçada por Antígona na tragédia homônima de Sófocles, onde do que se trata, vale notar, não é tanto de uma oposição dela ao decreto de Creonte com argumentos jusnaturalistas, o que seria totalmente anacrônico, assim para a época em que se passaria a história, como mesmo para o período em que a peça foi escrita e encenada: é antes uma disputa sobre o que seria efetivamente de se considerar como direito positivo, como muito bem demonstra em seu livro sobre o tema Paola Cantarini.5
Com o distanciamento da perspectiva formalista, dogmática — pela qual, não importa que conteúdo esteja vertido na forma da lei, esta terá validade jurídica — Marx nega-se a ver como fatos idênticos, ou mesmo assemelhados, o roubo de lenha através do corte de árvores e a simples colheita de galhos caídos no chão para fazer fogo, condição econômica absolutamente necessária à sobrevivência de um camponês na Alemanha. Marx vê aí um atentado insuportável ao “princípio da adequação e verdade”, ao qual se deve submeter também o Direito, por mais que utilize ficções, analogias e outros artifícios para cumprir a função que lhe é própria. Com isso, Marx reporta-se a um topos argumentativo, que virá a ser colocado no centro das discussões, quando do chamado renascimento do jusnaturalismo, no segundo pós-guerra, já a partir da circular para seus estudantes em Heidelberg em 1945, de Gustav Radbruch,6 nomeadamente, por Werner Maihofer, autor influente na pesquisa crítica em direito, como um dos orientadores de estudos do referido Wolf Paul:7 aquele então já desconsiderado pelo positivismo nascente, a saber, o de natureza das coisas (Natur der Sache).
O Direito e seus intérpretes encontrariam aí um limite à manipulação de conceitos, visando a subsumir fatos concretos às hipóteses legais abstratas, por meio de verdadeiros malabarismos ou prestidigitações falseadoras. Não é da natureza jurídica das coisas equiparar o roubo de lenha à colheita de galhos, e a lei não pode pretender alterar essa natureza das coisas, quando deveria conformar-se a ela, sob pena de se tornar uma lei mentirosa, falsa, pois leva ao que Montesquieu chamou de “corruption du droit par la loi”. Chega-se, assim, segundo Marx, a se produzir um ilícito legal (gesetzliches Unrecht), verdadeiro oximoro intolerável. E conclui a primeira parte dos artigo desta série dizendo que “se os privilegiados pelo Direito legislado apelam para seus direitos consuetudinários, então ao invés do conteúdo humano estão exigindo o aspecto animal do Direito, o qual agora foi degradada a uma mera máscara animalesca”.8
Um segundo ponto assinalado por Marx, desta feita enfocando o caso do ponto de vista estritamente jurídico, é o de que se transpõe uma medida sancionadora, a pena — e uma pena de trabalhos forçados, que se aplica sobre a pessoa do imputado, e não sobre o seu patrimônio — do campo do direito público para aquele das relações jurídicas privadas. A própria multa, que se colocou como alternativa, iria para o particular, supostamente ofendido em seu direito de propriedade, e não para os cofres públicos. Verifica-se, assim, o que ele chama de jurisdição patrimonial, para defender não os interesses públicos, como deve ser, mas sim aqueles privados, de natureza patrimonial. Isso é a negação, pelo Estado, de si próprio; um suicídio, como diz Marx, pois rompe com princípios fundamentais do Estado de Direito, então já devidamente reconhecidos, como a isonomia e a generalidade das leis.
Um terceiro ponto levantado por Marx é o de que havia um costume estabelecido de recolher esses galhos livremente, logo, um direito consuetudinário a fazê-lo, o que foi simplesmente ignorado — e justo por quem defendia uma concepção, como a da Escola Histórica, que toma o costume como fonte primária do Direito, à qual primeiro à legislação e depois à doutrina caberia apenas explicitar, segundo a doutrina de Savigny. Aqui, Marx se depara com uma contradição flagrante entre teoria e prática, fundada nos interesses de classe do teórico — no caso, um aristocrata, como indica o “von” antes de seu sobrenome, Savigny. Daí é que ele, podemos supor, posteriormente, vai apontar para a necessidade imperiosa de se realizar uma crítica da ideologia, verificando contradições entre a prática de alguém e sua própria concepção de mundo – o que para Jacques Lacan o tornaria também um precursor da concepção freudiana de inconsciente, por ser “o inventor do sintoma”. Adiante, retornaremos a este ponto (v. infra, 2.2.1.).
1.2. O conflito de interesses econômicos
A próxima etapa do procedimento marxiano de análise crítica do Direito é então aquela em que desvenda, por trás do princípio legal das consequências jurídicas de um fato, um interesse querendo impor-se a outro, um interesse econômico de natureza patrimonial, preponderando sobre interesses vitais do ser humano, igualmente econômicos, e interesses do próprio gênero humano, cuja emancipação, segundo um topos argumentativo extraído da filosofia hegeliana — e já prenunciado por Kant —,9 é a própria tendência da Weltbürgerlichen Gesellschaft, da sociedade civil ou cosmopolita, mundial.
Marx, nesse contexto, faz referência seguidamente a um outro topos ou lugar comum a ser usado na argumentação, algo que seria também reabilitado no segundo pós-guerra com a retomada da tópica por Theodor Viehweg e da retórica por Chaim Perelman.10 No caso, um topos que ocupa lugar central na moderna teoria da argumentação, tal como é desenvolvida por Robert Alexy e outros, a partir do que propõe um dos mais recentes modelos de ciência jurídica, o que este autor desenvolve a partir do que seu orientador de tese, Ralf Dreier propusera – donde termos nomeado tal modelo “Dreier-Alexy”, no que parece ter sido a primeira apresentação dos autores entre nós.11 Trata-se do topos da proporcionalidade. É desproporcional o sacrifício a que, no caso concreto examinado, submete-se o interesse econômico fundamental de toda uma classe desfavorecida em garantir sua subsistência, em nome do atendimento ao interesse igualmente econômico, mas meramente particular, do proprietário da floresta, em manter o seu patrimônio, à custa do sacrifício da própria vida e dignidade de diversas outras pessoas.
Eis que, resumindo, o projeto de lei que criminaliza a colheita de galhos nas florestas prussianas ofende princípios jurídicos fundamentais do Estado de Direito, tal como a igualdade perante as leis e a generalidade destas, bem como princípios de racionalidade e de humanidade, donde se poder afirmar que, uma vez aprovada essa lei, ela estaria ferindo, assim, mais do que princípios de direito, verdadeiros axiomas, em que se funda uma ordem jurídica correta, richtig, para dizer com o hegeliano Karl Larenz,12 também no segundo pós-guerra.
Após lançar tantos elementos para a renovação epistemológica do direito, os quais, se não romperam o paradigma dessa ciência, em desenvolvimento ainda e desde a Roma Antiga, como defendemos em obra publicada inicialmente em 2001,13 certamente muito o ampliaram, pois foram depois retomados pelas mais diversas linhas de pensamento na ciência jurídica, desde a “Jurisprudência dos Interesses” (Interessenjurisprudenz), prenunciada já no pensamento tardio de Jhering, onde também se encontram prenúncios de uma análise econômica do direito – basta lembrar seu estudo sobre a gorjeta (Trinkgeld)14 até a sua evolução mais recente, para a chamada “Jurisprudência das Valorações ou dos Valores” (Wertungsjurisprudenz).
1.3. A transição para a crítica da economia capitalista
Marx, como se viu, desenvolveu, na prática, uma interpretação crítica, fazendo um estudo de caso, assim adotando um procedimento capaz de “desdogmatizar” o sistema jurídico, tornando-o aberto, quando ele permanecendo fechado se torna imune a críticas, o que para além de ser algo absolutamente necessário ao pensamento científico, é também ao próprio sistema do Direito, a fim de que possa cumprir sua função social, como um sistema imunológico da sociedade, tal como o concebe Luhmann, na obra em que consolida sua “virada autopoiética”, a saber, “Sistemas Sociais”.15 É que assim evita o risco de promover uma espécie de “doença autoimune”, pois o que devia proteger a sociedade contra os conflitos sociais, imunizando-a contra eles ao prever soluções em normas jurídicas, em se tornando imune, por fechado ao contato, ao contágio, passa a atacar ao invés de proteger. Foi com tal preocupação que desenvolvemos estudos preparatórios de uma teoria imunológica do Direito,16 sobre o que novamente merece destaque o trabalho de Paola Cantarini, enfatizando o papel a ser desempenhado, neste contexto, pelo princípio da proporcionalidade.17
Como é sabido, Marx não prosseguiu seus estudos de direito, pois ao encontrar Engels e ele lhe apresentar a economia política inglesa, teria se deparado com uma tarefa prévia, que lhe custará o restante de sua profícua vida de pesquisador e revolucionário: a pesquisa mais especificamente econômica, do setor da vida humana em sociedade em que se dá o conflito daqueles interesses de que as leis são a expressão, realizando-os ou obstaculizando-os, por ser um conflito gerado pela impossibilidade de atender às necessidades das pessoas em geral na fruição de certos bens. Marx, então, dedica-se à pesquisa da base sob a qual se sustentam as representações ideais, como o Direito, isto é, a base material, econômica, onde se produz e reproduz a vida em sociedade. A partir daí, no contexto de uma pesquisa que não era jurídica, mas que dizia respeito também ao jurídico, vão surgir colocações marxianas sobre o Direito que servirão de fundamento a alegações de uma postura cientificista, mecanicista e positivista de sua parte, por tentar explicar os fenômenos jurídicos a partir do fenômeno econômico, tal como ele o descrevia. Essa crítica vem amparada, em grande parte, em desenvolvimentos posteriores da doutrina marxista, devidos a outros teóricos, especialmente àqueles que estavam comprometidos com um Estado que pretendia realizar a ideologia política marxista, os quais terminaram dogmatizando completamente a teoria do direito marxista, tornando-a tão ou mais formalista do que aquela dita “burguesa”. Crítica da ideologia é a nossa garantia epistemológica maior, como nos ensinou o próprio Marx, vacina a ser desenvolvida contra um vírus que infelizmente pode contagiar os que se engajam no seu desenvolvimento: o vírus do dogmatismo do conhecimento e seu correlato político, o autoritarismo.
É que com a Revolução Industrial a sociedade sofre profundas alterações em suas estruturas. No plano econômico, surge o modo de produção capitalista, no plano político, aparece a doutrina liberal e no plano jurídico, dá-se o legalismo.18 Todas essas manifestações representam a ascensão da classe burguesa ao mais alto estrato da pirâmide social.
Não mais se produz basicamente para o próprio consumo, como até então foi regra; produz-se em larga escala, para o mercado, desenvolvendo-se amplamente a economia mercantil, iniciada com o regime manufatureiro. Segundo Evaristo de Morais Filho, dois fatos incrementam a transição: (a) o aumento geral da produção e (b) o rápido desenvolvimento do ramo da produção constituída pela distribuição das mercadorias. Nas palavras do respeitado autor, a explicação: “Decorre o primeiro fato naturalmente do aperfeiçoamento dos meios de produção e do aumento da população. E o segundo, que é o progresso intenso do transporta mercantil, nada mais representa do que uma consequência do primeiro”.19
Os meios de produção, para empregar os termos de Marx, assim se multiplicam e aperfeiçoam prodigiosamente, em ritmo crescente, exigindo grandes cabedais para detê-los, limitando-se, por isso, o número de seus possuidores. Adota-se plenamente o regime de salário, no qual o trabalhador vende sua força de trabalho, sua capacidade de produção, por preço aviltante e sob condições sub-humanas.
2. Fundamentos da análise marxista do direito no capitalismo
O novo sistema social, erigido sobre as bases das doutrinas iluministas burguesas, apresentava-se como uma conquista do conjunto da sociedade frente à minoria opressora constituída pela nobreza e pela realeza. Na verdade, segundo Marx, não passou de uma transmissão do poder para outro grupo reduzido – no caso, as classes burguesas, detentoras dos meios de produção.
O escamoteamento da realidade por meio de uma ideologia forjada com a adulteração de boas intenções dos pensadores do século XVIII, bem como a ética protestante e uma série de outros fatores, alteraram totalmente a maneira de encarar o trabalho, por parte dos trabalhadores, tornando-a, assim, mais adequada realidade capitalista em seu estado nascente.
“Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização capitalista”, bradou Paul Lafargue, genro de Marx, em seu expressivo manifesto. “Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo e sua prole, (pois) os padres, economistas, moralistas, sacros santificaram o trabalho”.20
Thiers, na Comissão da Instrução Primária, de 1849, propunha o seguinte: “Quero fazer com que a influência do clero seja toda poderosa, pois conto com ele para propagar essa boa filosofia que ensina ao homem que ele está aqui para sofrer, e não essa outra filosofia que, pelo contrário, diz a esse mesmo homem: divirta-se”.21 Que isto seja suficiente para avaliar a traição histórica dos ideais que moveram as grandes revoluções liberais, destinadas a destronar reis e secularizar o Estado em nome da Razão, com Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
A proclamação dos direitos individuais, da igualdade dos indivíduos perante a lei, de sua liberdade de trabalho, libertando-os das peias econômicas do aprendizado e subordinando a determinação das condições de trabalho à vontade harmônica dos interessados na produção, tudo isso não passava de elementos da ideologia falseadora da realidade empregada pelas classes dominantes, a fim de manter a situação de favorecimento de uma minoria e de miséria na sociedade capitalista? Em última instância, para permitir a realização das trocas mercantis generalizadas. Expliquemo-nos.
2.1. Elementos caracterizadores do Direito no capitalismo
O modo de produção capitalista pode ser sinteticamente definido pelo processo de valorização de um capital por meio de uma força de trabalho comprada no mercado como mercadoria: a compra da força de trabalho toma a forma de salário, que se supõe representar o equivalente do dispêndio dessa força de trabalho. Como bem demonstrou Karl Marx, é aqui que se situa a gênese e o modo de funcionamento de todo o sistema capitalista, pela presença oculta da mais valia.22
Para que tal se realize, são necessárias condições históricas especiais e principalmente duas circunstâncias: que os proprietários das forças de trabalho não sejam proprietários dos meios de produção, designadamente do capital, e que eles não possam vir a sê-los. Portanto, é preciso tratá-los de tal maneira que sejam economicamente explorados e obrigados juridicamente. Assim, a troca das mercadorias exprime, na realidade, uma relação social desigual. As relações de capital com os detentores da força de trabalho são consideradas como “relações livres e iguais”, provindas aparentemente apenas da “vontade de indivíduos independentes”.
Fazendo um paralelo entre a mercadoria e os processos de troca, por um lado, e o sistema jurídico capitalista, por outro, Marx escreve: “Uma mesma quantidade de trabalho sob uma forma torça-se por uma mesma quantidade de trabalho de outra forma. O direito igual é pois sempre aqui no seu princípio o direito burguês”. Observa em sua análise econômico-social do Direito, porém, que na verdade este Direito, com sua pretensão à neutralidade e igualdade, rege situações marcadas por uma profunda desigualdade. Adiante, acrescenta Marx: “Pela sua natureza, o direito não pode senão consistir no emprego de uma mesma união de medidas, mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos distintos se não fossem desiguais) não são mensuráveis de acordo com uma unidade comum a menos que se considerem dum mesmo ponto de vista, que se não vejam senão sob um determinado aspecto”. E conclui: “Para evitar todos estes inconvenientes, o direito deveria ser não igual mas desigual”.23
A produção organiza-se sob os pressupostos de uma falsa igualdade entre patrão e operário, e sob a falsa liberdade de contratar como bem lhes aprouvesse, o que inevitavelmente conduz a uma situação de exploração da parte necessitada de trabalhar, por parte de quem possuía o capital necessário para empresariá-lo.
2.2. A acumulação do capital e a mais-valia
A análise do fenômeno da acumulação iniciou-se com a obra daqueles economistas denominados fisiocratas, por considerarem a terra, a natureza (physis), como o principal fator econômico. Foi nos trabalhos destes economistas do século XVIII que Karl Marx colheu subsídios para formular sua teoria sobre o assunto.24
Desenvolvendo até às últimas consequências as teorias liberais de Adam Smith e principalmente da escola fisiocrata, Marx formula o conceito de Mehrwert, inadequadamente traduzido como “mais-valia”, denominação hoje consagrada em língua vernácula. A noção é essencial para compreender o processo de acumulação capitalista, bem como o sistema como um todo, pois se trata do fundamento do lucro, razão de ser do capitalismo.25
A obra clássica sobre o tema na literatura marxista é de autoria de Rosa Luxemburgo,26 onde se explica que a acumulação e a transformação da mais-valia em capital ativo. Acumulação do capital seria acumulação progressiva da mais-valia.
A concepção de “mais-valia” (Mehrwert) é fundamental na análise operada por Marx. Com bastante perspicácia, o grande teórico da sociedade contemporânea - e não deixou de sê-lo com a queda do muro e de regimes com o qual não teria concordado – faz a distinção entre força de trabalho (Arbeitskraft) vendida pelo operário e paga a este pelo patrão, do trabalho-resultado, isto é, o produto do trabalho (Arbeitsprodukt) realizado, vendido pelo patrão no mercado. Ora, o valor dessas duas formas de trabalho não é igual. Entre as duas incrusta-se fraudulentamente a mais-valia, donde se origina o lucro do empresário, uma vez que paga ao operário uma quantia bastante inferior àquela que advém do produto do seu trabalho: “a força do trabalho tem só o valor dos meios de subsistência necessários àquele que a emprega”.27
Então, a mais-valia existe em virtude de haver no mercado uma “mercadoria”, cujo valor de uso é dotado da “propriedade singular de ser fonte de valor”, uma “mercadoria” cujo processo de consumo fosse, ao mesmo tempo, um processo de criação de valor. Esta “mercadoria” é a força de trabalho humano.
2.2.1. Excurso: Marx, precursor de uma análise econômica-psicanalítica do Direito
Ao contrário do que ocorre nos modos de produção pré-capitalistas – onde a acumulação serve à satisfação de necessidades da população, pela produção de mercadorias e artigos de consumo em geral – num contexto capitalista o que se observa é uma produção cujo objetivo imediato é o aumento de mais-valia, ficando a produção dos bens de consumo separada da produtividade do trabalho.
É por isso que Lacan vai atribuir a Marx a primazia na invenção do (ou do que para ele viria a ser o) sintoma, quando já em sua “Crítica à filosofia do direito de Hegel” irá evidenciar a disjunção entre saber e verdade, pois o saber absoluto almejado pela dialética idealista hegeliana seria obtido não só pela dissolução da consciência no Espírito, absoluto28, como à custa do sacrifício da verdade, sempre negada, após ser posta como tese, para se obter a síntese superadora de tal antítese. Bem, se o sintoma é definido por Lacan como “o retorno da verdade como tal na falha do saber”,29 é o sintoma, portanto, que propicia uma “irrupção da verdade”, mantendo com ela, no entanto, uma relação ambígua, pois tal irrupção só se dá após ter a verdade sido “tamponada”, abafada, mascarada – no caso da argumentação de Marx pela ideologia, ou ideologias, tanto econômica, que oculta a exploração da mais-valia produzida pelos proletários por parte do empresário capitalista, como jurídica, ao apresentar uma tal venda da força de trabalho como resultado do exercício de direitos iguais e da igual autonomia ou liberdade contratual – a esta se pode acrescentar a ideologia política, segundo a qual os sujeitos se curvam à vontade estatal como se estivessem obedecendo a si mesmos, por ser o Estado formado pelo conjuntos desses sujeitos, reunidos como um povo, ou nação.
Impedidos de questionar, politicamente, a injustiça da sua situação de miserabilidade em face dos proprietários dos meios de produção, os proletários, que até também são proprietários, só que apenas da força de trabalho sua e de sua prole (donde sua denominação), são confrontados com uma tal verdade, econômica, a da sua exploração, mais verdadeira que a verdade, jurídica, de que nela se encontram “de livre e espontânea vontade”. O mascaramento (ou mascarada) será ainda maior por obra daquilo que em Marx aparece como sendo o “fetichismo” da mercadoria, a mercadoria em que se torna a força de trabalho, vendida no mercado como uma outra coisa entre coisas, dotada de um valor intrínseco, quando é o resultado de uma relação social, de caráter econômico, juridicamente regulada e sacramentada politicamente (ou político-teologicamente). Eis que estamos diante de um objeto feito de uma perda, a da mais-valia, que Marx denuncia não ser paga ao trabalhador, prefigurando aquela que Lacan reivindicará como sua própria invenção – o objeto “petita”.
Aqui topamos com termo, “fetichismo” (de origem etimológica portuguesa, oriunda de feitiço, “feiticismo”, para aludir a fatos ou feitos, como diríamos hoje, “fake”), que é também empregado por Freud, para caracterizar a perversão, que substitui por um objeto, ou melhor, por uma “objetificação”, o falo materno ausente. Mas assim como aí estamos diante de algo da ordem do singular, no mesmo plano se colocará o sintoma para Freud, enquanto em Marx, segundo Lacan, ele seria social, pois seria o proletariado, a soma dos indivíduos (não dos sujeitos) que formariam a classe (potencialmente) revolucionária, por detentora da verdade que o(s) saber(es) oculta(m), pronta para irromper no (e romper com o) modo de produção capitalista.
Para tanto, ela (a classe) ou eles (os indivíduos que a formam) só precisaria(m) despertar, livrando-se de soporíferos, como o “ópio do povo”. O que ele não contava era com o que justamente, a partir de Freud e, sobretudo, Lacan vai se revelar como uma força bem mais poderosa do que qualquer agente externo, palpável, pois a busca mesmo por drogas, religiões e outros “feitiços” será causada por um desejo, Ersatz de gozo, que este último, em homenagem a Marx e também a Freud, o inventor do Lustprinzip, denominará de Marxlust, a versão psicanalítica da grande invenção daquele outro, a Mehrwert, a “mais-valia”, tornada agora “mais-de-gozar”, insaciável, incomutável, irrepartível, enquanto pulsão, de vida ou morte, dirigida ao vazio de um objeto (objeto da psicanálise), por definição, faltante, a um sujeito, por conta disso, cindido.
Ora, o que assim se perde é justamente a possibilidade de nos constituirmos como sujeitos, por compartilharmos a adesão à universalidade de uma Lei, que nos retira a individualidade natural em prol da subjetividade negadora dessa condição, em desfavor daquela propriamente humana, portanto.
2.2.2. A fórmula da acumulação capitalista
O incremento do processo produtivo é a produção de maior massa de valores de uso, como lembra Rosa Luxemburgo, ainda não são de per se, acumulação no sentido capitalista – “contrariamente, o capital pode, até certos limites, conseguir maior mais-valia sem alterar a produtividade do trabalho, intensificando o grau de exploração – baixando, por exemplo, os salários, sem aumentar a quantidade de produtos. [...] Geralmente, se consegue o aumento de produção de mais-valia investindo-se mais capital, isto é, transformando em capital uma parte de mais-valia apropriada”.30
A fórmula geral da acumulação capitalista seria, pois, a seguinte: (C+V) + M/X + M’ onde C expressa o valor do capital constante, isto é, a parte de valor incorporado à mercadoria pela força de trabalho contida nos meios de produção; V o capital variável, ou seja, a parte do capital investida em salários; M a mais-valia, o aumento de valor precedente da parte não paga do trabalho assalariado; M/X a parte capitalizada de mais-valia apropriada na produção e M’ a nova mais-valia extraída do capital, que por sua vez é também capitalizável. Este fluxo constante de apropriação e capitalização de mais-valia é o que vai constituir, em essência, o processo de acumulação no sistema econômico capitalista.
Temos, então, que a acumulação no sentido capitalista está ligada a uma série de condições específicas, que são as seguintes: (1) a produção de criar mais-valia, única forma possível de incrementar a produção capitalista; (2) a apropriação de mais-valia deverá realizar-se em dinheiro para inseri-la no mercado, onde as possibilidades de troca decidem sobre o destino da mais-valia; (3) o novo capital gerado a partir da mais-valia terá que assumir uma forma produtiva, transformando-se em meio de produção de força de trabalho e, finalmente, (4) a massa adicional de mercadorias, que apresenta o novo capital, junto com a nova mais-valia, deve ser transformada em dinheiro, o que nos reenvia ao mercado.
Agora podemos entender a razão da lei de acumulação capitalista representar, nas palavras do juseconomista Modesto Carvalhosa, “o imperativo da evolução inicial da economia industrial”,31 por significar a aplicação, sempre crescente, do rendimento da produção a uma produção posterior.
2.3. O movimento de descontração do capital
Na verdade, o capitalismo do tipo tradicional, competitivo, resultou em um impasse, caracterizado historicamente pela grande depressão da década de 1920, o crack da Bolsa de Nova York em 1929. A saída encontrada foi a relativa socialização do sistema, através da formação de grandes sociedades anônimas, bem como a reorganização econômica governamental, em termos intervencionistas. É neste contexto que surge o Direito Econômico. De se notar, é que a solução propiciou como que uma resposta imunológica ao sistema econômico capitalista, nele injetando como que uma vacina contra o socialismo, ao introduzir no sistema, em pequena dosagem, medidas socializantes.
A S.A. permite que uma vasta camada da sociedade participe na formação de capital e se torne, portanto, economicamente ativa, com interesses cada vez mais coincidentes com o dos mais poderosos, aqueles que detêm o controle da empresa. Assim, como acentuam Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, “o verdadeiro capitalista de hoje não é o empresário individual, mas a empresa (...). O que conta é a sua atuação na vida da sua companhia. E sob esse aspecto não pode haver dúvida de que a obtenção e acumulação dos lucros ocupam hoje posição mais dominante do que nunca”.32
Na obra clássica de Berle e Means (The modern ipóteseen and private property, 1929) acha-se enunciado o princípio vetor da sociedade anônima, responsável direto pela preservação e renovação do capitalismo, qual seja, a possibilidade da dissociação entre propriedade acionária e poder de comando empresarial. “A grande novidade introduzida pela sociedade acionária”, explica Fábio Konder Comparato, em obra primorosa a respeito,
“foi a possibilidade de concentrar o poder econômico, desvinculando-o da propriedade dos capitais e da responsabilidade pessoal; de organizar tanto a macro-empresa quanto a exploração unipessoal; de ensejar o exercício da atividade empresarial pelo Estado, em concorrência com os particulares”.33
Essa inovação no sistema capitalista já havia sido auscultada por Marx, que no livro III de “O Capital” escreveu:
“A produção capitalista é chegada a um ponto onde o trabalho de direção, completamente separado da propriedade do capital, corta caminho, se bem que, via de regra, o capitalista não tenha mais necessidade de cumprir ele mesmo essa função. O maestro de uma orquestra não deve absolutamente ser o proprietário dos instrumentos, e não lhe cabe se ocupar com o salário dos músicos (...). Nas sociedades por ações há um divórcio entre a função (do capitalista) e a propriedade do capital, e o trabalho está, igualmente, separado completamente dos meios de produção e sobre trabalho (...). É a negação (Aufhebung, superação ou síntese dialética) do modo de produção capitalista no seio do próprio sistema e, por consequência, uma contradição que abole a si mesma e que representa, à primeira vista, um simples momento de transição para o novo modo de produção. É, portanto, sob esse aspecto contraditório que a sociedade anônima se apresenta. Em certas esferas, ela restabelece o monopólio e, por esse fato, provoca a ingerência do Estado (...). Trata-se de um modo de produção privada que escapa ao controle da propriedade privada”.34
3. Epílogo: análise marxista da sociedade pós-industrial
Com a derrocada do “socialismo real” na Europa e em outras paragens, foi proclamado o triunfo definitivo do regime capitalista, adotado com adaptações – e muito sucesso – inclusive onde a ideologia marxista permanece como ideologia oficial do Estado, como é o caso da China. Ao mesmo tempo, esse regime teria ingressado em uma nova etapa, dita “pós-industrial”,35 pois o grosso da atividade econômica não mais se concentraria no setor secundário, o da indústria, mas sim, naquele terciário, o setor de serviços, produto de um trabalho que envolve esforço menos físico e concreto que intelectual e abstrato, sobretudo com o florescimento da digitalização da economia e mesmo da vida.
O sociólogo Alain Touraine,36 por seu turno, recusa a qualificação “pós-industrial”, por entender que ela leva a uma conceituação que toma como referencial a forma anterior, baseada na indústria, quando as sociedades contemporâneas mais “avançadas”, por ele qualificada como “programadas”, são inteiramente diversas; quando a produção e difusão de bens culturais ocupam o lugar central que era aquele dos bens materiais, na sociedade industrial. Da mesma forma, o controle social passa a depender fundamentalmente do domínio dos meios de produzir novos valores, que modelam a personalidade dos indivíduos, e não mais da apropriação dos meios de produção de utilitários.
Dá-se, então, uma crise da “sociedade do trabalho”,37 na medida em que a atividade econômica predominante não é mais aquela voltada para produção de bens de uso, como tinha sido durante toda a história da humanidade, e se não retrocedemos à pré-modernidade, ou mesmo, à pré-história, é porque se teria verificado o ingresso na “pós-história” e na “pós-modernidade”. O mais evidente sinal dessa crise, que aponta para o fim da sociedade de trabalho – e também, segundo os ideólogos do fim das ideologia, para a “morte do homem” e o “fim da história”, pois ambos, o homem e a história, como se depreende da perspectiva marxista, sempre incluem, ontologicamente, o trabalho – seria justamente a “débâcle” daquelas organizações políticas que teriam se fundamentado na valorização da força de trabalho humano, com inspiração nas ideias de Marx.
O mecanismo básico do modo de produção capitalista, conforme vimos, envolve o movimento de rotação do capital, pelo qual circulam mercadorias vendidas, logo, transformadas em dinheiro, recuperando-se o que foi investido na produção dessas mercadorias, enquanto uma outra parte é reinvestida na produção de mais mercadoria e, consequentemente, de mais dinheiro, e assim por diante, ad nauseam. A soma de dinheiro obtida nesse processo será mais vultosa na medida em que ele se realize com mais rapidez, acelerando o tempo de rotação do capital. Isso se consegue através da concentração e centralização do capital, decorrente, na fase monopolista do capitalismo, principalmente, da fusão financeira de empresas, com o que se reúnem imensos cabedais de capital fixo, a ser investido no desenvolvimento científico e tecnológico, para a obtenção de máquinas cada vez mais sofisticadas, que abreviem o tempo da produção. Ao mesmo tempo, por essa via, termina-se chegando a um dilema, pois à medida que aumenta o capital-dinheiro empatado na sofisticação de equipamentos (= capital fixo), aumenta o tempo necessário para reaver o que foi investido com essa finalidade. Sem conseguir realmente sair desse dilema, o que se apresentou como resposta foi a contínua fusão financeira, que resultou no aparecimento de gigantes oligopólios, de proporções mundiais.
A crise do princípio da década de 1970, provocada pelos países produtores do petróleo, colhe de cheio essa massa de recursos empatados em capital fixo, à espera de valorização, o que requer um esforço ainda maior para a renovação tecnológica desse capital, decretando definitivamente a sua obsolescência e determinando uma aceleração ainda maior do tempo de rotação do capital-dinheiro, sem que para isso se recorra ao agora imprestável método do agigantamento da base produtiva das empresas.
Paralelamente, inicia-se um novo processo de desconcentração e descentralização do capital, que transcorre não ao nível do capital financeiro, mas naquele da base produtiva das empresas. O capital, então, passa a dar suporte sobretudo ao desenvolvimento de “tecnologias de ponta”, repassando para outras empresas partes do processo produtivo, sem perder o domínio sobre o produto final – ou, como se diz no setor de moda, sobre a “griffe”. É a chamada “terceirização da produção”.
Renascem, assim, negócios com bases patriarcais e artesanais, proliferam as “microempresas”, com o estímulo não só das grandes empresas aos seus empregados, para que “montem o seu próprio negócio”, como também do próprio governo (vide programas do SEBRAE). Ocorre, então, o desmonte do “fordismo”, da concepção de que o ideal para a empresa é se ocupar de todas as fases do processo produtivo, cabendo ao empresário preocupar-se também com a massa de trabalhadores que se reúne nesse esforço produtivo, remunerando-lhes bem e deixando-lhes tempo livre, para consumirem a produção em massa, bem como poupando-lhes gastos com necessidades básicas como saúde e educação dos filhos, atendidas pela própria empresa. Agora, busca-se reduzir ao máximo o número de empregados, pela redução das tarefas realizadas pela própria empresa, repassadas ao máximo a “terceiros”, os agora “donos do próprio negócio”.
Dá-se a transição, assim, para uma forma de acumulação que David Harvey propõe chamar de “flexível”. Transfere-se para outras empresas o grosso do serviço, empresas muitas vezes situadas em regiões geográficas em que o trabalho é menos especializado, menos remunerado e menos organizado em termos sindicais, donde terem condições de ofereceram um produto mais barato. A conclusão a que se chega, então, é a de que “a acumulação parece implicar níveis relativamente altos de desemprego (...), rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical...”.38
O desemprego é gerado exponencialmente, porque quando uma empresa repassa para terceiros suas atividades, reduz os empregados nela envolvidos, e pelo simples fato dessa redução já poder dispensar outro tanto de empregados, empenhados em atividades diferentes, como as de supervisão e controle de produção. Além disso, como o trabalho “terceirizado”, em geral, é feito por médias e pequenas empresas, grande parte dos que foram dispensados não encontrarão novo emprego.
Por outro lado, mesmo os que encontrarem emprego nas empresas fornecedoras, não serão mais tão bem remunerados, pois as condições de pagamento de salários nessas empresas é bem menor do que aquelas das grandes empresas. Além de ganhar menos, o trabalhador termina tendo que trabalhar mais, principalmente quando tem “seu próprio negócio”, submetido à pressão de um mercado “monopsônico”, onde é obrigado a atender as exigências de quantidade e qualidade da produção, estabelecidas por seu único comprador, a grande empresa terceirizada, ou então, sucumbir à concorrência. Vem retornando, assim, com todo vigor, desde o final do século XX, a mais-valia absoluta, como forma mais adequada de obter “mais-trabalho”, e agora sem sofrer grande resistência por parte do movimento sindical, pois os trabalhadores que têm “o seu próprio negócio” se confundem com seus antigos patrões, com que passaram a ter uma relação “puramente comercial”.
É de se destacar ainda os efeitos danosos sobre as finanças públicas, resultantes do fenômeno da terceirização, pois na medida em que cai o nível de remuneração da força de trabalho, menor é a arrecadação social – e isso num cenário de crescente desemprego, a exigir o pagamento de seguros para garantir a sobrevivência dos que vêm sendo excluídos do sistema, em especial, nos últimos tempos, pelos avanços tecnológicos no campo da inteligência artificial.
Diante desse quadro, que esperança se pode ter em uma redenção do gênero humano do e pelo trabalho que é obrigado a fazer – quando ainda tem a felicidade de tê-lo –, para satisfazer suas necessidades básicas? Que alternativa se oferece para que o “fim do mundo do trabalho” não resulte num extermínio do trabalhador? Não há uma resposta pronta para essas questões, valendo registrar tentativas como as de reivindicação do humanismo, seja por adeptos do capitalismo, como Sayeg e Balera,39 seja por aqueles do marxismo, como Kevin Anderson e sua escola californiana, de descendência trotskista.40
Notas
1PAUL, Wolf. Marxistische Rechtstheorie als kritik des rechts. Intention, Aporien und Folgen des Rechtsdenkens von Karl Marx: eine kritische Rekonstruktion. Sobre o que aqui se trata, em espanhol, PAUL, Wolf. Marx versus Savigny, pp. 243-269.
2MARX, Karl. Das philosophische manifeste der historischen Rechtsschule, p. 78 e ss.
3MARX, Karl. Debatten über das holzdiebstahlsgesetz, p. 109 e ss.
4PECK, Raoul. O jovem Karl Marx.
5CANTARINI, Paola. Antígona: por uma crítica radical ao direito.
6RADBRUCH, Gustav. Fünf minuten rechtsphilosophie, pp. 78 – 82.
7MAIHOFER, Werner. Die natur der sache, pp. 145-174.
8Cf. MARX, Karl. Debatten über das holzdiebstahlsgesetz, p. 116. No original: “Wenn die Privilegierten vom gesetzlichen Recht an ihre Gewohnheitsrechte appellieren, so verlangen sie statt des menschlichen Inhaltes die tierische Gestalt des Rechts, welche jetzt zur bloßen Tiermaske entwirklicht ist”.
9KANT, Immanuel. Idee zu einer allgemeinen geschichte in weltbürgerlicher Absicht.
10VIEHWEG, Theodor. Topik und Jurispudenz: ein Beitrag zur rechtswissenschaftlichen Grundlagenforschung; PERELMAN, Chaim et. al. Traité de l’argumentaion: la nouvelle rhétorique.
11GUERRA FILHO, Willis S. Teorias tri- e multidimensionais em epistemologia jurídica: modelo Dreier – Alexy e o modelo integrativo Polonês. Anais do IV Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito.
12LARENZ, Karl. Richtiges Recht: Grundzüge einer Rechtsethik.
13GUERRA FILHO, Willis S. Teoria da ciência jurídica.
14JHERING, Rudolf von. Das Trinkgeld.
15LUHMANN, Niklas. Soziale systeme: grundriß einer allgemeinen theorie.
16GUERRA FILHO, Willis Santiago. Immunological theory of law.
17CANTARINI, Paola. Princípio da proporcionalidade como resposta à crise autoimunitária do direito.
18Cf. SALDANHA, Nelson. Legalismo e ciência do direito, p. 26 passim.
19MORAIS FILHO, Evaristo de. Tratado elementar de direito do trabalho, p. 285.
20LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça, p. 17.
21Idem, p. 15.
22Cf. MARX, Karl. Salarie, prix et profit, pp. 92 ss.
23MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Critique des programmes de Gotha et d’Erfurt, apud MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao direito, p. 87, grifos do autor.
24Cf. MARX, Karl. Teoria da mais valia: Os Fisiocratas.
25MARX, Karl. O rendimento e suas fontes, pp. 283-285.
26LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital, p. 21.
27MARX, Karl. Le capital: critique de l’economie politique, p. 174.
28Neste sentido, COSTAMOURA, Fernanda. A propósito de uma referência a Hegel: verdade e saber, p. 98 e ss.
29Cf. BRUNO, Pierre. Lacan, pasador de Marx, p. 326.
30LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital, p. 21.
31CARVALHOSA, Modesto. Direito econômico, p. 82.
32BARAN Paul A.; SWEEZY, Paul M. Capitalismo monopolista, p. 52.
33COMPARATO, Fábio K. Poder de controle na sociedade anônima.
34Idem, pp. 35-36, nota.
35Cf. BELL, Daniel. O advento da sociedade pós-industrial, 1977.
36Cf. Critique de la modernité, esp. pp. 283 e ss.
37Cf., a propósito, OFFE, Claus. Trabalho e sociedad; KURZ, Robert. O colapso da modernização, esp. pp. 21 e ss.
38HARVEY, David. A condição pós-moderna, p. 141.
39SAYEG, Ricardo H.; BALERA, Wagner. O capitalismo humanista.
40Editor de The International Marxist-Humanist - For a Humanist Alternative to Capitalism.
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Citação
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Marx: um pioneiro da análise econômica do Direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Econômico. Ricardo Hasson Sayeg (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/566/edicao-1/marx:-um-pioneiro-da-analise-economica-do-direito
Edições
Tomo Direito Econômico, Edição 1,
Março de 2024
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