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Direitos humanos e empresas
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Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian
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Tomo Direito Internacional, Edição 1, Maio de 2023
Em meio ao cenário de crescentes discussões sobre os impactos da atuação corporativa nos direitos humanos e no meio ambiente, em 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou por unanimidade a implementação dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (“Princípios Orientadores” ou “Princípios Ruggie”), que contam com três eixos centrais, quais sejam: (i) o dever dos Estados de proteger os direitos humanos da consecução das atividades corporativas (Proteger); (ii) o dever de respeito, pelas empresas, dos direitos humanos de seus funcionários, consumidores e demais entes da cadeia produtiva (Respeitar) ; e (iii) o dever dos Estados de reparar, nas esferas judicial e extrajudicial, violações aos direitos humanos cometidas por empresas (Reparar).1 Os Princípios Orientadores buscam, dentre outras finalidades, permitir às empresas que estas identifiquem, previnam e mitiguem os riscos de suas atividades e relações comerciais aos direitos humanos.
Tal iniciativa no plano internacional é reconhecida como de soft law, ou seja, não apresenta caráter vinculante aos Estados ou às empresas que aderirem aos seus pressupostos - havendo que se falar em iniciativas adicionais à supramencionada, sobretudo no que tange à elaboração de um tratado, no plano Onusiano, sobre Empresas e Direitos Humanos. Não obstante, passados quase dez anos da implementação dos Princípios Orientadores, e independentemente de sua natureza2 no cenário internacional, é possível verificar avanços pontuais nas esferas pública e privada com relação à temática. No primeiro pilar, Estados, na última década, aprovaram Planos Nacionais de Ação3 em relação à proteção aos direitos humanos por parte de empresas situadas em seus respectivos territórios, bem como há discussões recentes – e sobretudo em âmbito europeu – sobre a implementação de regras, por parte do Estados (primeiro pilar) para controlar programas de due diligence estabelecidos por empresas nacionais e transnacionais atuantes (constantes do segundo pilar dos Princípios Ruggie).4
Em diálogo com o segundo pilar dos Princípios Orientadores, voltados à vertente voluntária de responsabilidade social corporativa, há também a crescente demanda privada por indicadores de práticas ambientais, sociais e de governança (que compõem a chamada sigla ESG, indicativa de tais termos na língua inglesa “environmental, social and governance”5), estes usados como padrões por investidores em tese socialmente conscientes para rastrear possíveis investimentos e operações de empresas. Assim, tais critérios consideram o desempenho de uma empresa e a sua relação com a natureza e com seus stakeholders.6
O presente trabalho terá por objetivo apresentar, exclusivamente, os principais aspectos relacionados ao terceiro pilar dos Princípios Orientadores, a saber, a vertente de responsabilização judicial e extrajudicial de empresas por violações aos direitos humanos e ao meio ambiente. Serão, assim, apresentados, os contornos iniciais dos Princípios Orientadores e as discussões para a elaboração de um tratado sobre a matéria e, em um segundo momento, como a implementação da temática no Brasil por parte do Poder Judiciário brasileiro e a correlação com o cumprimento de outra normativa internacional relevante para a atualidade, a saber, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), constantes da chamada “Agenda 2030” da Organização das Nações Unidas (ONU).
1. Princípios orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos: mecanismos de reparação às violações aos direitos humanos praticadas por empresas e a discussão sobre um tratado voltado à temática
Uma vez analisados brevemente os pressupostos que orientam o primeiro e o segundo pilar dos Princípios Orientadores da ONU sobre empresas e Direitos Humanos, será feito o estudo do terceiro pilar, referente aos mecanismos de reparação judiciais e extrajudiciais aplicáveis às violações aos direitos humanos cometidas por empresas e constantes daquele instrumento de soft law.7
As disposições referentes ao acesso aos remédios aplicáveis a tais acontecimentos estão presentes nos princípios 25 a 31. O princípio 25 determina que os Estados, como parte de seu dever de proteção no caso de abusos aos direitos humanos praticados por empresas, devem tomar medidas apropriadas nos campos judicial, administrativo, legislativo ou em outros meios que sejam capazes de garantir que mecanismos de reparação estejam à disposição das comunidades eventualmente afetadas. O princípio 26, reconhecido como princípio operacional de mecanismos estatais judiciais, estipula o dever dos Estados de adotar medidas apropriadas para assegurar a eficácia dos mecanismos judiciais nacionais quando da violação dos direitos humanos por parte das empresas, considerando especialmente as formas de limitar quaisquer obstáculos jurídicos, práticos e de outras naturezas que possam representar uma negação do acesso aos mecanismos de reparação. Tal princípio propugna em seu aspecto procedimental pela existência de Poderes Judiciários livres de quaisquer formas de corrupção e pressões econômicas e/ou políticas por parte de outros Estados ou mesmo de corporações e, em seu aspecto material, no sentido de eliminar ou cessar violações aos Direitos Humanos.8
Ademais, os comentários a referido Princípio dispõem sobre barreiras legais à efetiva aplicação dos remédios judiciais, tais como normas internas que favoreçam grupos econômicos em relação à responsabilidade civil e criminal, assim como negação de igualdade de acesso à justiça por grupos vulneráveis, como imigrantes e povos indígenas.9 Impedimentos práticos e procedimentais também devem ser objeto de preocupação dos Estados, como a carência de recursos e a expertise para investigar casos de violações a Direitos Humanos praticadas por corporações, assim como ausência de regras procedimentais para o ajuizamento de demandas coletivas por parte das vítimas.10
Sobre os mecanismos extrajudiciais de denúncia, o princípio 27 atribui aos Estados o dever de estabelecer tais mecanismos, determinando que estes sejam eficazes e apropriados e operem paralelamente aos mecanismos judiciais, em um sistema estatal integral de reparação das violações de direitos humanos perpetradas ou relacionadas às corporações. O princípio 28, ao expor sobre os mecanismos não estatais de denúncia, determina que os Estados contemplem formas de facilitar o acesso a esses mecanismos no caso de violações. O princípio 29, direcionado às empresas, determina que estas estabeleçam ou participem de mecanismos de denúncia eficazes, capazes de atender e reparar rapidamente as pessoas e as comunidades que sofram com o impacto negativo de suas atividades. O princípio 30, por sua vez, completa o princípio anterior, determinando que as empresas de todas as naturezas garantam a disponibilidade de mecanismos eficazes de denúncia no caso de abusos por elas cometidos. E o princípio 31, último dos Princípios Ruggie, traça os critérios de eficácia dos mecanismos não judiciais de denúncia, que podem ser tanto estatais como não estatais e que devem ser legítimos, acessíveis, previsíveis, equitativos e transparentes.
Todos os princípios acima delineados (e aqueles também decorrentes do primeiro e segundo pilar) vêm acompanhados de comentários, que trazem explicações sobre como deve ser sua operacionalização tanto pelos Estados quanto pelas empresas e demais partes interessadas envolvidas. Os comentários aos Princípios Ruggie determinam que sua primeira parte – aplicável aos Estados – traz medidas preventivas, ao passo que a segunda se dirige às empresas e a terceira diz respeito às formas efetivas de reparação. Também em seu texto, os comentários aos Princípios fazem menção a outros instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos decorrente das atividades desempenhadas pelas empresas transnacionais, tais como as Diretrizes da OCDE, os Princípios de Paris, a Carta Internacional de Direitos Humanos (formada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), o Estatuto de Roma, dentre outros.11
Nos comentários referentes ao acesso a mecanismos de reparação, são trazidos os contornos dos mecanismos existentes, tais como pedidos de desculpas, restituição, reabilitação, compensações econômicas ou não econômicas e sanções punitivas, assim como medidas de prevenção de novos danos, como medidas liminares ou garantias de não repetição. Todos esses procedimentos devem ser imparciais, estando protegidos de todas e quaisquer formas de corrupção ou tentativa política ou de outra natureza capaz de inferir em seu resultado. Os comentários ainda definem o significado do termo “denúncia” para o texto dos Princípios, qual seja, a percepção de uma injustiça que afete os direitos reivindicados por uma pessoa ou um grupo de pessoas e que estejam baseados em lei, contrato, promessas implícitas ou explícitas, práticas tradicionais ou noções gerais de justiça das comunidades afetadas.
Uma vez definido o termo na leitura dos Princípios, são traçados os principais contornos dos mecanismos estatais de denúncia judiciais e não judiciais, bem como os mecanismos de denúncia próprios das empresas, que devem ser acessíveis a todos aqueles que vierem a sofrer violações aos seus direitos por conta das atividades executadas por referidos atores.
Os comentários nesse plano são também bastante relevantes, pois garantem a explicação das medidas efetivas de reparação tanto pelos Estados quanto pelas empresas no caso de ocorrências de violações aos direitos humanos por parte desses últimos atores não estatais.
Apesar de os Princípios Orientadores estabelecerem no terceiro pilar a aplicabilidade de mecanismos judiciais e extrajudiciais de responsabilização de empresas por violações aos direitos humanos, ainda há grandes discussões sobre sua efetividade nos planos doméstico e internacional. No caso brasileiro, por exemplo, o Decreto 9.571/2018, que estabeleceu as chamadas Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, conta com artigos específicos sobre acesso a mecanismos de reparação e mediação. Ocorre, contudo, que tal norma não possui caráter vinculante no Brasil, não tendo a eficiência e eficácia desejadas para garantir a efetiva reparação de violações aos direitos humanos praticadas por empresas no país.
Dessa maneira, acompanha-se no plano Onusiano a discussão sobre a elaboração de um tratado sobre Empresas e Direitos Humanos, que tem por finalidade estabelecer critérios mais rigorosos voltados à aplicação de tais mecanismos de remediação, sobretudo no plano judicial.
2. A relação entre o terceiro pilar dos princípios orientadores, a atuação do Poder Judiciário nacional e o cumprimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável: um diálogo com o ODS 16
A vulnerabilidade dos indivíduos frente à pujança econômico-financeira das corporações torna-se ainda mais acentuada quando tais entes atuam em regiões menos favorecidas socioeconomicamente.12 Sendo assim, a busca de mecanismos efetivos de reparação e litigância é uma das principais maneiras de os indivíduos afetados se libertarem da possibilidade de dupla vitimização, efetivando, assim, a proteção aos direitos humanos. As formas de reparação devem ter por pressuposto a observância da centralidade do sofrimento das vítimas de violações aos Direitos Humanos, objetivando, assim, cessar ou mitigar as angústias ante os males contra elas outrora infligidos.
O efetivo acesso à justiça é uma das principais formas de garantir o desenvolvimento e a liberdade dos membros da sociedade13 – senão a principal.14 Assim, a vertente judicial doméstica de responsabilização de empresas por violações aos Direitos Humanos e ao meio ambiente ora apresentada é somente uma das possíveis saídas para pensar a questão rumo a uma cultura de proteção corporativa dos Direitos Humanos. Este é um meio legítimo, conhecido e empiricamente comprovado de transformação cultural.15
As afirmações supramencionadas são corroboradas não apenas em um extenso número de normas internacionais de Direitos Humanos,16 mas também nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, constantes da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que prevê 17 objetivos, subdivididos em 169 metas, a ser atendidos pelos Estados até o ano de 2030 para a garantia de maior justiça e equidade no planeta.17
Assim, o estudo das formas de reparação judicial pelos Estados partirá do pressuposto de respeito aos Princípios Orientadores, bem como aos ODS, em especial ao ODS n.16, voltado à paz, justiça e instituições eficazes. Neste trabalho, destaca-se a meta 16.3, que faz referência expressa à necessidade de alcance da igualdade de acesso à justiça para todos.18 Ademais, a meta estabelecida para o Brasil inclui expressamente a necessidade de fortalecimento do Estado de Direito no país, “especialmente aos que se encontram em situação de vulnerabilidade”.19
Apesar de o conceito de remédios dos Princípios Orientadores não implicar apenas em medidas judiciais reparadoras, mas também abarcar iniciativas extrajudiciais, a atuação do Poder Judiciário dos Estados é essencial para minimizar o sofrimento das vítimas de violações aos direitos humanos por corporações bem como de fundamental importância na garantia de alcance da meta 16.3 do ODS 16, além de ser ponto de partida para a efetivação dos remédios não judiciais e não estatais existentes na sociedade.
Quanto aos mecanismos judiciais de reparação voltados aos Direitos Humanos e Empresas e importantes a este trabalho, destacam-se, no Brasil, as possibilidades de responsabilização: (i) civil; (ii) penal; (iii) administrativa; (iv) trabalhista; (v) ambiental; (vi) consumerista. Não serão analisados os pressupostos trazidos pelo Decreto 9.571/2018, que estabeleceu as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, sobretudo pelo fato de tal norma não apresentar caráter vinculante à sociedade brasileira.
No que tange à responsabilização civil, a responsabilidade civil por atos ilícitos é regulada pelo Código Civil Brasileiro, em vigor desde 2002. Em relação ao tema, determina em seu art. 927 a obrigação de reparação de atos ilícitos, estes verificados nos arts. 186 e 187 da mesma norma (sendo, respectivamente, definidos como: violação ao direito de outrem, ainda que exclusivamente moral, por meio de ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia; ou pelo exercício regular do direito, mas feito mediante abuso dos “limites impostos pelo seu fim econômico ou social, boa-fé ou pelos costumes”).
Assim, a ação ou omissão voluntária, a negligência ou a imprudência podem levar à violação de um direito e, com isso, causar um dano a uma pessoa (ato ilícito) Na ocorrência de um ato ilícito, surge a obrigação da reparação. Neste caso, é importante ressaltar que o Código Civil não faz distinção quanto à responsabilização de pessoas físicas e jurídicas. Como se lê no parágrafo único do art. 927, é possível ocorrer a responsabilização independentemente de culpa por parte do agente, bastando a configuração do nexo de causalidade entre o fato e o dano ocasionado. O mesmo parágrafo, ao final, prevê o caso de responsabilização pelo risco da atividade (teoria do risco integral), que se relaciona à possibilidade de atividade desempenhada ensejar riscos à vida, à saúde ou a outros bens e direitos das pessoas.20
A responsabilidade penal corporativa pelo cometimento de danos ambientais encontra respaldo na Constituição Federal de 1988, especialmente em seu art. 225, § 3°, que, para além da determinação de um meio ambiente equilibrado, estabelece que “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. A partir de referido dispositivo é possível compreender que a pessoa jurídica que causar danos ao meio ambiente em território nacional poderá ser responsabilizada penalmente, mas também civil e administrativamente pelos danos porventura ocasionados.
Referida norma foi também recepcionada na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), sobretudo em seu art. 3°:
“As pessoas jurídicas serão responsabilizadas, administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja acometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.
A regra supramencionada prevê a responsabilização penal e administrativa da pessoa jurídica, mas é importante recordar a possibilidade de responsabilização no plano civil, sobretudo a partir da compreensão da prática de ato ilícito.
Ademais, a Lei 6.938/1981, que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente, também determina em seu art. 3°, IV, a responsabilização objetiva da pessoa física ou jurídica considerada responsável, “direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”, sendo obrigada a recuperar e /ou indenizar os danos causados (art. 4°).
Quanto às formas de sanção administrativa, é importante salientar que todas elas (advertência, multa, cassação de licença e declaração de inidoneidade para licitar) podem estar sujeitas à revisão judicial, por meio do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Assim, eventuais Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) ou Termos de Compromisso de Cessação (TCC), também relacionados a violações aos direitos humanos cometidos por empresas, podem ser objeto de questionamento judicial.21
A responsabilidade no âmbito trabalhista, por sua vez, deve observar o disposto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Constituição Federal (CF) e eventuais tratados celebrados pelo Brasil no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Devem também ser observadas normas penais relacionadas a violações aos direitos dos trabalhadores, como o art. 149-A, inciso II, do CP, que incluiu o crime de submissão da pessoa à condição análoga à escravidão quando do cometimento do crime de tráfico de pessoas.
A responsabilização sob o ponto de vista consumerista deve seguir os ditames do Código de Defesa do Consumidor, além da observância estrita ao art. 22 do CPC, que, em seu inciso II, abrangeu expressamente sobre a regra de jurisdição concorrente para demandas em que o consumidor lesado tenha domicílio ou residência no Brasil, não importando o local da realização da compra.
Por fim, a partir do estudo dos remédios constitucionais relacionados à temática, dos reconhecidamente aplicáveis (habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, ação popular, ação de controle de constitucionalidade e ação civil pública), é difícil antever a possibilidade de aplicação de todos esses mecanismos. Percebe-se, por exemplo, que o habeas corpus é cabível em caso de ilegalidade ou abuso de poder. Estes conceitos são bastante restritos e não se vislumbra que a conduta de uma empresa possa levar à condenação do Estado neste caso, eis que o Estado precisaria violar o direito humano, por meio de ilegalidade ou abuso de poder cometido por seu agente.
O habeas data, por sua vez, pode ser utilizado diretamente em face de pessoas jurídicas. Já o mandado de segurança só é admitido quando há envolvimento da autoridade estatal.
Nos casos em que se exige a atuação do Estado, a possibilidade de utilização destes mecanismos poderia surgir sempre que se encontre a motivação do Estado intimamente relacionada ao interesse da empresa. Este, no entanto, jamais será o fundamento do pedido.
A ação civil pública, cuja promoção é mencionada no art. 129, III da Constituição como função do Ministério Público, conta com inúmeras sentenças judiciais relevantes em casos envolvendo a violação aos direitos humanos por corporações. Destacam-se, neste trabalho, as Ações Civis Públicas movidas contra as empresas Samarco e Vale nas tragédias ambientais de Mariana e Brumadinho, respectivamente, sobretudo em relação aos impactos ambientais ocasionados pelo vazamento de rejeitos das barragens de Fundão e Córrego do Feijão, em 2015 e 2019 e suas consequências para direitos humanos.
A partir das informações supramencionadas, é possível concluir que o Brasil possui arcabouço normativo considerável na efetivação de remédios judiciais, em conexão com os Princípios Ruggie, apresentados no tópico anterior. A participação ativa do Poder Judiciário brasileiro na aplicação de tais mecanismos judiciais de reparação não apenas consolida o direito de acesso à justiça de populações vulneráveis afetadas por violações aos direitos humanos praticadas por empresas, mas também efetiva o pressuposto apresentado na meta 16.3 do ODS 16.
Notas
1 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guiding Principles on Business and Human Rights: implementing the United Nations “protect, respect and remedy” framework.
2 CARDIA, Ana Cláudia Ruy. GIANNATTASIO, Arthur Roberto Capella. O Estado de Direito internacional na condição pós-moderna: a força normativa dos princípios de Ruggie sob a perspectiva de uma Radicalização Institucional. A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e direitos humanos.
3 CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. Transterritorialidade: uma teoria de responsabilização de empresas por violações aos direitos humanos.
4 A esse respeito, ver EUROPEAN PARLIAMENT. European Parliament Resolution of 10 March 2021 with recommendations to the Commission on corporate due diligence and corporate accountability.
5 BUSINESS AND HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE. John Ruggie highlights positive contribution of ESG investing to advancing human rights. PRINCIPLES FOR RESPONSIBLE INVESTMENT. Why and how investors should act on human rights.
6 MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. Princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos: implementando os parâmetros "proteger, respeitar e reparar" das Nações Unidas.
7 “Nothing in these Guiding Principles should be read as creating new international law obligations, or as limiting or undermining any legal obligations a State may have undertaken or be subject to under international law with regard to human rights”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guiding Principles on Business and Human Rights: implementing the United Nations “protect, respect and remedy” framework.
A esse respeito, ver também NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law, pp. 25 e 157.
8 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guiding Principles on Business and Human Rights: implementing the United Nations “protect, respect and remedy” framework.
9 Na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, inúmeras são as decisões que comprovam a importância da ligação cultural dos povos indígenas às suas terras. A esse respeito, são paradigmáticas as decisões dos casos Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni v. Nicarágua (Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C, no 79), Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai (Sentença de 29 de março de 2006. Série C, no 146), Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai (Sentença de 24 de outubro de 2010. Série C, no 214), dentre outros. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Comunidade Mayagna (Sumo) AwasTingni vs. Nicarágua. Série C, no 79. Sentença de 31 de agosto de 2001. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai. Série C, no 146. Sentença de 29 de março de 2006. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai. Série C, no 214. Sentença de 24 de outubro de 2010.
10 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guiding Principles on Business and Human Rights: implementing the United Nations “protect, respect and remedy” framework.
11 CARDIA, Ana Cláudia Ruy. Empresas, direitos humanos e gênero: desafios e perspectivas na proteção e no empoderamento da mulher pelas empresas transnacionais, pp. 144-153.
12 MARES, Radu. Responsibility to respect: why the core company should act when affiliates infringe human rights. The UN guiding principles on business and human rights: foundations and implementation, p. 180.
13 SEN, Amartya Kumar. Development as freedom, p. 3.
14 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. The access of individuals to international justice. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Some reflections on the rights of access to justice in its wide dimension. Contemporary developments in international law: essays in honour of Budislav Vukas, pp. 458-466.
15 CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. Transterritorialidade: uma teoria de responsabilização de empresas por violações aos direitos humanos, pp. 42-55.
16 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. PIOVESAN, Flávia (coord.). Código de direito internacional dos direitos humanos anotado.
17 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Objetivos de desenvolvimento sustentável.
18 “16.3: Promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Objetivos de desenvolvimento sustentável.
19 IPEA. ODS 16.
20 COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS. Acesso à Justiça: Violações de Direitos Humanos por Empresas.
21 COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS. Acesso à Justiça: Violações de Direitos Humanos por Empresas, p. 10.
Referências
BUSINESS AND HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE. John Ruggie highlights positive contribution of ESG investing to advancing human rights. Disponível em: <https://www.business-humanrights.org/en/latest-news/john-ruggie-highlights-positive-contribution-of-esg-investing-to-advancing-human-rights/>. Acesso em: 12.03. 2021.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Some reflections on the rights of access to justice in its wide dimension. Contemporary developments in international law: essays in honour of Budislav Vukas. Leiden; Boston: Brill Nijhoff, 2016, pp. 458-466.
__________________. The access of individuals to international justice. Oxford: Oxford University Press, 2011.
CARDIA, Ana Cláudia Ruy. Empresas, direitos humanos e gênero: desafios e perspectivas na proteção e no empoderamento da mulher pelas empresas transnacionais. Porto Alegre: Buqui, 2015.
CARDIA, Ana Cláudia Ruy. GIANNATTASIO, Arthur Roberto Capella. O Estado de Direito internacional na condição pós-moderna: a força normativa dos princípios de Ruggie sob a perspectiva de uma Radicalização Institucional. A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e direitos humanos. Marcelo Benacchio (coord.). Diogo Vailatti e Eliete Doretto Dominiquini (org.). Curitiba: CRV, 2016.
CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. Transterritorialidade: uma teoria de responsabilização de empresas por violações aos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS. Acesso à Justiça: violações de direitos humanos por empresas. Disponível em: <https://www.conectas.org/publicacoes/download/violacoes-por-empresas>. Acesso em: 14.12.2020.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Comunidade Mayagna (Sumo) AwasTingni vs. Nicarágua. Série C, no 79. Sentença de 31 de agosto de 2001. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_79_ing.pdf>. Acesso em: 14.12.2020.
__________________. Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai. Série C, no 146. Sentença de 29 de março de 2006. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_146_ing.pdf>. Acesso em: 14.12.2020.
__________________. Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai. Série C, no 214. Sentença de 24 de outubro de 2010. Disponível em:
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__________________. Objetivos de desenvolvimento sustentável. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/>. Acesso em: 14.12.2020.
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SEN, Amartya Kumar. Development as freedom. Nova Iorque: First Anchor Books Edition, 2000.
Citação
ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia. Direitos humanos e empresas. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Internacional. Cláudio Finkelstein, Clarisse Laupman Ferraz Lima (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/555/edicao-1/direitos-humanos-e-empresas
Edições
Tomo Direito Internacional, Edição 1,
Maio de 2023
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