A encampação é uma modalidade de extinção unilateral dos contratos de concessão de obras públicas e serviços públicos. Essa forma de extinção determinada pelo Poder Público tem como base a conveniência em se retirar o contrato de concessão do sistema jurídico. Ela não serve, portanto, para extinguir o contrato em caso de inadimplemento do concessionário (nesse caso, cabe caducidade), ou ainda quando houver invalidade (aqui cabe a invalidação). Por decorrer de conveniência do Estado, a indenização cabível será integral, incluindo todos os danos emergentes e lucros cessantes. A Lei 8.987/1995 (“Lei de Concessões” ou “LCSP”) prevê ainda que o ato administrativo de encampação deverá ser precedida de autorização legislativa para ser implementada. Algo que a LCSP não disciplina, mas que é evidentemente obrigatório, é a existência de um prévio processo administrativo. Neste verbete, nosso propósito consiste justamente em abordar a encampação e como deve ser realizado este processo. 

1. O art. 37 da Lei de Concessões


O primeiro passo para analisar a questão reside em apresentar o dispositivo cuja aplicação se encontra em discussão. Trata-se do art. 37 da Lei 8.987/1995.

Este dispositivo legal está inserido no Capítulo X da referida Lei, que tem o título “Da Extinção da Concessão”. O art. 35 da Lei de Concessões, ao listar as formas de extinção da concessão de serviços públicos e obras públicas (“concessão” para facilitar a exposição1), inclui em seu inciso II a encampação como sendo uma dessas formas, ao lado do advento do termo contratual (inciso I), da caducidade (inciso III), da rescisão (inciso IV), da anulação (inciso V) e da falência ou extinção da empresa concessionária e falecimento ou incapacidade do titular, no caso de empresa individual (inciso VI).

Os §§ 1º a 3º do mesmo art. 35 trazem ainda algumas normas aplicáveis a qualquer extinção de concessão, que são as seguintes: 

“Art. 35. [...]

[...]

§ 1º. Extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato. 

§ 2º Extinta a concessão, haverá a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários. 

§ 3º A assunção do serviço autoriza a ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os bens reversíveis”.

O § 4º do art. 35 veicula ainda uma disposição específica para o advento do termo contratual (art. 35, I) e para a encampação (art. 35, II). Nos termos do dispositivo legal, nos “casos previstos nos incisos I e II deste artigo, o poder concedente, antecipando-se à extinção da concessão, procederá aos levantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária, na forma dos arts. 36 e 37 desta Lei”.

O art. 36 da Lei de Concessões introduz uma norma que diz respeito à extinção pelo advento do termo do contrato. Mas, apesar disso, ela acaba funcionando como conteúdo mínimo para a indenização quando da reversão dos bens, mesmo nos casos de extinção antecipada da concessão. O artigo prevê que a “reversão no advento do termo contratual far-se-á com a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido”.

Em seguida, o art. 37 veicula as normas específicas referentes à encampação. O dispositivo prevê que se considera “encampação a retomada do serviço pelo poder concedente durante o prazo da concessão, por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento da indenização, na forma do artigo anterior”. 

Os dispositivos seguintes que fecham o Capítulo X da Lei de Concessões não estabelecem novas normas sobre a encampação. Eles tratam da caducidade (art. 38) e da rescisão por iniciativa da concessionária (art. 39). E estes dispositivos, por não se referirem à encampação, não serão analisados.

A partir da primeira leitura dos dispositivos transcritos, é possível afirmar o seguinte sobre a encampação: 

[1] A encampação é uma forma de extinção do contrato de concessão (art. 35, II). 

[2] A encampação terá cabimento quando o Poder Concedente, por razões de interesse público, decidir “retomar o serviço” antes do encerramento do prazo da concessão (art. 37).

[3] Para realizar a encampação é obrigatório que haja lei autorizativa e o pagamento da indenização previamente ao encerramento do contrato (art. 39).

[4] O Poder Concedente deverá, antecipando-se à extinção da concessão, realizar os levantamentos e avaliações necessárias à determinação dos montantes de indenização devidos à concessionária (art. 35, § 4º).

[5] Com a extinção pela encampação, todos os bens reversíveis e posições jurídicas ativas (“direitos e privilégios”, na linguagem legal) “transferidas” à concessionária pela concessão retornarão ao Poder Concedente, nos termos previstos no edital e no contrato (art. 35, § 1º). 

[6] Com a extinção da concessão, o Poder Concedente assumirá o serviço (art. 35, § 2º, primeira parte). 

[7] Extinta a concessão, o Poder Concedente poderá ocupar as instalações e poderá utilizar todos os bens reversíveis (art. 35, § 3º).

[8] A indenização a ser paga deverá incluir as parcelas vinculadas a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, e que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido (art. 36). 

Em relação ao enunciado “[6]”, uma observação. A segunda parte do § 2º do art. 35 não é compatível com a encampação. Isso porque ele sugere (mas não está claro) que os levantamentos e avaliações poderão ser feitos posteriormente à assunção do serviço. E o § 4º, tratando especificamente do advento do termo contratual e da encampação, estabelece que o Poder Concedente deverá se antecipar ao fim da concessão ao realizar esses levantamentos e avaliações. Como será visto, há uma razão importante para isso, o que será abordado no item 3.1.

De todo modo, os enunciados acima já dão uma indicação do que não foi regulado pela Lei de Concessões. E, neste espaço, o intérprete deverá analisar o sistema jurídico para saber como a encampação deve ser aplicada e qual é o espaço de discricionariedade administrativa. Algumas perguntas podem ser feitas: 

(a) Quais razões de interesse público que se apresentam legítimas para justificar a encampação?

(b) Os “levantamentos e avaliações” serão feitos num processo administrativo específico com contraditório e ampla defesa?

(c) Se sim, trata-se de um processo anterior ou posterior à lei autorizativa?

(d) Em qual momento deverão ser feitas as considerações de natureza orçamentário-fiscal?

(e) A indenização eventualmente devida inclui outros danos além das parcelas não vinculadas a bens reversíveis?

(f) É juridicamente possível a fixação de garantia prestada pelo Poder Concedente para suprir a não-indenização prévia? 

(g) Os lucros cessantes deverão estar incluídos no valor da indenização?

(h) O que exatamente significa “retomar o serviço”? 

Essas são apenas algumas das questões que podem ser feitas em relação ao que o texto expresso da Lei de Concessões deixou em aberto. E é justamente aqui que pretendemos contribuir para a discussão, já que apenas a partir da análise do texto é possível chegar aos oito enunciados expostos acima. Mas, para responder tais questões, é preciso fazer uma análise mais profunda que envolve o regime de direito administrativo, em geral, e o regime das concessões, em particular. 

Nesse sentido, o primeiro passo será o de contextualizar os contratos de concessão dentro do quadro geral das atividades administrativas e dos contratos administrativos. É o tema da próxima Seção.  


2. A encampação no contexto do regime das concessões


Para que se possa responder as questões acima colocadas, é importante primeiramente inserir a encampação dentro do quadro geral das concessões de serviço público. É o que será feito agora.


2.1. As concessões como instrumento de gestão de serviços públicos


As concessões de serviço público são um instrumento de gestão pública. Em especial, é uma ferramenta utilizada para gerir a prestação de um dado serviço público. 

Independentemente das diversas teorias sobre o que é o serviço público, há um elemento que tem se mostrado constante: o serviço público é uma atividade de titularidade do Estado. Aliás, apesar da diversidade de concepções utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal, tem sido um ponto comum em suas decisões a identificação do serviço público como sendo atividade de titularidade do Estado.2  

Os diversos entes políticos titulares de serviços públicos podem prestar esse serviço de forma direta, por meio de seus órgãos. Ou então, tais entes podem descentralizar a prestação3 do serviço. A descentralização é a transferência de determinadas competências administrativas previstas em lei para outro ente com personalidade jurídica distinta do titular.4 As formas básicas de descentralização das competências de prestação de serviço público se resumem, na prática, às seguintes:

[1] Descentralização para entidades da Administração Pública indireta com personalidade jurídica de:

[1.1] direito público. Ex.: o Departamento Municipal de Água e Esgotos do Município de Porto Alegre, autarquia municipal que presta os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em tal Município.

[1.2] direito privado. Ex.: Companhia Docas do Estado de São Paulo, sociedade de economia mista federal que presta determinados tipos serviços públicos portuários.

[2] Descentralização para pessoas não integrantes da Administração Pública indireta. Isto é, pessoas (administrativas, mas de esfera federativa diversa daquela do titular do serviço) ou privadas que recebem, por meio de ato administrativo unilateral, bilateral ou até plurilateral, a delegação (ou outorga) para prestar dado serviço público. É justamente aqui que entram os concessionários de serviço público. 

Assim, já se pode ver que – ao lado de outras possibilidades abertas ao Estado – a concessão de serviços públicos é um instrumento de gestão de tais atividades estatais. E é justamente em vista dessa natureza instrumental que o instituto deve ser analisado.


2.2. Dois níveis de discricionariedade na escolha pela concessão


A opção do Estado de prestar diretamente, por meio de pessoa administrativa da Administração indireta ou ainda por meio de pessoas privadas (como os concessionários), é uma decisão discricionária do Estado.5 

O exercício dessa discricionariedade se dá em dois planos. O primeiro plano é, evidentemente, legislativo. É na lei que estará definida, em primeiro lugar, a opção do “legislador” (nesse caso, Poder Legislativo e Poder Executivo; afinal, a lei é ato complexo) por descentralizar. Trata-se aqui de decisão de natureza política.

 Mas a discricionariedade não é sinônimo de liberdade absoluta. Muito pelo contrário, falar em “discricionariedade” implica falar em limites para o exercício da competência pública. No caso, o legislador possui basicamente limites de natureza constitucional. E, no caso da prestação do serviço público, essa decisão deverá ser informada por elementos técnicos (usualmente trazidos pelo Poder Executivo) sobre qual é a melhor forma de prestar o serviço. Afinal, o serviço público é uma atividade estatal voltada a atender o usuário do respectivo serviço. Logo, essa decisão política deverá ter em vista qual é, ao menos em tese, a melhor forma que esse serviço deverá ser prestado.  

O segundo nível de discricionariedade é administrativo. Aqui, os limites dessa discricionariedade serão definidos pelo legislador. Pode até mesmo não haver limites: a lei pode simplesmente não conferir discricionariedade ao administrador quanto à decisão de descentralizar. Ele já estabelece a forma de gestão do serviço público, cabendo ao administrador público apenas implementar. Isso usualmente ocorre quando é criada uma pessoa administrativa (seja ela autarquia, empresa estatal ou fundação estatal).  

No entanto, essa não é a regra em matéria de concessões de serviços públicos. O comum aqui é que o legislador apenas autorize o Poder Executivo a fazer concessões de serviço público nos mais variados setores. Por exemplo, o Município do Rio de Janeiro instituiu – por meio da Lei Complementar 105/2009 – o Programa Municipal de Parcerias Público-Privadas (“PROPAR-RIO”), com o objetivo de disciplinar e promover a realização de contratos de parceria público-privada (“PPPs”) no âmbito da Administração municipal (art. 1º). E a referida lei autorizou o PROPAR-RIO a Administração Pública municipal a usar esses tipos de concessão para uma série de setores como educação, transportes públicos, rodovias, pontes, viadutos e túneis, saneamento básico, dentre outros (art. 4º).

Essa autorização para que a Administração Pública decida pela aplicação da concessão é uma prática comum em diversos entes federativos. Em vista disso, a questão que surge é a seguinte: por qual razão é conferida essa discricionariedade ao administrador público para decidir ou não pela concessão? Vale aprofundar a resposta a essa questão no tópico seguinte. 


2.3. A decisão administrativa de conceder o serviço


A Lei 8.987/1995, em seu art. 5º, dispõe que o “Poder Concedente publicará, previamente ao edital de licitação, ato justificando a conveniência da outorga de concessão ou permissão, caracterizando seu objeto, área e prazo” (grifamos). Ao contrário do que possa parecer, esse ato não é o ponto inicial de um processo (ou procedimento6) da tomada da decisão de conceder, mas sim o seu ato final. Há algumas razões para isso.


2.3.1. O dever constitucional de instaurar o processo administrativo


Em primeiro lugar, há a questão da processualidade no exercício da função administrativa. Aqui, toda tomada de decisão, salvo casos excepcionais, são precedidos de um processo administrativo. Aliás, no âmbito do exercício das diversas funções públicas (legislativa, administrativa e jurisdicional), vigora a processualidade para a tomada de decisão. Há algumas normas constitucionais que levam a essa conclusão. 

O ato administrativo (unilateral ou não) não surge com um estalar de dedos. No hiato entre a lei e o ato administrativo, há justamente o processo administrativo. Em termos simples, é nele em que a Administração Pública identificará que os fatos se adequam à hipótese de incidência da norma jurídica e que, por isso, a consequência normativa (obrigação, vedação ou permissão de condutas) deverá ser realizada. Como garantir o cumprimento do princípio do Estado de Direito sem que haja a indicação expressa e transparente de que os pressupostos constitucionais e legais foram atendidos para a tomada de decisão? Como controlar um ato de natureza pública sem que sejam observadas etapas para avaliar se a decisão está de acordo com tais normas constitucionais e legais? Como é possível garantir, numa República, que a tomada de decisão administrativa seja isonômica, sem favoritismos ou privilégios, a não ser por um processo administrativo disponível para a consulta de qualquer interessado? Em suma, num Estado de Direito e numa República, o dever de motivar os atos administrativos, de comprovar o tratamento isonômico (impessoal) e transparente se dão no âmbito de um processo administrativo. 

Não é por outra razão que o constituinte brasileiro incluiu, no catálogo dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, uma série de normas voltadas a garantir a própria existência desse processo antes da tomada de decisão. É o caso do art. 5º, LIV, o qual estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, bem como o do inciso seguinte, o LV, o qual dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios a ela inerentes”.

Ademais, no direito administrativo, a cada finalidade corresponde uma medida específica definidas previamente em lei (por força do princípio da legalidade). É a chamada tipicidade dos atos administrativos. Por isso, a Administração precisa demonstrar que o fim público (fixado na Constituição e nas leis) está sendo atingido por meio do ato administrativo adequado, necessário e proporcional em sentido estrito. Em suma, deverá ser demonstrada a proporcionalidade do ato administrativo escolhido pela Administração Pública.

Justamente em vista desses fundamentos constitucionais é que diversos entes políticos têm editado leis próprias regulando seus processos administrativos. Tais leis, aliás, concretizam os mais diversos princípios constitucionais por meio da criação de regras específicas, como a vedação de aplicação retroativa de nova interpretação, fixação de prazos extintivos do poder de invalidar atos administrativos ilegais, dentre outros. 


2.3.2. O dever de planejar uma concessão


Em segundo lugar, há o regime jurídico das contratações públicas, dentro do qual a concessão se insere. No âmbito dos contratos administrativos – qualquer que seja esse contrato – existem três fases: planejamento, licitação e contratual. 

A primeira fase – também chamada de “fase interna da licitação” – é aquela em que é feito todo o planejamento da contratação pública: desde a licitação até o fim do contrato. Na licitação, há a seleção isonômica da proposta mais vantajosa ofertada nos termos objetivos estabelecidos no edital. Por fim, a fase contratual é aquela em que há a execução dos termos do contrato pelas partes. 

Para os objetivos deste verbete, é a fase de planejamento de concessões de serviço público que importa aprofundar.  

Como já mencionado acima, a decisão por conceder ou não conceder, é uma decisão de como melhor gerir dado serviço público. São contratos em que a concessionária usualmente fica responsável por realizar obras de infraestrutura de grande vulto e por operá-las por um longo prazo (15, 25, 35, 50 anos e até mais). Isso exige, portanto, um planejamento adequado do nível de serviço a ser exigido para atender os usuários e do fluxo de caixa do empreendimento, a fim de avaliar se haveria um retorno adequado em vista da tarifa que seria cobrada. Então, a decisão por conceder um serviço é muito séria e deve ser muito bem fundamentada em dados técnicos.

Por essa razão, são realizados estudos de viabilidade técnica, econômico-financeira, ambientais e jurídicos, os chamados “EVTEAs”. Esses estudos multidisciplinares ora são contratados pelo Poder Público mediante licitação pública, ora são obtidos num processo de manifestação de interesse (os chamados “PMIs”7), em que privados apresentam os estudos que, se utilizados numa futura licitação e se houver vencedor, serão ressarcidos pelos valores gastos. 

Nessa etapa, os estudos técnicos indicam os tipos de obras e serviços que seriam cabíveis num dado serviço. Numa concessão de metrô, por exemplo, pergunta-se quais sistemas de sinalização seriam os ideais para a prestação do serviço, qual seria o traçado planejado, quais obras (e respectivos valores estimados), volume de desapropriações e servidões administrativas, dentre outros. 

Os estudos técnicos e ambientais estão diretamente relacionados, porque a depender das obras e serviços planejados, os impactos ambientais podem ser maiores ou menores. E esse pode ser um elemento para a tomada de decisão em incluir mais ou menos obras. Uma concessão ferroviária que, não raro, passa por locais de difícil acesso, por exemplo, pode trazer impactos grandes no meio ambiente, além de impactos sociais (pode afetar comunidades indígenas ou locais).

Os estudos técnicos e ambientas formam subsídios fundamentais para se pensar no modelo econômico-financeiro de uma concessão. Assim, é preciso estimar a demanda prevista para dada concessão e a capacidade de absorção pelos usuários de determinado nível de tarifa. O valor dessa tarifa é diretamente relacionado com os investimentos planejados, tecnologia a ser empregada na operação e nível de serviço desejado. Quanto maior o volume de investimentos e mais sofisticada a tecnologia, maiores serão as receitas requeridas para que a concessionária tenha um retorno adequado. E, evidentemente, isso impacta no valor da tarifa exigida do usuário. É por isso que atualidade do serviço e modicidade tarifária não podem ser vistas de modo absoluto, pois quanto mais atual o serviço, maior é a tendência de tarifas mais elevadas, e vice-versa.

Durante a elaboração dos estudos econômico-financeiros, são utilizadas técnicas de finanças corporativas para avaliar o custo do capital próprio e do capital de terceiros (financiadores). O financiamento, aliás, é central na estruturação do modelo econômico-financeiro, porque os financiadores possuem uma percepção de risco de cada empreendimento e isso é refletido na taxa de juros cobrada e garantias exigidas da futura concessionária e seus acionistas. De igual modo, esse estudo faz uma avaliação do mercado para avaliar os potenciais interessados em investir capital e tempo na concessão. Quais riscos esses investidores estão dispostos a assumir para investir seus recursos na concessão, e não em outros investimentos de menor risco? Qual retorno é razoável para os riscos envolvidos? Essas são perguntas a serem respondidas no estudo econômico-financeiro. 

Durante o planejamento da concessão, é feita a alocação dos riscos. Numa concessão, o risco é um evento que, uma vez materializado, irá impactar de alguma forma a execução do contrato. Exemplo: o risco de erro no projeto, risco de a obra não ser bem executada, risco de atraso na obtenção de licenças, risco de atraso no pagamento por usuários, risco de não pagamento de contraprestação pública (no caso de PPPs), risco de mudanças legislativas, risco de manifestações sociais que impactem na demanda (ex.: greve de caminhoneiros) e muitos outros. Neste momento, é identificado que tipo de impacto a materialização de certo risco pode gerar (ex.: atraso de cronograma, aumento de custos operacionais, diminuição de receita etc.), as formas possíveis de mitigação, se houver (ex.: reequilíbrio econômico-financeiro, exclusão de responsabilidade, multas, seguros de responsabilidade civil, gerenciamento eficiente etc.) e sua alocação. Esta consiste em identificar qual parte teria melhores condições de gerenciar o risco, se o Poder Público, se a concessionária ou se seria o caso de compartilhar esse risco entre as partes. 

A alocação de riscos é fundamental, porque ela impacta diretamente na atratividade para a iniciativa privada e no nível de retorno exigido para prestar o serviço público. E isso é fundamental para se fazer o “value for money” (“VfM”). O VfM é um método voltado a comparar as opções do Estado de gestão do serviço e indicar o que se estima ser o mais vantajoso. A pergunta básica é a seguinte: o que é mais econômico e eficiente, a concessão ou outras formas de prestação do serviço? Exemplo: ao se pensar numa concessão de serviço público precedido de obra pública, ela seria mais vantajosa economicamente do que a realização de um contrato administrativo de empreitada para a obra e a concessão do serviço sem as obras? Ou apenas a celebração de diversos contratos administrativos (para contratar os projetos, as obras, comprar os bens etc.) com a prestação direta do serviço pelo Estado?   

Essa alocação de riscos é feita de modo multidisciplinar, porque envolve uma avaliação técnica, ambiental, econômico-financeira e jurídica. Nos estudos jurídicos, há a avaliação de quais riscos já foram ou não alocados por lei para o Poder Concedente (ex.: o risco de alteração unilateral pelo Poder Concedente, risco de alterações legislativas etc.), e quais não foram e há espaço contratual para alocá-lo a qualquer das partes. Além disso, o trabalho jurídico envolve a elaboração da justificativa jurídica (ex.: em alguns casos, o único modelo de concessão possível é a concessão administrativa) e as minutas de edital e contrato.  

Além desses estudos – usualmente elaborados por contratados ou autorizados da Administração em PMIs –, há ainda as tarefas que são realizadas pelo Estado. No caso de PPPs, há a avaliação orçamentário-financeira, a constituição de garantias públicas (que, em muitos casos, demanda lei). Em algumas situações, é preciso fazer modificações legislativas e realizar aprovações internas (em conselhos de PPPs, por exemplo).

Depois de todo esse processo, há a realização de audiências e consultas públicas sobre os documentos produzidos. Isso é importante para que os diversos setores econômicos e sociais possam se manifestar sobre o que será efetivamente implementado. Neste momento, o Poder Concedente já tem uma ideia de como está o interesse de mercado e se determinados riscos podem ou não ser alocados na esfera privada. No âmbito federal, o Tribunal de Contas da União faz ainda um controle prévio dos documentos, e alguns Tribunais de Contas Estaduais acabam fazendo o mesmo. 

Todo esse é processo é demorado. A fase de planejamento de uma concessão dificilmente é concluída em menos de um ano e meio, sendo que, em alguns casos, demora mais de três anos. No entanto, essa demora não é algo necessariamente ruim, já que é importante que uma decisão por conceder um serviço público seja adotada de forma devidamente informada. Afinal, estamos falando de um contrato de longo prazo e que afeta diversas pessoas: usuários, investidores, financiadores, contratados da concessionária, dentre outros.

Portanto, agora fica mais clara a afirmação feita acima (no primeiro parágrafo deste item 2.3) de que o ato previsto no art. 5º da Lei de Concessões é o ponto final de um processo, e não o seu início. Para que o Poder Concedente possa indicar as razões de conveniência da outorga, ele precisa ter dados técnicos, econômico-financeiros, ambientais e jurídicos para que possa avaliar se a concessão é o melhor caminho para gerir dado serviço público. A tomada de decisão por conceder não é pura e simplesmente uma decisão com base no que os agentes políticos entendem ser, ideologicamente, o melhor para o Estado. Para que este elemento subjetivo dos agentes públicos seja válido, é preciso que existam dados técnicos demonstrando que a concessão é o melhor caminho em dado caso concreto.      


2.4. A discricionariedade na decisão administrativa de extinguir unilateralmente a concessão


Uma vez ultrapassadas todas essas etapas na fase de planejamento de uma concessão, então é feita a licitação pública. Esta pode ser ou não bem-sucedida; isso depende (i) da qualidade na estruturação do projeto e (ii) do interesse do mercado em investir na concessão em vez de aplicar seus recursos privados em outros investimentos mais atrativos em vista do retorno esperado. E esse interesse privado também pode ser influenciado ainda por situações macroeconômicas de escala nacional e mundial. 

Mas, sendo bem-sucedida e sendo celebrado o contrato, há o início da fase contratual. Para celebrar o contrato, o adjudicatário usualmente cria uma sociedade de propósito específico para explorar a concessão (isso costuma ser uma obrigação contida no edital). A partir daí, ele passa a adotar uma série de medidas gerenciais importantes para o funcionamento da concessão.

Assim, a concessionária começa a contratar as pessoas que irão compor os quadros da concessionária. Ela busca as alternativas de financiamento disponíveis (mútuo, debêntures etc.) e passa a discutir com os potenciais financiadores. Ela celebra os contratos de construção, bem como os demais contratos com prestadores de serviço (ex.: contratos de operação e manutenção). A concessionária também começa a adquirir os bens necessários à prestação do serviço. Enfim, a partir daí, uma teia de relações jurídicas passa a ser constituída pela concessionária. E, para muitas dessas relações (ex.: financiamento e contrato de construção), a alocação de riscos feita na concessão é fundamental, porque a concessionária pode mitigá-los ou não em tais ajustes, ou o valor do retorno esperado por contratados pode ser maior ou menor, conforme entendam que o projeto como um todo foi bem estruturado. 

Ocorre que, durante a execução contratual, a concessionária pode ter problemas decorrentes da materialização de riscos alocados a ela pelo contrato e pela lei. Na verdade, certamente alguns desses riscos se materializarão, já que estamos diante de contratos de longuíssimo prazo. Não raro, essas consequências acabam levando a um descumprimento dos parâmetros de desempenho e outras obrigações contratuais.  

Nessa situação, em que a concessionária descumpre os termos do contrato de concessão por sua culpa, é possível que a Administração Pública adote uma medida bastante forte: a declaração de caducidade da concessão (art. 38 da Lei 8.987/1995). 

A caducidade é um ato administrativo sancionador, emitida por decreto (art. 38, § 4º), após o devido processo administrativo que apure os descumprimentos contratuais (art. 38, § 2º), dentro das hipóteses previstas no art. 38, § 1º, da LCSP e detalhadas no contrato. Esse ato tem o efeito punir a concessionária inadimplente pela extinção do contrato de concessão. Ela não poderá mais auferir os benefícios esperados daquele contrato, tendo direito a ser indenizada apenas pelos bens reversíveis não amortizados ou não depreciados, descontados os valores devidos a título de multas e eventuais danos causados pela concessionária (art. 36 c/c art. 38, § 5º). E, como a caducidade deriva de culpa da concessionária, o art. 38, § 6º, da Lei de Concessões deixa claro que “não resultará para o poder concedente qualquer espécie de responsabilidade em relação aos encargos, ônus, obrigações ou compromissos com terceiros ou com empregados da concessionária”.

Note que, na caducidade, mesmo em se tratando de uma forma de extinção por culpa da concessionária, há atribuição, pela Lei de Concessões, de discricionariedade administrativa na sua realização. Isso fica claro pela leitura do caput do art. 38, o qual prevê que “a critério do poder concedente”, a caducidade é possível. Por qual razão há essa atribuição de discricionariedade, sendo que a caducidade é uma forma de sanção? 

A razão é simples: os efeitos materiais da extinção de uma concessão são muito graves para o usuário e para todos os envolvidos num projeto de concessão (acionistas, financiadores, contratados da concessionária etc.). Mais do que isso: ela traz um problema de gestão grande para o Poder Concedente, já que, por força do princípio da continuidade do serviço público, este não pode sofrer solução de continuidade. Quem será o novo prestador, o Poder Público ou uma nova concessionária? Se o Poder Público, qual órgão ou entidade assumirá o serviço? Quantos agentes públicos serão necessários para isso? Qual é o nível de serviço que será adotado, o mesmo do contrato de concessão, um menos rigoroso ou um mais rigoroso? Se for um novo concessionário, já foram realizados os estudos para uma nova concessão? Os problemas que levaram à caducidade poderiam ser evitados numa nova concessão? Se sim, a indenização devida ao concessionário inadimplente (na forma do art. 38, § 5º) será paga pela nova concessionária? E se a licitação for deserta ou fracassada? 

Enfim, são diversas as questões de cunho prático que devem ser respondidas antes de declarar a caducidade de uma concessão. Por vezes, em vista das circunstâncias fáticas e tempo restante de contrato, pode ser melhor manter a concessão (sancionado a concessionária inadimplente) do que extingui-la.8 É justamente por isso que há discricionariedade administrativa mesmo no caso da caducidade (que, repita-se, é modalidade de sanção administrativa).

Se isso ocorre na caducidade, na encampação os problemas a serem respondidos são ainda mais sensíveis. Não são poucas as questões a serem respondidas aqui. 

Qual evento (ou conjunto de eventos) alterou a conveniência administrativa em conceder o serviço? Ao se encampar o serviço, como será feita a prestação do serviço público? O nível de serviço operado pela concessionária será mantido, reduzido e aumentado? Se será reduzido ou aumentado, por qual razão não deveria haver uma modificação unilateral do contrato? Quem irá prestar o serviço? Será uma nova concessionária ou o Poder Público (diretamente ou por pessoa administrativa)? Se pelo Poder Público, já há disponibilidade de bens e pessoal para a retomada do serviço? Ao se alocar recursos públicos e pessoal para uma atividade antes concedida, outra atividade administrativa ficará a descoberto, já que tais recursos são limitados? Se por uma nova concessionária, por qual razão a concessão anterior não tem mais utilidade? O que mudará na futura concessão? Já há EVTEA?

Há ainda questões de natureza orçamentária-financeira de extrema relevância. Como será feito o pagamento da indenização prévia? Qual é o critério para avaliar o valor dos bens reversíveis (critério histórico ou valor de mercado)? Quais são os danos emergentes da concessionária com a encampação (ex.: danos com pagamento de indenizações a financiadores, contratos e empregados)? Qual é o valor dos lucros cessantes? Com a encampação, financiadores de futuros projetos poderão ver um aumento de risco político e, com isso, cobrar valores mais elevados de futuros concessionários (o que se incorpora à tarifa)? Se afirmativa a resposta, qual a vantagem da encampação em face desse risco?

Então, é evidente que na encampação há discricionariedade administrativa. Mas a decisão administrativa a ser adotada e referendada pelo Poder Legislativa deverá ser devidamente informada. E esse conjunto de informações (as respostas às questões acima) deverão ocorrer no âmbito de um processo administrativo específico para a encampação. Este é o tema da próxima Seção.


3. O processo administrativo da encampação


De todas as considerações já apresentadas na Seção II, o IBDA entende que a Constituição e a Lei 8.987/1995 obrigam o Poder Concedente a instaurar um processo administrativo específico para a encampação. Vale retomar às razões já apresentadas para isso: 

[1] Como decorrência dos princípios do Estado de Direito e republicano, a tomada de decisão no exercício das funções públicas (inclusive a função administrativa) se dá no âmbito de um processo.

[2] É direito fundamental a realização do devido processo legal, com respeito ao contraditório e à ampla defesa, mesmo no âmbito dos processos administrativos. 

[3] Sem um processo administrativo, o controle das decisões administrativas ficaria prejudicada, na medida em que tornaria difícil ou impossível o cumprimento dos seguintes deveres da Administração, dentre outros: 

[3.1] dever de cumprir com a legalidade administrativa e a tipicidade dos atos administrativos;

[3.2] dever de tratar os destinatários do ato de forma isonômica e impessoal;

[3.3] dever de adotar a medida proporcional (adequada, necessária e proporcional em sentido estrito) em vista a finalidade do ato;

[3.4] dever de motivar adequadamente seus atos, indicando os pressupostos de fato (os motivos) e os jurídicos para a tomada de decisão. 

[4] Na encampação, o processo administrativo é necessário para que as razões de interesse público motivadoras da encampação sejam devidamente indicadas e justificadas, possibilitando seu controle.

[5] Não há como o Poder Concedente se antecipar aos levantamentos e avaliações necessárias à determinação dos montantes de indenização devidos à concessionária (art. 35, § 4º) sem um processo administrativo específico anterior à tomada de decisão.   

Convém aprofundar alguns desses pontos. Para isso, há três aspectos importantes a serem destacados aqui. A determinação do “interesse público”, os componentes da indenização prévia, e o risco de desvio de finalidade. 


3.1. A determinação do interesse público para a encampação


Como foi destacado no item 2.3.2 deste verbete, o nascimento de uma concessão passa para um longo processo de maturação. O regime jurídico das concessões obriga o administrador público a tomar uma decisão que seja devidamente informada, ponderando as diversas possibilidades para a gestão do serviço público. Neste processo, é identificado e justificado o interesse público (em termos simples, a melhor gestão do serviço público) que motivou o Poder Público, naquele momento, a conceder o serviço público. 

Da mesma forma que deve haver um processo administrativo específico para o nascimento de uma concessão, também deve haver um processo administrativo específico para a sua extinção. Em ambos deve constar o conjunto de razões que levou o Poder Público, respectivamente, a conceder a prestação do serviço público e a retomar esse serviço. São essas razões que compõem o interesse público envolvido e que, no caso da encampação, deverão ser encaminhadas ao Poder Legislativo como etapa prévia à autorização legislativa. Esse processo deverá indicar por qual razão o interesse público motivador da concessão não permanece mais.  

Esse processo administrativo específico de encampação não se confunde com a existência de outros processos administrativos relativos à concessão, cada qual com o seu objeto específico. Durante a longa vida de uma concessão, são inúmeros os processos administrativos que podem ser instaurados. Vale exemplificar: 

(a) processos de reequilíbrio econômico-financeiro a favor ou contra o concessionário;

(b) processos apuradores de infrações administrativas pelo concessionário e aplicação de sanções;

(c) processos de revisão ordinária e extraordinária do contrato, a fim, por exemplo, de rever parâmetros de desempenho;

(d) processos de apuração de danos a bens da concessão;   

(e) processos de prorrogação contratual;

(f) processos de apuração de responsabilidade por descumprimento da Lei 12.846/2013 pelos agentes da concessionária em conjunto ou não com agentes públicos (a chamada “Lei Anticorrupção”);

(g) processos de invalidação de termos aditivos celebrados ou do próprio contrato.  

Nenhum desses processos substitui o processo administrativo específico de encampação. Mesmo numa situação em que grande parte desses processos aponta para a existência de ilícitos contratuais ou de outra natureza praticados pela concessionária, ou que indiquem a existência de danos patrimoniais sofridos pelo Poder Concedente, o processo específico de encampação é necessário.9 

Em primeiro lugar, porque esses processos administrativos devem fazer coisa julgada administrativa. Em segundo, porque as decisões administrativas tomadas podem ter sido objeto de demanda judicial, o que retira da esfera de competência atual da Administração a análise do mérito da questão, que passa a ser do Poder Judiciário. Em terceiro e mais importante, cada processo tem um objeto e foco estrito, não relacionado com a encampação. A rigor, o decidido nesses processos administrativos (e, eventualmente, a possibilidade de encerrar a discussão judicial que versaria sobre alguns deles) são insumo para o administrador avaliar se é ou não o caso de retomar o serviço pela encampação.

Num processo administrativo regular de encampação, os temas acima são elementos a serem ponderados pelo Poder Concedente, em que alguns terão um peso maior do que outros. Vale exemplificar. 

Se o Poder Público chegar à conclusão de que a concessão existente possui uma tarifa muito elevada em vista do que é oferecido aos usuários, ele deverá instaurar um processo específico para responder às seguintes questões: (i) houve erro na estruturação da concessão? (ii) se houve erro, a quem ele é imputável, já que realizado na fase interna? (iii) é possível alterar o contrato para a corrigir o erro preservando os direitos do contratado (na premissa de que, como ele não participa da fase interna, não possui culpa)? (iv) se não, cabe invalidar a concessão, ou o prazo decadencial (prescricional, para alguns) para invalidar já se esgotou?; (v) o contratado entrou em conluio com os agentes públicos para se beneficiar financeiramente?; (vi) se sim, há provas que permitam concluir desse modo administrativamente? As respostas para essas perguntas – obtidas num processo administrativo específico – serão insumo para que o Poder Público avalie a conveniência em retomar o serviço. Pode ser que, a depender das respostas, o Poder Concedente chegue à conclusão de que deve declarar a caducidade da concessão, ou até mesmo a invalidação da concessão. 

Outra razão para avaliar o interesse público – e talvez a mais importante razão para o processo específico de encampação – reside em verificar os potenciais impactos da retomada do serviço. Esses impactos são de naturezas diferentes. Podem ser impactos puramente administrativos. É caso, por exemplo, da avaliação de qual estrutura administrativa irá prestar o serviço, quantos servidores serão alocados, se o Poder Público deverá aportar recursos orçamentários etc. Evidentemente, essa avaliação pressupõe a decisão administrativa de prestar o serviço diretamente ou por entidade da Administração indireta. Se for por uma nova concessão, haverá ainda o ônus de argumentar por qual razão a concessão atual não é mais conveniente e por qual razão a alteração unilateral na atual concessão não é suficiente para resolver o problema.

Há ainda impactos para os usuários. O Poder Público deverá avaliar em que medida a retomada dos serviços não seria mais danosa para os usuários do que a manutenção da concessão. Os níveis de serviço serão os mesmos? Quais utilidades serão acrescentadas e quais serão suprimidas na futura prestação do serviço? Esses elementos são fundamentais, já que, como destacado no item 2.1, a concessão de serviço público é apenas um dos instrumentos de gestão de serviços públicos. Logo, o Poder Concedente deverá demonstrar que, no futuro, a substituição da concessão a ser encampada por outra forma de prestação será potencialmente melhor para os usuários, considerando os aspectos técnicos e financeiros (ex.: tarifa cobrada, gasto de recursos públicos na operação, investimentos, nível de serviço etc.).

Outro impacto extremamente relevante para a avaliação da conveniência na encampação consiste nos aspectos orçamentários e financeiros. Dada a sua importância e conexão com o tema da indenização prévia, convém aprofundar esse tema na Seção abaixo. 

Antes, porém, uma observação. Apenas depois de ponderar todos esses elementos (inclusive os orçamentário-financeiros) num processo administrativo específico é que o Poder Legislativo deverá ser manifestar. A autorização prévia do órgão legislativo pressupõe que os parlamentares do ente político concedente também possuem todas as informações para decidir se realmente a melhor medida é encampar o serviço.  O Poder Legislativo faz, neste ato, o controle da avaliação quanto à conveniência administrativa em se encampar. E, para isso, ele precisa ter acesso a todos os aspectos que envolvem esse tipo de decisão. 


3.2. Os componentes da indenização prévia e a observância do direito financeiro


O art. 37 da Lei 8.987/1995 estabeleceu um requisito importante para a encampação. Ele prevê que a encampação deverá ocorrer “após prévio pagamento da indenização, na forma do artigo anterior” (grifamos). 

A leitura do dispositivo não gera dúvidas. Para encampar, o Poder Concedente deverá pagar previamente uma indenização à concessionária. E isso tem bastante sentido, já que a concessionária não deu causa à extinção. Esta ocorre, na encampação, por conveniência administrativa. 

Há ainda outra razão para a indenização prévia. Em muitos casos, a concessão envolve a transferência do uso de bens de titularidade pública. Mas, além desses, a concessão certamente inclui bens de titularidade privada aplicados à prestação do serviço, o que pode torná-los reversíveis. Nesse caso de reversão de bens privados ao Poder Concedente, não é possível que eles revertam para o patrimônio público sem a prévia e justa indenização em dinheiro. Do contrário, teríamos uma verdadeira desapropriação sem cumprimento do art. 5º, XXXIV, da Constituição.

Então, é certo que a indenização deverá ser quantificada e paga previamente ao ato de encampação (que é formalizado por decreto do Chefe do Poder Executivo). Uma das questões importantes na encampação é a seguinte: como deverá ser calculado o montante da indenização a ser paga previamente pelo Poder Concedente? 

O art. 37 faz referência ao art. 36, o qual estabelece que as parcelas dos bens reversíveis não amortizados ou depreciados dentro do prazo serão objeto de indenização. Como destacado no item 1, o dispositivo faz referência ao conteúdo mínimo da indenização.

Em primeiro lugar, porque o art. 36 diz respeito ao fim normal da concessão, isto é, pelo advento do termo contratual. Nessa situação normal de extinção da concessão, é possível até mesmo que não haja a indenização por esses bens, já que tais bens teriam sido amortizados e depreciados (ao menos, em tese) durante o prazo contratual. Quando o sujeito privado faz a sua proposta na licitação, ele prevê que tais bens serão amortizados e depreciados durante o prazo da concessão e inclui a sua remuneração pela exploração de tais bens. Na prática, isso não costuma ocorrer porque – como a concessão é um contrato de longo prazo – surgem diversos eventos imprevisíveis durante a execução contratual e, não raro, não é feito o reequilíbrio econômico-financeiro durante a concessão. Justamente por isso é que há essa previsão, a fim de não deixar dúvidas de que, no caso de extinção normal da concessão (advento do termo contratual), se os bens reversíveis não forem amortizados ou depreciados, caberá indenização. 

Em segundo lugar, nos casos de extinção antecipada sem culpa da concessionária (como a encampação), há uma série de danos que a concessionária sofre. O principal deles costuma ser o pagamento dos financiamentos contraídos. E esse é extremamente importante para a concessionária e seus acionistas, porque, se não forem pagos, poderá haver o vencimento antecipado de dívidas em outros contratos de financiamento do grupo econômico dos acionistas da concessionária (esta é uma cláusula comum nesses contratos de financiamento). Há ainda o dever de pagar indenização em função da extinção antecipada de outros contratos, como o de fornecimento de bens, de manutenção, e de construção. E também há indenizações derivadas das rescisões dos contratos de trabalho celebrados com os funcionários da concessionária. Todos esses valores e outros danos emergentes que a concessionária tenha deverão compor o valor das indenizações.

Em terceiro lugar, há os lucros cessantes. É certo que, na concessão, o retorno esperado pela concessionária não é certo. Afinal, podem ser materializados certos riscos alocados à concessionária (ex.: demanda abaixo do esperado, mal gerenciamento das atividades etc.) que tornam esse retorno inferior ao projetado na licitação, inexistente ou até mesmo negativo (prejuízo). Mas, a partir do momento em que há o direito de se explorar dada concessão por período certo, há também a expectativa legítima de que, até o final da concessão, aquele retorno com o projeto será obtido. Por isso, com a encampação, há a efetiva frustração dessa expectativa legítima da concessionária.10 

Em suma, para calcular o valor da indenização a ser paga previamente, deverão ser incluídos os valores correspondentes ao seguinte:

(a) bens reversíveis não amortizados ou não depreciados durante o prazo total da concessão;

(b) outros danos emergentes da concessionária, como pagamento a financiadores pela extinção antecipada, rescisões de contrato de trabalho etc. 

(c) lucros cessantes da concessionária relativos a todo o período contratual. 

É claro que, nesse cálculo, deverão ser descontados eventuais valores já apurados e certos devidos pela concessionária ao Poder Concedente. Nas raras situações de encampação, esses valores usualmente dizem respeito a multas aplicadas e não pagas. Mas, para que haja o desconto, é necessário que esses valores devidos pela concessionária ao Poder Concedente não sejam objeto de controvérsia. Existe uma razão jurídica importante para isso e o tema será abordado no item 3.3 abaixo. Antes, porém, convém fazer duas observações importantes.

A primeira delas se relaciona com o direito financeiro. A atividade financeira do Estado brasileiro (isto é, planejamento do orçamento público, obtenção de receitas e realização de despesas) está sujeita a normas rígidas de natureza constitucional e legal.   

Uma das normas constitucionais sobre o tema obriga o Estado a realizar apenas as despesas que estejam autorizadas na lei orçamentária anual (a “LOA”) ou em lei que cria um crédito suplementar (art. 167, II, da CF). Trata-se do princípio da legalidade da despesa pública.

Além disso, a Lei Complementar 101/2000 – a “Lei de Responsabilidade Fiscal” (“LRF”) – estabelece, em seu art. 16, caput, que a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa será acompanhado de: 

(a) estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes, devidamente acompanhada das premissas e metodologia de cálculo (art. 16, § 2º); 

(b) declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a LOA e compatibilidade com o plano plurianual (“PPA”) e com a lei de diretrizes orçamentárias (“LDO”). 

O inciso I do § 1º do art. 16 dispõe que a “adequação com a LOA” significa a existência de dotação orçamentária específica e suficiente, ou que seja abrangida por crédito genérico, de tal modo que – somadas com todas as despesas de mesma natureza – não sejam ultrapassados os limites para o exercício. Por sua vez, o inciso II do mesmo art. 16, § 1º, dispõe que “despesa compatível com o PPA e a LDO” é aquela que está conforme com as diretrizes, objetivos, prioridades e metas previstos em tais leis, não infringindo quaisquer de suas disposições. 

O cumprimento dessas regras da LRF são condição prévia para que haja – dentre outras ações administrativas – o empenho, que é a primeira etapa do processo de realização de despesa pública. 

Essas regras são extremamente importantes para que seja cumprido o chamado “princípio do equilíbrio orçamentário”. Segundo este, o orçamento público deve prever receitas e despesas equivalentes. Aliás, a elaboração da LRF foi pautada justamente por essa ideia. Esse propósito fica claro pela leitura do art. 1º, § 1º, desse diploma legal:  

“Art. 1º. Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição. 

§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.” (Grifamos.)

Assim, uma das funções do processo administrativo de encampação será o de mostrar que o Poder Concedente está levando em consideração os princípios da legalidade da despesa pública e do equilíbrio fiscal, bem como que está cumprindo o art. 16 da LRF. 

O Poder Concedente pode ter razões relevantes para retomar o serviço, mas simplesmente não possuir recursos orçamentários para pagar previamente a indenização. Ou, ainda que tenha, a implementação da encampação poderá resultar num desequilíbrio fiscal. Como no Estado de Direito os fins não justificam os meios, se não houver recursos ou isso levar a um desequilíbrio, o Poder Público não poderá encampar, mesmo entendendo que a substituição da concessão pela prestação direta, por exemplo, seria a melhor solução imediata. 

A segunda observação está diretamente relacionada com a primeira. Ainda que se tenha os recursos necessários para pagar a indenização, este valor é um elemento a ser ponderado pelo Poder Concedente para avaliar o interesse público na retomada do serviço. Assim, é preciso avaliar se a mudança da concessão para outro modelo (prestação pelo Poder Público ou nova concessão) compensará o fato de que o Poder Concedente ter que pagar uma indenização prévia. O que é melhor: pagar previamente ou esperar o prazo da concessão se encerrar? Não seria o caso de utilizar tais recursos para fazer modificações unilaterais no atual contrato de concessão, para que os níveis de serviço considerados ideais sejam observados?

Note que essas questões – diretamente relacionadas com o tema da indenização – são de extrema relevância para que o Chefe do Poder Executivo possa tomar uma decisão relativa à gestão da coisa pública. Afinal, a concessão nada mais é do que isto: um instrumento de gestão pública, que pode ser bem ou mal utilizado. Logo, a sua substituição por outro modelo pressupõe uma decisão de gestão pensada e informada, levando em consideração os efeitos de longo prazo que as ações podem causar, não apenas durante a sua gestão como nas seguintes.   

Por isso, como o Poder Concedente está gerindo coisa pública, isto é, bens e interesses que são de titularidade do povo, as decisões deverão ser tomadas de maneira clara e informada. É isso o que o princípio republicano requer dos gestores públicos. 


3.3. O desvio de finalidade: os requisitos da encampação como proteção contra a corrupção


No tópico anterior, uma questão foi deixada em suspenso. Foi afirmado que, caso haja valores devidos pela concessionária, eles poderão ser descontados da indenização. Mas estes valores deverão ser incontroversos. Cabe agora explicar a razão para tal afirmação, comparando a encampação com a desapropriação.  

Como sabido, a desapropriação é o processo em que – por razões de interesse público – há a transferência obrigatória de um bem de titularidade privada para o domínio público. Na desapropriação, qualquer bem – corpóreo ou incorpóreo, móvel ou imóvel – pode ser objeto de desapropriação, inclusive direitos (ressalvados os personalíssimos).

O processo de desapropriação, por força do já citado art. 5º, XXIV, da Constituição, somente é concluído com o prévio pagamento da justa indenização em dinheiro (nas hipóteses não configuradoras de desapropriação-sanção previstas na Constituição). Portanto, a propriedade do bem só é transferido efetivamente para o Poder Público quando for paga a indenização. Antes disso, não há transferência de propriedade. 

É certo que o Decreto-lei 3.365/1942 (alterado por diversas leis posteriores) admite a “imissão provisória na posse”, caso o Poder Judiciário reconheça o pedido do expropriante de urgência e depositar determinado valor em juízo. Mas, mesmo aqui, isso só pode ocorrer com determinação judicial, e não antes disso. E, mesmo nesse caso, serão devidos juros compensatórios até que haja a determinação do valor final, conforme o STJ já decidiu em diversas ocasiões.11 

Então, para que haja a transferência compulsória da propriedade de bens privados para o domínio público, é preciso que o valor da indenização seja incontroverso. Por isso é que tal transferência só ocorre, na desapropriação, com a determinação desse valor e pagamento prévio da respectiva indenização. Do contrário, o art. 5º, XXIV, da Constituição não seria respeitado. 

O art. 5º, XXIV, da Constituição existe porque, se fosse possível fazer o oposto, os agentes políticos mal-intencionados poderiam usar a prerrogativa estatal de desapropriar para realizar finalidades totalmente contrárias ao ordenamento jurídico. Seria possível desapropriar bens de adversários políticos, a fim de persegui-los, ou ameaçar pessoas privadas de desapropriação de seus bens, caso determinado valor não fosse repassado para tal agente político ou para seu partido. Em suma, o dever de pagar previamente é um instrumento que visa a evitar a corrupção administrativa na desapropriação, no sentido mais amplo da expressão. 

Como já é possível perceber do que foi afirmado acima, o regime da encampação se assemelha em muito ao da desapropriação. Vale lembrar que, feita a encampação, o direito de explorar o serviço por longo prazo (e ser remunerado por isso) é extinto antecipadamente, sendo que uma série de bens privados utilizados na prestação do serviço público reverterão para o patrimônio público – isto é, sua propriedade será obrigatoriamente transferida para o Poder Concedente.     

Da mesma maneira que o pagamento da indenização prévia funciona como uma proteção contra a corrupção administrativa nas desapropriações, o dever de pagar previamente funciona como proteção contra a corrupção administrativa nas encampações. 

Para isso, convém apresentar uma situação hipotética, em que o dever de pagar a indenização previamente é desconsiderado.

Pensemos numa concessão comum de abastecimento de água celebrada entre a Concessionária X e o Município Y. Ao celebrar o contrato, a Concessionária X adotou as condutas necessárias para cumprir suas obrigações contratuais. Ela contratou o pessoal necessário (diretores, gerentes, engenheiros, contadores, técnicos etc.). Ele obteve financiamento junto a bancos e emitiu debêntures, adquiridas por pessoas físicas. Com esse capital, celebrou com os empreiteiros os contratos de construção para, por exemplo, modernizar a infraestrutura existente (de captação, reservação, adução e tratamento) e para expandi-la nos termos do contrato. Além disso, contratou outros fornecedores (ex.: prestadores de serviço de limpeza e vigilância, fornecedores de produtos químicos para o tratamento da água etc.). Enfim, a Concessionária X investiu capital, tempo e recursos humanos para cumprir suas obrigações contratuais.

Durante a execução contratual, o Município Y resolveu fazer uma legítima alteração unilateral, a fim de expandir a rede de abastecimento de água, reequilibrando a equação econômico-financeira. Vamos supor que, nessa concessão, todos esses eventos ocorreram dentro da normalidade desejada, sem outros eventos imputáveis ao Poder Concedente e que são comuns no cotidiano das concessões (ex.: não realização do reequilíbrio econômico-financeiro, não liberação de áreas, demora na obtenção das licenças ambientais) ou ao próprio concessionário (ex.: ineficiência na prestação do serviço, contratações de fornecedores ruins etc.).

Anos depois (por exemplo, 10 anos depois da celebração do contrato) e um pouco antes do pleito eleitoral em que o prefeito do Município Y tentará a reeleição, este agente político convoca o presidente da Concessionária X para uma reunião. Nesta, o prefeito solicita recursos financeiros para compor o caixa 2 de sua campanha eleitoral. Ao se recusar a praticar esse ato ilícito, a concessionária percebe uma maior intensidade nas fiscalizações contratuais. Alguns autos de infração começam a surgir com base em ilícitos contratuais questionáveis. Em seguida, o Poder Concedente começa a rever modificações contratuais passadas e a defender publicamente que a tarifa está acima da necessária para a adequada prestação do serviço, sustentando que a concessionária já se beneficiou excessivamente de uma concessão abusiva. Pleitos de reequilíbrio apresentados pela concessionária passam a não ser analisados ou, se analisados, são indeferidos. E, diante disso, começa a surgir um movimento político para que a concessão seja encerrada.

Na situação hipotética, é certo que a concessionária não ficou parada. Ela passou a questionar judicialmente as sanções aprovadas, bem como a revisão pela Administração dos diversos termos aditivos.

Diante desse cenário de pressão política, é aprovada uma lei autorizativa da encampação, possibilitando a retomada sem o pagamento de indenização prévia. É argumentado que a concessionária tem se beneficiado de uma tarifa abusiva de reequilíbrios indevidos e, por isso, será dada uma garantia pelo Município.

Com isso, a encampação é realizada. Sem suas receitas e diante dos compromissos assumidos com terceiros (em especial, o financiamento e, no exemplo, a impossibilidade de pagar as debêntures emitidas para as pessoas físicas), a concessionária se torna insolvente. No caso dos financiamentos, se os acionistas não pagarem os valores, poderá haver o vencimento antecipado da dívida em relação a financiamentos de outros empreendimentos assumidos por empresas do mesmo grupo econômico. Ao final, a Prefeitura assume a prestação dos serviços e, por não ter pessoal treinado para operar a infraestrutura de abastecimento de água, há uma queda na qualidade do serviço, em prejuízo ao usuário.

Ao perceber que o expediente deu certo, outros agentes políticos mal-intencionados passam a adotar o mesmo comportamento em suas concessões municipais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de resíduos sólidos, serviços funerários, transporte coletivo de passageiros etc.

Como se pode perceber deste exemplo, sem o pagamento da indenização prévia (sem que existam controvérsias quanto ao valor, tal como na desapropriação), a encampação pode ser um instrumento que pode ser usado de maneira totalmente inadequada. Ela pode servir para se exigir o pagamento de propinas a agentes públicos e pode ser usada para perseguir adversários políticos dos agentes políticos. E é justamente por isso que o dever de pagamento da indenização prévia tem sido o coração da estabilidade do programa de concessões no Brasil.  

O mesmo resultado indevido pode ser obtido quando o valor da indenização (ou parte dele) se torna controverso, mas, apesar disso, a encampação é realizada sob o argumento de que o valor controverso será apurado e, se for o caso, pago posteriormente. Quando, por exemplo, uma parte relevante do valor deixa para ser discutida posteriormente, o dano provocado na concessionária já terá sido verificado. Talvez o valor controverso fosse substancial o suficiente para impedir que apenas os seus danos emergentes sejam cobertos, trazendo inúmeros problemas para a concessionária e seus acionistas (ex.: restrição de crédito no mercado), bem como seus empregados. 

E também é por isso que a Lei 8.987/1995 não prevê a possibilidade de prestação de garantia pelo Poder Público para realizar a encampação. A finalidade da Lei de Concessões é que não exista a possibilidade de pagamento posterior. Os valores deverão ser apurados antes do fim da concessão (art. 35, § 4º) e pagos previamente (art. 35, caput), até para evitar a transferência de propriedade sem a indenização prévia e em dinheiro prevista no art. 5º, XXIV, da Constituição.

Vale mudar um pouco o exemplo. E se, na verdade, em vez de ter sido o prefeito do Município Y a convocar o presidente da Concessionária X, tivesse sido o oposto? Ou seja, é feita a proposta ao prefeito de que ele receberia recursos suficientes para a sua reeleição ou outros fins se certos aditivos fossem aprovados, com valores superfaturados de obras. Nesse caso, um prefeito indignado com a proposta, não poderia utilizar a encampação justamente para fazer justiça e retomar uma concessionária ruim? 

Sem entrar no conceito aberto (e, para alguns, relativo) de “justiça”, o ponto é que o agente político, por exercer função pública, não possui a liberdade para fazer aquilo o que ele considera o “certo” segundo seus padrões individuais, apesar de o sistema jurídico disciplinar o oposto. Ele não poderia simplesmente encampar o serviço. O que ele poderia, isto sim, é denunciar o fato para as autoridades policiais e, eventualmente, iniciar um processo para apurar a responsabilidade da Concessionária X com base na Lei 12.8464/2013 e, eventualmente, decretar a caducidade.

A mesma ideia se aplica para outra situação, também possível. Suponha agora que o prefeito atual entende que o termo aditivo de alteração unilateral citado acima (celebrado por outro prefeito e a concessionária) foi fruto de uma corrupção. Ele entende que os valores ali contidos (e que reverteram na tarifa) foram superfaturados para que agentes públicos e acionistas da concessionária. Neste caso, a encampação é possível sem o pagamento prévio de indenização? 

É claro que a resposta é negativa. Se o prefeito atual conseguir demonstrar que houve corrupção e que o termo aditivo pode ser anulado (seja porque o termo decadencial não foi expirado, seja porque é possível rever os efeitos materiais do ato), ele deverá instaurar um processo administrativo específico para esse fim. Deverá comunicar o fato às autoridades policiais e ao Ministério Público. Mas não promover a encampação sem indenização prévia. Porque, nesta última hipótese, serão duas as invalidades: (a) o desvio de finalidade na encampação, que estaria sendo usada para um fim diverso daquele previsto em lei; e (b) ilegalidade ao não usar o processo devido para que as pessoas envolvidas – se provada a corrupção – respondam nos termos previstos no ordenamento jurídico. 

É importante desatacar novamente: no Estado de Direito, os fins não justificam os meios. A utilização do procedimento juridicamente correto para atingir certo fim também é importante. No Estado de Direito, o uso do meio correto importa.   

Por essas razões, entendemos que, se a concessionária tem débitos perante o Poder Concedente, os respectivos valores deverão ser incontroversos para serem descontados do valor da indenização prévia. 



4. Conclusões


Conforme exposto ao longo desta Nota Técnica, a encampação é uma forma de extinção do contrato de concessão por razões de interesse público (art. 35, II, e art. 37 da Lei 8.987/1995). E, para que o Poder Concedente possa validamente encampar uma concessão, as seguintes etapas deverão ser cumpridas: 

[1] O primeiro passo consiste na instauração de processo administrativo específico para encampação, o qual deverá: 

[1.1] indicar as razões que demonstram a vantagem na encampação;

[1.2] apontar quais impactos a encampação pode trazer para a Administração Pública e para os usuários;

[1.3] fazer os levantamentos e avaliações dos valores de indenização que deveriam ser pagos previamente;

[1.4] levantar os valores que seriam devidos à concessionária a título de danos emergentes e lucros cessantes;

[1.5] avaliar se há valores incontroversos devidos pela concessionária, a fim de abatê-los do valor final da indenização;  

[1.6] proceder à análise da disponibilidade orçamentário-financeira, demonstrando o cumprimento do art. 16 da LRF; 

[1.7] apresentar o programa para a retomada do serviço pelo Poder Concedente, apresentando os estudos de viabilidade técnica, econômico-financeiro, ambiental e jurídico, seja para a prestação do serviço pela própria Administração Pública, seja por nova concessão;

[1.8] justificar o critério usado na ponderação feita pelo Poder Concedente para dar maior peso às vantagens da encampação em vista de seus potenciais impactos negativos. 

[2] Encerrado o processo administrativo, este deverá ser encaminhado ao Poder Legislativo para que faça o devido controle prévio da tomada de decisão administrativa, autorizando a encampação mediante lei. 

[3] Publicada a lei autorizativa, o Poder Concedente deverá efetuar o pagamento da indenização prévia à concessionária.

[4] Realizado o pagamento da indenização prévia, o Poder Concedente poderá emitir o decreto de decretação da encampação. 

Reputamos que estas etapas são obrigatórias, porque derivam diretamente da Constituição e da Lei 8.987/1995. Sem que elas sejam observadas, nos termos acima, eventual processo de encampação é inválido.


Notas

1 Existem outras formas de “concessão” que não residem na delegação (ou “outorga”, a depender da visão) das competências relacionadas à prestação de um serviço público, como, por exemplo, as concessões de uso de bens públicos. Há ainda “concessões” que sequer são contratos administrativos, como a chamada “concessão de nacionalidade”. Para facilitar a exposição e evitar usar, a todo momento, a expressão “concessões de serviços públicos e obras públicas” (o objeto da Lei de Concessões, conforme seu art. 1º, caput), será usada apenas a expressão “concessão”.

2 As seguintes decisões do STF abordam o tema, de forma central ou marginal: ADI 1221/RJ, ADI-MC 1668/DF, ADI 1842/RJ, ADI 2.649/DF, ADPF 46, ADI 3.944.

3 Também há descentralização de competências de regulação administrativa do serviço público de forma isolada ou em conjunto com as competências de prestação. Mas, em vista do foco deste verbete, não é preciso ser exaustivo quanto às hipóteses de descentralização administrativa.

4 Os autores deste verbete já trataram do tema de delegação de competências, ainda que de formas um pouco diferentes, em seus trabalhos. Vide: FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviço público por pessoas privadas, Cap. 3; ZOCKUN, Maurício; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Delegação de função pública. Enciclopédia jurídica da PUCSP, tomo de Direito Administrativo e Constitucional

5 Há ainda concepções de que, em certos casos, há a obrigação de descentralizar. Mas não é o caso de aprofundar este tema aqui, porque ele não interfere nas conclusões. Sobre o tema, vide: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, pp. 670-672. Sobre o assunto, confira-se o item 2.1. do seguinte texto: ZOCKUN, Maurício; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Delegação de função pública. Enciclopédia jurídica da PUCSP, tomo de Direito Administrativo e Constitucional

6 Existe uma questão terminológica sobre a diferença entre “processo” e “procedimento” que não será abordada aqui. Para os fins deste verbete, as duas palavras serão usadas como sinônimas. 

7 É comum encontrar entes políticos que diferenciam a PMI da manifestação da iniciativa privada (“MIP”). A diferença seria que, na PMI, enquanto a iniciativa do início do processo vem do Poder Público, na MIP essa iniciativa viria da própria iniciativa privada. Para os fins desta Nota Técnica, essa distinção não é relevante e, ao se falar de PMI, está fazendo também referência às MIPs.

8 No âmbito federal, a Lei 13.448/2016 criou a figura da “relicitação”, passível de aplicação apenas para os contratos de parceria nos setores rodoviário, aeroportuário e ferroviário (art. 1º). A caducidade é uma consequência tão ruim, que o Poder Público federal – em conjunto com o contratado inadimplente – pode entender ser melhor encerrar amigavelmente o contrato, depois de fazer uma nova licitação para esse fim (a relicitação). Esta é uma forma, ao menos em tese, menos traumática para as partes e, principalmente, para o usuário.

9 Até mesmo porque, se há muitos ilícitos contratuais e danos causados pela concessionária, o processo talvez não seja de encampação, mas sim de caducidade.

10 Neste ponto, a já citada Lei Complementar Municipal 37/1998, que regula as concessões do Município do Rio de Janeiro, deixa isso muito claro. O seu art. 31, parágrafo único, deixa claro que, na indenização da encampação, “computar-se-ão todos os investimentos realizados correspondentes ao dano emergente e o montante de lucro, estimado pela delegatória para o prazo remanescente do contrato, a assegurar-se o lucro cessante” (grifo nosso). De modo geral, os textos legislativos estaduais e municipais de concessões não são tão claros como este e acabam copiando o art. 35 da LCSP. 

11 STJ, REsp 1.272.487/SE, 2ª Turma, rel. Min. Humberto Martins, j. 14.04.2015, DJe 20.04.2015; AgRg no REsp 1.458.700/SC, 1ª Turma, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 03.03.2015, DJe 18.03.2015; Resp, 1.395.490/PE, 2ª Turma, rel. Mauro Campbell Marques, j. 20.02.2014, DJe 28.02.2014.

Referências

FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas. São Paulo: Malheiros Editores, 2019.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 35. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2021.  
ZOCKUN, Maurício; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Delegação de função pública. Enciclopédia jurídica da PUCSP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo de direito administrativo e constitucional. Vidal Serrano Nunes Junior, Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun e André Luiz Freire (coords. de tomo). São Paulo: PUCSP, 2022.

Citação

FREIRE, André Luiz, ZOCKUN, Maurício. Encampação: requisitos e processo administrativo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/547/edicao-2/encampacao:-requisitos-e-processo-administrativo

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

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