• Consórcio público

  • Alexandre Levin

  • Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

O consórcio público é instrumento típico do chamado federalismo de cooperação. As competências dos entes que compõem a Federação brasileira estão definidas no Texto Constitucional, mas há aquelas que se sobrepõem, ou seja, que podem ser exercidas ao mesmo tempo por diferentes entes federativos.

Os serviços de saúde pública são um bom exemplo. União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis pela sua prestação, que se dá por meio de uma rede regionalizada e hierarquizada, a constituir um sistema único de saúde (CF, art. 198).

Os entes federativos podem prestar o serviço de saúde pública para suas respectivas populações de forma individual, ou podem constituir consórcios públicos "para desenvolver em conjunto as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam "(Lei 8.080/1990, art. 10). Dois ou mais Municípios (ou dois ou mais Estados, ou Estados e União Federal, ou Estados e Municípios) podem, portanto, unir esforços para prestar serviços públicos de forma integrada, para suas respectivas populações, por meio de um acordo de vontades que dá origem a uma pessoa jurídica denominada “consórcio público”. Essa entidade – que, ao ser criada, passa a integrar a administração indireta dos entes consorciados (Lei 11.107/2005, art. 6º, § 1º) – realizará os interesses comuns que justificaram sua criação. Trata-se, assim, de um instrumento de gestão associada de serviços públicos, que, vale ressaltar, conta com amparo constitucional (CF, art. 241).

A gestão conjunta de serviços públicos por meio do consórcio público traz vantagens evidentes aos entes da Federação que o integram. Uma delas é a economia de recursos públicos, já que os contratos firmados pelos consórcios terão uma abrangência territorial maior, visto que destinados à prestação de serviços públicos para a soma das populações dos entes consorciados, e não apenas para a população de um só Município ou de um só Estado. Ao comprar mais e de uma única vez, o consórcio pode obter preços menores, já que o fornecedor contratado conta com a economia de escala para vender mais barato, o que torna a contratação economicamente mais vantajosa para a Administração Pública. Por exemplo, os preços unitários de medicamentos e vacinas comprados para atender a um só Município serão, provavelmente, maiores, do que os preços dos mesmos produtos adquiridos em conjunto por dois ou mais Municípios unidos em consórcio.

Outros serviços públicos como saneamento básico (Lei 11.445/2007, art. 3º, II, e art. 8º, § 1º), gerenciamento de resíduos sólidos (Lei 12.305/2010, art. 8º, XIX), transporte público intermunicipal e interestadual (Lei 12.587/2012, art. 8º, VIII, art. 16, § 2º, e art. 17, parágrafo único) e proteção ao meio ambiente (LC 140/2011, art. 4º, I, e art. 5º, parágrafo único) também podem (devem) ser prestados via consórcios públicos. As leis citadas, inclusive, estimulam a gestão associada desses serviços, em razão das evidentes vantagens de cunho econômico e operacionais daí advindas.

São serviços que, especialmente em áreas conurbadas, devem ser operacionalizados de forma conjunta pelas Administrações dos Municípios limítrofes; a interligação entre as cidades é tão intensa, que medidas tomadas pelo Executivo de um Município repercutem diretamente no cotidiano de moradores de cidades vizinhas. 

O incremento de um corredor de ônibus em uma das cidades da área metropolitana facilita a locomoção de moradores de municípios vizinhos que se deslocam diariamente de um local para outro; a melhoria do sistema de distribuição de água potável e coleta de esgoto em uma cidade induz ao incremento dos sistemas de Municípios vizinhos, já que as redes, em razão da conurbação, são interligadas; a Administração Municipal que exerce de forma eficiente seu poder de polícia ambiental protege mananciais que abastecem toda área metropolitana; a política habitacional de uma cidade influi em cidades vizinhas, já que pode provocar migração de contingentes populacionais entre as localidades, em busca de melhores condições de moradia e de maior proximidade com os locais de trabalho; os processos de regularização fundiária levados a cabo em um Município beneficiam os distritos de cidades localizados nas proximidades da área regularizada; o correto tratamento que o lixo produzido em uma cidade recebe pode beneficiar os Municípios limítrofes, já que tende a evitar que resíduos sejam despejados em rios e córregos que atravessam o aglomerado metropolitano; o mesmo aterro sanitário pode servir de destino final de resíduos provenientes de mais de uma cidade da área metropolitana, o que torna imprescindível o trabalho conjunto de manutenção do equipamento. 

Por essas razões, a Constituição Federal prevê que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios “disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos” (art. 241).

Nada impede que os mesmos Municípios e/ou Estados firmem convênios para a prestação conjunta de serviços públicos às suas respectivas populações (Lei 8.666/1993, art. 116), mas, nesse caso, não há, como no consórcio público, a criação de uma pessoa jurídica, destinada exclusivamente à gestão associada daquela atividade. O consórcio público, nesse sentido, possibilita uma maior eficiência na execução da atividade, visto que direciona seus esforços unicamente aos objetivos que justificaram sua criação, com recursos e pessoal próprios.

As regras gerais sobre a constituição e o funcionamento dos consórcios públicos estão previstas na Lei 11.107/2005. Vamos a elas.


1. Conceito de consórcio público


A Lei 11.107/2005 não define expressamente consórcio público; deixou a tarefa para o seu decreto regulamentador, que prevê que consórcio público é a “pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na forma da Lei no 11.107, de 2005, para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum, constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos” (Decreto Federal 6.017/2007).

A definição do decreto contrasta com o preceito legal que atribui ao consórcio natureza contratual (Lei 11.107/2005, art. 1º). Com efeito, esse dispositivo prevê que as regras contidas na Lei 11.107/2005 “são normas gerais para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios contratarem consórcios públicos para a realização de objetivos de interesse comum”.

Os consórcios públicos são, portanto, contratados entre os entes da Federação; ou seja, o diploma federal confere aos consórcios a natureza de contrato firmado entre pessoas políticas, com vistas à realização de propósitos comuns.

Daí a referência ao termo “normas gerais”, previsto na redação do art. 1º da lei federal – a competência para a edição de normas gerais sobre licitações e contratos, afinal, é privativa da União (CF, art. 22, XXVII). Trata-se, assim, de lei federal que prescreve normas gerais sobre uma espécie de contrato firmado pela Administração: o consórcio público.

De outra parte, a Lei 11.107/2005 também discorre sobre a criação e o funcionamento de pessoa jurídica, matéria que também é da alçada federal, dada a competência privativa da União para legislar sobre direito civil e comercial (CF, art. 22, I). Afinal, o consórcio público firmado entre os entes da Federação, como prevê a lei, dá origem a uma pessoa jurídica, que constituirá associação pública ou pessoa jurídica de direito privado (Lei 11.107/2005, art. 1º, § 1º). É por essa razão que a Lei 11.107/2005 promoveu alteração no Código Civil brasileiro, a prever as associações públicas como uma espécie de pessoa jurídica de direito público, com natureza autárquica (CC, art. 41, IV). Assim, a pessoa jurídica “consórcio público” pode assumir personalidade de direito público ou de direito privado sem fins econômicos (Lei 11.107/2005, art. 4º, IV); caso seja constituída como pessoa jurídica de direito público, receberá a denominação de “associação pública”, que tem natureza de autarquia, nos termos do citado dispositivo da Lei Civil. Pode-se dizer que o consórcio público de direito público tem a natureza de autarquia, e que o consórcio de direito privado assumirá, a princípio, uma das formas previstas na lei civil (CC, art. 44). No entanto, a lei estabelece que “a organização e funcionamento dos consórcios públicos serão disciplinados pela legislação que rege as associações civis” (Lei 11.107/2005, art. 15), de modo que, dentre as formas legais aplicáveis às pessoas jurídicas de direito privado (CC, art. 44), os consórcios públicos de direito privado podem assumir apenas a natureza de associação.1 Não é possível, destarte, criar consórcio público sob a forma de fundação.

Conclui-se, portanto, que consórcio público é uma autarquia ou uma pessoa jurídica de direito privado constituída por meio de um contrato firmado entre entes da Federação, com vistas à gestão associada de serviços públicos, conforme autorizado pelo Texto Constitucional (CF, art. 241).

 

1.1. Procedimento de criação dos consórcios públicos


A Lei 11.107/2005 determina que o consórcio público seja constituído por contrato, “cuja celebração dependerá da prévia subscrição de protocolo de intenções” (art. 3º). 

Assim, os entes da Federação que pretendem se consorciar para prestar serviços de interesse comum devem, primeiramente, subscrever um protocolo de intenções, do qual devem constar todas as cláusulas indicadas no art. 4º da mesma lei – denominação, finalidade, prazo de duração e sede do consórcio; identificação dos entes consorciados; área de atuação do consórcio; natureza do consórcio (associação pública ou pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos); normas sobre a assembleia geral; formas de provimento e remuneração dos empregados públicos do consórcio;2  forma de eleição e a duração do mandato do representante legal do consórcio público (que deve ser obrigatoriamente Prefeito ou Governador de um dos entes consorciados); serviços públicos objeto da gestão associada e área de prestação; autorização para o consórcio licitar ou outorgar concessão, permissão ou autorização da prestação dos serviços; critérios técnicos para o cálculo do valor das tarifas; dentre outras prescrições.

Para que o contrato de consórcio público seja efetivamente celebrado, faz-se necessária a ratificação, por lei, do protocolo de intenções, previamente assinado pelos representantes dos entes que pretendem se consorciar (Lei 11.107/2005, art. 5º).

Ou seja, cada Município (ou cada Estado) que pretende se consorciar deve editar lei específica (municipal ou estadual), a ratificar o protocolo de intenções e a autorizar a participação do ente no consórcio público. O protocolo de intenções deve ser aprovado, portanto, pelas respectivas Câmaras de Vereadores ou Assembleias Legislativas dos entes federativos que pretendem unir esforços e criar o consórcio. A razão de ser dessa prescrição está no art. 37, XIX, da Constituição Federal, que exige a edição de lei específica para criar autarquia e autorizar a criação de empresas estatais e fundações governamentais.

Como o consórcio público adquire personalidade jurídica – de direito público ou de direito privado – e passa a integrar a administração indireta dos entes consorciados (Lei 11.107/2005, art. 6º), sua criação deve ser aprovada por lei, nos moldes do dispositivo constitucional indicado (CF, art. 37, XIX).

Vale ressaltar que a lei prevê que o consórcio público com personalidade de direito público (associação pública) integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados (Lei 11.107/2005, art. 6º, § 1º). A interpretação meramente literal do dispositivo pode levar à conclusão de que o consórcio de direito privado não integraria a administração indireta dos entes consorciados. No entanto, é evidente que os consórcios de direito privado também integram a administração indireta das pessoas políticas consorciadas, visto que, nos termos ressaltados por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “não há como uma pessoa jurídica política (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) instituir pessoa jurídica administrativa para desempenhar atividades próprias do ente instituidor e deixá-la de fora do âmbito de atuação do Estado, como se tivesse sido instituída pela iniciativa privada”.3

É possível que nem todas as pessoas políticas que subscreveram o protocolo de intenções participem do consórcio, já que seus respectivos órgãos legislativos podem rejeitar o projeto de lei ratificadora. Nessa hipótese, o contrato de consórcio público “pode ser celebrado por apenas 1 (uma) parcela dos entes da Federação que subscreveram o protocolo de intenções”, caso o contrato de consórcio assim permitir (Lei 11.107/2005, art. 5º, § 1º). É permitido, ainda, que a ratificação do protocolo de intenções seja “realizada com reserva que, aceita pelos demais entes subscritores, implicará consorciamento parcial ou condicional” (Lei 11.107/2005, art. 5º, § 2º). Assim, a pessoa política consorciada pode participar apenas parcialmente da gestão associada de serviços públicos, ou apenas em relação a alguns desses serviços.

Por derradeiro, cabe notar que a criação do consórcio público de direito privado efetiva-se com o registro do estatuto (Lei 11.107/2005, art. 7º) no respectivo registro civil de pessoas jurídicas, nos termos do que prescreve o art. 45 do Código Civil. Afinal, a lei federal dos consórcios públicos estabelece que, no que não lhe contrariar, “a organização e funcionamento dos consórcios públicos serão disciplinados pela legislação que rege as associações civis” (Lei 11.107/2005, art. 15). 

 

1.2. Regime jurídico aplicável aos consórcios públicos


A Lei 11.107/2005 admite, como visto, a criação de consórcios públicos de direito privado e de consórcios públicos de direito público. Não obstante, a lei prescreve que tanto um como outro devem observar “as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, à celebração de contratos, à prestação de contas e à admissão de pessoal, que será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943” (Lei 11.107/2005, art. 6º, § 2º).

Portanto, o regime de direito privado, quando aplicado aos consórcios, é derrogado por normas de direito público, como, por exemplo, a regra que exige licitação para contratar (CF, art. 37, XXI), a regra que exige concurso público para investidura em cargo e emprego público (CF, art. 37, II) e as normas que submetem as entidades da Administração Direta e Indireta ao controle externo, exercido pelo Poder Legislativo com auxílio dos Tribunais de Contas (CF, arts. 70 e 71).4  

A Lei 11.107/2005 deixa claro que o regime aplicável é o celetista, ou seja, os servidores que exercem suas funções nos consórcios públicos são titulares de emprego público (art. 6º, § 2º). O diploma legal não diferencia, nesse particular, as associações públicas dos consórcios de direito privado – em ambos os casos o regime de trabalho aplicável é o contratual.5       

 Para o cumprimento de seus objetivos, os consórcios públicos podem firmar convênios, contratos, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais de outras entidades e órgãos do governo. Podem, também, promover desapropriações e instituir servidões administrativas, a fim de viabilizar a execução do serviço público para o qual foram criados. Podem, ainda, ser contratados pela Administração Direta ou Indireta dos entes da Federação consorciados, dispensada a licitação (Lei 11.107/2005, art. 2º, § 1º, I a III, e Lei 8.666/1993, art. 24, XXVI).

A assembleia geral é instância decisória máxima do consórcio público, responsável pela elaboração, aprovação e modificação do seu estatuto (Lei 11.107/2005, art. 4º, incs, VI e VII). A alteração ou extinção do contrato de consórcio público depende de aprovação pela assembleia geral e de ratificação mediante lei por todos os entes consorciados (Lei 11.107/2005, art. 12).6  

Os entes da Federação que constituem o consórcio podem dele se retirar, mediante ato formal do seu representante na assembleia geral, na forma previamente disciplinada pela lei constitutiva (Lei 11.107/2005, art. 11, caput).

 A retirada ou a extinção do consórcio público não prejudica as obrigações já constituídas, inclusive os contratos firmados pela entidade, cuja extinção dependerá do pagamento das indenizações eventualmente devidas. Por outro lado, até que haja decisão que indique os responsáveis por cada obrigação, os entes consorciados respondem solidariamente pelas obrigações remanescentes, garantindo o direito de regresso em face dos entes beneficiados ou dos que deram causa à obrigação (Lei 11.107/2005, art. 11, § 2º, e art. 12, § 2º).


2. Contratos firmados pelos entes consorciados para viabilizar a execução da gestão associada de serviços públicos


Além do consórcio público, a Lei 11.107/2005 disciplina outras modalidades de contratos: o contrato de rateio e o contrato de programa.

Cada um desses ajustes tem objetivos próprios, ainda que possam estar interligados ou que um deles possa ser pressuposto do outro.7 

Aborda-se, a seguir, as regras legais que disciplinam essas avenças.


2.1. Contrato de rateio


Os entes consorciados devem entregar recursos ao consórcio público mediante um ajuste denominado pela lei de contrato de rateio (Lei 11.107/2005, art. 8º). O consórcio precisa de recursos financeiros para prestar os serviços públicos cuja execução lhe foi transferida. Esses recursos somente podem ser transferidos por meio do contrato de rateio.

A cada exercício financeiro deve ser formalizado um contrato de rateio entre os entes consorciados e o consórcio público. O prazo de vigência desses ajustes deve coincidir com o prazo das dotações orçamentárias que o suportam, “com exceção dos contratos que tenham por objeto exclusivamente projetos consistentes em programas e ações contemplados em plano plurianual” (Lei 11.107/2005, art. 8º, § 1º). Em outras palavras, os entes consorciados devem prever, em suas respectivas leis orçamentárias anuais, recursos a serem transferidos, via contrato de rateio, aos consórcios públicos de que são integrantes. O ente consorciado que não consignar, em sua lei orçamentária ou em créditos adicionais, as dotações suficientes para suportar as despesas assumidas no contrato de rateio pode ser excluído do consórcio público, após prévia suspensão (Lei 11.107/2005, art. 8º, § 5º). 

Em outras palavras, as pessoas políticas que se consorciam assumem obrigações de transferir recursos anuais ao consórcio, a fim de que a entidade cumpra suas finalidades legais. Caso essas obrigações não sejam cumpridas por um ou mais dos entes consorciados, os demais podem, isolados ou em conjunto, exigir seu cumprimento (Lei 11.107/2005, art. 8º, § 3º). O consórcio público, aliás, também é parte legítima para a cobrança.

O contrato de rateio constitui, desse modo, um ajuste que torna possível exigir de cada um dos entes consorciados a transferência de recursos financeiros ao consórcio, a fim de viabilizar sua existência e a execução de seus objetivos.  


2.2. Contrato de programa


O contrato de programa é regulado pela lei federal de consórcios públicos (Lei 11.107/2005, art. 13), mas, na realidade, é ajuste que pode ser firmado entre dois entes da Federação, independentemente da existência de consórcio público. É muito comum que Municípios, por exemplo, contratem empresas estatais de saneamento básico, integrantes da Administração Pública estadual, e lhe transfiram a execução do serviço público, que passa a ser prestado à população pela companhia estadual contratada.8 

Com efeito, o texto da Lei 11.107/2005 é claro ao prever que os contratos de programa podem ser firmados entre um ente da Federação e outro, e entre um ente da Federação e um consórcio público (art. 13, caput). Assim, por exemplo, os Municípios consorciados podem contratar o consórcio público, por eles mesmo criado, para prestar de forma indireta serviço público de sua competência. Ou um consórcio municipal pode contratar empresa integrante da Administração Indireta de determinado Estado da Federação, para que essa estatal execute determinado serviço público à população. Ou mesmo um Município pode contratar uma empresa estadual para a execução indireta do serviço. As obrigações assumidas pelas partes, nesses casos, devem estar constituídas e reguladas por contrato de programa (Lei 11.107/2005, art. 13, caput), que, aliás, pode ser firmado entre as partes sem a obrigatoriedade de prévio processo licitatório (Lei 8.666/1993, art. 24, XXVI).9 

O contrato de programa deve atender à legislação de concessões e permissões de serviços públicos (Lei 8.987/1995; Lei 9.074/1995; Lei 11.079/2004, dentre outras) e à regulação dos serviços a serem prestados, “especialmente no que se refere ao cálculo de tarifas e de outros preços públicos” (Lei 11.107/2005, art. 13, § 1º, I). Além disso, há de serem previstos procedimentos que garantam a transparência da gestão econômica e financeira do serviço delegado (Lei 11.107/2005, art. 13, § 1º, II). O ente federativo contratado deve ser fiscalizado como qualquer concessionário e os deveres de regulação e fiscalização do poder concedente devem ser devidamente cumpridos, assim como ocorre em qualquer contrato de concessão ou permissão de serviços públicos firmados com particulares.

A Lei 11.107/2005 estabelece que o contrato de programa que “originar a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos” deve conter, obrigatoriamente, as seguintes cláusulas, sob pena de nulidade: “I – os encargos transferidos e a responsabilidade subsidiária da entidade que os transferiu; II – as penalidades no caso de inadimplência em relação aos encargos transferidos; III – o momento de transferência dos serviços e os deveres relativos a sua continuidade; IV – a indicação de quem arcará com o ônus e os passivos do pessoal transferido; V – a identificação dos bens que terão apenas a sua gestão e administração transferidas e o preço dos que sejam efetivamente alienados ao contratado; VI – o procedimento para o levantamento, cadastro e avaliação dos bens reversíveis que vierem a ser amortizados mediante receitas de tarifas ou outras emergentes da prestação dos serviços” (Lei 11.107/2005, art. 13, § 2º). É muito comum a transferência de pessoal e bens necessários à execução do serviço público, no âmbito de um procedimento delegatório. As regras sobre tais transferências devem estar devidamente dispostas no contrato de programa firmado entre entes da Federação ou entre esses e o consórcio público. 

De forma equivalente, a lei geral de concessões e permissões de serviços públicos prevê que “incumbe à concessionária manter em dia o inventário e o registro dos bens vinculados à concessão e zelar pela integridade dos bens vinculados à prestação do serviço, bem como segurá-los adequadamente” (Lei 8.987/1995, art. 31, II e VII), e que são obrigatórias em qualquer contrato de concessão cláusulas que prevejam os “direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária e as penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária” (Lei 8.987/1995, art. 23, V e VIII). Vê-se, portanto, que a Lei 11.107/2005 procurou aproximar ao máximo o regime dos contratos de programa, firmados para fins de gestão associada de serviços públicos, dos contratos de concessão ou permissão de serviços públicos subscritos por particulares.

Interessante ressaltar a regra constante do art. 13, § 3º, da Lei 11.107/2005: prescreve o dispositivo que “é nula a cláusula de contrato de programa que atribuir ao contratado o exercício dos poderes de planejamento, regulação e fiscalização dos serviços por ele próprio prestados”. Essas atividades devem ser realizadas pelo ente contratante – seja ele ou não um consórcio público –, que deve fiscalizar permanentemente o cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato de programa, sob pena de prejuízo à boa prestação do serviço público à população. A mesma atividade fiscalizatória deve ser exercida sobre o consórcio público, na hipótese em que ele figura como contratado.

Notas

1 Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho defende que “pela peculiaridade do negócio jurídico formador do consórcio público, a natureza deste, quando pessoa jurídica de direito privado, é a de associação”. O autor fundamenta sua posição no dispositivo constante do art. 15 da Lei 11.107/2005 e no fato de que “a essência do consórcio é o seu caráter associativo, de cooperação mútua entre os pactuantes, o que caracteriza as associações” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Consórcios públicos: Lei nº 11.107, de 06.04.2005, e Decreto nº 6.017, de 17.01.2007, pp. 38-39).

2 A Lei 11.107/2005 atribui o regime contratual/celetista aos servidores dos consórcios públicos (art. 6º, § 2º), daí a utilização do termo empregados públicos.

3  DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 585. Nas palavras da autora, “todos os entes criados pelo Poder Público para o desempenho de funções administrativas do Estado têm que integrar a Administração Pública Direta (se o ente for instituído como órgão sem personalidade jurídica) ou Indireta (se for instituído com personalidade jurídica própria)”.

4 Sobre o controle externo, a Lei 11.107/2005 prevê que “a execução das receitas e despesas do consórcio público deverá obedecer às normas de direito financeiro aplicáveis às entidades públicas (art. 9º, caput) e que o consórcio público está sujeito à fiscalização contábil, operacional e patrimonial pelo Tribunal de Contas competente para apreciar as contas do Chefe do Poder Executivo representante legal do consórcio, inclusive quanto à legalidade, legitimidade e economicidade das despesas, atos, contratos e renúncia de receitas, sem prejuízo do controle externo a ser exercido em razão de cada um dos contratos de rateio” (art. 9º, parágrafo único).

5 Vale observar que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Medida Cautelar pleiteada na ADI 2135, considerou inconstitucional a alteração do art. 39 da Constituição Federal, realizada pela EC 19/1998, que abolia o regime jurídico único para os servidores da Administração Direta, autárquica e fundacional (ADI 2135/MC, Tribunal Pleno, rel. Min. Néri da Silveira, j. 02.08.2007, DJ 07.03.2008). Assim, voltou a valer a regra constitucional que exige o regime jurídico único para os servidores da Administração Direta, autárquica e fundacional. Portanto, o regime aplicável aos servidores das associações públicas – consórcios de direito público que tem natureza de autarquia – deveria ser o regime estatutário, e não o celetista, conforme previsto na Lei 11.107/2005 (art. 6º, § 2º). Não obstante, a regra permanece no texto da Lei 11.107/2005, a impor o regime celetista tanto para as associações públicas como para os consórcios de direito privado.

6 Nota-se, nesse particular, que a extinção do consórcio público depende de lei, aprovada por todos os entes consorciados, já que o consórcio público constitui entidade da Administração Indireta dos entes consorciados, e a Constituição Federal exige seja editada lei a autorizar tanto a criação quanto a extinção de autarquias, fundações governamentais e empresas estatais (CF, art. 37, XIX). 

7 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Consórcios públicos: Lei nº 11.107, de 06.04.2005, e Decreto nº 6.017, de 17.01.2007, p. 26.

8 Vale ressaltar que o art. 13, § 8º, da Lei 11.107/2005, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 14.026/2020, prevê que os contratos de prestação de serviços públicos de saneamento básico devem observar o disposto no art. 175 da Constituição Federal, isto é, o regime legal das concessões e permissões de serviço público deve ser aplicado a tais ajustes. O dispositivo veda, também, a partir da edição da Lei 14.026/2020, a formalização de novos contratos de programa para delegação dos serviços de saneamento. O objetivo da nova legislação é estimular a realização de procedimentos licitatórios para escolha dos concessionários, a aumentar a competitividade no setor, já que o contrato de programa pode ser firmado sem licitação (Lei 8.666/1993, art. 24, XXVI). Sobre o tema, explica Thiago Alves Chico, que “o contrato de programa é indicado como solução para a prestação de serviços públicos por meio da gestão associada através de consórcios públicos”. Ainda segundo o autor, o contrato de programa constitui as partes contratantes em obrigações específicas, a disciplinar a relação entre o consórcio público e um ente federativo (consorciado ou não), visando à prestação indireta de serviços públicos. (CHICO, Thiago Alves. O papel dos consórcios públicos no setor de saneamento básico à luz da Lei nº 11.445/2007 e do Decreto nº 7.217/2010. Estudos sobre o marco regulatório de saneamento básico no Brasil, p. 180).

9 O Decreto Federal 6.017/2007, que regulamenta a Lei 11.107/2005, define o contrato de programa como “o instrumento pelo qual devem ser constituídas e reguladas as obrigações que um ente da Federação, inclusive sua administração indireta, tenha para com outro ente da Federação, ou para com consórcio público, no âmbito da prestação de serviços públicos por meio de cooperação federativa” (art. 2º, XVI). Sobre a questão, a Lei 11.107/2005 prevê que “mediante previsão do contrato de consórcio público, ou de convênio de cooperação, o contrato de programa poderá ser celebrado por entidades de direito público ou privado que integrem a administração indireta de qualquer dos entes da Federação consorciados ou conveniados” (art. 13, § 5º).

Referências

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Consórcios públicos: Lei nº 11.107, de 06.04.2005, e Decreto nº 6.017, de 17.01.2007. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

CHICO, Thiago Alves. O papel dos consórcios públicos no setor de saneamento básico à luz da Lei nº 11.445/2007 e do Decreto nº 7.217/2010. Estudos sobre o marco regulatório de saneamento básico no Brasil. José Roberto Pimenta Oliveira e Augusto Neves Dal Pozzo (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2011.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

WALD, Arnoldo. Direito civil: direito das coisas. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Volume 4.


Citação

LEVIN, Alexandre. Consórcio público. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/521/edicao-2/consorcio-publico

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2022

Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

Verbetes Relacionados