O Tribunal Penal Internacional, estabelecido pelo Estatuto de Roma, é o primeiro e, até agora, único tribunal penal internacional de caráter permanente. Estabelecido em 1998 na Conferência de Roma, entrou em vigor após obter 60 ratificações, em 1º de julho de 2002. Tem por finalidade submeter a processo e julgamento os maiores responsáveis pela prática dos chamados “crimes contra a paz”, os mais graves crimes que põem em risco a paz, a segurança e a sobrevivência da humanidade. Independente do sistema das Nações Unidas, foi até hoje ratificado por 123 Estados, incluindo-se o Brasil.1 Alcançou status constitucional pela Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, em cujo art. 5º, § 4º, se estabeleceu que “O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

1. Antecedentes


Não se pode falar da evolução do Direito Penal Internacional sem analisar a evolução do chamado Direito Internacional Humanitário, o comumente chamado Direito de Guerra. Sem que tenhamos que voltar muito no tempo, basta que nos debrucemos sobre os principais momentos de afirmação do DIH, a começar por sua definição: é o ramo do Direito Internacional que se destina a regular (i) a condução das hostilidades em tempos de conflitos armados, limitando o nível de força necessária e suficiente para debilitar o potencial do inimigo e (ii) a proteção de pessoas e grupos de pessoas que não tomam parte ativa nas hostilidades, ou tenham deixado de fazê-lo.

Aplica-se, assim, apenas em situações de conflitos armados, sejam de caráter internacional ou não internacional.

É o ramo do Direito Internacional que, a partir de meados do século XIX, impôs limites ao poder absoluto dos Estados em conduzir as hostilidades. Teve como marcos simbólicos a publicação, em 1862, das Lembranças de Solferino, obra escrita por Henri Dunant, que descreve o padecimento de feridos e prisioneiros de guerra nos campos de batalha.

Considera-se nesse momento a criação da Cruz Vermelha Internacional, concomitante à Convenção de 1864 relativa aos Militares Feridos nos Campos de Batalha (1ª Convenção de Genebra) e a Declaração de São Petersburgo para Proscrever, em Tempos de Guerra, o Uso de Projéteis Explosivos. Em 1899, a 1ª Conferência da Haia resultou na Segunda Convenção da Haia sobre Leis e Costumes da Guerra terrestre.

Desta Convenção vale aqui destacar a introdução da chamada Cláusula Martens, sobre a qual falaremos mais adiante, a qual estabeleceu como princípio do Direito Humanitário que 

“[...] até que um Código mais completo das leis de guerra seja elaborado, as Altas Partes contratantes julgam oportuno declarar que, nos casos não previstos nas normas regulamentares por elas adotadas, as populações e os beligerantes estarão sob a proteção e o império dos princípios do direito internacional, tal como resultam dos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, das leis da humanidade e das exigências da consciência pública”.

A Cláusula Martens vem novamente estabelecida no Preâmbulo da Convenção da Haia de 1907.

Os intérpretes modernos veem na Cláusula Martens um princípio de Direito Internacional (DIN) – e que anos depois será abraçado também pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos (DDHH) e pelo Direito Penal Internacional (DPI)– segundo o qual não se aplica a regra do “o que não está proibido é permitido”. Ao contrário, o que não vem expressamente proibido continua a ser proibido de acordo com os “usos estabelecidos entre nações civilizadas, as leis da humanidade e as exigências da consciência pública”.

Após a Segunda Guerra, as Convenções de Genebra de 19492 consolidam a normativa internacional, e em seu Artigo 3 comum estabelecem a extensão das normas de proteção aos civis em conflitos de caráter não internacional. Os dois Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra, de 19773, estabelecem normas especiais de proteção de vítimas em conflitos armados de caráter internacional (PA I) e não internacional (PA II).

Assim, o Direito da Haia – que reúne as regras relativas aos meios e métodos de combate – e o Direito de Genebra – que regula a proteção de civis não diretamente envolvidos nas hostilidades – constituem o chamado Direito Internacional Humanitário, juntamente com as regras de Direito Costumeiro, este também fonte primária de DIN.

Para este ramo do Direito Internacional, a primazia sempre é do indivíduo, e prevalece, em quaisquer circunstâncias, o princípio da humanidade. Traduz regras reconhecidas como de jus cogens, oponíveis aos Estados, independentemente da ratificação e tratados, nos termos do artigo 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.4 Decisões da Corte Internacional de Justiça já estabeleceram que as regras de proteção do direito humanitário refletem princípios elementares de humanidade e, portanto, todos os Estados devem cumprir com essas normas fundamentais, tenham ou não ratificado os tratados que as estabelecem, porque constituem princípios invioláveis do Direito Internacional Consuetudinário.

Foi sobre essas bases que, após a celebração de diversos tratados ao fim da Segunda Guerra, o Tratado de Londres estabeleceu a criação do Tribunal Militar Internacional, com sede em Nuremberg, destinado a processar e julgar os principais líderes da Alemanha nazista acusados de cometer crimes de guerra, crime de agressão e crimes contra a humanidade.

Sabemos todos das críticas dirigidas ao Tribunal de Nuremberg: um tribunal de exceção, criado pelos vencedores para julgamento dos vencidos, para julgar crimes ainda não definidos no direito internacional- à exceção dos crimes de guerra, já suficientemente definidos.  Mas não podemos deixar de atribuir a Nuremberg o maior avanço havido no Direito Internacional quanto ao estabelecimento de determinados princípios que, hoje, e segundo muitos estudiosos, fazem parte daquele conjunto de normas de direito internacional imperativo, normas portanto de jus cogens. Entre elas, o princípio da existência de crimes internacionais, e da legitimidade da comunidade internacional para exigir o processo, julgamento e punição daqueles acusados de cometer tais crimes. O princípio da responsabilidade penal individual, independente da culpabilidade dos Estados. O princípio da inexistência de imunidades em razão e cargo ou função ocupada pelos acusados, assim como o da inaplicabilidade da eximente da obediência devida em crimes contra a humanidade e genocídio.

Os Princípios de Nuremberg foram integrados ao quadro normativo internacional pela Resolução 95(1) da Assembleia Geral das Nações Unidas.

No início da década de 1990, no coração da Europa, eclode um sério conflito armado na região dos Balcãs, nos territórios da extinta Iugoslávia. Com receio da expansão das hostilidades para outros territórios europeus, pondo assim em risco a paz, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, através da resolução CS 827/1993, e no exercício de suas competências sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, cria e estabelece o Tribunal Penal Internacional para a Ex Iugoslávia (ICTY), com competência para julgar aqueles responsáveis por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio – este último já definido desde a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948.5 Logo em 1994, em face da matança generalizada ocorrida no território de Ruanda, na qual quase um milhão de pessoas foram assassinadas por motivos de perseguição étnica em cerca de noventa dias, o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu um segundo tribunal, dito ad hoc, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR), pela Resolução CS 955/94.

Esses Tribunais ad hoc já vieram à luz expurgados de muitos dos vícios atribuídos anteriormente ao Tribunal de Nuremberg. No entanto, remanescem as críticas quanto ao fato de terem sido criados após os fatos, e por decisões políticas do Conselho de Segurança, seletivas por sua própria natureza.

Ressurge assim antiga proposta de criação de um tribunal penal internacional permanente, despido de todas e quaisquer críticas quanto à sua legalidade, legitimidade e imparcialidade, destinado a julgar os mais graves crimes que põem em risco a paz e a sobrevivência da própria humanidade, respeitadas todas as regras já consagradas quanto à legalidade dos delitos e das penas, a anterioridade, e o respeito aos direitos humanos dos acusados. 

Convoca-se, assim, a Conferência de Roma, em julho de 1988. Aos 17 de julho, ao final da Conferência, foi proclamada a criação do TPI, por 120 votos a favor, 7 contra, e 21 abstenções. 

A primeira ratificação do Estatuto foi depositada por Senegal, no início de 1999. As necessárias 60 ratificações para que o Estatuto entrasse em vigor foram alcançadas em 11 de abril de 2002. Assim, a partir de 1º de julho de 2002 o Tribunal Penal Internacional foi oficialmente instalado. Essa data é a que fixa os parâmetros da competência temporal do TPI que, portanto, só pode conhecer de crimes praticados após a entrada em vigor do Estatuto de Roma. Respeitada está assim a norma que determina a irretroatividade dos delitos e das penas, consagrada pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

O Brasil aprovou o Estatuto de Roma em 6 de junho de 2002 (Decreto Legislativo 112), depositou o termo de ratificação em 20 de junho de 2002, e o promulgou através do Decreto 4.388, de 25 de setembro de 2002. Mais recentemente, a Emenda Constitucional 45, de 2004, estabeleceu em seu parágrafo 4º que “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Assim, entendemos que a submissão do país ao Estatuto de Roma alcançou status constitucional e, portanto, está sujeito às suas normas independentemente da integração destas por lei ordinária – o que seria, no entanto, desejável, em especial quanto à tipificação adequada dos crimes nele previstos e determinação individualizada das penas.


2. Complementariedade e admissibilidade 


O artigo 1º do Estatuto de Roma estabelece que “[...] O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. [...]”. Assim, é essência desta nova instituição judicial seu caráter de complementariedade em relação à jurisdição interna dos Estados. O Estatuto, tal como acordado pelas Partes, “[...] foi concebido com base em um delicado equilíbrio entre dois objetivos, que coexistem em tensão. Por um lado, resguardar o normal funcionamento dos sistemas nacionais, que são os que devem normalmente julgar e sancionar os responsáveis pelos crimes. Por outro lado, assegurar a intervenção internacional quando os Estados não cumprirem seu dever de investigar e julgar crimes internacionais que afetam a comunidade internacional em seu conjunto.”6 

A jurisdição do TPI é, pois, concorrente à dos Estados. Ao contrário dos acima mencionados tribunais ad hoc, criados por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, a jurisdição do TPI não tem primazia sobre a dos Estados. Pelo contrário, os Estados têm a competência primária para exercer sua jurisdição em relação aos crimes internacionais. A jurisdição do TPI, como complementar, só poderá ser exercida pela Corte quando os Estados que tenham jurisdição sobre determinado caso não queiram, ou não possam exercê-la de forma genuína.

Esse regime de complementariedade, em outras palavras, é o que vai garantir a solução de um potencial conflito de competências, passível de surgir entre foros em dois níveis jurídicos, o nacional e o internacional.7 Vale lembrar que se aplica ao Tribunal Penal Internacional o mesmo princípio previsto no artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, segundo o qual em caso de haver dúvidas quanto à competência do Tribunal, este terá a palavra final sobre a matéria. É o princípio da competénce de la compétence, ou Kompetenz-Kompetenz, segundo o qual um tribunal tem a competência para decidir, em última instância, sobre sua própria competência. Esse princípio é aceito pelo direito internacional geral em especial quando se trata “[...] de uma instituição que tenha sido pré-estabelecida por um instrumento internacional que defina suas competências e regule sua forma de funcionamento[...]”.8 Assim o decidiu igualmente o ICTY, em seu primeiro caso levado a julgamento, o Tadič Case9.

O Estatuto de Roma estabelece as regras da complementariedade em especial em seu artigo 17. Essa norma – que aliás estabelece as condições de não admissibilidade - reflete o delicado equilíbrio entre o poder-dever de um Estado em exercer sua jurisdição primária sobre os mais graves crimes e a intervenção de um organismo internacional, a fim de não permitir a impunidade dos autores desses crimes.

Em suas alíneas (a) a (c) o artigo 17(1) elabora sobre as hipóteses de não admissibilidade de um caso que tenha sido, ou esteja sendo investigado ou julgado de forma genuína pelo Estado que tenha sobre ele competência.

Assim, não serão admissíveis, perante o TPI, casos em que (a) o caso for objeto de investigação ou de um procedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento de forma legítima ou não tenha capacidade para o fazer; (b) o caso tiver sido objeto de investigação por um Estado com jurisdição sobre este e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente de forma genuína ou da sua incapacidade real para o fazer;  (c) a pessoa e já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, e não puder ser julgada novamente pelo Tribunal em virtude do disposto no parágrafo 3º do artigo 2010; e (d) o caso não for suficientemente grave para justificar a intervenção do Tribunal.

Os parágrafos (2) e (3) do artigo 17 elaboram sobre certos elementos normativos presentes do parágrafo (1), tais como vontade ou não de agir, a incapacidade de agir – a exemplo, o colapso do sistema policial e judicial em face de um conflito armado, a forma genuína da atuação - a exemplo, a existência de um procedimento “de fachada” (sham trial) destinado a subtrair a pessoa à sua responsabilidade criminal. 

A gerar um pouco mais de dificuldade está a previsão da alínea (d) – sobre a gravidade do fato não justificar a intervenção do Tribunal. Em distintas ocasiões as Câmaras tiveram que se manifestar sobre o conteúdo desse segundo patamar de gravidade – já que, de acordo com o Preâmbulo do Estatuto, todos os crimes sob jurisdição do Tribunal são crimes graves, que põem em risco a paz e a sobrevivência da própria humanidade. Em regra, dá-se atenção ao número de vítimas, à extensão territorial em que os crimes foram praticados, ao modo de execução, à existência de violência de gênero ou contra crianças, à extensão dos danos causados, etc.

De qualquer modo, estabelecem os artigos 18 e 19 do Estatuto a necessidade de as Câmaras determinarem, inclusive de ofício, a admissibilidade de um caso e as formas, momentos processuais e partes legítimas para a impugnação da admissibilidade de um caso.


3. Competências


Concebido para ser um Tribunal com competência residual, complementar à dos Estados, optou-se por submeter-se à sua jurisdição apenas aqueles crimes que “[...] representam a consolidação de um processo de codificação de condutas que foram historicamente repudiadas pelos Estados através da formação do costume internacional”11. Nessa categoria situam-se os crimes de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra, e o crime de agressão. Durante as negociações do Estatuto de Roma, foram apresentadas, e rejeitadas, propostas para inclusão dos crimes de terrorismo e de tráfico internacional de entorpecentes, relevadas para futuras discussões. Na Conferência de Revisão de Kampala, em 2010, também foi apresentada, e rejeitada, proposta para inclusão de crimes contra o meio ambiente. Optou-se assim pela preservação do conceito de core crimes do direito internacional, largamente aceito pela comunidade dos Estados, aqueles já consagrados pelo direito internacional, e que por isso deveriam ser os contemplados pelo Estatuto de Roma.


3.1. Competência material


O Tribunal Penal Internacional tem competência para processar e julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, descritos nos artigos 6º,7º,8º e 8 bis de seu Estatuto. 


3.1.1. Crimes de genocídio


No seu artigo 6º o Estatuto descreve as condutas que configuram o crime de genocídio. Na Conferência de Roma, a definição e tais condutas sequer foi muito discutida, havendo um consenso no sentido de que se deveria reproduzir o texto e o conteúdo da Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948. Apesar disso, o anexo ao Estatuto de Roma, denominado Elementos dos Crimes12, elaborou em mais detalhe “[...] sobre vários aspectos do elemento subjetivo para a prática de genocídio. Também impõe um elemento contextual que não aparece no texto da própria Convenção: ‘a conduta ocorreu em um contexto de um padrão manifesto de condutas similares direcionadas contra o grupo, ou poderia, por si só, causar tal destruição’”.13 

São condutas descritas no artigo 6º do Estatuto as condutas descritas em suas alíneas (a) homicídio de membros do grupo; (b) ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) a sujeição intencional de membros do grupo a condições de vida com vistas a provocar sua destruição física, total ou parcial; (d) a imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; (e) a transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

Exige-se que quaisquer dessas condutas sejam “praticadas com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal”, e assim o diz o caput do artigo 6º. É a previsão do chamado “dolo especial”, ou “dolo específico”, ou mesmo “segundo dolo”, a demonstrar que para além do dolo na conduta exige-se que esta tenha sido praticada com a finalidade, a intenção específica de extinguir, no todo ou em parte, o grupo alvo.

Nos Elementos dos Crimes, para cada uma das condutas tipificadas, exige-se, como dito acima, que a conduta tenha sido cometida no contexto de um padrão manifesto de condutas similares dirigidas contra o grupo ou poderia, por si só, causar a destruição desse grupo. A Corte Internacional de Justiça, órgão jurisdicional máximo do sistema das Nações Unidas, elaborou longamente sobre as diversas definições e conceitos contidos na Convenção de Genocídio em duas recentes decisões, tais como a definição de “grupo”, e, especialmente, em relação ao elemento subjetivo essencial dessa modalidade de crimes – o chamado dolo específico, ou dolo especial, contido na expressão “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo...”.14 


3.1.2. Crimes contra a humanidade


No seu artigo 7º o Estatuto descreve as condutas de crimes contra a humanidade.

O elenco de condutas inclui: (a) assassinatos; (b) extermínio; (c) escravidão; (d) deportação ou transferência forçada de pessoas; (e)detenção ou qualquer outra forma de privação  da liberdade em violação a normas fundamentais de direito internacional; (f) tortura; (g) estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada, ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável; ( h) perseguição contra qualquer grupo identificável ou coletividade com base em razões políticas, raciais, nacionais, étnicas, culturais, religiosas, de gênero ou outras bases que sejam internacionalmente reconhecidas como impermissíveis pelo direito internacional, em conexão com qualquer ato referido nesse parágrafo ou qualquer outro crime previsto no Estatuto; (i) desaparição forçada de pessoas; (j) o crime de apartheid; (k) qualquer outro ato desumano de caráter similar que cause intencionalmente grande sofrimento ou danos sérios, físicos ou mentais ou à saúde.

Os crimes contra a humanidade vieram previstos, pela primeira vez, nos Estatutos do Tribunal de Nuremberg. Sua base histórica está na acima mencionada Clausula Martens, contida na Convenção da Haia de 1907, que estabeleceu a existência um conjunto de regras supra positivas derivadas das “leis da humanidade” e dos “ditames da consciência pública”. Reconhecendo, no entanto, que tais normas seriam uma extensão do direito humanitário, e, portanto, aplicáveis somente em casos de conflitos armados, estabeleceu-se, na esteira da opinião do Juiz Jackson, a possibilidade de punição de crimes praticados por agentes de um Estado contra nacionais de seu próprio Estado- fora, portanto, do alcance do direito humanitário- na medida em que esses crimes fossem conexos com os crimes contra a paz e os crimes de guerra15

Hoje, e de acordo com o Estatuto de Roma, são os crimes contra a humanidade vistos como uma extensão de violações consagradas pelo direito de guerra a situações que, strictu senso, não são necessariamente relacionadas com conflitos armados.

Para a configuração de um crime contra a humanidade, de acordo com o Estatuto, exige-se que a conduta seja praticada dentro de um contexto. Esse contexto vem descrito no próprio artigo 7º, em seu caput: a conduta deve ser “parte de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil”. Os Elementos dos Crimes agregam, no parágrafo (3) de sua Introdução ao artigo 7º: “[...] por ataque dirigido contra a população civil entende-se o curso de uma conduta que envolva o cometimento de múltiplos atos referidos no artigo 7(1) do Estatuto contra qualquer população civil, de conformidade com ou em seguimento a uma política de Estado ou de uma organização para cometer esses atos [...]”. Vê-se que os Elementos dos Crimes definem – apesar de não o fazerem de forma totalmente clara – os contornos do ataque à população civil, que não necessita ser um ataque armado, mas que reúna elementos que demonstrem a existência de um plano ou política, de um Estado ou uma organização, de cometimento desses atos.

Quanto ao tipo penal aberto previsto no artigo 7(k), a doutrina o considera necessário, à luz dos precedentes dos tribunais ad hoc na medida em que seria impossível descrever em todos os seus contornos todas as condutas de semelhante gravidade que possam ser praticadas dentro do contexto de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Assim, “[...] tal categoria já vinha prevista no próprio Estatuto do Tribunal de Nuremberg (...) e tem sido vista como uma categoria residual, impossível de ser exaustivamente enumerada. Uma relação taxativa de condutas só serviria para criar oportunidades aos perpetradores de se evadirem da letra da proibição”.16  


3.1.3. Crimes de guerra


O artigo 8º do Estatuto descreve as condutas a que se atribui a qualificação de crimes de guerra. Prevê ainda que serão considerados crimes de guerra “as graves violações às Convenções de Genebra de 1949” (cf. artigo 8(2)(a);  “outras sérias violações das leis e costumes de guerra aplicáveis aos conflitos armados de caráter internacional de acordo com o direito internacional” (artigo 8(2)(b)); no caso de conflito armado de caráter não internacional “as violações sérias do artigo 3 comum das quatro Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949” (artigo 8(2)(c)), e “outras sérias violações das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados de caráter não internacional de acordo com a lei internacional estabelecida”( artigo 8(2)(e)).

O mesmo artigo 8(2) estabelece, em seus parágrafos (2)(d) e (f), que as normas elencadas no artigo não se aplicam a situações de distúrbios internos, tensões internas, atos de violência esporádicos e isolados, ou quaisquer outros de natureza similar. Aplica-se assim apenas em situações definidas como conflitos armados que ocorram dentro do território de um ou mais Estados, por um período de tempo extenso e entre as forças armadas governamentais e grupos organizados ou entre grupos organizados.

As condutas descritas nos diversos incisos e alíneas do artigo 8º refletem a evolução mais do que centenária do Direito Internacional Humanitário, o chamado direito de guerra, e refletem a evolução do Direito de Genebra – normas de proteção de bens e pessoas não diretamente envolvidas nas hostilidades- e do Direito da Haia – métodos de guerra permissíveis ou proibidos. Abrange ainda os dois Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra. Sempre é necessário repetir que o DIN tem forte base consuetudinária, daí a necessidade de, no estatuto de Roma, elencar-se um número significativo de condutas para que o recurso às “outras sérias violações das leis e costumes de guerra” tivesse realmente um caráter residual e assim não levantasse discussões sobre a legalidade da incriminação de certas condutas.

Ao final, na Conferência de Roma, o processo de seleção das condutas a serem incriminadas seguiu três principais critérios: (a) o fato de a violação ser suficientemente grave; (b) possuir base consuetudinária e (c) ter ou não aplicabilidade normativa em conflitos amados não internacionais. “Em suma, o primeiro critério foi subsidiário para descartar tipos impróprios, o segundo fundamental para a inclusão e tipos penais e o terceiro a grande controvérsia.”.17 

O elenco de condutas incriminadas, para ambos os tipos de conflitos armados, é bastante extenso. Lembramos que as normas de direito humanitário foram as primeiras que surgiram de forma codificada ainda em meados do século XIX. Vale aqui mencionar, apenas a título de exemplo, os assassinatos, tortura, lesões corporais, deportação forçada, tomada de reféns, destruição extensa e apropriação de bens, recrutamento, aliciamento e utilização e menores de 15 anos em hostilidades, estupros e outras formas de violência sexual, ataques contra a população civil, contra prédios, bens e serviços humanitários, bombardeio de cidades e prédios que não sejam objetivos militares, uso de certas armas proibidas - como as asfixiantes, envenenadas ou que causem lesões exageradas ou sofrimento excessivo, interdição de acesso de populações à água, alimentos e assistência médica, entre muitas outras.

Vale por fim ressaltar que as condutas descritas no artigo 8º não serão consideradas crimes de guerra, para efeitos da jurisdição do TPI, se não forem praticadas dentro de um contexto, qual seja, “como parte de um plano ou política de cometer tais crimes em larga escala”, como disposto no caput do referido artigo.

Os Elementos dos Crimes determinam que, para a configuração de cada um dos crimes, as condutas devem ser praticadas “no contexto de um conflito armado e associadas ao conflito armado”, e que “o autor esteja ciente das circunstâncias que estabelecem a existência do conflito armado”.


3.1.4. Crimes de agressão


O artigo 8º bis do Estatuto de Rom define o crime de agressão. Previsto na redação original do Estatuto de Roma, no rol do artigo 5º, como um dos crimes de competência do Tribunal (artigo 5º) teve, no entanto, sua definição típica postergada para momento futuro, e por conta disso a jurisdição do TPI sobre esse tipo de conduta também ficou suspensa. Naquela ocasião, fora impossível às diversas delegações chegarem a um consenso sobre a definição das condutas típicas e sobre as condições para que o Tribunal pudesse exercer a sua jurisdição. 

Entre os anos de 2003 e 2009, “negociações subsequentes para implementar o artigo 5º tiveram lugar no seio da Assembleia dos Estados Partes” e “ após o relatório do grupo de Trabalho Espacial em 2009, que serviu como base para as negociações, e do compromisso alcançado em Kampala, as emendas sobre o crime de agressão foram incluídas na Resolução RC/Res.6, adotada pela Conferência de Revisão, e nos Anexos relacionados de número I (Emendas ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional sobre o Crime de Agressão), II (Emendas aos Elementos dos Crimes) e III (Entendimentos relacionados às Emendas ao Estatuto de Roma  do Tribunal Penal Internacional sobre o crime de Agressão)”.18 A Emendas foram aprovadas em 11 de junho de 2010.

Define-se o crime de agressão no artigo 8º bis (1) como: 

“o planejamento, a preparação, a inciativa ou a execução, por uma pessoa em posição que lhe permita exercer controle efetivo sobre, ou dirigir, a ação política ou militar, de um Estado19, de um ato de agressão que, por seu caráter, gravidade e escala, constitua manifesta violação da Carta das Nações Unidas”. Para os fins do parágrafo (1), “ato de agressão significa o uso das forças armadas por um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro Estado, ou de qualquer maneira inconsistente com a Carta das Nações Unidas”.

Assim, segundo o parágrafo (1), 

“[...] três elementos principais devem ser considerados na definição de crime de agressão: primeiro, o tipo de conduta individual em questão, que consiste em ‘planejamento, preparação, início ou execução de um ato de agressão; segundo, a posição ocupada pela pessoa que comete o crime, que é descrita como ‘uma posição que exerça controle efetivo ou dirija a ação política ou militar de um Estado’; terceiro, o elemento que consiste na exigência de que o ato de agressão deva constituir “em eu caráter, gravidade e escala (...) uma violação manifesta à Carta das Nações Unidas”.20 

Em relação às condutas de agressão, elenca-se, entre outras de caráter similar, a invasão, pelas forças armadas de um estado ao território de outro; qualquer ocupação militar, ainda que temporária, resultante de tal invasão; qualquer anexação, pelo uso da força, do território de outro estado ou de parte dele; o bombardeamento, pelas forças armadas, contra o território de outro Estado; o bloqueio de portos ou da costa de um estado pelas forças armadas de outro Estado; um ataque, por solo, mar ou ar, ou contra a marinha ou aeronaves de outro estado; o uso das forças armadas que estejam em território de outro Estado de acolhida, com o consentimento deste, em violação das condições estipuladas no acordo; enviar por, ou em nome do Estado, grupos armados, bandos armados, forças irregulares, para atuar como forças armadas contra outro Estado; e etc. 

No Estatuto de Roma, foram também introduzidos (a) o artigo 15 bis, que estabelece as condições para que a Procuradoria possa iniciar uma investigação sobre o crime de agressão, e (b) o artigo 15 ter, que trata do exercício da jurisdição pelo Tribunal em  relação com o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o qual tem a competência, de acordo com a Carta das Nações Unidas, de declarar a existência de um estado de agressão e, agora, de remeter uma situação e agressão ao Tribunal Penal Internacional.


3.2. Competência temporal


Uma das principais características do sistema do Tribunal Penal Internacional é, sem dúvida, a irretroatividade de sua aplicação, sanando assim dos alegados vícios que tingiam a legalidade do Tribunal de Nuremberg e dos tribunais ad hoc da década de 90.

O artigo 11 do Estatuto de relação aos crimes praticados após a entrada em vigor do Estatuto”. Como visto anteriormente, o Estatuto de Roma entrou em vigor em 1º de julho de 2002.

O parágrafo (1) do mesmo artigo prevê que: 

“se um Estado se torna Parte no Estatuto após a entrada em vigor, o Tribunal poderá exercer sua jurisdição apenas em relação aos crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto nesse Estado, exceto se o Estado fizer uma declaração de acordo com o artigo 12(3).” E o artigo 12(3) estabelece que “se a aceitação (da jurisdição) por parte de um Estado que não seja Parte no Estatuto se fizer necessária, o Estado pode, por meio de uma declaração depositada junto à Secretaria, aceitar a jurisdição do Tribunal em relação ao crime em questão. O Estado aceitante deverá então cooperar com o Tribunal sem demora ou exceção em relação à parte 9 do Estatuto”. 

Esse parágrafo quer dizer, em outras palavras, que um Estado pode aceitar voluntariamente a jurisdição do Tribunal mesmo em relação a fatos ocorridos antes da entrada em vigor do Estatuto para esse Estado.

A garantia da irretroatividade vem ademais prevista no artigo 22(1) do Estatuto, no capítulo que trata dos Princípios Gerais de Direito Penal, segundo o qual “uma pessoa não pode ser criminalmente responsabilizada, sob este Estatuto, a não ser que a conduta em questão constitua, no momento em que foi cometida, um crime sob jurisdição do Tribunal”.

Da mesma forma, o artigo 24(1) deixa novamente expresso que “nenhuma pessoa será criminalmente responsável sob o Estatuto por conduta anterior à entrada em vigor do Estatuto”.

Importante assim ressaltar que, em nenhuma hipótese, o Tribunal pode exercer jurisdição sobre fatos ocorridos antes da entrada em vigor do Estatuto, ou seja, 1º de julho de 2002. Essa regra de jurisdição temporal é absoluta.

Vale por fim lembrar que o artigo 15 ter do Estatuto estabelece uma regra especial de competência temporal para os crimes de agressão. Sobre estes, o Tribunal só poderá exercer sua jurisdição sobre crimes cometidos um ano após a ratificação da Emenda por pelo menos 30 Estados.


3.3. Competência territorial e pessoal


A competência territorial do Tribunal vem prevista, em primeiro lugar, no artigo 12(2)(a) do Estatuto: o Tribunal poderá exercer sua jurisdição sobre crimes perpetrados no território de um Estado Parte, sejam os perpetradores nacionais ou estrangeiros. Essa regra geral não se aplica, entretanto, às situações remetidas ao Tribunal pelo Conselho de Segurança da ONU. Portanto, não é uma regra absoluta. O Conselho de Segurança, no uso de suas competências conferidas pelo Capítulo VII da Carta das Nações Unidas pode, como já o fez, estabelecer Tribunais ad hoc para julgar aqueles acusados de cometer crimes que põem em risco a paz. Da mesma forma, pode remeter ao Tribunal Penal Internacional, nos termos do artigo 13(b) do estatuto, situações em que crimes hajam sido cometidos no território de quaisquer Estados.

No mesmo sentido a competência pessoal prevista no artigo 12(2)(b), o qual confere ao Tribunal jurisdição para processar e julgar crimes cometidos por nacionais de Estados Partes, independentemente de onde os crimes tenham sido cometidos. Esta forma de atribuição de responsabilidade de acordo com a nacionalidade dos perpetradores não suscitou maiores discussões durante a elaboração do Estatuto, por ser forma já reconhecida pelo direito costumeiro e na maioria dos direitos internos dos Estados.

Nesse capítulo sobre a responsabilidade baseada na nacionalidade ativa, cabe lembrar que, de acordo com o artigo 27 do Estatuto de Roma, quaisquer pessoas acusadas de cometer os crimes tipificados pelo Estatuto estão sob a jurisdição do Tribunal, independentemente de exercerem qualquer cargo ou função. O Estatuto não reconhece quaisquer das imunidades conferidas por outros diplomas internacionais a determinados grupos de pessoas.

Por fim, há de lembrar-se que o Tribunal só tem jurisdição sobre pessoas que, à época do cometimento dos delitos, eram maiores de 18 anos, conforme seu artigo 26.

É portanto sobre as bases da responsabilidade penal individual que o Estatuto estabelece suas competências sobre pessoas, (a) por crimes cometidos em territórios de Estados Partes ou em territórios de Estados que aceitem, voluntariamente, a jurisdição do Tribunal, (b)  por nacionais de Estados Partes ou de Estados que aceitem voluntariamente a jurisdição do Tribunal, ou, ainda, (c) sobre quaisquer pessoas que cometam crimes em território de quaisquer Estados desde que a situação seja remetida ao tribunal pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.


4. Composição e administração. presidência. divisões judiciais. gabinete do procurador . secretaria.


A Parte 4 do Estatuto de Roma define a forma de organização do Tribunal.  O artigo 34 define a composição que compreende (a) a Presidência, (b) a Divisão de Apelações, Divisão de Julgamento e Divisão Preliminar, (c) o Gabinete da Procuradoria e (d) a Secretaria.

A Presidência do Tribunal é exercida por um presidente e dois Vice Presidentes, eleitos pelos Juízes para um mandato de três anos, permitida a reeleição. O artigo 38 do Estatuto define as funções da Presidência, entre elas a de representar o Tribunal, a de coordenar os diversos órgãos do Tribunal, e a de designar Juízes para a composição das diversas Câmaras. O Presidente deverá ser um Juiz com assento na Câmara de Apelações.

De maneira geral, o Tribunal é composto por 18 Juízes, de nacionalidades diferentes, que representam os grupos geográficos tal como se veem representados na ONU. Devem demonstrar, no ato de apresentação de suas candidaturas, vasto conhecimento e experiência em matéria penal e processual penal, ou em direito internacional, em especial Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esses Juízes são eleitos pela Assembleia dos Estados Partes para exercerem um mandato de nove anos, não sendo permitida a recondução. A renovação de um terço do quadro de Juízes se faz a cada três anos. Os mandatos podem ser estendidos no caso de o Juiz estar, no momento do término de seu mandato, participando de um julgamento em andamento.

Os Juízes são designados para atuar nas Divisões Judiciais, ou seja, nas distintas instâncias em que opera o judiciário do Tribunal. Assim, são designados para atuar em uma ou mais Câmaras Preliminares, ou numa Câmara de Julgamento. Essas Câmaras são compostas por três magistrados e devem, na medida do possível, refletir a distribuição geográfica, de gênero e de sistemas legais previstas para a composição geral do quadro de Juízes do Tribunal. A Câmara de Apelações, única com composição fixa de cinco Juízes, deve também, na medida do possível, refletir essa diversidade.

Dos Juízes exige o Estatuto a independência e a imparcialidade, conforme artigos 40 e 41, e que se deem por suspeitos se sua imparcialidade puder ser posta em dúvida sob qualquer aspecto. 

O Gabinete do Procuradoria conta com um Procurador, também eleito pela Assembleia dos Estados Partes para um mandato de nove anos, não permitida a recondução. No Gabinete atuam Procuradores Adjuntos, tantos quanto sejam necessários para uma boa administração do Gabinete, e Advogados (lead counsels), que em geral atuam em juízo, cada um designado para comandar uma equipe destinada a levar a cabo um caso. O Gabinete conta com uma Divisão de Cooperação, uma Divisão de Complementariedade e uma Divisão Processual, esta última mais diretamente ligada às investigações e casos em andamento. Conta ainda com equipes de investigadores e peritos, e tem poderes para estabelecer acordos de cooperação com Estados e organizações que possam colaborar nas investigações e na proteção e testemunhas.

A Secretaria do Tribunal conta com um Secretário e um Secretário Adjunto, encarregados da administração do Tribunal. Ambos serão eleitos por voto da maioria absoluta dos Juízes. A Secretaria é ainda encarregada dos serviços controle e aplicação dos recursos financeiros do Tribunal, de serviços de tradução e interpretação, de proteção de vítimas e testemunhas, de logística, de assegurar o perfeito funcionamento dos Gabinetes de Defensoria de Réus (Office of Public Counsel for Defence) e de Defensoria de Vítimas (Office of Public Counsel for Victims). Tem ainda uma Divisão para a Proteção de Vítimas e Testemunhas (Victims and Witnesses Unit). Tem também por função fazer executar os pedidos de cooperação, inclusive para a detenção e entrega dos acusados. Estabelece ainda as regras da detenção imposta aos suspeitos e dos acusados nos Centros de Detenção.

Para Juízes, Procuradores e Secretários o Estatuto prevê diversas regras disciplinares, que podem culminar, de acordo com a natureza da falta, com penas que vão da censura e advertência até a remoção definitiva do cargo (artigo 46). Ao mesmo tempo, e para que possam exercer plenamente as funções inerentes a seus cargos, gozam esses oficiais eleitos de certos privilégios e imunidades (artigo 48), tal como previstos em documentos aprovados pela Assembleia dos Estados Partes.


5. Iniciativa dos procedimentos de investigação 


Os artigos 13 a 16 do Estatuto de Roma, e as Regras 44 a 50 das Regras de Procedimento e de Prova,21 discorrem os diversos mecanismos de acionamento do Tribunal Penal Internacional. Em outras palavras, são os mecanismos de ativação da sua jurisdição, já que o Tribunal só pode iniciar investigações se e quando provocado.

Como regra geral, prevê o artigo 13 que o Tribunal poderá exercer sua jurisdição quando (a) uma situação na qual um ou mais crimes parecem ter sido cometidos é remetida ao procurador por um Estado Parte de acordo com o artigo 14; (b) uma situação na qual um ou mais crimes pareçam ter sido cometidos é remetida ao Procurador pelo Conselho de Segurança atuando sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas; (c) o Procurador iniciar uma investigação a respeito desses crimes de acordo com o artigo 15.

A primeira maneira de ativar-se a jurisdição do Tribunal é através da remessa de uma situação por um Estado Parte, chamada referral. Vem prevista nos artigos 13(a) e 14 do Estatuto de Roma. Convencionou-se que o Estado Parte poderia remeter uma situação relativa a crimes alegadamente cometidos em seu próprio território ou por seus cidadãos, ou cometidos em território de outro Estado Parte, como Estado interessado. A fim de evitar-se remessas levianas, politicamente motivadas ou levianas, foram aprovadas também regras que tentam reduzir esses riscos, entre estas: 

“[...] (i) a exigência de que, na medida do possível, o Estado fornecesse ao Procurador informações e documentos suficientes para servir de ponto de partida para uma futura investigação, o que se tornou o artigo 14(2); (ii) a previsão de que a jurisdição do Tribunal, provocada por uma remessa, não fosse ativada automaticamente, mas somente após uma triagem interna, permitindo-se ao Procurador rejeitar remessas levianas ou outras que não justificassem a sua intervenção, hipótese inserida no artigo 53; (iii) a obrigação do Procurador de notificar os Estados interessados e, se necessário, dar-lhes a oportunidade de efetivamente investigar e processar, o que passou a ser previsto pelo artigo 18.”22 

O segundo mecanismo de ativação da jurisdição do Tribunal, previsto no artigo 13(b), é o da remessa de uma situação pelo Conselho de Segurança. Na sua competência e atribuição de tomar todas as medidas que sejam necessárias para manter e restabelecer a segurança e a paz internacionais, tal como previsto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança pode, se assim o decidir, estabelecer um tribunal ad hoc para uma determinada situação ou, se o preferir, remeter a situação ao TPI. A redação final do artigo e parágrafo, depois de intensas discussões durante a Conferência de Roma, confere ao Conselho de Segurança a possibilidade de remeter uma situação ao Tribunal mesmo se esta se referir a um Estado não Parte, sujeita a remessa apenas ao controle de legalidade, nos termos dos artigos 13(b) e 53 do Estatuto, e às restrições em relação à admissibilidade na forma do já citado artigo 17.

Vale aqui apenas rapidamente lembrar que, de acordo com o artigo 16 do Estatuto, “nenhuma investigação ou procedimento criminal poderá ter início ou prosseguir os seus termos, com base no presente Estatuto, por um período de doze meses a contar da data em que o Conselho de Segurança assim o tiver solicitado por resolução aprovada nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas; o pedido poderá ser renovado pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições”. Tal disposição legal foi e continua sendo bastante criticada.23 

O terceiro mecanismo de ativação da jurisdição do Tribunal, previsto no artigo 13(c) e 15(1) do Estatuto, é a iniciativa do próprio Procurador, que poderá determinar o início de investigações com base em informações e documentos enviados à Procuradoria pelas mais diversas fontes, como pessoas e organizações governamentais ou não governamentais. Ao receber tais informações, cabe ao Procurador analisar a seriedade das informações recebidas, buscar informações adicionais, e mesmo colher testemunhos iniciais no Gabinete. Se entender, ao final, que existem motivos razoáveis que justifiquem a abertura de uma investigação formal, deverá pedir autorização e uma Câmara Preliminar, nos termos do artigo 15(3). É a Câmara de autoriza, ou não, a abertura dessa investigação.

Esse mecanismo foi estabelecido pela Estatuto a fim de criar um sistema de controle da atividade ex officio da Procuradoria, evitando-se, no entendimento das delegações que elaboraram o Estatuto, que o Procurador desse início, por sua própria iniciativa, a investigações politicamente motivadas ou manifestamente infundadas. Havendo fundamentos razoáveis que permitam entender que crimes sob a competência do Tribunal foram cometidos, a Câmara dará autorização para iniciar-se uma investigação (artigo 15(4)). Caso contrário, a Câmara negará tal pedido, nada impedindo o Procurador de voltar a requerer autorização com base em novas provas ou fatos novos (artigo 15(5)).

Em relação ao crime de agressão, a Emenda de Kampala introduziu no Estatuto os artigos 15 bis e 15 ter.

Segundo o artigo 15 bis(4), o Procurador poderá iniciar uma investigação se a agressão for cometida por um Estado Parte que tenha aderido à emenda que introduziu tal crime no Estatuto. Não poderá exercer jurisdição, no entanto, se o Estado depositar uma declaração junto à Secretaria no sentido de não aceitar a jurisdição do Tribunal.  Não poderá o Tribunal exercer sua jurisdição sobre um Estado não Parte exceto se for chamado a fazê-lo pelo Conselho de Segurança da ONU (artigo 15 bis(7) e artigo 15 ter).

A Procuradoria criou, dentro de sua estrutura, uma fase de triagem das centenas de “denúncias”, ou “queixas” que recebe anualmente das mais diversas fontes. Estabeleceu assim um sistema de “exame preliminar” no qual se avalia a competência material prima facie, a admissibilidade e a gravidade dos fatos relatados, antes de tomar a decisão de pedir autorização a uma Câmara Preliminar para iniciar uma investigação. O Relatório anual desse exame preliminar é publicado em dezembro de cada ano, e dá conta das atividades internas do Gabinete do Procurador em relação às informações recebidas nos termos e para os fins do artigo 15.


6. Procedimento judicial 


Como instituição criada por um Tratado – o Estatuto de Roma – o Tribunal tem procedimentos próprios, negociados pelos Estados Partes, previstos não só no próprio Estatuto, mas principalmente no seu anexo das Regras de Procedimento e de Prova, já antes mencionadas. O procedimento é resultado de longas e extensas negociações que tiveram lugar nos anos de 1999/2000, nas quais delegações dos mais diversos Estados, com os mais diversos sistemas jurídicos e práticas legais, faziam valer seus pontos de vista. O resultado é um documento híbrido, ora com características de um sistema, ora de outro, e com disposições não poucas vezes contraditórias entre si, deixando margem assim aos Juízes para a construção de um sistema procedimental que possa, num futuro próximo, constituir-se em regra geral de aplicabilidade por todas as suas Câmaras.

Aqui vamos apenas resumir as principais etapas e características de cada fase procedimental.


6.1. Fase preliminar


A fase preliminar do procedimento é uma inovação do Estatuto de Roma. Não era prevista nos estatutos dos Tribunais ad hoc e sequer reflete o conteúdo de outros sistemas nos quais o procedimento criminal se desenvolve em mais de uma fase.24 

Nos termos do artigo 57 do Estatuto, e de maneira geral, compete às Câmaras Preliminares, além de decidir sobre autorização para início de uma investigação, a expedição, a pedido do Procurador, de mandados de prisão ou ordens de comparecimento. Compete também tomar todas as medidas necessárias para a proteção de vítimas e testemunhas. É a Câmara que autoriza o Procurador a tomar medidas especiais que facilitem a investigação, e expedir pedidos de cooperação aos Estados e organizações para que auxiliem na coleta de provas em auxílio à Defesa. A Câmara, no decorrer da fase preliminar, acompanha a comunicação das provas (disclosure) entre o Procurador e a Defesa, e decide sobre quaisquer incidentes relativos a essa comunicação. Decide ainda, a pedido ou de ofício, sobre a manutenção da prisão do acusado. Também é responsável por ordenar a busca e apreensão ou o congelamento de bens do acusado a fim de garantir futura reparação às vítimas.

Ao final da fase de comunicação de provas, a Câmara Preliminar designa, na forma do artigo 61 e seus parágrafos do Estatuto, a audiência de confirmação das acusações, na qual poderão ser ouvidas testemunhas e serão debatidos, pelas partes e pelas vítimas que participam dos procedimentos, as provas apresentadas. Ao final a Câmara decidirá sobre a confirmação de uma ou mais acusações, sobre a não confirmação de uma ou mais acusações, ou determinará ao Procurador que emende as acusações ou apresente mais provas.25 


6.2. Julgamento e sentença


A fase de julgamento, perante uma das Câmaras de Julgamento, se inicia quando da decisão de confirmação das acusações já não cabe recurso. Vem regulado em diversos artigos do Estatuto, mas especialmente nos artigos 62 a 64.

Para que se inicie e prossiga um julgamento é necessária a presença do acusado. Não há julgamentos à revelia no Tribunal Penal Internacional (artigo 63(1)). O artigo 64 estabelece as normas gerais sobre as quais se desenvolverá todo o procedimento de julgamento. Cabe à Câmara organizar, em primeiro lugar, a forma e modo de apresentação das provas em audiência. A oralidade é a base dos julgamentos perante o TPI, nesse aspecto se assemelhando a um procedimento penal típico do sistema de common law sem, no entanto, haver um júri leigo. Cabe essencialmente à Câmara adotar o procedimento a ser seguido, assegurar a comunicação final de provas entre acusação e defesa, dirimir incidentes sobre essa comunicação de provas, determinar o comparecimento das testemunhas e, quando necessário, a adoção de medidas protetivas processuais ou pessoais.

A Câmara – e aqui se afastando do procedimento típico do sistema de common law, pode, de acordo com o artigo 64(5)(d), “ordenar a produção de quaisquer provas adicionais às apresentadas pelas partes”. Essa Câmara deve, na forma do artigo 21(3) antes mencionado, assegurar que seja aplicado, sempre, “[...] O Princípio 5 dos Princípios Básicos das Nações Unidas sobre a Independência do Judiciário que prevê que: o princípio da independência judicial impõe aos juízes que assegurem que os procedimentos judiciais sejam conduzidos de forma justa e que os direitos das partes sejam respeitados [...]”.26  

O artigo 69 do Estatuto trata do regime de provas e sua admissibilidade, cujo juízo cabe à Câmara.

A fase de julgamento, via de regra, se desenvolve com a apresentação das provas e testemunhas de acusação, seguida da apresentação de provas e testemunhas pelas vítimas autorizadas a participar do procedimento, e por fim a apresentação de provas e testemunhas pela Defesa.

A fase de julgamento culmina com uma decisão na forma do artigo 74 do Estatuto, de absolvição ou condenação do acusado por uma ou mais acusações contra ele trazidas (verdict). A aplicação da pena se dá em momento posterior, haja ou não audiência para oitiva de testemunhas ou apresentação de provas restritas ao montante de pena a ser aplicado, nos termos do artigo 76 (sentencing). A pena deverá ser aplicada levando-se em consideração os fatores previstos na Regra 145 das Regras de Procedimento e de Prova, tais como circunstâncias agravantes ou dirimentes, a conduta do acusado, o abuso de poder, a natureza dos crimes, a extensão dos danos, o cometimento de crimes contra pessoas particularmente vulneráveis ou com a utilização e crueldade, etc.

As penas serão executadas em Estado que tenha estabelecido convênios com o Tribunal para recebimento dos condenados.


6.3. Recursos


O sistema recursal junto à Câmara de Apelações do Tribunal é também um sistema bastante peculiar, e vem descrito especialmente nos artigos 81(1) e (2) - (Apelação contra Sentenças Condenatórias, absolutórias ou de Aplicação da Pena), e 82 (Apelações contra outras Sentenças) do Estatuto de Roma.

No artigo 81 regula-se o procedimento das apelações chamadas “finais”, na medida em que resolvem matéria de direito e de fato relativas ao mérito de uma determinada questão, como a condenação ou absolvição de um réu e a aplicação da pena. A grande diferença entre estas apelações e as demais – que em regra dizem com questões interlocutórias – é a de que as apelações sob o artigo 81 são dirigidas diretamente à Câmara de Apelações, enquanto aquelas baseadas no artigo 82 dependem de autorização da Câmara que proferiu a decisão para que sejam conhecidas pela Câmara de Apelações.

Nos termos do artigo 81(1)(a), o Procurador pode apelar da condenação (que vem regulada pelo artigo 74) sempre que entenda haver (i) erro de procedimento, (ii) erro de fato, ou (iii) erro de direito. Já a Defesa, nos termos do artigo 81(1)(b) pode apelar alegando (i) erro de procedimento, (ii) erro de fato, (iii) erro de direito e (iv) qualquer outro fundamento que afete a justiça ou a credibilidade do procedimento ou da decisão.

Erros de fato e erro de direito vêm descritos no artigo 32 do Estatuto. De acordo com os poucos precedentes que analisaram a matéria, o erro de fato seria, de maneira geral, aquele em que a “[...] Câmara interpretou mal, ou omitiu ou desconsiderou fatos relevantes, se considerou fatos irrelevantes, ou se, de alguma forma, chegou a conclusões desarrazoadas sobre as provas”.27 Para a doutrina, o erro de fato ocorreria quando “[...] a Câmara errou ao chegar a conclusões sobre fatos e o fez contra as evidências que tinha diante de si (...) ou chegou a tais conclusões com base em fatos que tinha diante de si mas não levou em conta outras provas adicionais que punham em dúvida aquelas provas”.28 Já o erro de direito:

“[...] envolve interpretação errônea de lei (...) por exemplo quando a Câmara faz interpretação errada dos elementos dos crimes ou dos modos de responsabilidade dos artigos 25 ou 28 do Estatuto.(...) A decisão se considera materialmente afetada pelo erro de direito se a Câmara Preliminar ou de Julgamento chegaria a uma decisão substancialmente oposta daquela a que chegou se não tivesse havido o erro”.29 

O Procurador e a Defesa podem também apelar se entenderem ser desproporcional o montante da pena em relação ao crime cometido, para aumentá-la ou para reduzi-la. Em caso de absolvição pela Câmara de Julgamento, o réu preso deverá ser imediatamente posto em liberdade, exceto se a Câmara, a pedido do Procurador, entender haver motivos sérios que justifiquem a manutenção do acusado na prisão durante a tramitação do apelo. Essa decisão poderá ser apelada pela Defesa.

Podem ainda apelar a Defesa e as vítimas contra a decisão que estabelece reparações em favor das vítimas.

Nesse quadro, a Câmara de Apelações poderá, nos termos do artigo 83, confirmar, reverter ou emendar a decisão apelada, ou remeter o caso de volta à Câmara de Julgamento para que profira nova decisão. Em caso de apelação contra o montante da pena, a Câmara de Apelações poderá rever a pena proferida e determinar nova pena. O procedimento vem regulado na Regra 154 das Regras de Procedimento e de Prova.

Já  para a apelação de decisões não finais, ou interlocutórias, regula o artigo 82(1) do Estatuto que as partes poderão recorrer de (a) decisões que digam respeito à jurisdição ou admissibilidade do caso; (b) decisões que concedam ou deneguem a liberdade ao acusado; (c) a decisão de Câmara Preliminar em proceder, nos termos do artigo 56(3), à produção antecipada de provas; (d) decisões que envolvam  matéria que possa afetar de forma significativa a justiça e a celeridade do procedimento ou o resultado do processo, e para a qual, na opinião da Câmara prolatora da decisão, uma solução imediata pela Câmara de Apelações possa fazer avançar o procedimento.

A Regra 155 das Regras de Procedimento e de Prova estabelece a tramitação desse tipo de apelações as quais, como dito anteriormente, são interpostas perante a Câmara que exarou a decisão para que esta decida se concede autorização para que o recurso seja dirigido à Câmara de Apelações. 

Como regra, as apelações não têm efeito suspensivo, o qual pode ser concedido a pedido das partes. A tramitação dos recursos vem regulada pelas Regras 156 a 158 das Regras de Procedimento e de Prova.

No caso de decisão sobre reparações as vítimas, por seus representantes legais, são legitimadas a apelar. Nos demais casos, as vítimas podem ser autorizadas pelas Câmaras a manifestar-se e expressar suas opiniões (views and concerns) nas apelações interpostas pelas partes. Da mesma forma, os Estados têm legitimidade para apelar de decisões que digam respeito à jurisdição ou admissibilidade de um caso, nos termos dos artigos 18(4) e 19(6) do Estatuto.30 


6.4. Revisão e compensação


O procedimento de revisão da decisão condenatória ou da que determinou a pena vem prevista no artigo 84 do Estatuto de Roma. A pessoa condenada ou, se se já não estiver viva, seus esposos, companheiros, filhos, pais ou qualquer pessoa que, à época da morte do condenado, tiver sido expressamente incumbido de pedir a revisão da sentença ou da pena poderão dirigir tal pedido à Câmara de Apelações. Os fundamentos admitidos para um pedido de revisão são (a)(i) novas provas, que não estivessem disponíveis à época do julgamento, desde que esta indisponibilidade não tenha sido causada pelo condenado, e (a)(ii) que sejam suficientemente importantes que teriam levado a Câmara de Julgamento a decidir de modo diverso; (b) que provas decisivas que tenham sido descobertas recentemente como sendo falsas, forjadas ou falsificadas; (c) que um ou mais juízes que participaram do julgamento ou da confirmação das acusações cometeram, naquele caso, atos sérios de  má conduta ou graves violações de seus deveres, de gravidade suficiente que justificariam sua remoção do cargo nos termos do artigo 46 do Estatuto.

A Câmara de Apelações poderá, se não rejeitar liminarmente o pedido por inadequação ou improcedência manifesta, reunir a Câmara de Julgamento original, constituir uma nova Câmara de Julgamento ou dar-se por competente para julgar o pedido. Após regular instrução, a Câmara competente decidirá se o julgamento deverá ser revisto.

No seu artigo 85, o Estatuto estabelece que qualquer pessoa que tenha sido sujeita à prisão ou detenção ilegais terá direito a uma compensação. Estabelece, ainda, que uma pessoa que tenha sido condenada, e teve sua condenação revista sob o fundamento de que novas provas, nos termos do artigo anterior, demonstraram que houve erro judiciário na sua condenação, terá direito à compensação pelo sofrimento pelo qual passou. O parágrafo (3) reforça a necessidade de que o erro judiciário seja grave e manifesto.

Já o procedimento para os pedidos de compensação, vêm regulados pelas Regras 173 a 175 das Regras de Procedimento e de Prova. O valor da compensação a ser fixada deverá levar em consideração as consequências do grave e manifesto erro judiciário à pessoa do acusado ou condenado, à sua família, e à sua situação social e profissional.


6.5. Reparações às vítimas


As vítimas dos mais graves crimes, tanto domésticos quanto aqueles que põem em risco a paz e a sobrevivência da humanidade - como são os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional - há muito têm certos direitos reconhecidos pelas instâncias internacionais. Dentre esses direitos, consagram-se o direito à participação efetiva nos processos em que buscam justiça, o direito à verdade, e o direito à reparação.

A título de exemplo, podemos mencionar a Resolução 40/34 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 29 de novembro de 1985, que promulga a Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder, que elenca os direitos das vítimas no âmbito da Administração da Justiça. Entre esses direitos, o de acesso à justiça, o de receber tratamento digno, o direito de proteção, e o direito à reparação.

Essa resolução foi seguida da Resolução 60/47, de 16 de dezembro de 2005, que elabora os Princípios Básicos e Guias sobre o Direito a remédios e Reparações para Vítimas de Sérias Violações do Direito Internacional dos Direitos Humanos e Violações Sérias do Direito Humanitário.

Pelo Estatuto de Roma, as vítimas de crimes sob jurisdição do TPI têm direitos de participação efetiva nas diversas fases do procedimento, na forma prevista no artigo 68(3) e Regras 89 a 93; direito à proteção, nos termos do artigo 698(1) e Regras 87 e 88; e direito à reparação, nos termos do artigo 75 e Regras 94 a 99 das Regras de Procedimento e de Prova.

Por “vítima”, para os fins do Estatuto de Roma, entende-se: 

“[...] (a) as pessoas naturais que tenham sofrido um dano como consequência da prática de delitos de competência do Tribunal; (b) as organizações ou instituições que hajam sofrido danos diretos a alguns de seus bens desde que sejam dedicadas à religião, à instrução, às artes, às ciências ou à beneficência, e seus monumentos históricos, hospitais e outros lugares que tenham fins humanitários”. 

Aqui, nos concentraremos no direito a reparações do artigo 75 do Estatuto de Roma. Mais adiante, sobre a participação destas nos diversos atos do procedimento.

A pioneira decisão no caso Lubanga a respeito de reparações é um marco no sistema de justiça penal internacional31

Estabeleceu que não só as vítimas diretas, mas também as vítimas indiretas têm o direito à reparação. Entre estas, pais e filhos, que sofrem a perda de seus entes queridos, e tal sofrimento é presumido da própria relação familiar e o dano psicológico que sofrem com a morte violenta destes. Além disso, trata das reparações por danos físicos, morais, não materiais, incluindo-se as oportunidades perdidas, como a perda da capacidade de trabalhar ou de gerar filhos. Trata como dano não material, igualmente, a perda da oportunidade de receber educação.32    

Outro interessante precedente da Corte Interamericana citada pelo Tribunal Penal Internacional está na decisão Lubanga já antes mencionada, na qual a Câmara de Apelações reitera o entendimento daquela Corte no sentido de adotar um critério flexível na determinação de quem tenha sofrido danos decorrentes da perda de um ente querido. 

Quanto às modalidades de reparação, a decisão Lubanga adota, quase em sua totalidade, a jurisprudência da Corte Interamericana, no sentido de que são possíveis as reparações individuais – que no caso devem resultar, na medida do possível, na condição das vítimas antes dos fatos terem ocorrido, ter-se em consideração a idade, gênero e condição particular de cada vítima, facilitar a reabilitação das vítimas e sua reintegração às suas famílias e comunidades33. Casos reiterados de reparações individuais foram reconhecidos em relação a vítimas mantidas indevidamente em cárceres, privadas de sua liberdade.34 

Sobre reparações coletivas, a decisão Katanga35 discorreu longamente sobre tal modalidade, tendo por base, em especial, a decisão no caso do Massacre de Plan de Sanchez vs. Guatemala, na medida em que reparações podem ser concedidas a coletividades quando estas conviveram com massacres massivos, ocorrendo vitimização massiva e coletiva36. A decisão proferida pelo TPI no caso Al Mahdi trata de reparações à comunidade pelos danos sofridos com a destruição e monumentos históricos e religiosos.37 

A decisão sobre reparações no Estatuto de Roma vem, como dito acima, regulada pelo artigo 75. É exarada, em regra, pela mesma Câmara que exarou a decisão de condenação do réu, e até mesmo conjuntamente com a decisão condenatória. Mas nada impede uma nova Câmara de Julgamento de ocupar-se da matéria, após o trânsito em julgado da condenação. A Regra 94 das Regras de Procedimento e de Prova regula a forma de as vítimas peticionarem, demonstrarem o dano sofrido e requererem uma ou mais das formas de reparação permitidas – em rol não exaustivo: compensação, reabilitação, restituição de bens ou valores. A ordem de reparação é dirigida ao condenado ou, na hipótese de este ser indigente, ao Fundo de Compensação de Vítimas, órgão estipulado pelo artigo 79 do Estatuto. Tal Fundo (Trust Fund for Victims) recebe os valore relativos aos bens confiscados dos condenados, contribuições dos Estados Partes e de outras organizações governamentais ou não governamentais. 


7. Participação de vítimas 


O Estatuto de Roma estabeleceu um sistema totalmente novo de participação efetiva de vítimas nos atos do procedimento. Até então, o papel das vítimas no cenário internacional havia permanecido na periferia, tendo apenas o papel de testemunhas, de fonte de provas. Em alguns sistemas nacionais, as vítimas poderiam, com restrições, atuar como assistentes da acusação. 

O artigo 68(3) do Estatuto, como mencionamos acima, estabelece que: 

“[...] quando os interesses pessoais das vítimas são afetados, o Tribunal poderá permitir que apresentem suas observações e preocupações, nos diferentes estágios do procedimento e de maneira que não cause prejuízo ou não seja inconsistente com os direitos do acusado e do julgamento justo e imparcial. Essas observações e preocupações podem ser apresentadas pelos representantes legais das vítimas quando o Tribunal julgar conveniente, de acordo com as Regras de Procedimento e de Prova”.

A definição de quem seja “vítima”, para fins de participação, é a mesma acima transcrita a respeito de reparações, e vem prevista no já citado artigo 75 do Estatuto de Roma. As formas de peticionar, de ter representação legal e de participação vêm elaboradas nas Regras 89 a 93 das Regras de Procedimento e de Prova.

A natureza jurídica da participação e vítimas nos diversos atos do procedimento é, a nosso entender, acessória. O protagonismo no processo penal é da acusação e da defesa. Não se confundem com as partes. Têm elas, ao contrário, um direito autônomo de se fazer ouvir, uma vez que é internacionalmente reconhecido o direito de vítimas de crimes, sejam domésticos ou internacionais, de acesso aos Tribunais, à busca da verdade, e à justiça.

O marco na determinação da qualidade de quem seja “vítima” e, portanto, tenha direito à participação nos atos do processo foi dado pela Câmara de Apelações do TPI no caso Lubanga: “vítimas” são aqueles que sofreram danos direitos resultantes da prática de crimes (no caso, as crianças-soldados), os que sofreram indiretamente as consequências do recrutamento dessas crianças – como pais, irmãos, avós, etc. A mesma decisão restringiu bastante, por outro lado, o conceito de “lesões decorrentes dos crimes”, para definir que só podem ser levados em conta os crimes expressamente descritos no documento de acusação e, portanto, objeto do caso.38 

Em um resumo apertado, extraímos de diversos precedentes das diversas Câmaras do TPI as formas de participação já reconhecidas: (a) o direito de acesso a todos os documentos do processo e às provas apresentadas pelas partes, à exceção de documentos confidenciais; (b) o direito de expressas suas opiniões sobre a admissibilidade de documentos e provas; (c) o direito  de interrogar testemunhas das partes, de arrolar testemunhas e de apresentar provas exculpatórias ou incriminantes; (d) o direito de comparecer e acompanhar as audiências, inclusive aquelas realizadas a portas fechadas; (e) o direito de manifestar-se sobre quaisquer questões, exceto as que digam respeito exclusivamente às partes como, a exemplo, o sistema de comunicação de provas entre elas; o direito de petição, de contestação, de réplica, exceto se não previsto no Estatuto e nas Regras. A exemplo, vítimas não têm o direito de recorrer, embora possam ser autorizadas a manifestar-se nos recursos interpostos pelas partes. O direito de recorrer é admitido apenas contra decisões de reparações.

De qualquer forma, a participação, em quaisquer de suas modalidades, deve ser autorizada caso a caso pela Câmara, nos termos do artigo 68(3).

A Secretaria do Tribunal tem Divisões encarregadas de auxiliar as vítimas na apresentação de seus pedidos para participação nos atos do processo (Victims Participation and Reparations Section – VPRS), e a que promove a representação legal das vítimas ou assessoria aos representantes legais por estas contratados (Office of Public Counsel for Victims – OPCV).


8. Garantias penais e processuais 


O artigo 21 do Estatuto de Roma estabelece as fontes de direito aplicáveis pelo Tribunal Penal Internacional. São estas: (a) em primeiro lugar, o Estatuto, os Elementos dos Crimes e as Regras de Procedimento e de Prova; (b) em segundo lugar, quando apropriado, os tratados aplicáveis e os princípios e regras de direito internacional, incluídos os princípios do direito internacional dos conflitos armados; (c) se necessário, os princípios gerais de lei derivados dos sistemas nacionais dos principais sistemas legais do mundo incluindo, se necessário, as leis nacionais dos Estados que teriam jurisdição sobre o crime, desde que esses princípios não sejam inconsistentes com o Estatuto e com o direito internacional e normas reconhecidas internacionalmente.

O parágrafo (3) do citado artigo 21 estabelece que “a aplicação e interpretação da lei de acordo com esse artigo deverá ser consistente com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos [...]”.

Assim, são as normas de direitos humanos internacionalmente reconhecidas não só previstas expressamente, como veremos a seguir, em diversos artigos do Estatuto, mas igualmente por todo o corpo do Estatuto, das regras de Procedimento e de Prova e dos Elementos dos Crimes exige-se a aplicação e interpretação dessas regras de direitos humanos internacionalmente reconhecidas.

Já nos referimos à cláusula da legalidade estrita e a da irretroatividade dos delitos e das penas, expressamente previstas nos artigos 22 a 24. O princípio do ne bis in idem previsto no artigo 20. O princípio da responsabilidade penal individual, com base na culpabilidade, expresso nos artigos 25 e 30 do Estatuto: uma pessoa só pode ser responsável criminalmente se os elementos materiais do crime forem cometidos com intenção e conhecimento. As exigências da independência e imparcialidade judicial, e do julgamento justo, vêm refletidas em diversos dispositivos por todo o corpo do Estatuto. 

O rol de garantias processuais é mais extenso do que aquele previsto na maioria das legislações internas dos Estados. Começa pelas garantias em fase de investigação, previstas no artigo 55 do Estatuto: uma pessoa sendo investigada não pode ser compelida a se auto incriminar; não pode ser sujeita a qualquer tipo de coação; deve ser questionada numa língua que entenda e fale perfeitamente; deve ser informada previamente de que há indícios que a tornam suspeita do cometimento de delitos; tem direito ao silencia; tem direito a ser questionada na presença de um defensor de sua escolha, se assim o desejar.

Cabe às Câmaras Preliminares, no caso de oportunidade única para investigar ou colher provas antecipadamente, nos termos do artigo 56 do Estatuto, determinar a presença de um defensor para a proteção dos futuros direitos da defesa. Quando o suspeito é detido deve ser apresentado imediatamente diante da Câmara Preliminar, sendo dever do Juiz assegurar-se de que o suspeito foi devidamente informado das razões de sua prisão e das condições de sua detenção e entrega ao Tribunal, nos termos do artigo 60(1). O mesmo artigo, em seu parágrafo (4), determina que a Câmara deverá assegurar que a pessoa não fique detida por prazo injustificadamente longo, para isso devendo rever, de ofício, a necessidade da manutenção da prisão a cada 120 dias.

O artigo 67 do Estatuto de Roma elenca um longo rol de direitos dos acusados na fase de julgamento, mas que se estende por todo o procedimento até decisão final. Nos termos do já citado artigo 21(3), o rol de direitos do acusado não é, nem poderia ser, taxativo, já que quaisquer decisões de quaisquer Câmaras devem ser tomadas, sempre, levando em conta os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Assim, e apenas para exemplificar, destacamos do artigo 67(1) os direitos do acusado (a) a ser informado prontamente e em detalhes da natureza, causa e conteúdo das acusações, numa língua que entenda e fale fluentemente; (b) a ter tempo adequado e facilidades para preparar a sua defesa, e a se comunicar livremente com seu defensor; (c) a ser julgado sem atrasos injustificados; (d) a ter assistência legal por defensor de sua escolha e, se não puder arcar com os honorários, a ter esse defensor remunerado pelo Tribunal; (e) a interrogar testemunhas, arrolar suas testemunhas, apresentar provas; (f) se necessário, a ter a presença constante de um intérprete, e traduções das principais peças processuais que assegurem a justiça e a equidade, se não falar uma das línguas oficiais do Tribunal, que são o inglês e o francês; (g) a não ser compelido a confessar ou a testemunhar contra si mesmo, e a ficar em silêncio sendo que esse silêncio não será tomado em consideração para fins da determinação da sua culpa; (h) o direito a depor sem prestar juramento; (i) o direito a não  ser revertido o ônus de qualquer prova.

O parágrafo (2) do artigo 67 impõe ainda, ao Procurador, o dever de comunicar à defesa qualquer prova ou indício que tenha colhido ou que tenha em seu poder, e que possa apontar para a inocência do acusado, mitigar sua culpa ou colocar em dúvida a credibilidade de provas ou testemunhas da acusação. 

Como o artigo 54 do Estatuto, em seu parágrafo (1) impõe ao Procurador o dever de investigar igualmente as circunstâncias e provas incriminatórias e exculpatórias, podemos afirmar, sem dúvidas, que o papel do Procurador é não só o de acusador, mas igualmente o de custos legis, na esteira do acima mencionado artigo 67(2).

Por fim, citamos o artigo 69(7) do Estatuto, o qual dispõe sobre a não admissibilidade de provas coligidas em violação ao Estatuto ou às normas de direitos humanos internacionalmente reconhecidas. Com as críticas de muitas delegações presentes à Conferência de Roma, foram introduzidas nesse parágrafo duas ressalvas: as provas não serão admissíveis se (a) a violação gerar dúvidas substanciais sobre a credibilidade da prova ou (b) a admissão dessa prova for antiética e puder causar danos sérios à integridade do processo. Aguarda-se a formação de uma jurisprudência firme que interprete adequadamente tais ressalvas.


9. Considerações finais


O Tribunal penal Internacional, como mencionado antes, iniciou de fato sua atuação nos idos de 2006. É, portanto, um Tribunal novo, ainda em fase de construção de uma jurisprudência moderna no campo do direito penal internacional, do direito humanitário e do direito internacional dos direitos humanos. 

De seus primeiros casos, todos advindos de remessas feitas por governos de Estados africanos, até a presente data já conta com cerca de dez casos encerrados com condenações, quatro que resultaram em absolvições, e 30 casos em andamento. Destes, 13 estão suspensos em face da ausência dos acusados, já que o Tribunal não julga à revelia. Há neste momento 14 investigações em andamento. Em fase de Exame Preliminar, a Procuradoria se ocupa de 10 situações, oriundas dos mais diversos cantos do mundo.

Muito portanto tem sido feito.

Estabelecido com o objetivo de ser uma Corte retributiva, sem dúvida, na luta contra a impunidade dos autores dos mais graves crimes que põem em risco a paz, a segurança e a sobrevivência da humanidade. Ao mesmo tempo, uma Corte com um forte componente restaurativo, que coloca os interesses das vítimas ao lado dos interesses da comunidade, ao permitir-lhes a ampla e efetiva participação nos atos do processo, na sua busca pela verdade e pela justiça, e o seu direito à reparação.

Pouco conhecido em nosso país, pela falta de literatura nacional e dificuldades no acesso à farta literatura estrangeira – em especial europeia – o certo é que muito se fala e se comenta sobre essa nova instituição, cuja legitimidade vem representada pelos 124 Estados Partes que ratificaram o Estatuto de Roma, e pela riqueza doutrinária e jurisprudencial trazida em seus julgados. 

Enquanto aqui em nosso país ainda se discutem velhos e ultrapassados conceitos de “monismo” e “dualismo”, limites da soberania face a crimes internacionais, legitimidade de Cortes supranacionais, e outros igualmente ultrapassados há muito pelos países mais avançados, essa instituição continuará a ser ignorada pelas universidades e por aqueles encarregados de fazer as leis e de fazê-las cumprir. 

O Projeto de Lei 4.038, de 2008, que (i)implementa os crimes e as penas previstas no Estatuto de Roma, (ii) modifica certas normas processuais para que se adequem à persecução de crimes massivos, e (iii) cria as mais do que necessárias normas que regulam a cooperação de nosso país com o Tribunal, tramita há mais de dez anos. Já aprovada pelas Comissões tanto do Senado como da Câmara, necessita apenas da vontade política para que seja aprovada e promulgada, habilitando assim nosso país a exercer plenamente a jurisdição interna sobre os crimes previstos no Estatuto e, com isso, impedir que em algum dia, em algum momento, possam cidadãos brasileiros virem a ser julgados pelo Tribunal. A capacidade, inclusive normativa, do exercício da jurisdição interna é garantia da cidadania. Falta o legislador compreender o princípio da complementariedade, e assim, atuar.

Notas

1 Ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 4.388, de 25 de setembro de 2002.

2 Ratificadas pelo Brasil e promulgadas pelo Decreto 42.121, de 10 de junho de 1957.

3 Ratificados pelo Brasil e promulgados pelo Decreto 849, de 25 de junho de 1993.

4 Ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto 7.030, de 14 de dezembro de 2009.

5 Ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto 30.822, de 6 de maio de 1952.

6 FERNANDEZ DE GURMENDI, Silvia. O princípio da complementariedade. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p.95

7 EL ZEID, Mohamed M. Artigos 17 a 19. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p.404.

8 Corte Internacional de Justiça, Nottebohn Case (Liechtenstein vs Guatemala) 1953, I.C.J. Reports 7, 119 (21 March). Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

9 ICTY, TADIČ, Dusko, IT-94-1-AR72. Acesso em: . Acesso em 04.02.2022.

10 O artigo 20 do Estatuto de Roma estabelece o princípio do ne bis in idem. Seu parágrafo 3º estabelece que nenhuma pessoa poderá ser julgada novamente pelo tribunal exceto se o julgamento anterior tenha ocorrido com o propósito de subtrair a pessoa à sua responsabilidade, ou não tiver sido conduzido de forma independente e imparcial tal como reconhecido pelo direito internacional, ou tenha sido inconsistente com o propósito de fazer justiça.

11 SALIBA, Aziz Tuffi. Artigo 5: crimes da competência do Tribunal. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p.197.

12 Elements of Crimes, ainda sem tradução oficial para nosso idioma. Official Records of the Assembly of States Parties to the Rome Statute of the International Criminal Court, First Session, New York, 3-10 September 2002,ICC-ASP/1/3 and Corr., Part II B. Emendados na 2010 Review Conference, Official Records of the Review Conference of the Rome Statute of the International Criminal Court, Kampala, 31 May-11 June 2010, RC/11, Part II. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

13 SCHABAS, William. Artigo 6: genocídio. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p.208.

14 Ver decisões da ICJ: Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide, Bosnia and Herzegovina vs. Serbia and Montenegro, Judgment 26 February 2007; Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide, Croatia vs Serbia, Judgment 3 February 2015. Ver, nesta última, a Opinião dissidente do Juiz Cançado Trindade exatamente no ponto referente à necessidade de prova do dolus specialis. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

15 GIL, Alicia. Artigo 7: crimes contra a humanidade. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, pp. 229-230.

16 SCHABAS, William. The international criminal court: a commentary on the Rome Statute, p. 184.

17 DAL MASO JARDIM, Tarciso. Artigo 8: crimes de guerra. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p. 266.

18 POLITI, Mauro. Artigos 8 bis,15 bis e 15 ter. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, pp. 301-302.

19 Por isso chamado de “crime de liderança”, ou seja, só pode ser praticado por quem efetivamente exerça poder e liderança dentro de um Governo.

20 POLITI, Mauro. Artigos 8 bis,15 bis e 15 ter. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p. 302.

21 Rules of Procedure and Evidence, ainda sem tradução oficial para nosso idioma. Official Records of the Assembly of States Parties to the Rome Statute of the International Criminal Court, First Session, New York, 3-10 September 2002. ICC-ASP/1/3 and Corr, Part II A. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

22 SALINAS CERDA, Ania. Artigos 13 a 16: Ativação da jurisdição. Remessa por Estado parte. Iniciativa do Procurador. Remessa pelo Conselho de Segurança da ONU. Suspensão da investigação ou procedimento. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p. 362.

23 SALINAS CERDA, Ania. Artigos 13 a 16: Ativação da jurisdição. Remessa por Estado parte. Iniciativa do Procurador. Remessa pelo Conselho de Segurança da ONU. Suspensão da investigação ou procedimento. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, pp. 383-385.

24 Chamamos a atenção para a tradução oficial do artigo 57 do Estatuto de Roma ao português do Brasil, na medida em que essa tradução, copiada da versão publicada em Portugal, se refere a “Juízo de Instrução” quando não há nenhuma semelhança entre as funções das Câmaras Preliminares no TPI e os mais diversos Juízos de Instrução existentes em alguns países europeus. Por isso sugerimos a tradução mais próxima das expressões contidas nas versões oficiais do Estatuto em inglês (Pre Trial Chamber), e em Francês (Chambre Préliminaire).

25 Confirmation of Charges Hearing. Se assemelha, de certa forma, ao procedimento inicial para processo e julgamento dos crimes de competência do Tribunal do Júri em nosso sistema processual. A decisão ao final dessa fase do processo será semelhante à de pronúncia ou impronúncia do acusado.

26 TRIFFTERER, Otto; AMBOS, Kai. The Rome Statute of the international criminal court: a commentary, 2016, p. 1652.

27 GUARIGLIA, Fabricio; BRADY, Helen. Artigo 81: apelação da sentença condenatória ou absolutória ou a penal. SALINAS CERDA, Ania. Artigos 13 a 16: Ativação da jurisdição. Remessa por Estado parte. Iniciativa do Procurador. Remessa pelo Conselho de Segurança da ONU. Suspensão da investigação ou procedimento. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p. 1256.

28 TRIFFTERER, Otto; AMBOS, Kai. The Rome Statute of the international criminal court: a commentary, 2016, p. 1934.

29 GUARIGLIA, Fabricio; BRADY, Helen. Artigo 81: apelação da sentença condenatória ou absolutória ou a penal. SALINAS CERDA, Ania. Artigos 13 a 16: Ativação da jurisdição. Remessa por Estado parte. Iniciativa do Procurador. Remessa pelo Conselho de Segurança da ONU. Suspensão da investigação ou procedimento. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, p. 1257.

30 Sobre o procedimento completo de cada uma das espécies de apelações, ver NERLICH, Volker.  Artigo 82: apelações de outras decisões. Artigo 83: procedimento nas apelações. SALINAS CERDA, Ania. Artigos 13 a 16: Ativação da jurisdição. Remessa por Estado parte. Iniciativa do Procurador. Remessa pelo Conselho de Segurança da ONU. Suspensão da investigação ou procedimento. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma, pp. 1281-1296. 

31 Prosecutor vs Thomas Lubanga Dyilo, ICC-01/04-01/06-3379-Red-Corr. Disponível em:. Acesso em 04.02.2022.

32 Idem, para. 40, citando Massacre de Las Dos Erres vs. Guatemala, para. 226; Velázquez Rodrigues vs. Honduras, paras. 156, 175 e 187; Garrido e Baigorría vs. Argentina, para. 49; Massacre de Plan de `Sanchez vs. Guatemala, paras. 80-89 e 117; Instituto de Reeducação Juvenil vs. Paraguay, para. 295; El Amparo vs. Venezuela, para. 28-30; Loaysa Tamayo vs. Peru, paras. 147-148; Cantoral Benavides vs. Peru, para. 80; Barrios Altos vs. Peru, para. 42.

33 Idem, paras.67-, citando Barrios Altos vs. Peru.

34 Situation in the Democratic Republico of Congo, ICC-01/04-101, para. 146, citando Neira Alegría vs, Peru, para. 56; Garrido e Bigorría vs Argentina, para. 49. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

35 Prosecutor vs Germain Katanga, ICC-01/04-01/07-2288, 16 July 2010. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

36 Decisão Lubanga, cit., ICC-01/04-01/06-3129, para. 166. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

37 Prosecutor vs Ahmad Faqi Al Mahdi, ICC-01/12-01/15-236, 17 August 2017. Appeal ICC01/12-01/15-259A, 9 March 2018. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

38 Prosecutor vs Thomas Lubanga Dyilo, Appeals Chamber, ICC-01/04-01/06-OA9 and OA10, 11 July 2008. Disponível em: . Acesso em 04.02.2022.

Referências

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EL ZEID, Mohamed M. Artigos 17 a 19. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp.403-435. 

FERNANDEZ DE GURMENDI, Silvia. O princípio da complementariedade. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp.95-112. 

GIL, Alicia. Artigo 7: crimes contra a humanidade. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp.229-262. 

GUARIGLIA, Fabricio, e BRADY, Helen. Artigo 81: apelação da sentença condenatória ou absolutória ou a penal. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp.1249-1261. 

NERLICH, Volker.  Artigo 82: apelações de outras decisões. Artigo 83: Procedimento nas Apelações. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp. 1281-1296. 

POLITI, Mauro. Artigos 8 bis, 15 bis e 15 ter. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp.301-318.

SALIBA, Aziz Tuffi; VASCONCELOS LIMA, Humberto A. Artigo 5: crimes da competência do Tribunal. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp.197-202.

SALINAS CERDA, Ania. Artigos 13 a 16: Ativação da jurisdição. Remessa por Estado parte. Iniciativa do Procurador. Remessa pelo Conselho de Segurança da ONU. Suspensão da Investigação ou Procedimento. Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020, pp.357-401. 

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STEINER, Sylvia; BRANT, Leonardo Nemer Caldeira (coord). Tribunal Penal Internacional: comentários ao Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord.). Belo Horizonte: D’Plácido/Konrad Adenauer Stiftung, 2020.

TRIFFTERER, Otto; AMBOS, Kai. The Rome Statute of the international criminal court: a commentary. 3. ed. Munchen: C.H. Beck, Hart, Nomos, 2016.

Citação

STEINER, Sylvia Helena. Tribunal Penal Internacional . Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Humanos. Wagner Balera, Carolina Alves de Souza Lima (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/515/edicao-1/tribunal-penal-internacional-

Edições

Tomo Direitos Humanos, Edição 1, Março de 2022

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