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Direito das pessoas com deficiência
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Luiz Alberto David Araujo
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Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017
O tema dos direitos da pessoa com deficiência, especialmente no Brasil, ainda merece atenção especial. Essa anotação se deve pelo fato de o Poder Judiciário, muitas vezes – e mesmo a Administração Pública – deixar de aplicar a legislação já existente ou, quando o fazem, dão a ela, legislação, pouca efetividade. O verbete pretende anotar uma breve evolução constitucional e, em seguida, trazer o papel da Convenção da Organização das Nações Unidas (“ONU”) sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência que, até o momento, foi o único documento aprovado na forma do artigo quinto, parágrafo terceiro, da Constituição Federal. Que efeitos tal norma provocou no sistema brasileiro e como ela tem sido vista, até o momento, pelos aplicadores do Direito? Assim, partindo da Constituição anterior, que trouxe a primeira e mais clara evidência de interesse na proteção desse grupo, chegamos a 1988. E, em seguida, chegamos a 2008 e 2009, quando o processo de internalização se findou. E, passados mais de 07 (sete) anos, que efeitos a Convenção tem provocado e como caminha a legislação ordinária, que deve respeitar, é claro, os vetores da Constituição (e da Convenção). Inicialmente, falaremos do grupo “pessoas com deficiência”; em seguida, dos direitos.
1. A Constituição Federal anterior
O termo utilizado pelo constituinte de 1967, para tratar do tema, foi “excepcional”. Cuidava da educação e se referia a uma pessoa “excepcional”. Houve, no entanto, uma Emenda Constitucional, numerada como 12, que procurou trazer novos direitos, reconhecendo esse grupo e lhes garantindo alguns direitos. O termo utilizado era “deficiente”.
A emenda, no entanto, acabou ficando ao final do texto constitucional. Não foi como outras, que foi incorporada ao texto, com alterações. Ficou segregada, mostrando bem como se via o grupo naquele tempo. Ao final do texto, portanto, aparecia a Emenda Constitucional 12. Não foi “diluída” no texto mantendo-se, ao final, segregada. Essa segregação era a tônica da época.
2. A Constituição de 1988 e seus primeiros momentos
A utilização da expressão “deficiente” já não era adequada. O termo trazia a ideia de “falta”, de “defeito”, de incompletude, o que era adequado a um Estado Democrático de Direito. A expressão usada, portanto, foi “pessoa portadora de deficiência”. Para os moldes de 1988, a terminologia está mais do que adequada. No entanto, com o advento da Convenção da ONU, que falaremos a seguir, a expressão correta passou a ser “pessoa com deficiência”. E isso porque a pessoa não “porta” uma deficiência. As deficiências não são portáveis. Assim, a expressão adequada é “pessoa com deficiência”, nos termos da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi incorporada ao texto constitucional por força do Decreto Legislativo 186/2008 e pelo Decreto 6.949/2009.
Devemos fazer justiça ao texto de 1988. Tratava da igualdade formal, repetindo a norma em diversos momentos. E, em relação ao grupo de pessoas com deficiência, o texto cuida especialmente no campo do trabalho. Além da regra geral da igualdade, constante no artigo quinto, pode-se identificar a especificidade do texto no artigo sétimo, inciso XXXI, quando proíbe discriminação na contratação da pessoa com deficiência para o trabalho.
Assim, além da igualdade geral, já garantida no artigo quinto, a igualdade específica, digamos assim, também vem reforçada, no referido dispositivo.
Outros pontos da Constituição foram destinados à proteção desse grupo que, segundo o último Censo no Brasil, correspondem a 23,9% (vinte e três vírgula nove por cento) da população brasileira. Ou seja, quase 01 (um) em 04 (quatro) brasileiros tem alguma deficiência, índice que justifica, de per si, uma atenção especial do constituinte e dos legisladores infraconstitucionais.
A educação desse grupo vulnerável também recebeu tratamento especial, como se nota do art. 208, inciso III; o mesmo se diga da assistência social, conforme dispõe o art. 203, inciso IV.
Se os direitos foram garantidos de forma clara pela Constituição, garantindo a igualdade, ficou clara a necessidade de proteção desse grupo por uma igualdade material. Aponta-se, então, o art. 37, inciso VIII, que garante a reserva de vagas para as pessoas com deficiência nos empregos e cargos públicos.
Pelo dispositivo, há que reservar vagas em concursos públicos e empregos públicos. E a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendeu que não se pode, a priori, privar determinado grupo de competir, em razão de sua deficiência. O exame da capacidade deve ser anotado caso a caso, no momento da inscrição. Portanto, uma exclusão apriorística já foi vedada pela Corte Suprema.
Se houve cuidado com a igualdade material no caso, ela também se manifesta quando é deferido o direito de um salário mínimo à pessoa com deficiência (e ao idoso) que não tiver condições de se sustentar e nem de ser sustentado por sua família nos termos da lei.
Assim, podemos anotar dois dispositivos que garantem a igualdade material, reserva de vagas e salário mínimo vital, ambos presentes em nosso sistema.
Certamente, outro ponto que merece destaque é a acessibilidade. Não se pode falar em proteção das pessoas com deficiência sem que esteja garantida a acessibilidade. Ela é um direito fundamental instrumental, ou seja, ela é a garantia de que outros direitos poderão ser exercidos. Por isso, seu caráter instrumental. Como garantir o direito à saúde se a pessoa com deficiência não pode chegar sequer ao seu médico ou ao hospital por inacessibilidade? Como garantir o direito ao trabalho se a empresa não é acessível e nem o meio de transporte é acessível?
Assim, tal direito se reveste de um caráter de fundamentabilidade instrumental. Sem ele, outros direitos não poderão ser exercidos. Ou seja, ele instrumentaliza o exercício de outros direitos.
A acessibilidade veio garantida no texto de 1988 pelos dispositivos do art. 227, § 2º, e do art. 244.
3. A Constituição de 1988 e o documento aprovado com força constitucional, a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
A inclusão do parágrafo terceiro do artigo quinto da Constituição Federal, permitiu que os instrumentos internacionais de Direitos Humanos pudessem ser recebidos no sistema nacional com status de emenda à Constituição. Isso se deu por força de uma mudança constitucional, permitindo, portanto, que tivéssemos ingressos normativos com categoria equivalente à uma emenda à Constituição. Portanto, a partir de 2004, com a Emenda Constitucional 45, o País já poderia incorporar tratados e demais instrumentos internacionais na forma prevista pelo novo parágrafo. Foi dentro dessa possibilidade, que foi aprovada a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O Decreto Legislativo 186/2008 e o Decreto 6.949/2009, como já mencionado, foram os instrumentos que viabilizaram a internalização da Convenção. Por enquanto, é o único documento aprovado com tal característica.
Verificamos, desde logo, que a Convenção da ONU mencionada trata do tema utilizando-se a expressão “pessoa com deficiência” e não “pessoa portadora de deficiência”, como constava do texto original da Constituição. Por tal razão, a expressão constitucional correta, após a incorporação da Convenção, é “pessoa com deficiência”. Certamente, termos como “deficiente”, “pessoa com necessidades especiais” não devem mais ser utilizados, já que há nomenclatura adequada, recente e objeto de preocupação da ONU para tanto. O Governo Brasileiro cuidou de preparar diversos instrumentos com comentários à nova Convenção.
Inegavelmente, de todas as novidades trazidas pela referida Convenção, que agora complementa, com mesmo status, a Constituição da República Federativa do Brasil, a mudança do conceito de pessoa com deficiência foi a mais importante. O modelo médico foi deixado de lado, porque era insuficiente e, em alguns casos, injusto. Inegável que a definição da pessoa com deficiência a partir de um exame médico era mais prática e mais ágil. No entanto, há outros elementos que foram trazidos pela referida Convenção, que exigem um cuidado maior, tornando o modelo anterior superado e simplista. Há necessidade de verificar o ambiente onde vive a pessoa, que dificuldades ela terá, que barreiras vai enfrentar. Não somente a aferição médica se tem ou não uma falta, um problema que pode ser aferido pelo médico. Assim, esse novo modelo, já está integrado ao sistema normativo brasileiro. Laís de Figuerêdo Lopes, em Novos Comentários, cuidou de bem sintetizar a nova diretriz que, agora, é constitucional:
“A contribuição da Convenção é representada pelo modelo social de direitos humanos que propõe que o ambiente é o responsável pela situação de deficiência da pessoa, sendo que as barreiras arquitetônicas, de comunicação e atitudinais existentes é que impedem a sua plena inclusão social, razão pela qual devem ser Artigo 1 Propósito 27 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (versão comentada) removidas. O novo modelo social determina que a deficiência não está na pessoa como um problema a ser curado, e sim na sociedade, que pode, por meio das barreiras que são impostas às pessoas, agravar uma determinada limitação funcional. Dessa forma, na concepção de novos espaços, políticas, programas, produtos e serviços, o desenho deve ser sempre universal e inclusivo, para que não mais se construam obstáculos que impeçam a participação das pessoas com deficiência”.2
Referido modelo médico dá espaço a um novo tratamento do tema da pessoa com deficiência, onde são consideradas as barreiras arquitetônicas, atitudinais e de comunicação existentes, suas possibilidade e habilidades para o convívio social.
Evidente que o texto convencional vai muito além, trazendo normativas de grande riqueza para o tema e que não serão tratadas, por falta de espaço, neste breve trabalho. Alguns pontos, no entanto, mereceriam atenção. Há regra de não retrocesso, determinando que havendo legislação mais favorável ao tema da inclusão da pessoa com deficiência, esta bloqueia a atuação da Convenção. Ou seja, havendo no país norma mais favorável, a Convenção não prevalece. O artigo 4, inciso 4, da Convenção determina que “[n]enhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado (...)”.
Portanto, não é correto afirmar que a Convenção vincula a legislação ordinária futura. Essa é uma de suas funções. No entanto, para determinados temas, ela tem aplicação imediata e interferência direta na ordem jurídica nacional.
A regra de proteção ao sistema nacional vigente, em caso de maior proteção, é um exemplo claro dessa eficácia imediata e clara. O próprio novo conceito de pessoa com deficiência já traz diversas outras consequências imediatas. Mudando do modelo médico para o modelo social, o sistema deve se ajustar com velocidade. Essa velocidade, no entanto, não tem encontrado eco em alguns órgãos do Poder Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça editou, sobre o tema, duas súmulas: a primeira, em 2009, quando já aprovada pelo Brasil a referida Convenção (mas ainda não internalizada), a Corte edita a Súmula 377, afirmando que a visão monocular seria motivo suficiente para a participação de pessoa com deficiência nas vagas reservadas para concursos públicos. Se ainda não estava em plena vigência, o documento internacional, depois incorporado ao sistema brasileiro, já sinalizava o novo modelo. Modelo, aliás, não acatado pela Súmula em comento.3 A Súmula foi editada em 22.04.2009, como consta do sítio do Superior Tribunal de Justiça. Nesta data, o documento internacional já havia sido assinado pelo Brasil, já havia o Decreto Legislativo especial, que fora aprovado na forma de uma emenda à Constituição, pelo Congresso Nacional. Portanto, há havia todos os sinais de que o documento seria internalizado (já havia sido assinado, já havia sido ratificado pelo Congresso Nacional, e já havia sido editado o Decreto Legislativo 186/2008). E em seguida, foi baixado o Decreto 6949/2009. Entre a aprovação do Congresso e a promulgação do Presidente da República, a Súmula, que contraria os dizeres da Convenção, foi editada. E até agora, não foi revogada pela Corte. Pela Súmula 377, verifica-se que apenas o aspecto médico foi considerado, modelo antigo, já superado pela referida Convenção. A situação se agrava quando, já em plena vigência da Convenção, foi editada a Súmula 552 do Superior Tribunal de Justiça, afirmando que a surdez unilateral não seria motivo para o ingresso em concurso público nas vagas reservadas às pessoas com deficiência. A Súmula tem como data “04.11.2015”. E desconsidera o novo conceito de pessoa com deficiência, batendo-se, apenas, no aspecto médico. Ao menos, desta feita, a Corte utilizou a expressão mais adequada, “pessoa com deficiência”. Na Súmula anterior, 377, o termo utilizado foi “deficiente”, que era usado antes de 1988, Ou seja, pré-Convenção e pré-Constituição, revelando o pouco cuidado com o tema.
Provavelmente, essa dificuldade que o Superior Tribunal de Justiça encontrou para lidar com o tema pode ser explicada adiante. Há um distanciamento do tema e isso colabora para a não aplicação adequada dos termos da Convenção da ONU, assim como outros tantos direitos básicos das pessoas com deficiência.
4. O Estatuto da Pessoa com Deficiência ou a Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência: a Lei 13.146, de 6 de julho de 2015
Com a grande mudança trazida pela Convenção da ONU, especialmente no que tange ao conceito de pessoa com deficiência, havia necessidade de ajuste das normas brasileiras (e de um novo pensamento que deveria permear as decisões judiciais). A modificação, como já dissemos, teve nível constitucional. No entanto, havia ainda muito dificuldade de se entender – e ainda há – as novidades já incorporadas no sistema normativo brasileiro.
Assim, o Congresso Nacional elaborou o Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência. A ideia de um Estatuto ou de uma Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência foi a de aplicar, de forma mais direta, os ditames convencionais que, vez ou outra, podem aparecer genéricos de baixa eficácia. Portanto, para detalhar tais comandos, foi elaborada a normativa.4
O art. 127 determinou uma vacância de 180 (cento e oitenta) dias. E o art. 121 cuidou de proteger situações já consolidadas, aplicando-se a norma mais protetiva para a pessoa com deficiência.5 Na verdade, é uma extensão, mais detalhada, da regra Convencional do artigo quarto, 4 (aplicação mais benéfica da legislação existente).
A nova lei provocou (e provoca) uma grande polêmica. Na verdade, quem se deparou com novidades em relação à lei não havia ainda lido a Convenção da ONU. A lei segue o caminho da Convenção, norma de hierarquia superior. E não poderia ser diferente. A Convenção foi aprovada com status de emenda à Constituição. E, sendo assim, nada mais adequado do que dar cumprimento à Constituição. Se houvesse alguma objeção, deveria ela ter sido manifestada quando da aceitação da Convenção, o que não ocorreu, tendo sido ela aplicada na forma do parágrafo terceiro, do artigo quinto.6
Se havia no Poder Judiciário uma ideia arrigada de perícia para detectar eventual deficiência a partir de um exame médico, tal situação já deve ser modificada. A lei deixa claro que deverá haver uma equipe multidisciplinar.
O Código Civil sofreu modificações diante dos termos da Convenção e da Lei posterior.
O art. 1771 do Código Civil, que determina o processo de curatela, deixa claro que o juiz deverá ser assistido por uma equipa multidisciplinar. E a razão disso está no artigo seguinte, ou seja, o art. 1772, que reza que o juiz determinará as potencialidades da pessoa, os limites da curatela. Ou seja, o juiz não tem condições técnicas de decidir sem o apoio de uma equipe técnica multidisciplinar. O juiz, por mais boa vontade que tenha, não tem formação de terapeuta ocupacional, fisioterapia, medicina, psicologia, além de outras tantas. A pessoa no processo tem direito de ser analisada diante de todas as possibilidades, para que possa ter seu potencial descoberto pelo Poder Judiciário. A decisão pela incapacidade plena ou não é mais fácil, mais rápida e mais prática. Mas não atende aos requisitos da Convenção e nem tampouco da lei. Pode determinada pessoa, com limitações intelectuais, fazer pequenas compras na padaria, por exemplo? Pode contratar pequenos serviços quotidianos como a lavagem de uma camisa em uma lavanderia? Pode negociar com limites de valores? Essas respostas podem dar uma autonomia muito grande a determinados grupos de pessoas. E, com tal autonomia, elas poderão criar suas próprias rotinas, que podem ou não ser ajudadas por suas famílias. No entanto, ao decidir pelo “sim” ou pelo “não”, como ocorreria na maioria dos casos, as potencialidades se esvaem. E o indivíduo perde seus direitos. A nova perícia, mais custosa, mais difícil, mais sutil deve atender a todos esses aspectos. Claro que há casos em que as potencialidades não aparecerão. Nesses casos, inegável que estaríamos diante de uma restrição geral. No entanto, há que averiguar caso a caso. É a nova regra constitucional!
Há institutos como a tomada de decisão apoiada, prevista no art. 1783-A do Código Civil, onde a pessoa escolhe alguém de sua confiança para ajudá-la a tomar determinadas decisões. Assim, com o apoio de familiares, amigos, a pessoa com deficiência poderá se sentir mais segura para permitir o exercício de suas potencialidades.
Há, no entanto, na referida norma ordinária determinados pontos que merecem destaque, especialmente, pelo seu caráter instrumental.
Evidente que o tema da acessibilidade toma relevo, já que sem esse direito dificilmente se conseguirá qualquer objetivo de inclusão social.
A lei, dando especificidade à Convenção, cuidou da acessibilidade no Título III, a partir do art. 53. O capítulo primeiro cuida das disposições gerais; o capítulo segundo, trata do acesso à informação e a comunicação, deixando claro que não se está falando apenas de acessibilidade física; o capítulo III fala de tecnologia assistiva e, por fim, o capítulo IV, trata do direito de participação na via pública e política, deixando claro, portanto, que tal direito é uma decorrência da acessibilidade. Portanto, sem acessibilidade, não há participação política e nem na vida pública. Trata-se, como já anotado, de direito fundamental instrumental.
No entanto, o legislador conhecedor das resistências, especialmente, diante da dificuldade de cumprimento do Poder Público de normas que deveriam ser de cumprimento rotineiro, alterou a Lei de Improbidade, para acrescer um dispositivo mais caracterizador da improbidade. Assim, pelo art. 103 da referida Lei 13.146, foi incluído mais um comportamento que se caracteriza como improbidade administrativa: deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação
Desta forma, a ideia foi envolver a Administração Pública de forma bastante forte no processo de inclusão.
5. Uma tentativa de diagnóstico do quadro não inclusivo
Ora, como vimos, foi necessária a alteração da legislação para que – caracterizada como improbidade- a falta de acessibilidade fosse combatida. Há tantos casos de negativa de cidadania para esse grupo.
Provavelmente, a causa esteja no desconhecimento dos problemas desse grupo vulnerável. E, havendo desconhecimento, não haveria cumprimento de regras que são elementares.
Por tal razão, reveste-se de grande importância a inclusão escolar. Desde pequenos, os alunos vão conviver com colegas com deficiência (ou com outras “diferenças”). A escola deve acolher pessoas com deficiências e pessoas sem deficiências, para que convivam, conheçam os problemas uns dos outros, ajudem-se reciprocamente. A escola especial não ajuda, enquanto espaço único, a inclusão das pessoas com deficiência. É preciso que todos conheçamos as realidades dos grupos. Quais são seus problemas, quais as barreiras que encontram na escola, para que possamos saber e tentar cuidar de eliminar os problemas que poderiam estar presentes. A escola comum, partilhada, é o ambiente adequado.
Não foi sem razão que a Lei cuidou de inserir o art. 28 e seu parágrafo primeiro, que determina que as escolas, públicas ou privadas, não podem vedar a matrícula de pessoa com deficiência e nem cobrar a mais por tal característica.
Essa regra é um comando inclusivo claro. O Estado brasileiro determina que todos sejam recebidos na escola, pública ou privada. E que a escola não cobre nada pelos custos eventuais de uma criança com deficiência.
Esse dispositivo, no entanto, foi impugnado por uma ação direta de inconstitucionalidade. Pretendiam, os autores, que fosse reconhecida a inconstitucionalidade da norma, pois estaria ferindo o direito de propriedade dos donos das escolas privadas. Acreditavam que a regra era saudável para as escolas públicas, mas não para as privadas, que não poderia sofrer a ingerência do Estado. O pleito tinha como autor uma confederação de escolas de ensino privado. A ação (ADI 5357) foi julgada improcedente por 9 dos 10 Ministros presentes na sessão, que acolheram o voto do relator, Min. Edson Fachin. Aliás, a Corte converteu o pedido ratificação da negativa de liminar em julgamento definitivo, como faculta a lei processual. O tema estava tão maduro para decidir que não houve necessidade de maiores reflexões. E a ação foi julgada improcedente, com belíssimos votos dos Ministros da Corte. Como a decisão tem efeito vinculante, esse valor, que já permeava a Constituição, a Convenção e a lei ordinária, passou a obrigar o Poder Judiciário como um todo e a Administração Pública em todos os seus níveis. Recomenda-se a leitura dos votos dos Ministros, especialmente, o voto do Relator, que fala do direito à diferença e do direito de conviver com a diferença, compondo um conjunto que propicia o crescimento da sociedade e a abertura para o acolhimento de tantas diferenças.7
Notas
1 Conforme <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/ convencaopessoascomdeficiencia.pdf> e <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/ publicacoes/convencao-sdpcd-novos-comentarios.pdf> (consultas em 04 de fevereiro de 2017, 06:00).
2 FERREIRA, Laíssa da Costa (coord.). Convenção da ONU sobre o direito das pessoas com deficiência. Novos comentários, pp. 26-27.
3 Súmulas do Superior Tribunal de Justiça, in: <http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf>, (consulta em 04 de fevereiro, 6:30 horas).
4 Uma palavra ainda sobre a referida Lei. Muitos acabam chamando a lei de “Lei Brasileira da Inclusão”. O nome está equivocado. Primeiramente, porque não é assim que está publicada a referida lei. Ao chamarem a lei de Lei Brasileira da Inclusão, deixa-se de considerar que há tantos grupos ainda a serem incluídos. A relação é extensa. O tema da pessoa com deficiência é um deles. Mas há muita gente a incluir. E restringir a lei a um grupo apenas é discriminar (ainda uma vez), apesar das boas intenções de todos.
5 “Artigo 121- Os direitos, os prazos e as obrigações previstos nesta Lei não excluem os já estabelecidos em outras legislações, inclusive em pactos, tratados, convenções e declarações internacionais aprovados e promulgados pelo Congresso Nacional, e devem ser aplicados em conformidade com as demais normas internas e acordos internacionais vinculados sobre a matéria.
Parágrafo único: Prevalecerá a norma mais benéfica à pessoa com deficiência”.
6 Esta observação não significa que a lei não possa ser melhorada e, em muitos casos, ter sua redação melhorada. No entanto, sua teleologia segue exatamente os termos da Convenção, norma de hierarquia superior, como vimos.
7 Cf. STF, ADI 5357.
Referências
ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas com deficiência. 4. ed. Brasília: Corde, 2011.
BRASIL. Súmulas do Superior Tribunal Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf>.
FERREIRA, Laíssa da Costa (coord.). Convenção da ONU sobre o direito das pessoas com deficiência. Novos comentários. Brasília: Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos-SDH-Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2014.
SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
Citação
ARAUJO, Luiz Alberto David. Direito das pessoas com deficiência. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/51/edicao-1/direito-das-pessoas-com-deficiencia
Edições
Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1,
Abril de 2017
Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2,
Abril de 2022
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