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Liberdade
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Alfredo Attié Júnior
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Tomo Direitos Humanos, Edição 1, Março de 2022
Liberdade, liberdade
Abre as Asas sobre nós1
Ó Abre Alas
Que eu quero passar2
A liberdade é um dos principais anseios humanos, por um lado, é um de seus mais importantes atributos, por outro. No jogo entre anseio e atributo, os pensadores das humanidades têm se debruçado sobre a palavra, a definição, o conceito, a categoria e a experiência humanas, buscando engendrar um modo de constituir a liberdade que sirva a vários dos saberes e práticas da vida em sociedade.
No presente artigo, vou defender uma concepção de liberdade mais próxima da realização de uma experiência efetivamente livre, no direito e na política.
O conceito que proporei diz respeito à conjugação de dois termos relevantes para compreender as paixões e ações em relação ao espaço comum de existência. Tais termos são poder e desejo.
Antes de formular tal conceito, buscarei mostrar a configuração do espaço político como expressão da democracia e daquilo que denomino de demoepitimia. Associarei, igualmente, a política da cidadania, demonstrando como se conjugam com a experiência da cidade antiga e contemporânea.
Início pela discussão das possibilidades de uma enciclopédia da política e da liberdade, relacionando tais termos ao projeto de uma humanidade plural e diversa, mas, ao mesmo tempo, livrem igual e aberta, para além de apenas solidária, sobretudo à solicitude e cuidado.
Dedico a presente construção teórico-prática às crianças e aos jovens, que são gerações futuras no presente, em relação aos quais nosso compromisso deve ser reiteradamente assumido, no sentido de uma constituição verdadeiramente cidadã e responsável pelos outros e pela natureza.
1. Liberdade
Construir uma enciclopédia é um dos maiores desafios da humanidade. Isso porque o saber tornado enciclopédico expõe um paradoxo, que é o de guardar todo o conhecimento humano em um objeto material – livro, servidor, nuvem de dados -, sendo, todavia, o conhecimento considerado infinito, portanto, incapaz de ser definido nem colecionado de modo definitivo, encerrado como um desses objeto que guardamos numa estante, para ser retirado a qualquer instante, talvez no fundo de um baú, que pode ser aberto para que o consultemos sempre que preciso. Essa indefinição do saber é resultado da liberdade humana, que é tão extraordinária em sua extensão, que nos permitiu pensar o zero e o infinito.3 Zero4 e infinito não são limites, como dois termos de uma escala, mas precisamente sinais que expressam a ausência de limites, produtos da imaginação, postos como desafios para a existência humana.
Como pensar o nada e o que não tem fim, se, aparentemente, somos entes5 viventes, assim, finitos, caracterizando-nos esse sendo passageiro ou temporário6 que nos conduz à morte? É a questão que surge a partir da perspectiva de uma reflexão que se enuncia como indagação propriamente existencial, isto é, a pergunta do ser, a partir da crítica da histórica da metafísica, proposta pela fenomenologia da existência.7 Essa crítica buscou refundar a tarefa da filosofia, reposicionando-a a partir da centralidade da questão ontológica,8 que se apresentava, na modernidade, como filosofia transcendental, tornando-se teoria do conhecimento.9
Parece, contudo, que a liberdade humana inventou caminhos para escapar a esse destino. Um desses caminhos, claro, foi o de forjar o conhecimento e encontrar meios de o transmitir, entretecê-lo numa tradição, linha tênue de comunicação, para além do próprio espaço em que é estabelecido e guardado, que se conduz e traduz no tempo.10 Desse modo, estabelecendo um modo de expressão do saber que se faz comunicação, logrou-se transcender a barreira imposta pela finitude, no sentido de impulsionar a permanência coletiva, para além da impermanência individual. O cerne dessa invenção, todavia, não se encontra no domínio do conhecimento, ou de sua teoria, que se diz epistemologia. A chave real dessa libertação ou expressão da liberdade humana está na concepção da vida comum, vida em sociedade, que, desde a Antiguidade, toma o nome de política.11 É, portanto, no seio da descoberta de um determinado arranjo social que a ideia de liberdade toma forma, para indicar o caminho que permite conceber a existência e suas várias formas como indicação ou capacidade de transcender os limites, as marcas da finitude e do perecimento.
A política, bem assim, transforma o ser humano, ao ampliar seu horizonte de expectativa, tornando-o ser para a vida, cuja essência passa a ser a da adaptabilidade permanente, em um moto perpetuo de mudanças, figurações e reconfigurações. A política permite compreender o ente da humanidade não mais como identidade que trava a possibilidade de persistir, mas como alteridade, que libera a potência dos desejos de transcender as fronteiras de egocentrismo, egoidade, egoísmo. A política descentraliza tudo o que liga o humano a si mesmo, fazendo-o (cons)ciente de sua diferença fundamental, ser outro, na potência de entrega à diversidade e à pluralidade. O espaço e o tempo da política, em conclusão, em sua ação de libertar o humano da identidade que o encerra na finitude, permitem a concepção da liberdade como cerne da existência humana comum, forjando um destino aberto, indefinido.12
A liberdade transcende o humano, transformando a humanidade em política.13 A discussão da liberdade nos permite, também, repor em questão as ordens tradicionais da filosofia e do saber, em geral. Até aqui, predomina quase que de modo absoluto a concepção do núcleo da filosofia como ocupado pela ontologia, em que a condução da indagação do ser e das coisas ou entes dirigiria as demais questões, propondo uma epistemologia que controlaria a posição dessas demais disciplinas filosóficas, postas na periferia do saber. Ontologia e epistemologia configurariam, então, o ofício do φιλόσοφος, ou amigo do saber, que ficaria entretido em buscar elucidar ou buscar o conhecimento das coisas, organizadas a partir da descoberta e da aplicação um método seguro e controlado de observar e conhecer.14 Ao contrário, ao propor a questão da liberdade, procuro, aqui estabelecer uma revolução nesse arranjo filosófico, ao estabelecer a indagação política15 como central. Parto da ideia de que, na história da filosofia sempre houve esse embate entre cosmologia e política. A primeira seria representada pela metafísica ou ontologia, sendo guardada pela teoria do conhecimento ou epistemologia. A última encontraria representação na filosofia da política e do direito. A cosmologia estaria voltada a elucidar um saber baseado em uma concepção universal e categórica do humano em sua relação com o mundo. A política, a indicar os fundamentos maleáveis e em constante mutação da convivência na πόλις, espaço de realização da liberdade, da diversidade, da pluralidade, por meio da discussão livre e corajosa dos projetos humanos comuns, no conflito para a realização de desejos, paixões, interesses e razões. A cosmologia seria uma forma de saber racional e empírico. A política encontraria amparo na razão, na experiência e na sensibilidade. Finalmente, ontologia e epistemologia estariam vinculadas à ideia da origem, em geral como criação, no sentido de uma doação-recepção da ordem do mundo, como um dado, definido em sua perfeição. Já a política remeteria a um arranjo sempre em construção, inserido assim num processo, cujo início decorreria de uma invenção ou descoberta. Portanto, no início da cosmologia estaria a figura do demiurgo – seja a divindade, na Antiguidade e numa parte do que ainda chamamos de Idade Média; seja a razão e o método científico, a partir daquilo que denominamos de Modernidade -, que pensaria o mundo e o entregaria ao uso humano. Já a política não possui fundador senão no encontro, no jogo, no antagonismo de desejos e poderes. É nessa luta e invenção que todos os saberes encontrariam explicação, sendo mesmo essa explicação sujeita a controvérsias de desejos e poderes.
A política precederia a ontologia e a epistemologia, explicando o arranjo desses saberes, sempre histórico, ordenado segundo práticas (experiências e sensibilidades trocadas no espaço-tempo da existência) e discursos (práticas de saber, de impressão e expressão, de comunicação), na construção infinita de mecanismos e instituições, que são o produto dos conflitos e consensos que põem essas práticas e discursos e decorrem deles.16 No princípio, portanto, há uma escolha, um ato de desejo e poder, cabendo à filosofia política e do direito não apenas explicar esse instante de invenção, mas, como saberes práticos e não apenas teóricos, elucidando os aparatos por meio dos quais esse ato de escolha se busca perpetuar, estipula-se como processo, como prática de experiência e discursiva, e propor instrumentos, outros mecanismos para sua contenção, no sentido de abrir caminho, servir de meio para que a expressão se torne efetivamente comum, quebre os liames de dominação e encontre espaço e tempo para que a liberdade seja de todos e de cada um dos que compõem a sociedade política.
O saber da filosofia, enquanto política, assim, não se traduz em mera observação pretensamente desinteressada. Pelo contrário, a filosofia que se faz política e jurídica sempre atua segundo os ditames estabelecidos no tempo e no lugar de sua invenção: a πόλις. A política é o adjetivo e a qualidade da sensibilidade e da experiência dos habitantes desse tempo e espaço fundadores. Ela surge, como poder, vinculada à experiência da democracia (poder do povo), e, como desejo, daquilo que chamo de demoepitimia. (desejo do povo).17 Não é à toa que a primeira intuição e ocorrência histórica do termo “democracia” se dê numa obra artística, designando, segundo interpreto, não propriamente o poder, mas o desejo do povo, reunido em assembleia e deliberando sobre o que melhor lhe convém.18 Assim, sobre o qual é o modo conveniente de realizar seu desejo, por meio do poder que se forja no encontro da pluralidade, de muitos e não de poucos nem de um só. Como tenho salientado, a democracia é o único regime político, por essa razão. Além disso, como se trata de uma qualidade daqueles que expressam seus desejos e exercem seu poder no espaço-tempo da cidade, o melhor termo para traduzir a experiência política da Antiguidade é cidadania.
Para retomar o que até aqui dissemos, a liberdade é uma capacidade humana que transforma sua experiência individual em política, permitindo-lhe transcender os limites daquela experiência, ampliando o horizonte de expectativa de realizações humanas e transformando a própria humanidade. A política que se diz liberdade é a democracia, único regime político, pois permite a concertação, em meio a conflitos e tantos empecilhos, da diversidade e da pluralidade, incluindo constantemente o maior número, trazendo para o espaço público a multiplicidade de agentes sociais. Dando visibilidade ao que é invisível, porque afastado, empurrado para as periferias da existência, recalcado pelos vários traumas e percalços impostos pelas batalhas na consecução desse mesmo espaço-tempo comum. Batalhas que são postas e decorrem de ações humanas contrárias à política e ao direito, que estabelecem a ilusão, a opressão, a exploração dos outros, como meios de engendrar uma vida contra comum, anticivilizacional, em que os encontros se dão pela conversão, representação e pelo julgamento que isolam e excluem.19 Alterando o ser do humano, a liberdade o reconstitui como alteridade e o volta para o que é fora de si, entre-humanos, produzindo a coexistência.
Vista essa importância da liberdade, é preciso, agora, indagar o que representa.
A história e os dicionários nos dizem que há muitas liberdades. Para facilitar a compreensão desse fenômeno – ou desses fenômenos -, guiar-nos em meio a tantas incertezas, preferem dizer que a liberdade possui muitos conceitos, advindos, quem sabe, da incapacidade humana de apreender a plenitude do que se considera passível de conhecimento, ou de expressar em palavras um sentimento tão importante para a própria definição de humanidade, ainda, da inserção histórica que impossibilita a fixação de uma experiência. Assim, por imprecisão do conceito, fugacidade da experiência, intraduzibilidade do sentimento, ou outro qualquer motivo ou pretexto, ficamos sempre a dever, quando queremos abordar o tema da liberdade. Até, em alguns casos, chegamos mesmo a duvidar de sua existência, ao vê-la apenas como anseio, utopia, incapaz de concreção ou alcance, talvez uma ilusão, a gerar uma noção advinda do autoengano.
No campo da política, confortou-nos por muito tempo a distinção intuída por Benjamin Constant, que, em discurso20 tão breve quão influente, distinguiu dois mundos da liberdade, o dos antigos e o dos modernos. No fundo, como crítico da experiência da democracia como presença e participação e partidário da sensibilidade moderna,21 o pensador francês22 nos ofereceu apenas um conceito de liberdade, não dois, como enganosamente seu texto anunciava. Só os modernos usufruem a liberdade, segundo Constant, porque desobrigados de deveres em relação ao espaço público. Podem cuidar de seus interesses privados, enquanto os antigos estavam submetidos ao governo da esfera pública. A liberdade, portanto, seria uma licença para cuidar da vida própria, da esfera doméstica dos interesses. Uma reflexão importante no percurso de construção do liberalismo, claro. Entretanto, que não passou sem as críticas que se arrastariam por todo o Oitocentos, nos embates que fariam surgir o pensamento socialista, a seguir o marxismo, enfim, engendrariam a última das revoluções políticas, no curso já do Século XX.
Falar de liberdade, portanto, tem consequências sérias para a vida política. As várias concepções, múltiplas e incertas que sejam, guardam uma energia que repercute na compreensão das relações sociais, econômicas, culturais e políticas. O grito de liberdade, bem ou mal compreendido, está presente em todo levante revolucionário. Como mostrou Hannah Arendt,23 a própria noção de revolução se modificou para acomodar esse ímpeto do novo, de um movimento que pode gerar mudança. Quando Thomas Jefferson redigiu a Declaration of Independence24 expressando à comunidade internacional as razões da secessão americana, e abrindo caminho para as guerras anticoloniais, inseriu a liberdade como direito inalienável, precedido pela vida e sucedido pela procura da felicidade.25 A Revolução Francesa, em seu processo de construção,26 acabou por consagrar a famosa tríade liberte-égalité-fraternité27 como síntese da celebração dos ideais republicanos modernos.
A liberdade também já foi associada não aos indivíduos, mas ao conjunto da civilidade, entendida como o arcabouço de virtudes da vida citadina.28 Nesse aspecto, o direito moderno começa seu desenvolvimento no trabalho dos pós-glosadores, que engendraram a ideia da cidade como titular de direitos contra o império, portanto coletividade personalizada, livre para escolher seu próprio destino, e não apenas vassala da ordem imperial, como haviam estabelecido os glosadores.29
A questão, todavia, está em solver a questão do que venha a ser liberdade, em meio a tantas sugestões. Saber onde está fundado o termo e se inicia sua existência. A que contextos estaria associado. Forjar, enfim, seu tempo e seu espaço no conhecimento, na experiência e na sensibilidade. A liberdade, entre tantas imagens fundantes da própria concepção da humanidade, entre as virtudes cardeais republicanas, talvez seja a mais difícil de definir, seja porque sua ideia esteja revestida de imensa abstração, seja porque sua experiência, de tão aparentemente avassaladora, impeça a disciplina mesmo da percepção, seja porque a sensibilidade que a produz e que é produzida por ela encontra-se vedada à expressão por mecanismos conceituais. Minha hipótese é a de que a liberdade tem espaço e tempo entre o conhecimento., a experiência e a sensibilidade do poder e do desejo. A liberdade encontra-se no intervalo entre o poder e o desejo. O poder, que é a expressão mais presente nos comtes-rendus da experiência social, e o desejo, sua versão mais esquecida. O poder, que é concreção do agir, e o desejo, que é sua intenção. Entre esses polos da existência e da convivência humanas, estaria, assim penso a liberdade.
Entretanto, esse valor forte da vida em comum, encontra-se sempre associado a outros valores, como a vida, a igualdade, a propriedade, a felicidade, a fraternidade e a solidariedade. No rol de enunciação das Declarações de Direitos, desde o século XVIII, a liberdade é posta como direito fundamental, mas sempre conjugada com outros direitos e deveres da vida em sociedade. Essa implicação abstrata de conceitos é interessante, sobretudo quando associada a um campo de ação social e de pensamento sobre o social como o direito, prática, arte e ciência. Nesse aspecto, essa associação de valores torna-se tão arraigada à reflexão jurídica, ao ponto de os termos tomarem o lugar de sujeitos da atuação jurídica, vindo a se tornar titulares de uma teoria de ponderação, tão cara ao pensamento jurídico de origem alemã e à prática do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha.30
Sobre cotejar valores, Machado de Assis logrou construir uma advertência contundente. O escritor brasileiro contou duas vezes31 a história do senhor carioca, bem trajado, que, ao se aproximar de um casebre que incendiava, perguntou a uma senhora maltrapilha, que chorava a perda de tudo o que possuía em meio às chamas, se permitiria que nelas acendesse seu charuto. Chamava a atenção do escritor, tão crítico da sociedade brasileira Oitocentista, o equilíbrio entre a frieza e falta de compaixão do sujeito e sua devoção ao sagrado direito de propriedade. Pelo contraponto entre as personagens, que partem de um estado pressuposto de desigualdade, a anedota parece remeter à fábula do Lobo e do Cordeiro.32 O lobo, que parece representar a força, propõe um diálogo fatídico ao cordeiro, titular da fraqueza. O diálogo é desnecessário, pois a intenção do forte é devorar o fraco, o que pode fazer, do ponto de vista do estado de natureza, sem necessidade da intermediação da linguagem. Entretanto, o algoz engendra um argumento moral para cumprir o destino a que a inimizade, entre os animais das duas espécies, compele-o. A razão do mais forte é sempre a melhor, concluiu La Fontaine. Machado de Assis também propôs o encontro dos desiguais, durante o qual o diálogo era igualmente desnecessário. Mas o mais forte provoca a conversa, breve, para suprir seu interesse de acender o cigarro. O incêndio é uma oportunidade. Antes de aproveitá-la, o homem homenageia a desigualdade e, na fatalidade, descobre uma utilidade, embora fútil. Na situação do lobo e do cordeiro, há conflito, muito embora seu desfecho seja previsível. No estado de natureza, o forte interpela o fraco e toma sua vida. O fraco se defende em vão, por meio da palavra, Falta-lhe físico para enfrentar a força. No estado de sociedade, em que se desenrola o encontro imaginado por Machado de Assis, não há conflito ou o conflito é tomado como também decidido de antemão. O forte apenas homenageia o sofrimento de não ter (ou não ter mais) da frágil senhora, “molambo de mulher”. Nos dois casos, parte-se da desigualdade. A primeira é crua e dada pela natureza. Sobre ela, as personagens discutem. O cordeiro tenciona safar-se de sua sina e apresenta sua argumentação. A segunda, social, dada por um embate de que não mais se fala. Não há argumento e contra-argumento. Não há diálogo. Não se discute o conflito ou a situação desigual. Nos dois casos, o mais forte movimenta-se, passa pelo mais fraco e o supera, pela vitória no conflito ou pela hipocrisia do gesto.
A fábula do lobo e do cordeiro talvez nos remeta a Hobbes. A anedota da riqueza e da miséria, a Locke. No primeiro caso, há um estado de natureza, cuja superação é o resultado de uma decisão política. A apropriação (“propriety”) é uma disputa constante, que dissemina o medo e a insegurança. Em dado instante, os homens depõem as armas e decidem que há necessidade de um mediador ou poder comum (soberania) que, privando a todos, decida por todos e assegure a vida e a manutenção dos contratos, a circulação das palavras, dos signos: “a covenant without a sword is but words.”.33 No segundo, há uma decisão prévia, de ordem econômica: a liberdade de apropriação (“property”) cessa e os homens, já confinados aos limites da propriedade, tomam a decisão política: o estado de natureza de Locke já comporta uma história, da “possession” à “property”, da liberdade de apropriação até o domínio pelo trabalho e, finalmente, pelo advento do dinheiro.34
Portanto, há uma supressão da palavra, no caso imaginado pelo escritor brasileiro. Ou pelo menos um desvio de seu emprego, de sua função. Por que conversar, se o destino já está traçado? Se não é por meio do diálogo que a decisão surgirá e será tomada? Qual o interesse da conversa, senão a própria anedota, o riso que gera. Como se a situação estabelecida, não permitisse senão a oportunidade da blague (jogo sem consequência) ou chiste, gracejo. A situação de apropriação e desigualdade está dada, não há nada a discutir. Caberia, pois, aqui, cogitar uma situação ideal discursiva? Resta acrescentar que, no texto, Machado de Assis quis deliberadamente reproduzir o tom do dia-a-dia brasileiro, informal, no registro da oralidade.
Por que evocar tal momento da literatura brasileira? O interesse está em utilizar a dicotomia instaurada pelo maior escritor brasileiro para inaugurar a quête de uma questão que a experiência profissional e a vivência cotidiana têm ofertado diariamente: a da dissociação cultural que parece definir a sociedade brasileira e a prática de seu direito e de sua política. Dissociação não apenas dada pelo critério da desigualdade econômica e social, mas, sobretudo, pela fragmentação da comunicação e de sua possibilidade: numa sociedade que pretende a filiação à tradição do direito europeu continental - assim, do direito escrito, da codificação, inclusive acreditando dever seu primeiro Código Civil à influência do BGB alemão - parcela substancial da população não tem acesso pleno à cultura escrita, seja pelas falhas e omissões no processo de alfabetização, seja ainda mais pelas deficiências e lacunas no processo educacional.
Se pensamos, em conclusão, numa concatenação abstrata, num cotejamento de valores, ponderação de direitos, é preciso ter em consideração as amarras constitutivas do contexto sócio-histórico-cultural, que privam as pessoas de conceber, cogitar e expressar seus desejos em relação ao arranjo do espaço e do tempo públicos. Talvez seja essa a razão fundamental que explique a incapacidade de nossa doutrina jurídica e de teoria política de pensar adequadamente a liberdade. Onde não há experiência, a sensibilidade tem de ser assumida apenas pela imaginação, e uma ciência acaba se construindo em cima de relações negativas: desvalorização, ironia e ódio.
Como praticar a experiência do direito como liberdade e dos princípios que lhe pertencem, se boa parte da população - deixando de lado sua mínima participação social e política - não tem condição de entender o modo mesmo de expressão jurídica? Isso se evidencia até mesmo na prática diária dos tribunais. Relativamente à sociedade brasileira, portanto, a caracterização da desigualdade é evidente e guarda uma longa história. Já em sociedades avançadas, como a dos países europeus centrais, o fenômeno talvez se mostre mais recente, com a intensificação das ondas migratórias, no seio do processo de globalização. O tema parece interessar, pois, na compreensão das características de determinados fenômenos de direito interno, como no que diz respeito ao conceito e à dinâmica do processo democrático, na relação da unidade do Estado e o pluralismo, do nacional e do estrangeiro, enfim de igualdade e desigualdade e diferença. Diz respeito igualmente, a aspectos de direito internacional, inclusive no fenômeno da constituição dos processos regionais e inter-regionais de conflito e integração, além do movimento dos povos e as trocas culturais, cada vez mais próximas e mais passíveis de gerar conflitos e novos modos de convivência. Conflitos e consensos que encaminham movimentos de envolvimento e distanciamento.35 Nas manifestações dos indivíduos, assim suas atividades, tipos de raciocínio e de discurso, preservam-se determinadas marcas, que expressam o continuum das interações sociais, apontando maior grau de distanciamento ou envolvimento, associados ao grau de informação, comportamento, vivência e acesso a bens materiais e culturais. É da essência da sociologia, desde pelo menos de Montesquieu a Weber, observar e definir culturas ou tipos ideais não apenas pelo modo como tais culturas se veem, entretêm-se ou se apresentam, do ponto de vista institucional (por exemplo, as leis), mas, igual e predominantemente, como as relações entre os seus membros se dão, como se estabelecem tais relações, que tipo de sentimentos, ações e paixões geram.36
A liberdade, por conseguinte, não é passível de cognição em abstrato. Cada contexto gera uma percepção e, é fundamental advertir, a capacidade que têm os governos tirânicos e despóticos de tentar amortecer desejos e impressões humanas, visando a negar aos povos a sensação da liberdade, portanto, da potência de construção do espaço-tempo da política, determina a exclusão de parcelas consideráveis da população mundial aos benefícios da participação e da realização digna de suas qualidades
Disso decorre o fato de, ao buscarmos o conceito de liberdade, em verdade, estarmos concebendo uma experiência, a partir do desejo de que se efetive como sensibilidade. Trata-se de um caminho da imaginação jurídico-política, que se serve intensamente dos exemplos literários, em especial, e artísticos, em geral. Não há liberdade se não existe imaginação de liberdade.
Resta, portanto, no presente verbete, elucidar que tipo de imaginação pode ser a que nos indique o caminho de invenção democrática.37 Essa imaginação deve ligar os termos política e direito à filosofia, que é justamente o campo de reflexão que permite abarcar essa ligação entre esses dois modos de produção, a práxis e a poética, determinados pela liberdade. Portanto, a prática do espaço público por meio de vetores de imaginação, impressão e expressão de desejos, que se concretizam em obras de natureza diversa, especialmente, as realizações artísticas e as propriamente político-jurídicas.
Seguindo, antes de tudo, um critério instrumental - portanto provisório e circunscrito aos limites de um projeto -, podemos dizer que a associação do termo filosofia ao direito e à política está a indicar um peculiar modo de tratamento (filosofia) de temas ou modos da existência (direito, política). Esta associação é problemática não apenas porque seus dois polos se implicam, permitindo a inversão da situação de questionamento - direito e política também são modos de tratamento e a filosofia também se pode constituir como modo de existência -, mas igualmente porque está a associação condicionada pela maneira mais geral como configuramos cada um desses polos: há filosofias, direitos e políticas, no plural, e a opção que fizermos para lidar com eles tem a ver com as vicissitudes da existência de cada um de nós. Ou seja, questionamos não só porque desejamos, mas também por sermos levados a questionar e de uma certa forma. Pisamos o solo das divergências, seja quando caminhamos em cada um dos termos de nossa associação, ainda mais ao tentarmos empreender sua conjugação. A consciência da constante presença das divergências deve indicar que, mesmo postulando ou buscando um saber, não estamos isentos das aventuras e desventuras da opinião.
Assim, sendo a política e o direito territórios tradicionais da discussão e da decisão, nos quais chocam-se e logram prevalecer interesses e paixões, as razões servindo a justificar as opções de argumentos e juízos, a filosofia não é e parece não se desejar um abrigo para que figuremos, com certeza, a racionalidade das opções. Ela pode querer entender ou compreender as maneiras nas quais se processam os embates de interesses e paixões, segundo as quais se decide a prevalência de uns e outras, e se fixam os motivos de escolha. Mas não faz cessar o curso dos conflitos e controvérsias, alimentando-se deles para constituir outros tantos espaços e tempos de discussão e de decisão.
Com efeito, em Aristóteles encontramos a concepção de ser a πόλις uma comunidade de sentimentos. O homem é um ser da πόλις - ὁ ἄνθρωπος φύσει πολιτικὸν ζῷον -, que discorre sobre paixões opostas para tornar claro o que lhe parece útil e prejudicial, assim fazendo prevalecer sua opinião, constituindo a πόλις - podemos interpretar - como um ser do homem - η πόλις φύσει ἄνθρωπον ζῷον -, voltado a realizar o seu maior bem, que não é outro senão o de viver e participar da vida da πόλις. Um círculo, portanto, que define o ser humano: dentro dele os que realizam tal natureza; fora, aqueles cuja humanidade ou não está presente, ou é decaída ou imperfeita, de qualquer modo inferiores, por convenção ou por natureza.
É possível vislumbrar a linha que divide dois mundos: a política e a economia. No primeiro, o poder se constitui pelos atributos da palavra, dependendo de seu curso (λέξις) entre os que ali podem estar. No segundo, o poder não é genuinamente diálogo, mas submissão. Para a cidade ou espaço-tempo da política, dois modos de poder: βασιλικός e πολιτικός; para a casa (οἶκος), igualmente, οἶκονομικός e δεσποτικός. O objeto fundamental de circulação é a palavra, enquanto ação (πρᾶξις), no espaço da política, enquanto, no espaço doméstico, mas também no espaço público, valem os objetos de produção (ποίησις). A dicotomia dos espaços fez, evidentemente, fortuna, constituindo até hoje, um modelo de concepção do mundo que vivenciamos, muito embora as linhas do círculo e o modo de conceber e caracterizar o que nele se insere e o que o extrapola se tenham alterado. Benjamin Constant, como vimos, falava na representação para a política e nas jouissances privées para o comércio. Para ele, pois, que, aliás, buscava interpretar a existência dos modernos, o lugar da liberdade não era a práxis, mas a intimidade: livrar-nos-íamos da política, para podermos cuidar dos afazeres privados, estes sim prazerosos.
Mas qual seria, hoje, a figuração dessa dicotomia, se é que permanece, parece ser uma indagação legítima, tanto para o direito quanto para a política, porque práticas e saberes tradicionalmente implicados no espaço da palavra e da ação. As fronteiras da publicidade e da intimidade - para empregar outros termos recorrentes - estariam pouco marcadas, permitindo a migração constante dos signos, dos objetos po(i)éticos e pragmáticos? Se não o próprio esmaecimento de tal distinção? Que papel estaria sendo constituído para direito e política, num momento em que o espaço público se aparenta do privado e parece se desejar expressão do lazer, do entretenimento, cujo objeto privilegiado é a imaginação da intimidade, a ilusão da transparência? Qual é a figuração do espaço público no momento em que domina a virtualidade e as técnicas induzem cada pessoa a presumir que sua relação com a máquina é bastante?
Em jogo, pois, estão a experiência e a concepção da liberdade: participação política para os antigos, gozos econômicos para os modernos, e, agora, aparentemente fruição virtual em lugares e tempos virtuais.
A pergunta crucial, contudo, se queremos figurar a associação do pensamento do direito e da política, está em saber das possibilidades de um novo ou diverso direito político (da πόλις, da cidade), que dê conta não apenas da questão do espaço-tempo da liberdade, mas igualmente do espaço-tempo da própria civilidade: um direito cidadão.
O termo parece chave e sua análise frutífera. O predicado civil tem um trajeto semelhante ao da viagem da liberdade. No início, civil está associado ao espaço da πόλις: é atributo do cidadão, da cidadania, da civitas, portanto um termo para o universo público. Depois, tornou-se o adjetivo emblemático da esfera privada de seu direito: privado, civil. Assistimos, agora, à reconstituição de sua publicidade. Os mais interessantes e relevantes trabalhos da civilística contemporânea estão preocupados em refundar publicamente o direito privado. Isso se dá não apenas pelo recurso à Constituição e ao direito constitucional, que passam a ter novos papéis - o que também é relevante -, ao se desvestirem de seu caráter marcadamente público (o de engenhar as funções estatais), e passarem a ser entendidos como fundamento dos direitos privados. Dá-se, igualmente, pela revivescência da teoria dos princípios, a explicitar uma diversa metodologia da aplicação dos direitos, pós-positivista, como já foi chamada, em que as regras se encaixam em princípios não mais de aplicação subsidiária (como era a concepção positivista: os princípios seriam gerais e não seriam normas, aplicáveis apenas para auxiliar as normas e quando estas não estivessem presentes), mas principal, portanto normativa, em um grau mais genérico, por um lado, mas superior, por outro, ao das regras. Ainda, ao sublinhar o caráter deôntico dos princípios (e não apenas o seu caráter de fundamento, ôntico, em relação aos direitos), a teoria jurídica está a abandonar os parâmetros da própria concepção moderna da πόλις, ao estabelecer os direitos humanos (ditos fundamentais, mas que deveriam, talvez, nessa concepção, encaixar-se na categoria kantiana do a priori, independentes da experiência) como constituintes da própria ideia de sistema jurídico: elementos de valoração do sistema jurídico, sim, mas sobretudo critérios de sua validade, como um todo, e de cada uma de suas regras, em particular. Nesse aspecto, cada vez mais os direitos humanos concretizam sua vocação internacional, estabelecendo-se como um sistema de princípios acima das Constituições ou regras específicas dos Estados. A πόλις se universaliza e questiona seu caráter eminentemente geográfico, sua característica de localização. A πολιτεία não mais se confunde com a Constituição. A questão, é evidente, não é simples, pois envolve a velha ideia da comunidade de sentimentos: onde cada um vê preservadas sua integridade e sua dignidade de ser?
O espaço jurídico-político, portanto, diversificou-se. Sua compreensão dependerá da caracterização da liberdade e da civilidade, como aqui esboçadas.
Não apenas isso, contudo. Se tal diversificação se efetiva, será preciso questionar os conceitos e as ideias de circulação de objetos na dicotomia tradicional. É possível inverter a ordem dos bens pragmáticos e po(i)éticos da divisão público e privado?
Tracemos um paralelo - que a todo instante o próprio tema de um direito cidadão deve provocar - entre o fenômeno jurídico do urbano e o fenômeno estético da cidade, tensão que parece importante para entendermos nosso tempo. A cidade é tradicionalmente a πόλις, enquanto sociedade política, mas é, igualmente, a comunidade, assim, lugar da constituição de uma identidade na alteridade das culturas. Lugar em que os comércios e os signos se encontram, circulam e estacionam, num fluxo constante de nascimento e perecimento de relações.
Ousemos uma analogia, por intermédio de mais uma incursão literária. Dizia o escritor argentino Jorge Luís Borges que o aspecto mais curioso de um livro residiria em podermos tocar, ao abri-lo, sua capacidade de constituir um fenômeno estético. Evocamos essa imagem de um objeto, aparentemente desinteressante, em sua forma retangular, muito regular, modo de apresentação muito vulgar, cubo de papel e couro, com folhas, mas que guarda o mistério de conter mais do que apresenta, ao exigir uma ação de disponibilidade de quem o toca e faz percorrer suas linhas de escritura, abrindo-se a um diálogo da memória e da imaginação. O poeta estava fascinado pela ideia do jogo entre lembrança e esquecimento: no Aleph, o conto “O Imortal” introduz-se, com a citação, extraída dos Ensaios, que Francis Bacon faz de Salomão e Platão, para referir uma espécie de paradoxo, em que dois termos, ao menos em aparência, antagônicos, servem para dizer uma mesma coisa ou para definir uma mesma realidade: “all knowledge was but remembrance”, para o filósofo grego, enquanto, para o monarca hebreu, “all novelty is but oblivion”. Nos dois casos, está posta a impossibilidade de pensar o novo - “there is no new thing upon the earth” - mas ter consciência disso significa saber que, de um lado, tudo é apenas recordação, e, de outro, esquecimento. Tal brincadeira entre o lembrar e o esquecer inspira Borges a definir a criação poética como “mistura de esquecimento e lembrança do que lemos”. Encontrar a escritura, portanto, lê-la, dialogar, recordá-la, descurar da memória, escrever novamente. Aí estaria o ciclo da sabedoria e da imaginação. Inventar seria lembrar e perder da lembrança.
O que parece ter escapado a Borges e Bacon é o fato de as duas citações contrapostas possuírem uma conexão cultural e política que explica sua diferença crucial. Com Platão, estamos no universo político, portanto, da experiência da democracia. Em Salomão, o contexto é o de uma sociedade monárquica vinculada à submissão à vontade divina.38 Isso significa que o universo da democracia procura vincular-se à memória, sendo todo conhecimento uma recuperação do já vivido. Já o universo da não-política, estabelece um embaraço para a novidade. O futuro não existe realmente, uma vez que a sensação do novo decorre do esquecimento daquilo que já ocorreu. Para o déspota governar, submetendo a todos os demais, basta quebrar o mecanismo das lembranças, fragmentar o tempo. Ausente a memória, as pessoas podem ser oprimidas e exploradas todos os dias. No caso da democracia, a recuperação do passado parece ser essencial ao ponto de definir exatamente o que é conhecer. Conhecimento é lembrança, portanto, vínculo no tempo. Vincular os tempos é o mesmo que estabelecer liames de confiança entre os membros da sociedade política, cidadãos. Desvincular tempos é o ato tirânico de desmembrar a comunidade, fazendo-a perder os sentimentos comuns, a empatia, a compaixão. Isolados, somos finitos. Juntos, abrimo-nos ao universo de oportunidades do fazer conjunto.
E esse é o papel da liberdade e o conceito que fizemos construir no curso do presente texto. A liberdade, ao contrário do que pensava Constant, e do que é o senso comum, não é desvinculação, mas conexão.
Gostaria, então, de observar que, sobre a cidade, constituiu-se uma maneira diversa de pensar que denomino de tópica moraliste do saber. Aqui, a cidade deixa de ser um objeto observável e passa a ser um espaço-tempo vivenciável, no seio de um embate essencial que diz respeito a todos os aspectos que se originam de uma reflexão sobre os poderes e os desejos, em todas as facetas que apresentam a diversos saberes. Quando se discute a cidade, do ponto de vista do direito, é essa visão que deve predominar, acrescida, contudo, de uma carga dita normativa. Contanto que, no seio dessa concepção, o caráter do poder que permaneça tônico não seja o relativo ao econômico. Aristóteles, que aqui podemos invocar, uma vez mais, dizia do caráter econômico da arte de adquirir (e dispor) de bens. Aqui, portanto, a noção e a disputa em volta da questão da propriedade predominam. Assim, podemos interpretar, por exemplo, os dispositivos normativos - legais e constitucionais - relativos à vida política. Malgrado uma forma interessante de abordar a questão, recuperando, de certa maneira, o conceito de propriedade para os lindes da ciência do direito e das disputas jurídicas relevantes, parece que tal visão restritiva, a par de amesquinhar a riqueza do tema do poder e do desejo, acaba por se apoiar exclusivamente numa noção de política que empenha e concentra no caráter governamental da decisão todas as esperanças e toda a reivindicação de reformas e mudanças. As políticas públicas, sejam originadas de iniciativas de governos locais (comprometidos ou não com os movimentos sociais), sejam as formuladas no seio de organizações não-governamentais, sejam, finalmente, as engendradas no seio de agências quase-governamentais, executam, reivindicam ou fundamentam apenas ações de governo - com maior ou menor participação popular na construção e na implementação de projetos. Fazem depender de uma vontade política soberana as decisões, assim se contrapondo aos setores sociais mais ligados ao status quo, que passam a se defender por meio dos mesmos ou de outros mecanismos estatais de controle, acabando por receber respostas positivas dos poderes encarregados de tal função, mormente de um ativo poder judiciário, que se vai perdendo em engendrar administração mais do que em realizar justiça numa sociedade de muitas injustiças. A concepção oblitera aspectos históricos relativos às mutações do conceito de propriedade. Aqui, enfim, depois de uma aproximação do tema da cidade e do caráter plurívoco da palavra, retornamos, por meio da questão da propriedade, ao caráter sempre fluido que a contemporaneidade confere aos contrapontos tradicionais. A propriedade salta do mundo econômico e põe a circulação dos bens de produção no cenário político.
Enfim, tratar a política e o direito pelo modo da filosofia e, ao mesmo tempo, fazer impregnar a filosofia dos modos da política e do direito, parece despertar o questionamento do papel do direito e da política na sociedade contemporânea e dos próprios filósofos, cientistas políticos e juristas, enquanto passíveis de entendimento de novas formas de relacionamento e vivência em espaços plurais, a sempre propor novas questões à difícil, senão insociável, sociabilidade humana.
Em síntese, a liberdade, localizando-se no espaço entre poderes e desejos, conduz a uma transformação fundamental da condição humana, fazendo-a política, sublinhando insistentemente seu caráter democrático. A liberdade é a vinculação do humano a um destino comum, mais amplo e essencialmente plural. Não é por outra razão que o imaginário da música reservou para a liberdade a imagem das asas, que, na invenção da política, abriram-se sobre nós, para que pudéssemos reivindicar sempre a abertura dos espaços e tempos para nossa passagem triunfante e duradoura.
Notas
1 Hino da Proclamação da República, de melodia composta por Leopoldo Miguez, e letra, por Medeiros e Albuquerque, em 1890, do qual destaco a seguinte passagem: “Liberdade! Liberdade! / Abre as asas sobre nós/ Das lutas na tempestade/ Dá que ouçamos tua voz/ Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País/ Hoje o rubro lampejo da aurora/ Acha irmãos, não tiranos hostis/ Somos todos iguais! Ao futuro/ Saberemos, unidos, levar/ Nosso augusto estandarte que, puro/ Brilha, ovante, da Pátria no altar!...”. É também o refrão do samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, do Rio de Janeiro, de 1989, composto por Jurandir, Niltinho Tristeza, Preto Jóia e Vicentinho, que realizaram uma paráfrase do hino, no centenário da proclamação da república: “...Liberdade, liberdade! / Abra as asas sobre nós/ E que a voz da igualdade/ Seja sempre a nossa voz...”.
2 Marcha-rancho ou marchinha composta, em 1899, por Chiquinha Gonzaga (Francisca Edwiges Neves Gonzaga), cujo refrão correspondia a uma chamada ou grito de início de desfile de cordões de carnaval. A compositora criava, com “Ó Abre Alas,” a primeira música específica para o Carnaval.
3 “0” e “∞”.
4 Do árabe صفر, cujo significado é vazio, tendo passado para as línguas latinas por meio do veneziano zevero. De sua feita, o temo árabe adviria da tradução feita por ordem do califa abássida Abu Ja'far Abdallah ibn Muhammad al-Mansur e da sistematização feita pelo persa Al-Khwarizmi da palavra sânscrita शून्य, que os Hindus empregavam com o mesmo significado. Também os Maias conheceram e empregaram a noção de zero, assim como os antigos Etíopes.
5 ens, ὄν. Veja-se PETERS, F.E. Greek philosophical terms.
6 Ser no tempo, portanto, ser que se dirige a não ser, para a morte – “Sein zum Tode”. É uma questão fundamental para a filosofia da existência, mormente numa das principais obras filosóficas do século XX, que é HEIDEGGER, Martin. Sein und zeit, p. 250: “Der Tod ist eine Seinsmöglichkeit, die je das Dasein selbst zu übernehmen hat. Mit dem Tod steht sich das Dasein selbst in seinem eigensten Seinkönnen bevor. In dieser Möglichkeit geht es dem Dasein um sein In-der-Welt-sein schlechthin. Sein Tod ist die Möglichkeit des Nicht-mehr-dasein-könnens. Wenn das Dasein als diese Möglichkeit seiner selbst sich bevorsteht, ist es völlig auf sein eigenstes Seinkönnen verwiesen. So sich bevorstehend sind in ihm alle Bezüge zu anderem Dasein gelöst. Diese eigenste, unbe-zügliche Möglichkeit ist zugleich die äußerste. Als Seinkönnen vermag das Dasein die Möglichkeit des Todes nicht zu überholen. Der Tod ist die Möglichkeit der schlechthinnigen Daseinsun-möglichkeit. So enthüllt sich der Tod als die eigenste, unbezüg-liche, unüherholhare Möglichkeit.”
7 HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica, p. 81 e ss.
8 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, pp. 61-86.
9 Idem, p. 64.
10 Ou, mais precisamente, para além do tempo, naquilo que os antigos chamavam de eternidade, esse tempo que nunca termina. Para a concepção de enciclopédia - portanto, de uma totalidade que se implica de modo sistemático, na qual as partes remetem ao todo e vice-versa, a partir de um princípio – é fundamental a ideia de eternidade, que seria a órbita de existência de um demiurgo, do qual decorreria o desenho ou desígnio de uma ordem criada, ordenada de modo perfeito e executada para ser assumida pelas criaturas, então inseridas no tempo e na finitude de seu espaço, passível de imperfeições, segundo Platão, no Timeu Veja-se PLATÃO. Timée & Critias.
11 PLATÃO. República; ARISTÓTELES. Política.
12 Não é por outra razão, parece-me, que Hannah Arendt localiza a política no “entre-os-homens” e não no homem, propriamente, negando, assim, sua qualidade de ζῷον πoλιτικόν. A política estaria fora do homem, baseando-se na “pluralidade dos homens” e na “convivência entre diferentes.” ARENDT, Hannah. O que é política?
13 ATTIÉ, Alfredo. Towards international law of democracy, 2021; ATTIÉ, Alfredo. Síncope na Composição do Espaço Público Brasileiro. Revista brasileira democracia e direitos fundamentais.
14 “À medida que se pensa a entidade dos entes enquanto a vigência para a representação asseguradora. Entidade é agora objetividade. E a questão da objetividade ... é a questão da possibilidade de conhecer ... A teoria do conhecimento é observação,” afirma Heidegger, em sua crítica a Kant e à “metafísica moderna.” HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, 2002, p. 64.
15 Mais propriamente, político-jurídica. Veja-se ATTIÉ, Alfredo. Sete cursos para revolucionar a política e o direito, texto-base escrito para o curso ofertado pela Cadeira San Tiago Dantas da Academia Paulista de Direito, em 2021, e publicado pela Tirant Lo Blanch.
16 Numa concepção semelhante a esta que aqui proponho, veja-se FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, 1999, ao interpretar a crítica de Nietzsche a Schopenhauer: “Nietzsche afirma que, em um determinado ponto do tempo e em um determinado lugar do universo, animais inteligentes inventaram conhecimentos; a palavra que emprega, invenção [Erfindung] ... sempre com sentido e intenção polêmicos ... tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem {Ursprung}” (p. 14). Para Foucault, discípulo de Nietzsche, atrás de (todo) conhecimento há vontade (uma vontade de se opor ao que se conhece, rindo dele, opondo-se a ele, detestando-se. Portanto, uma relação não-afetiva): “se quisermos saber o que é o conhecimento não é preciso nos aproximarmos da forma de vida, de existência, de ascetismo, própria do filósofo. Se quisermos apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos, mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder.” (Idem, pp. 22-23 e passim).
17 O desejo é um jogo entre ausência e presença. Constrói-se uma imagem do ausente porque se o quer presente. O desejo é não apenas a presença da ausência, que se sofre, mas igualmente a ação (da imaginação, da fantasia ou do corpo posto em movimento) para fazer presente o que está ausente. O desejo é a concepção da liberdade, por excelência e inclina o desejante para a realização do desejado. A concepção de νόστος - um dos modos de dizer “casa” - é fundamental para fixar a ideia do desejo. A “casa” presente e como conjunto de circunstâncias materiais e imateriais, diz-se οἶκος; enquanto νόστος compõe a imagem do lar para o qual se sente impelido sempre a retornar, a paixão odisseia por excelência. A casa ausente desenha-se na imaginação e impele ao movimento de retorno, gerador de todas as aventuras e desventuras do mundo homérico. Seria dizer “saudade,” em língua portuguesa. A experiência humana faz-se primordialmente de desejos e, ocasionalmente, do encontro de modos de sua realização. É na política e no direito que esses modos se apresentam, são engendrados, em meio aos percalços do debate, no encontro de consensos ante antagonismos constantes. O desejo, acredito, é mais importante para a política e para a sua definição do que o poder. Em grego, desejo se diz ἐπιθυμία, enquanto ὄρεξις seria o apetite. Veja-se PLATÃO. República; ARISTÓTELES, The works of Aristotles, pp. 631-668; e ATTIÉ, Alfredo. Justiça e vingança: estudos em homenagem a Tércio Sampaio Ferraz Jr.
18 ATTIÉ, Alfredo. Towards international law of democracy, 2021; ATTIÉ, Alfredo. Longa jornada do direito noite adentro. Síncope na composição do espaço público brasileiro.
19 ATTIÉ, Alfredo. Reconstrução do direito: existência, liberdade, diversidade.
20 CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes.
21 Isto é, da política como representação e da realização humana pelo exercício de suas jouissances privées.
22 Muito embora nascido suíço, seu sonho realizado foi o reconhecimento da cidadania francesa. TODOROV, Tzvetan. Benjamin Constant: la passion démocratique.
23 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução.
24 in KOCH, Adrienne; PEDEN, William. The life and selected writings of Thomas Jefferson.
25 Life e Pursuit of Happiness.
26 De 1789 a 1848 ou mesmo 1871.
27 ATTIÉ, Thomas. Fraternidade. Veja-se, também, NORA, Pierre. Les lieux de mémoire.
28 Em MACHIAVELLI, Niccolò. Discorsi sopra la Prima Deca di Tito Livio.
29 ATTIÉ, Alfredo. Legislar e julgar no século xxi: para um novo estilo da política e do direito. Veja-se também SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno.
30 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais; ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.
31 ATTIÉ, Alfredo. Oralität und literacy.
32 LA FONTAINE. Oeuvres complètes.
33 HOBBES, Thomas. Leviathan.
34 LOCKE. John. Two treatises of government.
35 Na observação de Norbert Elias (Envolvimento e distanciamento): “a possibilidade de uma vida coletiva organizada baseia-se na combinação do impulso de distanciamento com o impulso de envolvimento, no comportamento e no pensamento humanos, impulsos que se controlam mutuamente. Eles podem entrar em colisão, lutar por atingir compromissos ou hegemonias e formar coligações.”
36 seu esprit.
37 Veja-se, entre outros, LEFORT. Claude. A invenção democrática; RANCIÉRE, Jacques. O desentendimento; BUTLER. Judith. Corpos em Aliança e Política das Ruas; ATTIÉ, Alfredo. Síncope na composição do espaço público brasileiro. Revista brasileira democracia e direitos fundamentais.
38 Veja-se AUERBACH, Erich. Mimesis.
Referências
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2001.
__________________. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
ARENDT, Hannah. O que é política? 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
__________________. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
ARISTÓTELES. On the soul. The Works of Aristotle. Chicago: Britannica/University of Chicago, 1952. Volume 1.
__________________. Política [Πολιτικά]. Lisboa: Veja, 1998.
ATTIÉ JUNIOR, Alfredo. Reconstrução do direito: existência, liberdade, diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.
__________________. Longa jornada do direito noite adentro. Justiça e vingança: estudos em homenagem a Tércio Sampaio Ferraz Jr. W. Guerra Filho (coord.). São Paulo: LiberArs, 2021.
__________________. Oralität und literacy. São Paulo, 2003/4.
__________________. Towards international law of democracy. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2021.
__________________. Síncope na composição do espaço público brasileiro. Revista democracia e direitos fundamentais, 2020. Disponível em https://direitosfundamentais.org.br/sincope-na-composicao-do-espaco-publico-brasileiro/.
ATTIÉ, Thomas. Fraternidade. São Paulo: Escola Suíço Brasileira, 2015/16.
AUERBACH, Erich. Mimesis. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.
BUTLER. Judith. Corpos em aliança e política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes. Paris: Alicia Éditions, 2018.
ELIAS, Norbert. Envolvimento e distanciamento. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Nau/PUC Rio, 1999.
HEIDEGGER, Martin. A superação da metafísica. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
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NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris, Gallimard, 1997. Volume 3.
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SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
TODOROV, Tzvetan. Benjamin Constant: la passion démocratique. Paris: Hachette, 1997.
Citação
ATTIÉ JÚNIOR, Alfredo. Liberdade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Humanos. Wagner Balera, Carolina Alves de Souza Lima (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/509/edicao-1/liberdade
Edições
Tomo Direitos Humanos, Edição 1,
Março de 2022
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