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A proteção internacional do consumidor
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Suzana Maria Pimenta Catta Pretta Federighi
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Tomo Direito Internacional, Edição 1, Fevereiro de 2022
O presente verbete não tem a pretensão de abordar todas as possibilidades e desafios à proteção do consumidor no âmbito internacional, mas apontar os principais pontos e controvérsias, além do atual estado da arte.
Para tanto, a análise será direcionada ao sensível aumento de relações consumo, tanto instrumentalizadas pelo uso da rede mundial como pelas facilidades de um turismo de massa crescente, seus impactos econômicos e o posicionamento mais recente das nações partícipes e órgãos internacionais, temas em constante mutação.
1. O consumo internacional e o comércio online
A existência de um mercado de consumo internacional não constitui novidade, mas sua baixa intensidade até o advento e incremento da internet, e suas esparsas repercussões nos tribunais causaram um certo desinteresse em seu estudo, mormente até a virada do século e milênio.
Dois fenômenos recentes intensificaram as relações de consumo extrafronteiras, acentuando a necessidade de seu aperfeiçoamento: a internet e o turismo de massa.
A internet representou uma mudança definitiva. O crescimento do e-commerce é estimado em 3,4 trilhões de dólares, no mundo, para o ano de 2025, tendo partícipes em quase todos os países. Mesmo antes da evolução da pandemia de COVID-19, em julho de 2020, a China já rivalizava com as operações da Amazon americana, superando-a em vendas. O faturamento da citada Amazon foi projetado para o mesmo ano em US$ 416,48 bilhões, tornando-se o segundo parceiro comercial do país asiático, e tal faturamento representaria a quase totalidade do faturamento interno da China no mercado online. A China, em especial, possui inúmeros Market Places com presença interna e externa ao mercado chinês, sendo que as mais lucrativas ocupam uma parcela de noventa por cento dos valores de venda totais no varejo para o ano de 2019. O comércio eletrônico brasileiro conta com a modesta participação de 5% do varejo total mundial para o ano de 2019.
O alcance dos fornecedores estrangeiros no país é de quase 70% do mercado online brasileiro, e todos os Market Places estrangeiros – incluindo-se plataformas americanas, inglesas, entre outras, tais como a própria Amazon, o Ebay e a Etsy, promovem publicidade nas redes sociais para usuários brasileiros, em português e preços finais (incluindo-se a tarifação) em reais, aperfeiçoando a comunicação e transparência. Plataformas de marketing publicitário já oferecem serviços de captação de influenciadores digitais para esse mercado, e contam com profissionais especializados no Brasil – tal como a INfluu.
A repercussão na economia é digna de nota e esses dados são reflexivos dos riscos jurídicos corridos pelo consumidor final.
Outros aspectos da economia mundial replicam esse estado de coisas. A maior empresa do mundo é a americana Walmart, presente no comércio online interno e internacional, e a 9ª maior empresa do mundo é a Amazon, prestadora de serviços para o comércio online. Entre as vinte maiores empresas em valor de mercado no mundo, aparecem sete empresas ligadas a serviços prestados dentro da internet, duas operadoras de cartão de crédito (serviço correlato), uma rede social (palco de uma publicidade de e-commerce cada vez mais intensa), uma operadora de internet chinesa, uma plataforma de varejo online chinesa e apenas um banco tradicional. Os dados foram fornecidos pelas próprias empresas em seus portais, para o ano de 2020.
Mesmo as robustas projeções anteriores à pandemia para o comércio eletrônico até 2025 podem ser superadas diante de seu incremento a partir do segundo semestre de 2020 (período relativo à expansão da pandemia), quando se acredita ter o varejo online sido impulsionado em 183 bilhões de dólares, o que se reflete na expansão de sites eletrônicos com entrega worldwide.
2. O turismo e o consumidor no mercado internacional
O turismo de massa,1 por sua vez, fenômeno recente interrompido pela pandemia de COVID-19, também levou a compras recorrentes de serviços relativos a viagens, sem intermediação de empresas locais e, fenômeno decorrente, à aquisição de produtos em terras estrangeiras sem que se tenha muito conhecimento sobre a segurança de consumo no ato, seja em razão das regras locais,2 seja em razão da pouca familiaridade com a língua. E, por fim, levou à aquisição de produtos para retorno à terra de origem sem que se tenha a informação necessária sobre a adequação às condições locais e até mesmo licitude da compra. 3-4
O fenômeno tende a ser potencializado, diante da estabilidade política de algumas regiões e aperfeiçoamento da estrutura para viajantes, em prol de um retorno econômico relevante.5
Outras atividades, tais como prestação de serviços à distância, aplicativos para notebook, downloads de jogos na internet, compras de produtos estrangeiros não permitidos localmente, produtos que possuem formulação não regularizada no Brasil, criptomoedas, redes sociais, aquisição de serviços de turismo externo local, serviço de transporte aéreo, compras diretas em sites estrangeiros procedidas fora do país (utilizando-se provedores estrangeiros), compras diretas procedidas com identificação de e-mails de plataformas estrangeiras, compra em leilão de serviços, compra em leilão de produtos, uso de gadgets como a Alexia (que faz compras por Inteligência Artificial com um cartão de crédito previamente cadastrado), compras em lojas de aplicativos de celulares, apresentam o desafio de se proceder a uma procura de algum mecanismo que garanta a segurança e satisfação do consumidor.
3. A proteção ao consumidor na legislação brasileira
Sob a perspectiva brasileira, a legislação de consumo apresenta uma sistemática bastante protetiva, que inovou ao inserir a predominância da responsabilidade objetiva por defeito, a caracterização do consumidor por sua realidade fática e não somente contratual, a previsão de termo “a quo” da prescrição para ações de dano a partir do conhecimento do autor da ofensa, entre outros novos direitos. Outros fenômenos de pouca repercussão anteriormente à edição do Código de Defesa do Consumidor, como a inserção dos conceitos de publicidade enganosa e abusiva e, entre outras inovações, uma proteção contratual focada no reconhecimento da predominância do contrato de adesão no setor de consumo e existência de cláusulas nulas de pleno direito conforme não somente sua forma e manifestação da vontade, mas também por seu conteúdo, se inseriram na vida jurídica, consolidando a proteção ao consumidor brasileiro.
O pilar de sustentação do qual irradiam previsões bastante benéficas aos consumidores no Brasil é o reconhecimento ope legis da vulnerabilidade do consumidor diante de sua mera presença no mercado de consumo, aspecto que retomarei em breve.
A proteção do consumidor no Brasil não está adstrita à lei federal que a consolida, mas está prevista como direito fundamental na Constituição da República em seu art. 5º, XXXII, inserida no rol das garantias fundamentais, sendo que a proteção do consumidor é tabulador da atividade econômica, conforme disposto no art. 170, inciso V. Complementa o quadro a existência de disciplinas específicas para determinadas atividades (lei da saúde suplementar, regulação bancária e securitária, decreto do e-commerce, regulação de setor energético e de comunicações, entre outras), a regulamentação de atividades em geral (como o controle administrativo de pesos e medidas) e a aplicação de legislação eventualmente mais benéfica ao consumidor, de maneira interativa (inclusive previsões gerais do Código Civil brasileiro).
Para o fim de futura análise da vulnerabilidade do consumidor no mercado internacional, ressalte-se ainda a previsão contida no caput do art. 7º do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe sobre a aplicação de Tratados Internacionais nos seguintes termos:
“Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade”.
É notável que o artigo menciona “direitos” decorrentes dos Tratados e Convenções Internacionais, o que significa que a leitura obrigatória da previsão da lei ordinária é que tais Tratados poderão ser invocados em situação que se apresentem mais benéficos aos consumidores.6
A vulnerabilidade do consumidor é reconhecida expressamente,7 diante do mercado interno, pressupondo as alternâncias e preponderâncias das práticas dos fornecedores que, conhecedores de todos os aspectos dos atos de fornecimento que praticam, são capazes de perpetrar dano contra um consumidor ávido de serviços essenciais, novidades e qualidade de vida. Mas, tal vulnerabilidade pode se ver agravada em todos os seus aspectos diante da inserção desse consumidor no mercado internacional.
Tal conceito de vulnerabilidade é decorrente de sua presença permanente e ininterrupta no mercado e, ao contrário de muitas outras posições doutrinárias, entendo necessário refutar qualificações para a vulnerabilidade onipresente do consumidor; ela é extensível a todo consumidor, o que permite, no máximo, conceber-se poder ser agravada em situações muito específicas ou sazonais.8 Para fins de análise da interação do consumidor brasileiro com o mercado internacional, é de se considerar um possível agravamento ou aprofundamento da vulnerabilidade do consumidor.
Quanto à presença do consumidor brasileiro no mercado online - internacional ou não – ainda que muitos a avistem como uma vulnerabilidade agravada, ouso discordar. Como quase tudo que diz respeito à rede mundial, a atividade comercial na internet induz a uma vulnerabilidade diferente, não necessariamente agravada, acrescida de eventual hipossuficiência técnica. Estar em rede não é exatamente como estar em outro país, mas é estar em outra linguagem, riscos e práticas que não se assemelham a qualquer outra coisa que esteja presente no mundo físico. Daí a importância de um posicionamento das nações diante desse novo recente mundo de oportunidades, compras e relacionamentos.
A absorção da linguagem e presença humana no uso da world wide web não é necessariamente algo mais difícil, mas até mais acessível conforme a idade, formação profissional, escolaridade, habitualidade de uso dessas funções; ainda que não se possa afirmar que já exista uma vida virtual paralela à vida física convencional com a qual a humanidade estava habituada desde tempos imemoriais, é certo que as peculiaridades no uso da internet tem avançado sobre todas as classes sociais e promovido uma aceleração da inclusão digital.
A vulnerabilidade em rede pode, assim, ser vista como uma vulnerabilidade diferente, que diz respeito ao menor ou maior contato e assimilação do consumidor dessa prática de conexão. Não obstante, é digno de nota o quanto a presença despersonalizada de fornecedores e consumidores em rede pode agravar os riscos aos quais o consumidor se encontra submetido.9
Já a atividade do consumidor no mercado internacional pode se dar de forma convencional e representar dificuldades e riscos para o consumidor em razão de legislação e práticas comerciais locais, o que é intrinsecamente diferente das práticas comerciais online. Exemplificando, no Reino Unido não há compulsoriedade na aceitação do direito de arrependimento de compra ao consumidor. Tal situação não se replica, obrigatoriamente, nos sites de compras locais, que optam por franquear a possibilidade ou não, em razão da compra não ser presencial.
A vulnerabilidade que se reconhece ao consumidor brasileiro não é a tônica de outras legislações que, mesmo garantindo proteção e reconhecimento do alto grau de exposição a práticas que nem sempre lhes são favoráveis, não vão tão longe em termos de garantir um princípio basilar dessa estatura, o que, a longo prazo, poderá constituir um impasse na uniformização de princípios e bases para uma defesa internacional consistente do consumidor.
3.1. A origem do discurso consumerista
Uma proteção internacional eficiente ao consumidor é uma urgência, tendo perdido sua característica de exceção, de situação fática extraordinária. Evidentemente, o fator econômico, aqui mencionado, e a expansão do fenômeno de globalização, com novos parâmetros de qualidade de vida e costumes, nos impele a procurar soluções baseadas no fato que a condição de consumidor é a tônica de interação entre cidadãos de todas as Nações. O discurso ainda primário do então Presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, constituiu, talvez involuntariamente, o pilar de sustentação de como muitas legislações consumeristas se estabeleceriam. A premissa de Kennedy ao Congresso Americano era o conceito de que “consumers, by definition, include us all”. Algo simples mas definidor de uma situação fática conversível em premissa jurídica básica: uma constatação vinda de um líder político que comandava uma economia que, ao longo dos anos, cresceu para se ver sustentada de forma consolidada, com pequenas variáveis, em torno de setenta e cinco por cento do total do produto interno bruto formado pelo consumo interno.
Doravante, para equacionarmos uma proteção internacional no mercado mundial, somos obrigados a enfrentar alguns desafios característicos, ou seja, buscar um propósito firme dos Estados em promover, no âmbito de sua soberania, mecanismos eficientes e exigíveis, e também, como se observará na conclusão, o empenho em estabelecer, em bloco, parâmetros mínimos de consumo seguro e leal. O desafio é identificar quais mecanismos podem se apresentar eficientes. Mas, precede a essa análise a necessidade de se identificar o atual contexto internacional da proteção ao consumo.
4. A proteção ao consumidor na China, Estados Unidos e União Europeia e demais países
Os maiores partícipes do comércio extrafronteiras merecem uma análise, ainda que sucinta, pois exercem papeis e poderes diferenciados na economia, e a proteção internacional ao consumidor encontra um óbice em sua eficiência diante das diferenças de tratamento que recebe nos mais diversos países.
A China, hoje o maior partícipe no comércio online, oficialmente não é um país capitalista nem é um regime democrático, mas caminha para ser a maior economia do mundo até 2025.
O país somente editou uma lei proteção ao consumo online para o mercado interno no ano de 2019. Tal lei está direcionada ao comércio eletrônico, visando proteger a propriedade intelectual e melhorar a reputação do país com relação à tolerância a produtos falsificados, sendo que a multa aplicável por seu descumprimento pode atingir o valor de até US$ 30 milhões para aquele ano.
A lei contém um aspecto inovador, na medida que insere aspecto relativo à proteção de dados dos consumidores, impedindo que plataformas de comércio eletrônico utilizem o resultado das pesquisas feitas pelo consumidor para outras finalidades, bem como uso de informações sobre compras antigas dos usuários, com possibilidade dos usuários consumidores poderem solicitar os dados acumulados, corrigi-los ou pedir sua exclusão. Anteriormente, o país possuía uma lei genérica de Proteção de Direitos e Interesses do Consumidor e outra de Segurança Alimentar, de eficiência e observância contestada pelos opositores do regime.10
Os Estados Unidos, por sua vez, são reiteradamente apontados como um país sem disposição para legislar na área de consumo, o que não constitui uma realidade.
Sendo uma federação típica, os Estados federados possuem grande liberdade de legislar, não havendo, de fato, uma codificação a respeito. No entanto, inúmeras são as leis que regem questões de consumo, havendo inclusive uma regulamentação consistente em matéria de alimentos, medicamentos e cosméticos pelo FDA, a agência especializada.
Em 2011, sob a presidência de Barack Obama, criou uma nova agência governamental de direitos do consumidor, a ser conduzida pelo governo federal. Um dos propósitos da agência é promover informação aos consumidores sobre os meandros das operações financeiras que, em regra, são muito complexas. A Consumer Financial Protection Bureau continua em atividade, inclusive com programas de educação do consumidor, especificamente para a finalidade de atividades financeiras. À época, recebeu comparações com a Comissão de Proteção dos Consumidores, criada em 1972, órgão governamental regulamentar de normas sanitárias e de segurança comercial.
A intervenção estatal sobre o consumo nos EUA não é recente. A Federal Trade Commission foi criada em 26 de setembro de 1914, para a finalidade de tutela do consumidor, ainda sob a presidência de Woodrow Wilson, que sancionou a lei de instituição. A comissão governamental tem como finalidade proteger consumidores e promover a concorrência.11
Não obstante, repita-se, o país possui regras variadas em razão da liberdade que os Estados têm para legislar sobre a matéria, diferentemente do Brasil, que procedeu a uma codificação válida em todo território nacional.
A União Europeia também apresenta uma atividade intensa na área de proteção ao consumidor. Editou a Diretiva 2000/31/CE, bastante específica quanto às atividades no comércio eletrônico e serviços de informação, tendo sido a primeira diretiva expressa para o assunto. Mais recentemente, a pedido da Comissão do Mercado Interno e da Proteção dos Consumidores, o Departamento Temático das Políticas Econômicas e Científicas e da Qualidade de Vida organizou, em 18 de fevereiro de 2020, um seminário intitulado “E-Commerce rules, fit for the digital age”,12 realizando uma série de estudos sobre a temática, visando a consecução da possível edição de uma lei geral de Serviços Digitais. Ainda em andamento, em 27 de outubro de 2020 foi concluído um estudo intitulado “Loot boxes in online games and their effects on consumers, in particular young consumers”,13 especificamente para consumidores de “games”. A União Europeia pautou, desde seus primórdios, pela abordagem da proteção ao consumidor, tendo editado também em seu princípio a Directiva 6, que estabelecia critérios de uma publicidade lícita. Ressalte-se que a Directiva sobre Comércio Eletrônico não estabelece qual a lei aplicável em caso de conflito, remetendo a solução da questão às normas de Direito Internacional Privado de cada Estado membro. A dificuldade da aplicação territorial da norma tem se apresentado diversas vezes como o maior fator impeditivo da proteção contratual ao consumidor.
Nas Américas, depois de proposta na Organização dos Estados Americanos, mais precisamente na Comissão de Assuntos Políticos e Jurídicos, de uma comissão específica para analisar as questões de proteção dos consumidores (2004-2010), algumas legislações surgiram, sendo que hoje Argentina, Panamá e República Dominicana possuem regras especiais para a proteção dos consumidores em suas leis de conflitos de leis. No Mercosul, o Acordo Mercosul sobre lei aplicável aos contratos com consumidores de 2017 também se estendeu, à evidência, sobre seus participantes.
5. Organizações internacionais e a proteção internacional ao consumidor
A proteção de consumidores pelos Organismos Internacionais tem sido objeto de iniciativas específicas, ainda que de maneira difusa.
Em 2019 ocorreu em Genebra, Suíça, a Quarta Reunião do Grupo de Experts em Direito do Consumidor e Política (IGE) das Nações Unidas, que se encontra sob coordenação da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas em Comércio e Desenvolvimento) desde a reforma das Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor que ocorreu em 2015. Entre temáticas variadas sobre sustentabilidade, educação para o consumo e cooperação internacional, o foco foi direcionado para problemas relativos ao comércio de produtos online e segurança de produtos e serviços, bem como a defesa do consumidor na era digital, sua crescente presença em rede e a distribuição de produtos que ofereçam risco à saúde e segurança dos consumidores. Outro item da agenda daquele ano de 2019 foi a discussão dos novos temas para a Agenda Provisória da Oitava Conferência das Nações Unidas para Revisão de Todos os Aspectos do Conjunto de Princípios e Regras Equitativamente Acordados Multilateralmente para o Controle de Práticas Comerciais Restritivas em 2020.14
A Organização das Nações Unidas aprovou em dezembro de 2015 a acima citada Revisão das Diretrizes sobre Proteção dos Consumidores (UN Guidelines for Consumer Protection), atualizando as Diretrizes de Proteção do Consumidor (1985), já antiga. À época, justificou a necessidade de se analisar os desafios da proteção ao consumidor no mundo globalizado à luz da atualização de regras internas dos países signatários, compatibilizando-se com regras de cooperação internacional, tendo tal revisão inserido novas proposições para tratar de temas como o que chamaram de “consumo à distância por meios eletrônicos e móveis”, privacidade, proteção dos consumidores hipervulneráveis, serviços financeiros e de crédito, turismo e transporte de massa (internacional ou não), além da intensificação do poder das agências de proteção administrativa dos consumidores e suas consequências.
O catálogo virtual da UNCTAD de boas práticas de consumo também vem sendo atualizado, bem como o órgão vem procedendo a um dinâmico “Word Consumer Protection Map” para o fim de se fazer um mapeamento do andamento da defesa do consumidor no Mundo, visando elaborar um prospecto de políticas públicas futuras.
Ainda no âmbito da UNCTAD, foram criadas várias comissões de estudos sobre o assunto do trânsito internacional de consumo, em especial a “Working Group on The Protection of Vulnerable and Disadvantaged Consumers”, “Working Group on Consumer Product Safety”, “Working Group on Cross-Border Cartels” e a “Working Group on Consumer Protection in E-Commerce”.
No que concerne à Organização das Nações Unidas cabe ainda menção à Resolução 39/248, que também se direciona à proteção internacional ao consumidor. A Resolução tem como objetivo manter e reforçar uma política consistente de proteção ao consumidor, criando diretrizes que devem ser seguidas, levando-se em conta a saúde, segurança, educação e interesses dos consumidores, todas concebidas à luz do intenso processo de globalização.
Quando a abordagem de providências alcança o espectro de atribuições das organizações internacionais, também são dignas de nota as iniciativas que atingem a atividade na internet, sua liberdade e neutralidade. A União Europeia vem intensificando o debate sobre uma internet mais segura e democrática, e a instituição de um caminho regulatório incisivo, que coíba o crime, o terrorismo difundido em rede e o comércio irregular seja coibido, com uma participação da Organização das Nações Unidas ativa, direta e gestora, evitando-se uma regulamentação fragmentada, repetindo-se os moldes da Lei de Proteção de Dados Pessoais.
Em novembro de 2018, na abertura do Forum de Governança da Internet 2018 (IGF 2018), na sede da Unesco em Paris, Emannuel Macron se pronunciou no sentido da necessidade de se inaugurar um processo político que poderá levar à regulação das atividades econômicas, políticas e culturais dentro da world wide web.
Naquele mesmo ano, em março, no encontro promovido na International Telecommunications Union (ITU) os representantes da China confirmaram que Arábia Saudita, Irã e Rússia já manifestaram apoio a um novo modelo de internet proposto por ela, onde o controle da rede mundial seria restrito e centralizado nos governos. Tal controle abrangeria todos os aspectos da comunicação, inclusive a de consumo. Aspectos técnicos da internet do futuro foram abordados na reunião, para serem colocados em prática, sendo que qualquer país que se interessasse poderia adotá-lo. Os demais termos da reunião foram sigilosos.
Por fim, a Conferência de Haia mantém uma discussão em andamento sobre a proteção dos turistas internacionais, ainda sem um pronunciamento conclusivo sobre qualquer de seus aspectos.
6. Órgãos da sociedade civil
Órgãos da sociedade civil contribuem efetivamente para o debate, em especial para analisar problemas regionais.
Em 2020, o Comitê Internacional de Proteção do Consumidor (Committee on the International Protection of Consumers), da International Law Association, editou sua Resolução nº 1, que reconhece a falta de um modelo universal de proteção ao consumidor. A Internation Law Association já reconhecia vários princípios, dentre eles: princípio da vulnerabilidade, da proteção mais favorável ao consumidor e da justiça contratual, de maneira bastante assemelhada ao direito brasileiro. Entretanto, com essa recente resolução, é sugerido que a lei aplicável aos contratos de consumo seja a da residência habitual do consumidor, o que privilegiaria o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor com relação aos direitos estrangeiros, bem como uma valorização da transparência na relação de consumo.15
Não obstante, é de se destacar que muitas dessas resoluções, ainda que didáticas, não são efetivamente aplicadas, ainda que as nações reconheçam que a proteção do consumidor é essencial para o fortalecimento econômico.
Outras iniciativas também podem ser encontradas em órgãos como a International Consumer Protection and Enforcement Network, rede de autoridades de defesa do consumidor para o fim de solução de litígios, com ações difusas para a cooperação entre os organismos responsáveis no âmbito do comércio internacional. Todos os países da União Europeia e os Estados Unidos participam. O Brasil não é um membro do grupo.
Ressalte-se que muitas organizações advindas da sociedade civil militam em áreas específicas, mas que se situam na interface de outros direitos e os de consumo, como a Children Healths Defense americana, voltada para o consumo e publicidade de medicamentos para crianças.
7. O direito aplicável nas relações de consumo internacionais
Especificamente no que diz respeito ao comércio eletrônico, um dos grandes problemas é o de identificar a lei aplicável, o que decorre de vários fatores, inclusive o do momento da formação do contrato. É possível afirmar que não existe um conceito de territorialidade da norma para o comércio eletrônico, diante das características fáticas do uso da rede mundial. Igualmente a certeza jurídica não é característica da atividade, podendo ser dito que o contrário se verifica.
Inúmeros fatores se apresentam a latere: falta de escolaridade apropriada do consumidor, não inclusão digital, exclusão econômica, um novo tipo de analfabetismo. Para alguns autores, como Ricardo Luis Lorenzetti, “otras posiciones, más modestas, sistienen simplesmente que no es possible regular. Esta dificultad devine de que el accesso a Internet es amplio, intercativo, anónimo, a escala transnacional, protegido por La libertad de expressión, y no hay quien pueda establecer uma restricción no lesiva y acerla cumprir”.16
Como se analisou aqui, a contratação de consumo extra fronteiras também pode se dar presencialmente, e sob este aspecto, os conflitos serão de outra monta, pois, tratando-se de um comércio convencional, físico e local, o afastamento de uma lei por menos benéfica ao consumidor contratante se apresenta inviável, pois esbarra na soberania de cada país para fazer valer sua legislação ou falta dela e, por consequência, na impossibilidade de se reivindicar a legislação brasileira em território estrangeiro, bastante protetiva em nosso caso. Não se deve desprezar, entretanto, que tanto nos fóruns privados como nas discussões promovidas pelas organizações internacionais, a tendência é uniformizar uma tutela em que se utilize do critério do domicílio do consumidor.
8. Considerações finais
Ainda que consideremos o processo de globalização e a aproximação de parceiros comerciais – fornecedores e consumidores – no mercado internacional através da internet, certo é que cada nação ou região possui prioridades por vezes não coincidentes com os demais.
Isso fará com que países promovam iniciativas específicas, como aquela de Barack Obama, que criou órgão específico para atendimento aos consumidores de serviços financeiros num momento pós-crise de 2008.
Tal circunstância não impede a uniformização de questões básicas relativas ao consumo, tal como o reconhecimento da vulnerabilidade, transparência na contratação e impossibilidade de renúncia à indenização por dano, apenas para mencionar os pontos mais sensíveis.
No mais, a uniformização em bloco de questões relativas à segurança dos consumidores poderá ser procedida no âmbito das Organizações Internacionais afetas, elevando-se o proveito econômico de maneira responsável, afastando-se as incertezas de um cenário de múltiplas camadas normativas e poucas previsões que determinem a lei aplicável.
Notas
1 “A atividade turística tomou novos rumos após a Segunda Guerra Mundial. Nesse setor, surgiram novos caminhos, que aperfeiçoaram o seu desenvolvimento e apontaram os riscos e as oportunidades até então não percebidos. Os viajantes passaram a ser vistos em todo o mundo, em grande quantidade e pelas razões mais diversas”. O turismo massivo teve diversos fatores que contribuíam para o seu crescimento, como no pensamento de Rejowski in “Turismo no Percurso do Tempo”. Outro fator é a ausência de conflitos que envolvam muitas nações simultaneamente. “A paz prolongada em zonas de estabilidade política, como no Mediterrâneo, centro da Europa, Estados Unidos, etc e a consolidação do poder aquisitivo de amplas camadas da população em países ocidentais, bem como o aumento do tempo livre com mais dias de férias, são acrescidos por um maior interesse em conhecer outros povos e civilizações pela expansão da educação e da cultura. Outros fatores também podem ser relacionados, tais como o desejo de evasão, descanso e recreação em ambientes próximos à natureza, em face de problemas decorrentes da industrialização e do crescimento populacional inseridos no processo de urbanização. Somam-se a isso a redução das jornadas de trabalho e criação de férias anuais remuneradas, desenvolvimento da tecnologia principalmente dos transportes (trens, aviões, navios, carros) e incremento da publicidade e aplicação de técnicas de marketing, aumentando a motivação para as atividades de lazer, e dentre estas, o turismo. Esses são os vetores que mudaram o perfil da prática de turismo relacionados (PANAZZOLO, Flavia de Brito. Turismo de massa: um breve resgate histórico e a sua importância no contexto atual, p. 85).
2 Nem sempre o consumidor turista está advertido sobre regras locais de consumo, como as relativas ao consumo de bebidas alcóolicas na via pública em algumas cidades dos Estados Unidos da América, podendo, até mesmo, ter como consequência a aplicação de pena por contravenção penal.
3 Não é incomum nos serviços alfandegários brasileiros a retenção de suplementos alimentares lícitos fora do país mas não regularizados aqui. É o caso da melatonina, aprovada pelo FDA mas não pela Anvisa, e o DHEA, pelos mesmo motivos.
4 O maior partícipe do comércio online mundial, a China vem recebendo progressivamente turistas. Somente no ano de 2016 recebeu 59,27 milhões de turistas – mais do que a Itália no mesmo período (52,37 milhões). Países asiáticos, antes destinos de exceção, a Tailândia recebeu 32,53 milhões de turistas em 2016, quase os mesmos números da Alemanha (35,55 milhões) e do Reino Unido (35,81 milhões), que, por sua vez, recebem aproximadamente o mesmo número de turistas que o México (35,08 milhões). A Índia recebeu 14,57 milhões de turistas em 2016, mais do que Portugal (11,22 milhões). Os números brasileiros, menores, foram de 6,58 milhões para o ano de 2016, número semelhante ao da Bélgica (7,48 milhões) no mesmo período (informações da Organização Mundial do Turismo, UNWTO, dados relativos a 2017).
5 Com a independência de muitos países africanos, mas com estratégias diferentes, buscaram eles atrair turistas para ajudar na economia interna de seus países, como é o caso da Tunísia, Marrocos, Tanzânia e Botswana. O Oriente Médio já é conhecido há muito tempo pelo seu turismo religioso (SWARBROOKE, John; Horner, Susan. O comportamento do consumidor no turismo, p. 49).
6 A questão não é simples. Em matéria de transporte aéreo, o Supremo Tribunal Federal já decidiu em sentido contrário. À prevalência da previsão mais benéfica. É o episódio relativo ao Recurso Extraordinário com Agravo 766.618, originário de São Paulo, cujo Relator foi o Ministro Roberto Barroso, que cuidava de transporte aéreo internacional onde houve conflito de previsões entre lei e tratado. No caso, o prazo para a verificação de prescrição para fins indenizatórios foi aquele previsto em convenção internacional. Considerou-se que, salvo quando versem sobre direitos humanos, os tratados e convenções internacionais ingressam no direito brasileiro com status equivalente ao de lei ordinária. Assim, as antinomias entre normas domésticas e convencionais resolvem-se pelos tradicionais critérios da cronologia e da especialidade. Consignou-se expressamente ainda que “nada obstante, quanto à ordenação do transporte internacional, o art. 178 da Constituição estabelece regra especial de solução de antinomias, no sentido da prevalência dos tratados sobre a legislação doméstica, seja ela anterior ou posterior àqueles. Essa conclusão também se aplica quando o conflito envolve o Código de Defesa do Consumidor”.
7 “Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995) I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (...)”.
8 A vulnerabilidade não é atributo, mas condição do consumidor no mercado de consumo. No sentido contrário, há entendimento de que a vulnerabilidade possa ser técnica ou de natureza peculiar, o que não se sustenta, dado que a lei de consumo já fornece como subsídio outro critério jurídico, esse sim de atributo, que é o da hipossuficiência.
9 “O aumento dessa nova vulnerabilidade (virtual) ocorre, principalmente, em razão da despersonalização da relação jurídica, da desmaterialização do meio eletrônico, da desterritorialização da contratação, fatores que aumentam a dificuldade da determinação da norma a ser aplicada” (SANTANA, Hector Valverde; VIAL, Sophia Martini. Proteção internacional do consumidor e cooperação interjurisdicional).
10 Entre os países asiáticos, o Japão também faz diferença legislativa entre contratos comuns e contratos de consumo, sendo que, tanto o Japão como a China possuem normas especiais de conflito de leis para contratos entre fornecedores e consumidores.
11 Não raro a proteção ao consumidor tem sido disciplinada conjuntamente à proteção da concorrência, de forma orgânica. Esse é o caso da Directiva 6 da União Europeia, aqui citada, uma das primeiras, que definiu o conceito de publicidade comercial enganosa e, para fins de modalidade residual, a publicidade anti-concorrencial, que conspurca o mercado em razão das regras que regem as relações horizontais entre os fornecedores.
12 Regras de Comércio Eletrônico Adequados ao Serviço Digital.
13 Caixas de recompensa em jogos online e os seus efeitos nos consumidores, em particular nos consumidores jovens.
14 UNCTAD. Competition and consumer protection law and policy.
15 O Ramo Brasileiro da ILA propôs, em 2008, a criação de um comitê de proteção internacional dos consumidores, onde se propugna pela ideia de um Direito Internacional mais protetivo dos consumidores.
16 LORENZETTI, Ricardo Luis. Comercio electrónico, p. 39.
Referências
LORENZETTI, Ricardo Luis. Comercio electrónico. Buenos Aires: Editora Abeledo-Perrot, 2001.
PANAZZOLO, Flavia de Brito. Turismo de massa: um breve resgate histórico e a sua importância no contexto atual, s/l, s/d. Disponível em:
REJOWSKI, Mirian. Turismo no percurso do tempo. São Paulo: Aleph, 2002.
SANTANA, Hector Valverde; VIAL, Sophia Martini. Proteção internacional do consumidor e cooperação interjurisdicional. Revista de direito internacional, v. 13, n. 1. Brasília, 2016, pp. 397-418.
SWARBROOKE, John; HORNER, Susan. O comportamento do consumidor no turismo. São Paulo: Aleph, 2002.
Citação
FEDERIGHI, Suzana Maria Pimenta Catta Pretta. A proteção internacional do consumidor. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Internacional. Cláudio Finkelstein, Clarisse Laupman Ferraz Lima (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/506/edicao-1/a-protecao-internacional-do-consumidor
Edições
Tomo Direito Internacional, Edição 1,
Fevereiro de 2022
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