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Nacionalidade
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Carlos Roberto Husek
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Tomo Direito Internacional, Edição 1, Fevereiro de 2022
Nacionalidade é o vínculo que liga a pessoa ao Estado, identificando aquela como nacional deste e gerando entre ambos, a pessoa e o Estado, direitos e deveres. A extensão destes direitos e deveres, bem como os requisitos para que a pessoa seja considerada nacional, variam de Estado para Estado, embora seja possível, de forma geral, estabelecer pontos de semelhança em tais determinações ao longo do ordenamento jurídico dos mais diversos Estados. O Direito Internacional cuida do assunto, ao buscar definir critérios mínimos de proteção da pessoa humana nesse vínculo com o Estado, bem como buscando evitar a apatridia (aquela pessoa desprovida de qualquer nacionalidade, sendo, portanto, estrangeira em todos os Estados). O conjunto de nacionais forma o povo, elemento caracterizador do Estado juntamente com o seu determinado território e seu poder soberano.1
1. Conceito
Nacionalidade é rotineiramente conceituada como o vínculo jurídico-político que une o indivíduo ao Estado. Diz-se jurídico-político tal vínculo pois comporta componente normativo (as regras constitucionais definidoras dos requisitos para a aquisição e perda da nacionalidade) ao lado de componente político, do âmbito interno de cada Estado, consistente na discricionariedade deste para determinar quem são seus nacionais (ou melhor, para determinar em seu ordenamento jurídico quais os requisitos para a aquisição da nacionalidade pelo indivíduo).
Ademais dessa dimensão jurídico-política, há o conceito sociológico de nacionalidade, que consiste no pertencimento do indivíduo nacional de determinado Estado ao seu povo, à nação. Assim, ser nacional significa pertencer a determinado grupo de pessoas ligadas entre si pela cultura, tradições, hábitos e costumes.
Ao definir-se o nacional, por exclusão determina-se o estrangeiro, consistente no indivíduo que não é nacional em relação a determinado Estado. Ser nacional de um Estado importa em ser estrangeiro em relação aos demais, sem levar-se aqui em consideração casos de dupla ou múltipla nacionalidade. O indivíduo que não for titular de nacionalidade de qualquer Estado é apátrida, ou seja, estrangeiro em relação a todos os Estados.
1.1. Nacionalidade e nação
O termo nacionalidade, até em razão do radical, leva num primeiro momento ao entendimento de tratar-se do vínculo do indivíduo a determinada nação. No entanto, como visto acima, juridicamente não há essa ligação, o que fez com que a doutrina por vezes buscasse outros termos, tais como estatalidade2 –termo afinal não utilizado— ou mesmo cidadania, como é o caso do que ocorre nos EUA, por exemplo. Hans Kelsen usualmente utiliza apenas o termo cidadania ou cidadão para referir-se ao indivíduo que está vinculado ao Estado, em relação ao qual terá deveres (tais como o serviço militar) e direitos (consubstanciados nos deveres que o Estado tem para com os seus indivíduos, como por exemplo a proteção diplomática quando no estrangeiro). 3 E continua Kelsen a referir-se aos indivíduos como cidadãos ao tratar daqueles investidos nos direitos políticos (como votar e ser votado), fundindo em um só termo duas situações usualmente tidas como distintas na maior parte dos países: o nacional e o titular de direitos políticos, em geral, este sim, denominado cidadão.
Não há, portanto, outro termo que atualmente melhor expresse o vínculo jurídico-político que une a pessoa ao Estado do que nacionalidade, não por sua precisão técnica, como visto acima, mas pela tradição de seu uso com este significado.
Finalmente, há que se fazer a distinção entre povo e população, no sentido de que o conjunto de nacionais de um Estado forma o seu povo (aqui entendido como elemento característico do Estado), ao passo que população é tão somente o grupamento de pessoas que habitam no território de um Estado (incluindo-se aqui portanto estrangeiros e apátridas), um conceito mais geográfico ou econômico do que jurídico.
1.2. Nacionalidade e cidadania
No Brasil e em boa parte dos Estados, nacional e cidadão importam diferentes grupos de pessoas, embora o conjunto dos cidadãos esteja englobado no conjunto dos nacionais. Cidadão é o nacional que está no gozo dos direitos políticos. Logo, o brasileiro menor de 16 anos, ou entre 16 e 18 anos e não alistado eleitoralmente, não é cidadão. Não é dado a um estrangeiro ser titular de direitos políticos no Brasil, ou seja, o estrangeiro nunca é cidadão no País, ao passo que o nacional pode ser mas nem sempre é cidadão. Ao contrário, todos os cidadãos são nacionais.
Como exceção a esta regra, não são nacionais, mas podem exercer direitos políticos no Brasil os portugueses que residam permanentemente no Brasil, mediante solicitação ao Ministério da Justiça. O art. 12, §1º da Constituição Federal estabelece essa possibilidade, desde que haja reciprocidade aos brasileiros em Portugal, o que foi conferido por tratado internacional entre os dois países, criando o chamado Estatuto de Igualdade (Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, de 22 de abril de 2000, promulgado pelo Decreto presidencial 3.927/2001).
Observe-se que, assim como o conceito de nacionalidade tem duas vertentes (a jurídica e a sociológica), igualmente a cidadania tem um conceito sociológico (“um conjunto dinâmico de direitos e obrigações que determina o grau de inclusão do sujeito nas diversas esferas de convivência social”),4 que não é o analisado aqui, onde apenas cuidamos de observar o conceito jurídico de cidadania.
1.3. Nacionalidade e direito internacional
Como visto, a nacionalidade é atribuída aos indivíduos pelo Estado, sendo em princípio atribuição interna de cada Estado as regras para sua aquisição ou perda em relação a ele próprio. A matéria é de fundo constitucional, por se tratar de questão atinente ao Estado e sua existência intrínseca (a definição mesmo de quem integra seu povo). No Brasil, apenas a Constituição Federal define que são os nacionais (art. 12) e as eventuais distinções entre nacionais e estrangeiros (como por ex. nos arts. 176, § 1º ou art. 222, caput, dentre outros).
No entanto, é incontornável admitir-se que a relevância da definição de quem são nacionais de um Estado é diretamente proporcional à inserção deste Estado nas relações internacionais, as quais irão pautar e definir o quanto seus nacionais poderão o mais livremente possível transitar pelo território de outros Estados. Em outras palavras, perderia relevância definir quem é nacional e quem não é dentro de um hipotético Estado integralmente fechado, no qual estrangeiros não ingressam e aos seus nacionais não é permitido sair (ou mais possivelmente, aos quais é vedado ingressar em outros Estados, até por reciprocidade), vez que povo e população se confundiriam num único grupo.
Por outro lado, ainda que a atribuição da nacionalidade pertença ao âmbito de jurisdição interna de cada Estado, garantindo-se a este total discricionariedade para definir as regras para aquisição, manutenção e perda do status de nacional, ao longo dos anos e de forma especial a partir dos anos 1930, o Direito Internacional vem ocupando-se do tema, em geral para delimitar ou controlar se a outorga da nacionalidade ao indivíduo vem se fazendo, pelo Estado, conforme os princípios e normas internacionais. Em especial, a legislação definidora da nacionalidade de um Estado não pode invadir a soberania de outro Estado. Não se admite que um Estado atribua sua nacionalidade automaticamente a todos aqueles que ingressem em seu território, bem como não se admite que conceda a nacionalidade a todo os habitantes de outro Estado, por exemplo. Por outro lado, não é internacionalmente lícito que um Estado exija a participação ou alistamento de não nacionais em seu exército (ainda que o inverso seja permitido, isto é, estrangeiros podem, por livre vontade, alistarem-se em exércitos de outros Estados, caso estes o aceitem –as ditas legiões estrangeiras não são vedadas pelo Direito Internacional).
Ainda, o Direito Internacional busca evitar a apatridia e o direito das pessoas à nacionalidade, como é feito no artigo XV da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que estabelece que “todo ser humano tem direito a uma nacionalidade” e “ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”.
O Pacto de São José da Costa Rica igualmente dispõe no seu art. 20 que “toda pessoa tem direito a uma nacionalidade; toda pessoa tem direito à nacionalidade do Estado em cujo território houver nascido, se não tiver direito a outra; a ninguém se deve privar arbitrariamente de sua nacionalidade, nem do direito de mudá-la”. Outros tratados e convenções internacionais dispõe sobre a nacionalidade, regulando a matéria para os Estados signatários, que se obrigam a ajustar seu direito interno no tocante às regras de aquisição e perda da nacionalidade.
2. Formas de aquisição de nacionalidade
A doutrina identifica duas espécies de nacionalidade, a primária (ou originária) e a secundária (ou derivada, adquirida). A nacionalidade primária é aquela que resulta no nascimento, ou seja, a pessoa faz jus à nacionalidade por critérios de aquisição vinculados à sua origem. A nacionalidade secundária é aquela que o indivíduo busca adquirir, não vinculado portanto à sua origem, mas derivada de fato posterior ao nascimento. É, via de regra, a naturalização. Naturalizado é o indivíduo nacional de um Estado que adquiriu a nacionalidade de forma secundária, em oposição aos natos, que adquiriram a nacionalidade em decorrência de sua origem. Ambos são, no entanto, igualmente nacionais do Estado.
2.1. Aquisição originária da nacionalidade: os natos
De forma mais ou menos uniforme, identificam-se dois critérios como os mais comuns entre os Estados para determinarem a aquisição originária da nacionalidade: o ius sanguinis (pela filiação, pelo sangue) e o ius soli (pelo território). Os Estados em geral adotam um desses critérios, não sendo incomum adotarem ambos em concomitância, ainda que elegendo um deles como o principal, no que a doutrina comumente identifica como critério misto. É o que acontece no Brasil, em que o principal critério é o territorial (ius soli), estabelecido no art. 12, I, “a”, mas admitindo, no art. 12, I, alíneas “b” e “c”, o critério da filiação (ius sanguinis), pelo qual os filhos de brasileiros no estrangeiro também podem adquirir originariamente a nacionalidade brasileira.
Pelo critério territorial (ius soli) é nacional aquele indivíduo nascido no território do Estado, independentemente da nacionalidade de seus genitores. Pelo critério da filiação (ius sanguinis), é nacional o indivíduo filho de nacional do Estado, não importando o local do nascimento, se dentro ou fora do Estado. Neste caso, há que se considerar ainda as nuances legais, como por exemplo se há necessidade de ambos os pais serem nacionais, ou se basta apenas um dos dois ser nacional). No Brasil, basta que um dos pais (o pai ou a mãe, indistintamente) seja brasileiro para que o filho nascido no estrangeiro possa adquirir a nacionalidade brasileira (não obstante a existência de outros requisitos, como registro em consulado ou residência no Brasil, nos termos do art. 12, I, “c” da Constituição Federal).
Como dito, cada Estado tem a liberdade de definir as regras que definirão quais indivíduos serão os seus nacionais, e tais regras sofrem mutações com o passar dos anos. Assim, Estados que ao longo dos séculos XIX e XX observavam êxodo migratório de seu povo tendem a adotar a regra da filiação, permitindo que os filhos de seus nacionais, mesmo quando nascidos no estrangeiro, mantivessem a nacionalidade dos pais. Por outro lado, Estados que recebiam tais fluxos tendiam a adotar o critério territorial, que melhor protegeria os nascidos no seu território e que, afinal, acabavam mesmo por lá permanecendo ao longo da vida. No entanto, é de se observar que o final do século XX e início do século XXI são períodos em que há um sentimento de xenofobia crescente em muitos países que recebem fluxos migratórios e as regras para aquisição de nacionalidade refletem isso, sendo o critério territorial muitas vezes restringido pelo critério da filiação justamente para dificultar o acesso de determinados indivíduos à nacionalidade de tais Estados.
2.2. Aquisição derivada da nacionalidade: os naturalizados
Se os critérios para aquisição originária são mais ou menos uniformes, o mesmo não se pode dizer dos requisitos para a aquisição derivada da nacionalidade pelo estrangeiro. A aquisição da nacionalidade por naturalização é via de regra regulada por legislação detalhada, que estabelece critérios que variam de Estado para Estado. Porém, como grande diferencial em relação a aquisição originária, na qual o indivíduo já nasce com determinada nacionalidade, por força da vontade única e exclusiva do Estado, na aquisição derivada há via de regra o concurso de vontades, no sentido de que não basta a determinação das regras para a naturalização pelo Estado mas também a vontade do indivíduo em requerer tal nacionalidade (ainda que existam casos de imposição de naturalização em alguns países, o que não ocorre em absoluto no Brasil).
Assim, mesmo que o indivíduo se enquadre nas possibilidades legais de naturalização, o Estado não pode a ele impor sua nacionalidade (embora essa imposição ainda corra em alguns Estados, em especial quando se restringe o acesso do indivíduo ao trabalho como forma de forçar tal naturalização, ou em Estados que impõem a nacionalidade do cônjuge à esposa, por exemplo, ao arrepio das normas do Direito Internacional). 5
Via de regra, a residência habitual durante determinado período, o exercício de profissão regulamentada, o vínculo familiar (seja tendo filhos nacionais de determinado Estado, seja pelo casamento com nacional) são alguns dos critérios utilizados pelos Estados para a aquisição da nacionalidade derivada, permitindo que estrangeiros a obtenham pela via da naturalização. No Brasil, o art. 12, II, da Constituição Federal estabelece as regras básicas para a naturalização de estrangeiros, deixando para a legislação especial (notadamente os arts. 64 a 73 da Lei 13.445/2017, a Lei de Migração) os critérios objetivos para essa forma de aquisição da nacionalidade.
2.3. Distinção entre nacionais natos e naturalizados
Como visto, a nacionalidade pode ser adquirida de forma primária (os nacionais natos) ou secundária (os nacionais naturalizados). Uma vez adquirida, o indivíduo é nacional, não havendo distinções entre natos ou naturalizados, exceto se o Estado assim determinar. No Brasil, as distinções são muito poucas e somente podem ser feitas pela Constituição Federal, sendo vedada distinções não previstas no texto constitucional. Assim é o caso, por exemplo, da extradição, conforme determinado pelo art. 5º, LI: “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. Assim, enquanto ao brasileiro nato é vedada toda e qualquer forma de extradição, ao brasileiro naturalizado o texto constitucional reserva duas únicas possibilidades para que ocorra a extradição (vedadas portando quaisquer outras possibilidades de extradição mesmo do naturalizado). Da mesma forma a Constituição Federal reserva alguns cargos específicos, pela sua relevância, aos brasileiros natos (art. 12, § 3º), como por exemplo os da linha sucessória da Presidência da República. Outro critério de distinção se encontra no art. 222, em que o tempo de naturalização é utilizado para a diferenciação. 6
3. Mudança e perda de nacionalidade
Se ao Estado cabe impor os critérios para aquisição (e perda) de sua própria nacionalidade, não compete ao Estado critérios para perda ou aquisição de tal vínculo jurídico-político entre o indivíduo e terceiros Estados. Em outras palavras, o Estado não tem jurisdição e a ele é vedado impor ou retirar do indivíduo qualquer nacionalidade que não a do próprio Estado.
Já o indivíduo tem algumas liberdades, que Jacob Dolinger resume7em “direito de mudar” e “direito de não mudar” de nacionalidade. Assim, desde que algum Estado a conceda, ao indivíduo deve ser garantido o direito de mudar de nacionalidade, não podendo seu Estado originário obrigá-lo a manter a nacionalidade. Ao mesmo tempo, deve ser garantido ao indivíduo o direito de manter sua nacionalidade, exceto nos casos em que a perda seja decorrência expressa de desatendimento do indivíduo a comando constitucional. No Brasil, o art. 12, §4º da Constituição Federal elenca as únicas situações da perda da nacionalidade brasileira, consistentes (i) na perda da naturalização em virtude de atividade nociva ao interesse nacional (neste caso, tratando-se de nacionalidade derivada, entende o legislador que o indivíduo estaria desonrando a nacionalidade a ele concedida) ou (ii) aquisição de outra nacionalidade (aqui, o legislador busca a fidelidade do indivíduo à sua nacionalidade), salvo no caso de o indivíduo fazer jus a nacionalidade originária de outro Estado (caso em que, afinal, não se trata de buscar outra nacionalidade mas apenas exercer direito garantido pela origem do indivíduo) ou se terceiro Estado impuser ao brasileiro sua nacionalidade como forma de permanência no seu território ou exercício de direitos civis.
Assim, ao mesmo tempo em que não restringe o direito do brasileiro, nato ou naturalizado, de mudar de nacionalidade, a Constituição Federal restringe as hipóteses de perda àquelas em geral estabelecidas pela maior parte dos Estados, notadamente na situação em que o indivíduo opta por outra nacionalidade.9
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem já estabelecia, em 1948, antes mesmo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que “(t)oda pessoa tem direito à nacionalidade que legalmente lhe corresponda, podendo mudá-la se assim o desejar, pela de qualquer outro país que estiver disposto a concedê-la” (art. 19).
3.1. A reaquisição da nacionalidade
Uma vez perdida pelo indivíduo, a reaquisição da nacionalidade é possível, desde que ausente a causa da perda (por ex. a concomitância de nacionalidades voluntárias) e presentes os requisitos para a aquisição. No caso brasileiro e em relação aos naturalizados, o cancelamento da perda se faz pela via da ação rescisória.
Uma vez readquirida, deve se observar os efeitos ex nunc da reaquisição, ainda que retornando, como é certo que o faça, o indivíduo ao status original de nato ou naturalizado, conforme o caso.
4. Conflito de nacionalidade
Tem-se o conflito de nacionalidade quando o mesmo indivíduo é titular de duas ou mais nacionalidades (conflito positivo) ou quando o indivíduo está na situação de apatridia, sem qualquer nacionalidade (conflito negativo). Ambas as situações são repelidas pelo Direito Internacional, por motivos distintos.
4.1. Conflito positivo de nacionalidade
Em geral, somente será titular de mais de uma nacionalidade o indivíduo que fizer jus de maneira originária a elas. A maior parte dos Estados condena à perda da nacionalidade aqueles que optam (isto é, buscam a naturalização) por outra nacionalidade. É o caso do Brasil (art. 12, § 4º, II, “a”), onde a dupla nacionalidade é admitida no caso de reconhecimento de nacionalidade originária pelo outro Estado.
A grande controvérsia que se assenta aqui diz respeito a qual ordenamento jurídico se aplica ao indivíduo, em especial nas questões atinentes ao Direito Internacional Privado, onde a nacionalidade muitas vezes determina o direito a ser aplicável a um indivíduo. Embora as soluções sejam analisadas caso a caso, em geral busca-se aplicar o ordenamento mais próximo do indivíduo. Assim, se se trata de indivíduo titular das nacionalidades do Brasil e Itália, mas residente ou domiciliado neste último país, a solução da lex fori em geral será adotada, aplicando-se a ele a lei italiana.
4.2. Conflito negativo de nacionalidade
Situação mais grave ocorre quando o indivíduo não é titular de nenhuma nacionalidade, sendo, portanto, considerado apátrida. Ser estrangeiro em todos os Estados significa que Estado algum está obrigado, em tese, a proteger aquele indivíduo e esta situação é mais fortemente repelida pelo Direito Internacional por deixar o indivíduo potencialmente à margem de uma proteção estatal mínima.
A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, ratificada pelo Brasil pelo Decreto 4.246/2002, estabelece em seu artigo 7º, item 1, que 1. “ressalvadas as disposições mais favoráveis previstas por esta Convenção, todo Estado Contratante concederá aos apátridas o regime que concede aos estrangeiros em geral”. Naturalmente, não poderia ser diferente, eis que aquele que não é nacional, é estrangeiro, devendo, portanto, o apátrida ser considerado ao menos estrangeiro, para fins de proteção legal. Nesse sentido, não é demais lembrar do caput do art. 5º da Constituição Federal, que estabelece que “(t)odos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)” (grifo nosso).
Assim, a proteção dos estrangeiros (apátridas aí incluídos) está expressa em nossa Constituição Federal, não significando a não titularidade de nacionalidade brasileira a falta de amparo mínimo legal. Ademais, deve ser observado que compete apenas à própria Constituição Federal o eventual estabelecimento de distinções entre nacionais e estrangeiros residentes no Brasil, sendo vedada a discriminação de estrangeiros pela legislação infraconstitucional.
Notas
1 O autor agradece a Fabrício Felamingo pelo seu auxílio na realização da pesquisa que levou a este verbete.
2 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição, p. 201.
3 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado, p. 336.
4 VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais, uma leitura da jurisprudência do STF, p. 611.
5 A Convenção sobre nacionalidade de Montevidéu, de 1933, por exemplo, dispõe em seu art. 6 que “(n)em o casamento nem a sua dissolução atingem a nacionalidade dos cônjuges ou a de seus filhos”. O Brasil ratificou a Convenção (Decreto 2.572/1938) e cumpre tal determinação, não sendo o casamento motivo para aquisição ou perda de nacionalidade em nenhum caso nos diversos textos constitucionais, inclusive na atual Constituição de 1988.
6 Art. 222, caput, da Constituição: “A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País.”
7 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral, p. 48
8 Nesse sentido, a Convenção sobre nacionalidade de Montevidéu, de 1933 (Decreto 2.572/1938, no seu art. 4, estabelece que “(n)o caso de transferência de uma parte do território de um dos Estados signatários a outro destes, os habitantes da parte transferida não se deverão considerar nacionais do Estado, ao qual se tenha feito a transferência, salvo se optarem expressamente pela mudança da sua nacionalidade de origem.”
9 Novamente, a Convenção sobre nacionalidade de Montevidéu, de 1933 dispõe no seu art. 1 que “(a) naturalização perante as autoridades competentes de qualquer dos países signatários implica a perda da nacionalidade de origem”.
10 Comumente, de forma imprópria, chamada de “dupla cidadania”, eis que, como visto, não necessariamente o nacional está apto a exercer os direitos políticos (esta sim, a expressão jurídica da cidadania). Ainda, alguns Estados vedam a possibilidade de exercício de direitos políticos em dois Estados concomitantemente. Neste sentido, é interessante notar o que estabelece o supra citado Estatuto de Amizade Brasil-Portugal, em seu art. 17, item 3: “O gozo de direitos políticos no Estado de residência importa na suspensão do exercício dos mesmos direitos no Estado da nacionalidade.” Ainda que o tratado não se refira à situação de dupla nacionalidade, ele impede o exercício dos direitos políticos pelos portugueses no Brasil ao mesmo tempo que em Portugal, e o mesmo aos brasileiros que estejam em Portugal, que poderão solicitar exercer os direitos políticos lá mas ficam suspensos de exercer o mesmo no Brasil enquanto perdurar a situação.
Referências
BROWNLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Tradução por equipe Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Trad. por Luis Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais, uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
Citação
HUSEK, Carlos Roberto. Nacionalidade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Internacional. Cláudio Finkelstein, Clarisse Laupman Ferraz Lima (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/494/edicao-1/nacionalidade
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