O sistema processual civil inaugurado com a entrada em vigor do CPC de 2015 delineou um novo rumo para a aplicação da tutela executiva, atribuindo ao magistrado, no seu art. 139, IV, o Poder Geral de Coerção, conferindo-lhe uma ampla possibilidade de aplicação de medidas coercitivas atípicas com a finalidade de satisfazer uma prestação. No passado atrelado ao Princípio da Tipicidade dos meios executivos, o formalismo imposto por tal regime, que exige a aplicação a um caso concreto apenas das medidas expressamente previstas em lei para àquela situação, foi paulatinamente desgastado no curso da vigência do CPC de 1973, em especial por causa do regime instaurado pelo art. 461, daquele estatuto. Fruto dessa evolução, o regime atualmente previsto para a aplicação da tutela executiva migrou de um sistema típico para um sistema misto, onde a lei prevê algumas medidas coercitivas típicas, mas também confere o juiz o poder de aplicar medidas coercitivas atípicas quando assim o exigir o caso concreto. É o perfil geral desse “Poder geral de coerção” que será apresentado nesse estudo em síntese bastante simplificada do conteúdo da nossa Tese de Livre Docência, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no ano de 2018, e publicada em livro com a mesma denominação pela Editora Revista dos Tribunais,1 na qual procuramos abordar os principais aspectos desse novo e ainda desconhecido instituto do direito processual civil.

1. Tutela de conhecimento e tutela executiva


Em que pese o fato do binômio declaração-execução ser estudado desde o Direito Romano, até o presente momento não é possível afirmar que existe uma classificação que possa ser considerada satisfatória quanto ao tema. Isso se dá, dentre outras causas, porque resta evidente a maior preocupação da doutrina com a atividade típica da tutela de conhecimento (acertamento), relegando a um segundo plano a tutela executiva, como se esse fosse menos importante do que aquele.


Sobre esse tema, aliás, já tivemos a oportunidade de afirmar que a distorção não é uma deficiência exclusiva da nossa doutrina, acontecendo também nos sistemas jurídicos da Itália, da Alemanha, da França, de Portugal e da Espanha,2 levando Francesco Carnelutti a afirmar que:


Il vero è che la nozione dell’esecuzione processuale è stata finora assai meno elaborata che quella della cognizione; il processo esecutivo non ha punto minore importanza che il processo cognitivo ma il livello, a cui sono giunte rispetto ad esso la tecnica e la scienza, e notevolmente inferiore; ciò è dovuto al fatto che la funzione processuale si è storicamente differenziata prima quanto la cognizione che tanto all’esecuzione; fino a poco tempo fa si è persino ignorato che processo cognitivo e processo esecutivo fossero due specie dello stesso genero.3


Nada obstante, quando se trata de classificar a tutela de conhecimento, duas são as posições mais conhecidas sobre o tema. A primeira se denomina teoria ternária ou tríplice, pois sustenta que a tutela de conhecimento se divide em tutela declaratória, que se presta a mera declaração da existência ou não de uma relação jurídica, da falsidade ou não de um documento ou do exato conteúdo de uma clausula contratual; tutela constitutiva, que se presta a alteração do estado de uma relação jurídica; e, tutela condenatória, na qual se busca a condenação a satisfação de uma prestação. Já a segunda, denominada teoria quinaria ou quíntupla, acrescenta as mencionadas espécie a tutela executiva lato sensu, que dispensa o emprego de um novo procedimento ou via executiva para satisfazer o conteúdo da decisão, bastando para isso a prática de uma providência que em certas circunstâncias pode ser até mesmo de natureza administrativa (v.g. expedição de mandado); e, a tutela mandamental, que diz respeito a emissão de uma ordem judicial. Esse último entendimento é o que prevalece em nossa doutrina.


Existem ainda inúmeras outras propostas de categorização, como a ofertada por Ovídio Baptista da Silva,4 que classifica as tutelas como declaratória, constitutiva, executiva (condenatória-executiva) e mandamental; e, como a ofertada por Luiz Guilherme Marinoni,5 que propõe uma divisão em dois grupos denominados tutelas satisfativas e tutelas não satisfativas, afirmando que as tutelas satisfativas são as declaratórias e as constitutivas. Já as tutelas não satisfativas são agrupadas em razão das necessidades do direito material posto em juízo ou das técnicas empregadas para a sua efetivação. No primeiro caso teríamos: (a) a tutela inibitória, (b) a tutela reintegratória, (c) a tutela ressarcitória e (d) a tutela do adimplemento; enquanto no segundo teríamos: (a) a tutela mandamental, (b) a tutela condenatória e (c) a tutela executiva.


Concordando parcialmente com todas as propostas apresentadas, mas tendo em conta a óptica que se preocupa com a relação que cada uma dessas eficácias mantem com a efetiva satisfação do direito material, entendemos adequada a opção de agrupá-las sob esse enfoque da satisfação do direito, “...considerando-se como satisfativa (ou autossatisfativa) uma tutela que prescinde de qualquer providência posterior a sua concessão para que se obtenha a total efetivação do que foi pleiteado em juízo, e, como não satisfativa, aquela tutela que é insuficiente por si só para efetivar o direito pleiteado em juízo, exigindo providências complementares para a sua satisfação.”6


Nesse sentido a expressiva lição de Crisanto Mandrioli ao afirmar que “... nelle sentenze di mero acertamento e nelle sentenze constitutive la tutela giurisdizionale si esaurisce frutuosamente, mentre nella sentenza di condanna si esaurisce soltanto una fase di quella tutela”.7


Em outros termos, conforme já concluímos, as tutelas de conhecimento


“(...) devem ser agrupadas sob o enfoque da satisfatividade do direito, considerando-se como satisfativa (ou autossatisfativa) uma tutela que prescinde de qualquer providência posterior a sua concessão para que se obtenha a total efetivação do que foi pleiteado em juízo, e, como não satisfativa, aquela tutela que é insuficiente, por si só, para efetivar o direito pleiteado em juízo, exigindo providências complementares para a sua satisfação. A eficácia declaratória, assim como a eficácia constitutiva, deve ser reputada como uma tutela satisfativa (ou autossatisfativa), na medida em que prescinde de atividade executiva posterior, promovendo alteração apenas no plano jurídico e não no plano fático. Basta a prolação da sentença para que o direito pleiteado seja efetivado. Já a eficácia condenatória exige a alteração do mundo empírico, sendo a sentença insuficiente para a obtenção da satisfação do direito pleiteado em juízo. Por isso torna-se necessária a prática de atos posteriores ao pronunciamento judicial, por vezes através do emprego de outra via processual, para que se obtenha a satisfação do direito. Trata-se de um tipo de tutela que não é autossatisfativa ou, para seguir a terminologia adotada, trata-se de uma tutela não satisfativa.”.8


De todo o exposto resta certo que, uma vez prolatada uma decisão cuja eficácia preponderante é de natureza condenatória, exsurge a necessidade de fazer com que ela opere eficácia também no mundo empírico, sem o que estar-se-ia desatendendo a necessidade de efetividade que deve ter um provimento judicial, cumprindo o mandamento contido no art. 5º, XXXV, da Constituição da República, que consagra implicitamente o Princípio da Efetividade do Processo. “Não se pode deixar alguém que ganhou ficar sem levar”.


Torna-se necessária, então, a transformação do mundo empírico, mediante o emprego de uma tutela apta a fazê-lo, que é a tutela executiva, aquela que por definição visa promover a alteração do mundo de fato. É por isso que a tutela executiva deve ser considerada como exterior, como posterior e como complementar a tutela de conhecimento condenatória, isso porque não se confunde com as tutelas de conhecimento que têm em sua essência a função de declarar uma controvérsia e não de satisfazer uma prestação, porque se realiza sempre para efetivar o conteúdo de um pronunciamento judicial ou de seu equivalente (título extrajudicial) e porque complementa a satisfação de uma pretensão que a tutela de conhecimento não pode satisfazer sozinha.


Essa tutela executiva que, repita-se, é exterior, posterior e complementar à tutela de conhecimento condenatória, também pode ser classificada em três espécies distintas, segundo a sua natureza e, por consequência, segundo a maneira pela qual se realizam os atos que modificam ou que preparam a modificação do mundo de fato: (a) a tutela executiva stricto sensu, que se realiza mediante sub-rogação; (b) a tutela executiva coercitiva, que se realiza mediante a imposição de medidas coercitivas que tem por escopo forçar a satisfação da prestação pelo próprio executado; e, (c) a tutela executiva ordenatória, que se realiza mediante a imposição de ordem a agente público (tutela mandamental) ou a particular (tutela executiva lato sensu). 


Em suma, nesse panorama de classificação das tutelas de conhecimento e de execução, fundado na eficácia que produzem, encontramos como uma das espécies de tutela executiva aquela que se presta mediante coerção, cuja aplicação agora não mais se limita as medidas típicas expressamente previstas em lei, sendo permitido ao juiz, com fundamento no Poder Geral de Coerção (art. 139, IV, do CPC) e diante das peculiaridades do caso concreto, empregar as medidas atípicas necessárias à satisfação de uma prestação não cumprida.


2. O sistema executivo no CPC de 1973 


Na sua redação original o CPC de 1973 apresentava, dentre os seus cinco livros, o Livro II que tratava do “processo de execução” e o Livro III que tratava do “processo cautelar”, ostentando cada qual um regime jurídico cuja sistemática era diversa. Para a prestação de tutela executiva valia o Princípio da Tipicidade dos meios executivos, segundo o qual era imposto ao julgador o dever de aplicar exclusivamente os meios previstos em lei para realizar a atividade executiva. Já para a prestação de tutela cautelar o Código apresentava uma série de medidas típicas ou nominadas, a começar pelo arresto cautelar, disciplinado a partir do art. 813 do CPC de 1973, mas ao mesmo tempo permitia ao magistrado, mediante a concessão do Poder Geral de Cautela, previsto no art. 796, a concessão de medidas atípicas necessárias para assegurar o resultado útil de outro processo, fosse ele de conhecimento fosse ele de execução.


Com o passar dos anos e com o início da fase das reformas setoriais do CPC de 1973, que resultou numa alteração substancial do nosso sistema processual civil, a Lei 8.952, de 13.12.1994 e a Lei 10.444, de 7.5.2002, alteraram a redação do art. 461, transformando o sistema executivo lastreado na tipicidade em um sistema misto, já que o § 5º do preceito aduzia que “para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou mediante requerimento, determinar as medidas necessárias”.


Como ressaltou Luiz Guilherme Marinoni


O art. 461 conferiu ao juiz, por meio de uma norma de caráter aberto, poder para utilizar a modalidade executiva adequada ao caso concreto, eliminando a necessidade da sua expressa previsão legal e assim quebrando o princípio da tipicidade. O mesmo espírito foi adotado pelo sistema do art. 461-A, (...) Mas, ao lado dessas formas de exercício do Poder Executivo, conservou-se, para a obrigação de pagar quantia, a técnica da execução por expropriação, mantendo-se, com ela, o juiz preso aos meios de execução previstos na lei.”9


Como o art. 461 tratava apenas das obrigações de fazer e de não fazer, foi inserido no CPC o art. 461-A, para estender essa nova sistemática também para as obrigações de entrega de coisa. Ficaram fora dessa mecânica, entretanto, aquelas obrigações que no sentir do dia a dia forense são as que mais demandam o manuseio da tutela executiva, que são as obrigações de pagar quantia, ainda submetidas ao Princípio da Tipicidade dos meios executivos.


3. O sistema executivo no CPC de 2015


A entrada em vigor do CPC de 2015 promoveu profundas alterações tanto em relação ao mecanismo antes existente para a concessão de uma tutela cautelar, quanto em relação ao mecanismo antes existente para a concessão de uma tutela executiva.


No tocante ao primeiro sistema, iniciou a lei por reagrupar as tutelas sob a denominação geral de tutelas provisórias, que apresenta como espécies as tutelas de urgência (antecipada e cautelar) e a tutela de evidência, para em seguida traçar um novo modelo para a concessão de tais medidas.


A tutela cautelar, antes concedida através de um sistema misto, intermediário entre um sistema típico e um sistema atípico, pois as medidas cautelares específicas ou nominadas eram concedidas como resultado de um procedimento cautelar expressamente previsto pela lei (arresto, sequestro, etc...) e as medidas cautelares inominadas concedidas com base no Poder Geral de Cautela, passaram a ser concedidas com base num sistema atípico, sendo eliminados os procedimentos cautelares específicos previstos na lei revogada.


Como indica o art. 301 do CPC, manteve-se a tutela, mas eliminou-se o procedimento específico. Por isso, hodiernamente, todos os provimentos cautelares são concedidos com base no Poder Geral de Cautela, que juntamente com o Poder Geral de Antecipação exsurge do art. 300, do CPC.


Com relação à tutela executiva, em especial quanto ao que aqui interessa, que é a tutela coercitiva, operou-se uma migração de um sistema típico para um sistema misto. Agora existem medidas de natureza coercitiva cuja concessão depende do respeito à forma expressamente prevista na lei, como a prisão do devedor de alimentos, mas também existem medidas atípicas, que podem ser concedidas com base no Poder Geral de Coerção atribuído ao julgador pelo art. 139, IV, do CPC.


4. O perfil do poder geral de coerção


A adoção de um sistema misto para a concessão da tutela coercitiva, com a expressa previsão legal de aplicação de medidas coercitivas típicas e a existência de uma regra matriz do Poder Geral de Coerção (art. 139, IV, do CPC), através da qual pode o magistrado determinar a aplicação de medidas coercitivas atípicas, exige agora um hercúleo trabalho por parte da doutrina e dos nossos tribunais para delimitar qual deve ser o perfil desse poder atribuído ao juiz.


Há necessidade de estabelecer quais são os requisitos, as características e os limites ao exercício desse poder, assim delimitando as opções que tem o juiz ao exercê-lo, o que conduzirá uma das virtudes que mais se almeja num sistema jurídico, que é a segurança. Deixar ao absoluto alvedrio do juiz a concessão dessas medidas, como se dá também com relação a outros institutos, acabaria por ampliar sobremaneira a possibilidade do arbítrio, o que pode tornar algo que se apresenta como o melhor remédio para a obtenção da efetividade do processo num mal a ser combatido.


Por tal razão é que passamos a apresentar, de uma forma bastante simplista e apenas para servir como um ponto de partida para implementar uma discussão com base científica sobre o tema, o que entendemos ser adequado com relação aos requisitos para concessão das medidas coercitivas típicas, as características essenciais e os limites ao Poder Geral de Coerção no Direito Brasileiro.


4.1. Requisitos


O poder geral de coerção, cuja regra matriz está esculpida art. 139, IV, do CPC, e que pode ser definido como o poder que a lei confere ao juiz para determinar, conforme as exigências do caso concreto e visando a efetividade da tutela executiva, medidas coercitivas diversas das que são expressamente previstas na legislação processual, assim como se dava com o poder geral de cautela do CPC de 1973, apresenta requisitos não explicitados pela lei, mas que podem ser extraídos do sistema jurídico.


Nesse passo, da expressão “necessárias para assegurar” constante do art. 139, IV, do CPC, cuja melhor redação teria sido “necessárias para efetivar”, pode-se extrair a ideia de que as medidas atípicas concedidas com embasamento no poder geral de coerção se prestam a permitir que o exequente realize, da forma mais adequada e eficaz, o seu direito fundamental a um processo de resultados, conforme lhe assegura o art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Por isso o primeiro requisito essencial à concessão de uma medida fundada no poder geral de coerção é a necessidade, entendida como a exigência de aplicação da medida coercitiva para evitar que se torne impossível, improvável ou ao menos mais difícil a efetivação do resultado que se pretende alcançar.


Por sua vez deve ser observado que, se a tutela coercitiva nada mais é do que uma espécie pertencente ao gênero tutela executiva, então se torna forçosa a conclusão de que ela se submete aos mesmos princípios que informam a atividade executiva, em especial ao princípio da utilidade. Por isso, se a aplicação de medidas coercitivas atípicas não traz qualquer benefício para o exequente, sendo inapta para forçar o executado a satisfazer a prestação, servindo apenas para causar-lhe um ônus, então à imposição da medida deixa de ter a função de coerção e passa a ter a função de coação, o que não é admissível. Nas sábias palavras de Lopes da Costa a atividade executiva “não se pode reduzir a um ato que apenas causa prejuízo ao executado, sem proveito algum para o exequente”.10


Daí, além de ser necessária para garantir ou para potencializar a efetividade da atividade executiva, a concessão de uma medida coercitiva atípica deve levar sempre em conta que a atividade executiva se limita ao montante exato da obrigação e dos seus acessórios, promovendo-se a adequação da medida concedida à prestação esperada. Não se justifica, por exemplo, a aplicação de uma medida cujo ônus imposto seja extremamente pior do que o próprio cumprimento da prestação.


Como segundo requisito, portanto, temos a pertinência, que deve ser entendida como a adequação da medida a situação de fato que autoriza a sua imposição. Trata-se da “justa medida” ou da ‘exata medida’ em face do caso concreto. A vedação ao excesso, que numa desproporção estrema desbordaria os limites daquilo que é razoável diante do caso concreto.


Em conclusão, portanto, são requisitos essenciais à concessão de medidas coercitivas atípicas, fundadas no poder geral de coerção constante do art. 139, IV, do CPC, a necessidade e a pertinência da medida, sempre aferidas tendo em conta a situação concreta.


4.2. Características


O poder geral de coerção, em que pese à discussão que se instaura sobre o tema, apresenta cinco características decorrentes do seu perfil sistêmico: (a) a instrumentalidade, (b) a universalidade, (c) a autonomia, (d) a variabilidade e (e) a cumulatividade.


A tutela coercitiva não se presta, como cediço, a satisfazer de forma direta a prestação insatisfeita, mas apenas a forçar o destinatário da medida a optar por cumprir a prestação ao invés de sofrer a consequência do descumprimento da coerção. Por isso tais medidas se caracterizam como medidas instrumentais, tendo sido batizadas pela doutrina tradicional como “medidas de execução indireta”, que para a doutrina mais antiga não era nem mesmo considerada uma atividade executiva, então limitada a execução por sub-rogação.


Tratando-se de medidas instrumentais, portanto, as medidas coercitivas atípicas devem sempre respeitar três requisitos que caracterizam tal tipo de medidas, quais sejam: (a) são decretadas judicialmente, (b) não se confundem com uma penalidade e (c) não se confundem com a obrigação principal. Desrespeitado qualquer desses requisitos a medida não pode ser considerada coerção e, por isso, não pode ser decretada com base no art. 139, IV, do CPC. 


A segunda característica é a universalidade, segundo a qual uma medida coercitiva atípica pode ser aplicada a qualquer modalidade de obrigação, inclusive a de pagar quantia, como expressamente autoriza a parte final do preceito em comento ao se valer da frase “(...) inclusive nas obrigações que tenham por objeto prestação pecuniária.”


Por sua vez, dizer que o poder geral de coerção tem por característica a autonomia significa afirmar que a aplicação das medidas atípicas não é subsidiária da aplicação de medidas executivas típicas, podendo ser concedida independentemente do esgotamento dos meios que a lei considera inicialmente adequados para a prestação da tutela executiva.


Conforme já tivemos a oportunidade de afirmar


“Nada obstante o respeito que atribuímos às posições contrárias, entendemos que a tutela coercitiva deve ser aplicada pelo magistrado de forma autônoma e independente das demais espécies de tutela, não sendo necessário aguardar a frustração da atividade executiva em outras modalidades, como a tutela executiva stricto sensu ou a tutela ordenatória, para que somente então sejam possíveis as aplicações de medidas coercitivas. Sob o enfoque da efetividade, numa interpretação conforme a Constituição, seria absurdo ter que esgotar um meio executivo como um requisito prévio que deve ser atendido para viabilizar a aplicação das medidas coercitivas. Se o que se pretende é a satisfação de uma prestação não adimplida e se a via processual respeita os limites impostos pelo sistema, qual seria a justificativa para não aplicá-las desde logo, reduzindo a demora fisiológica do processo com a prática de uma quantidade menor de atos processuais necessários para o encerramento da atividade executiva? Além de atender ao princípio da efetividade e ao princípio da economia processual, ainda se atinge de uma forma mais rápida, mais barata e menos prejudicial às partes, aquilo que preconiza o Princípio Constitucional da Eficiência da Administração Pública, ao qual também se submete a atividade do Poder Judiciário, seja ela atinente à tutela de acertamento seja ela atinente à tutela executiva.”11


A quarta característica, que em certa medida é uma especialização da subsidiariedade acentuada pelo princípio da solidariedade, é a variabilidade, segundo a qual a existência de uma medida típica prevista para determinada situação, se necessário e adequado a situação de fato, pode desde logo ser substituída por uma medida atípica, mormente se ela for menos gravosa ao seu destinatário.


Por fim, a última característica do poder geral de coerção e a cumulatividade. Isso porque não há óbice no sistema para que as medidas coercitivas atípicas sejam determinadas de modo cumulado, seja qual for a sua espécie (típica ou atípica), desde que o conjunto delas seja necessário para conferir pressão suficiente a convencer o executado a cumprir com a prestação não adimplida ou a cumprir uma determinação judicial. É o que se dá, aliás, numa execução de obrigação relativa a verba alimentar, onde a lei prevê expressamente a possibilidade de cumulação de duas medidas coercitivas típicas, que são o protesto do pronunciamento judicial e a prisão pelo débito alimentar.


4.3. Limites


Assim como se dava com o poder geral de cautela na vigência do CPC de 1973, que encontrava limites na “correlação com a ação principal” e na “irreversibilidade da medida”, também o poder geral de coerção apresenta limites que impedem a concessão de uma medida coercitiva atípica pelo juiz. São eles (a) os limites objetivos, (b) os limites subjetivos, (c) os limites temporais e (d) os limites procedimentais.


Os limites objetivos dizem respeito a limitações impostas pelo sistema jurídico, quando este impede, explicita ou implicitamente, a aplicação de uma medida coercitiva. Daí, por exemplo, se o art. 5º, III, da Constituição da República diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumanou degradante”, então não pode o juiz fixar como medida coercitiva atípica que o executado seja privado de sono enquanto não cumprir com a prestação devida. Da mesma forma não pode o juiz fixar multa para que o executado apresente lista de bens impenhoráveis, uma vez que a lei exclui tais bens da realização da penhora. Em suma, o juiz não pode determinar, sob a cominação de alguma medida coercitiva, a prática de uma conduta contrária ao núcleo essencial de qualquer princípio constitucional ou infraconstitucional ou de uma regra jurídica proibitiva ou obrigatória.


Quando se trata de tutela de urgência, entretanto, na qual para a concessão do provimento deve ser observada a preponderância do direito, a vedação para a imposição da coerção pode não decorrer de uma proibição direta do sistema, mas sim de um raciocínio lógico desenvolvido pelo julgador para chegar à conclusão de que, diante do caso concreto, a medida coercitiva não é necessária ou pertinente.


Daí a razão pela qual já afirmamos que


“(...) os limites objetivos, sempre examinados em face do caso concreto, são de duas ordens: os limites objetivos diretos e os limites objetivos indiretos. Os limites objetivos direitos decorrem da existência, no sistema jurídico, de uma norma (princípio ou regra) que proíba a coerção ou que obrigue conduta diversa daquela que seria determinada na medida coercitiva; enquanto os limites objetivos indiretos decorrem da preponderância de um direito sobre outro, levando-se em conta a necessidade e a pertinência da medida”.12


Quanto aos limites subjetivos, ou seja, quanto a quem pode ser destinada uma medida coercitiva atípica, já apresentamos a seguinte classificação:


“01) quanto à satisfação de uma prestação as medidas coercitivas podem ser impostas (i) ao responsável executivo (primário ou secundário, pessoa física ou jurídica, Poder Público), (ii) ao seu sucessor (definido pela própria lei ou em decorrência de decisão proferida em desconsideração da personalidade) e (iii) aos terceiros a eles vinculados (funcionários ou servidores); e, 02) quanto ao cumprimento de uma determinação judicial as medidas coercitivas podem ser impostas (i) a todas as categorias acima mencionadas, (ii) aos terceiros externos ao processo e (iii) aos terceiros vinculados ao processo, isso quando exercem funções atípicas ou quando atuam com desvio de finalidade (juiz, auxiliares da justiça, promotor e advogado da parte)”.13


Os limites temporais representam as limitações de tempo para que uma medida coercitiva seja aplicada em um determinado caso concreto. Assim, embora as astreintes tendam ao infinito, em um determinado momento o valor total da multa será de tal maneira excessivo que acabará por ultrapassar a capacidade financeira do seu destinatário, o que a tornará inútil naquele momento. Da mesma forma a lei pode impor limites fixos para a aplicação da medida, como se dá no caso da prisão por alimentos.


Por fim, “(...) embora bastante variáveis e embora apresentem uma tênue diferença da proibição que impõe os limites objetivos, a vedação da concessão de ofício das medidas coercitivas (art. 2º) a não ser nas exceções previstas por lei, bem como as outras situações nas quais a estrutura do rito impõe restrições semelhantes, caracterizam-se como os limites procedimentais ao Poder Geral de Coerção”.14


5. Considerações finais


O poder geral de coerção, previsto na regra matriz do art. 139, IV, do CPC, que representa uma novidade agora incontestável do nosso sistema jurídico processual, depende ainda de um trabalho de fôlego da nossa doutrina e dos nossos tribunais no desiderato de fixar-lhe os requisitos, as características e os limites, aqui apresentados como ponto de partida para uma discussão mais ampla e aprofundada do tema.


Deixar ao alvedrio do juiz o exercício de tal poder, sem a fixação dos parâmetros necessários ao seu exercício, implica em ampliar de modo excessivo as opções de aplicação de tais medidas, o que acarretaria enorme insegurança jurídica.


Daí a necessidade de um trabalho sério e consciente, isento das paixões que o tema desperta, para permitir a real implementação de um instituto que, com toda certeza, promoverá a efetividade que se espera de um sistema executivo compatível com as necessidades do seu tempo.

Notas

1OLIVEIRA NETO, Olavo de. O poder geral de coerção.

2OLIVEIRA NETO, Olavo de. A defesa do executado e dos terceiros na execução forçada, p. 13.

3CARNELUTTI, Francesco. Istituizioni del processo civile italiano, v. primo, p. 38. “A verdade é que a noção de execução processual tem sido muito menos elaborada do que a noção de conhecimento. O processo executivo não tem menor importância do que o processo de conhecimento, mas o nível ao qual a técnica e a ciência alcançaram nesse ponto é consideravelmente inferior. Isso se deve ao fato de que a função processual foi historicamente diferenciada, por primeiro, quanto ao conhecimento e depois quanto à execução. Até recentemente era ignorado que o processo de conhecimento e o processo executivo eram espécies do mesmo gênero.” (tradução nossa)

4SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil, v. 1, pp. 160-161. “A conclusão, portanto, é a seguinte: temos sentenças condenatórias, mas não temos uma correspondente ação condenatória. Quem exerce o que se diz ‘ação condenatória’ na verdade limita-se a exercer ‘pretensão condenatória’. A verdadeira ação, neste caso, é executiva ou, se quisermos, ‘condenatório-executiva’. a sentença condenatória deve funcionar como sentença incidental, contendo julgamento parcial de mérito, devendo a relação processual prosseguir executivamente. Por uma determinação lógica, imposta pelo próprio sistema, devemos eliminar a autonomia da ação condenatória, de modo que a execução que se seguir a sentença de procedência seja simples fase final de uma única ação, que, começando com a petição inicial, prossiga até o ato final realizador da pretensão. Todavia, este modo de conceber a ‘ação’ (processual) condenatória não interfere com o seu conteúdo nem altera sua relação com as demais ações de direito material, especialmente com as declaratórias e constitutivas. A única consequência desta concepção será a perda da autonomia dessa categoria, conceituada como ‘ação condenatória’.”

5MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica, pp. 65-67.

6OLIVEIRA NETO, Olavo de. O poder geral de coerção, p. 87. 

7MANDRIOLI, Crisanto. L’azione executiva. Milano: Giuffrè, 1955. p. 310. “(...) nas sentenças de mero acertamento e nas sentenças constitutivas a tutela jurisdicional se exaure frutuosamente, enquanto na sentença de condenação se exaure apenas uma fase da tutela.”. (tradução nossa)

8OLIVEIRA NETO, Olavo de. O poder geral de coerção, p. 314.

9MARINONI, Luiz Guilherme. Classificação das sentenças que dependem de execução. In CIANCI, Mirna, QUARTIERI, Rita. Temas atuais da execução civil. Estudos em homenagem ao Professor Donaldo Armelin, p. 405.

10LOPES DA COSTA, Alfredo de Araújo. Direito processual civil brasileiro, p. 54.

11OLIVEIRA NETO, Olavo de. O poder geral de coerção, pp. 243-244.

12OLIVEIRA NETO, Olavo de. O poder geral de coerção, p. 251. 

13Idem, p. 317.

14OLIVEIRA NETO, Olavo de. O poder geral de coerção, p. 317.


Referências

CARNELUTTI, Francesco. Istituizioni del processo civile italiano. 5. ed. Roma: Foro Italiano, 1956.

LOPES DA COSTA, Alfredo de Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.

MANDRIOLI, Crisanto. L’azione executiva. Milano: Giuffrè, 1955.

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

__________________. Classificação das sentenças que dependem de execução. In CIANCI, Mirna, QUARTIERI, Rita (coord.). Temas atuais da execução civil. Estudos em homenagem ao Professor Donaldo Armelin. São Paulo: Saraiva, 2007.

OLIVEIRA NETO, Olavo de. O poder geral de coerção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

__________________. A defesa do executado e dos terceiros na execução forçada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de direito processual civil. São Paulo: Verbatim, 2015. Volumes 1, 2 e 3. 

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.


Citação

OLIVEIRA NETO, Olavo de. Poder geral de coerção. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/456/edicao-2/poder-geral-de-coercao

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