• Regime jurídico dos bens públicos: perspectiva civilista, funcionalização e outros temas

  • Patrícia Baptista

  • Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

Os bens públicos e seu regime jurídico são tema recorrente na literatura do direito administrativo. A par de obras aclamadas,1 uma rápida pesquisa revela que o assunto não tem sido negligenciado pelo direito administrativo contemporâneo.2 No entanto, tão numerosa quanto a produção acadêmica a respeito é a quantidade de questões práticas ainda problemáticas e que demandam discussão quando se trata gestão jurídica do patrimônio público. 

De fato, escondidas por aparente camada de poeira assentada sobre uma legislação de regência um tanto antiquada3 e por uma perspectiva civilista meio anacrônica,4 acham-se questões palpitantes, que devem ser discutidas. 

Nesse contexto, não é pretensão deste texto revisitar de forma abrangente a sistematização teórica tradicional do regime jurídico dos bens públicos. Outros já o fizeram e a bibliografia citada ao final está cheia das melhores referências para os que quiserem uma visão panorâmica do tema. Quero, ao contrário, aproveitar a oportunidade para concentrar-me em algumas questões (teóricas), que entendo estarem intrinsecamente relacionadas, acerca das quais venho refletindo em função de longa vivência prática na matéria. A ideia é provocar e convidar o leitor a reflexões críticas.

A primeira discussão diz respeito à própria noção jurídica de propriedade pública e à necessidade de que seja compreendida em suas especificidades em relação ao conteúdo da propriedade privada (o utere, fruere ed abutere). Nesse mesmo propósito, questiono a adequação do tratamento dispensado à matéria na lei civil. A topologia do trato dos bens públicos pelo Código Civil, na verdade, reforça a ideia de que propriedade seria um conceito unívoco aplicável quer ao domínio privado quer ao público. Sei que a discussão é vetusta, especialmente no direito estrangeiro, onde muito já se discorreu a respeito da distinção entre domínio público e propriedade privada.5 Porém, me parece oportuno retornar ao tema para destacar as peculiaridades da relação da Administração Pública com o patrimônio de cuja gestão se encarrega. 

Na sequência, como uma decorrência natural do debate sobre proximidades e diferenças entre os regimes das propriedades pública e privada, enfrento o tema da funcionalização (social) da propriedade pública. A funcionalização da propriedade pública já não seria ínsita ao próprio regime jurídico dos bens públicos? Ou, na esteira do regime constitucional da propriedade (privada), a propriedade pública encontra-se igualmente vinculada ao cumprimento de uma função social? E, nesse caso, que função social seria essa? 

Aproveitando-me das reflexões contidas nos capítulos anteriores, discuto ainda se, a partir da perspectiva funcionalista apresentada, mostra-se legítima a propriedade pública dos bens dominicais.

E, em arremate, seguindo na temática da funcionalização, investigo a possibilidade e o fundamento de se atribuir características do regime público a bens que, embora privados, não integram o patrimônio de pessoas jurídicas de direito público, mas se acham afetados a atividades públicas ou à prestação de serviços públicos. Nesse caso, a perspectiva funcionalista operaria para atrair, e não para repelir, o regime público para a propriedade privada funcionalizada a um interesse público.


1. A noção de propriedade pública e os problemas da perspectiva civilista


Veio de longe no direito francês o debate em torno da natureza jurídica de relação entre o Estado e os bens que lhe são confiados.6 No final século XIX, finalmente, acabou prevalecendo a teoria de M. Hauriou no sentido de que a relação da Administração com seus bens configura um direito de propriedade (e não apenas guarda), mas um direito de propriedade com características próprias, diversas das que caracterizam a propriedade privada. O autor chamou essa propriedade de propriedade administrativa.7 

Antes, porém, que se firmasse a tese da existência de uma propriedade pública com características próprias, o Código Napoleônico dispusera sobre os bens do domínio público sem, no entanto, lhes conferir nenhum tratamento privilegiado. Para o Código Napoleônico, o Estado era um proprietário como os outros, muito provavelmente ainda como consequência da necessidade de afastar o regime pré-revolucionário que concedia diversos privilégios aos bens do domínio da Coroa. 

Vem daí, aparentemente, a tradição de incorporação de normas sobre a propriedade pública nas leis de direito civil. Tradição que persistiu mesmo depois do desenvolvimento, no direito francês, de um regime derrogatório para a propriedade pública na maior parte dos países de tradição romano-germânica. 

Realmente, a justificativa para que o Código Civil se ocupe do regime jurídico de bens públicos parece ser mais histórica – de manutenção de uma tradição que vem dos romanos –, do que decorrente da natureza da matéria, sem dúvida, mais adequada às legislações administrativas.8

Nesse sentido, destacando a tendência privatista persistente também no direito brasileiro, assim como, igualmente, a vertente centralizadora que compromete a autonomia federativa dos entes parciais para disciplinar a matéria, acha-se o magistério de Victor Nunes Leal: 

“O tratamento das relações patrimoniais das pessoas de direito público à luz de normas e princípios típicos do Direito Civil ressurge, de tempos em tempos, como inevitável manifestação cíclica da tendência privatista a que nossa formação romanista parece predispor o jurista brasileiro. 

A isso se deve somar, no caso presente, uma outra tendência, no campo de nosso Direito Público, fruto natural da evolução marcadamente centralizadora do federalismo brasileiro: a de emprestar onipotência absoluta à lei federal, mesmo nas esferas — cada vez mais raras — em que o sistema positivo ainda resguarda um mínimo de autonomia dos Estados-membros”.9

Na atualidade, a persistência dessa veia civilista no trato da propriedade pública acaba por represar o debate em torno das especificidades da propriedade pública, especialmente quanto à natureza própria do vínculo do Estado com seu patrimônio, instrumentalizado para a realização de interesses públicos predefinidos pelo legislador. Essa também parece ser a opinião de Floriano de Azevedo Marques Neto: 

“O problema da abordagem dada pelo Direito Civil ao tema dos bens públicos não está apenas na desconformidade entre ela e os privilégios e princípios que recaem sobre esta espécie de bens. Está em que os objetivos e pressupostos do direito de propriedade dos bens privados não são os mesmos aplicáveis aos bens públicos.

(...)

Ficam, patentes, pois, as insuficiências da concepção civilista dos bens públicos. Ocorre que estas normas influenciam grandemente a doutrina dos bens públicos no Direito brasileiro. O critério impede que se discuta os limites da inalienabilidade ou da classificação de usos (...)”.10

De fato, a natureza da relação que as pessoas públicas têm com os bens que lhes são atribuídos pela ordem constitucional no Brasil não é, nem pode ser considerada idêntica àquela que os particulares têm com sua propriedade.11 A propriedade pública, há que se reconhecer, é antes um vínculo jurídico do que material.12 

Não há, assim, como se fugir à conclusão de que ronda certo anacronismo no tratamento civilista da propriedade pública. Mais ainda quando se leva em consideração as transformações do perfil do Estado nas últimas décadas na direção do surgimento de um Estado regulador. Essa mudança necessariamente aprofunda a necessidade de compreensão do perfil próprio da propriedade pública não como objeto de direito patrimonial, mas como instrumento da realização de fins públicos.  

Nesse mesmo sentido, a despeito do contexto normativo diverso, parecem transponíveis à realidade brasileira as percepções e críticas que Alessandra Bindi faz ao tratamento civilista dispensado à disciplina dos bens públicos na Itália diante das transformações experimentadas pelo Estado Administrativo nas últimas décadas: 

“Foi, portanto, superada a abordagem própria do Código Civil e das leis de contabilidade pública, cujas normas estão preocupadas exclusivamente em definir o perfil de especialidade da propriedade pública deixando completamente à sombra os aspectos atinentes à utilização dos bens públicos. No início dos anos noventa, o legislador deu início a uma consistente, embora lenta, fragmentada e desorganizada, transformação da disciplina aplicável aos bens públicos, com o intento de colocá-la em uma perspectiva dinâmico- produtiva, mediante a introdução de uma lógica de mercado. Dois, portanto, os objetivos que guiaram as intervenções do legislador especial sobre a disciplina dos bens públicos: valorização e privatização do patrimônio público, com respeito aos cânones da eficácia, eficiência e economicidade. (...)

(...)

A partir da última década do século passado, a mudança do contexto econômico e normativo, tanto como as profundas transformações das regras que presidem a organização e o agir administrativo, acentuaram a inadequação da classificação codicista dos bens públicos, a qual, além de anacrônica, se revelou também parcial”.13 

Não há, portanto, como avançar no estudo e compreensão do regime jurídico dos bens públicos, atualizando-se os seus conteúdos à realidade estatal do século XXI, sem que se questionem alguns dos cânones tradicionais na temática. Esse o caso das perspectivas civilistas que obscurecem as peculiaridades dos vínculos jurídicos da propriedade pública.


2. A funcionalização da propriedade pública


É conhecido o protagonismo que a temática da função social da propriedade assumiu no direito civil contemporâneo.  

Embora não relacionada diretamente à literatura civilista da função social, gosto particularmente da perspectiva contida no excelente texto de Victor J. Vanberg. Diz o autor, que a propriedade, sendo um direito restringido, tem os seus limites definidos socialmente. A propriedade, assim como o mercado, é criada e conformada por um dado ordenamento jurídico; não existe fora dele, de tal forma que não há uma propriedade natural e ideal, nem um mercado como entidade abstrata e autônoma. Ambos são realidades de um determinado ordenamento jurídico que os dá origem e os conforma.

“Os direitos de propriedade privada que constituem o mercado são, inevitavelmente, direitos ‘restringidos’, no sentido de que definem limites socialmente aceitos a respeito do que pode fazer o proprietário do bem e que usos da propriedade estão proibidos com o propósito de proteger os interesses dos outros jogadores dentro do jogo da catalaxia. Em outras palavras, a questão se a regulação é, ou não, desejável, não é uma questão de direitos irrestritos frente a direitos restritos, já que é inimaginável um mercado baseado em direitos literalmente irrestritos. (....)

Não há nenhum standard  predefinido, imutável, para estabelecer qual deve ser o conteúdo de ‘uma propriedade privada bem definida’ (...) Os direitos de propriedade se definem socialmente, e em um mundo em constante mudança, é difícil negar a necessidade de que, ‘dentro de um sistema social em permanente desenvolvimento, se ajustem as relações jurídicas ao longo do tempo’”.14  

No mesmo sentido, segundo Sabino Cassese, a função social pode ser definida “como um limite que penetra na estrutura do direito subjetivo do proprietário”.15 

É assim que a propriedade, na contemporaneidade, apenas é reconhecida na medida em que se revela socialmente útil. Os seus contornos e limites sendo conferidos por essas respectivas utilidades.16 

Como o tema da propriedade pública quase sempre caminhou proximamente ao direito civil, é natural que a incorporação da ideia de função social da propriedade (privada) pela ordem constitucional no direito brasileiro tenha trazido a reboque a discussão acerca da funcionalização (social) da propriedade pública. A questão que se põe, portanto, é saber se tal qual a propriedade privada, estará também a propriedade pública jungida à realização de uma função (finalidade)17 social. E, em caso positivo, que função (social) será esta?

Em linha de coerência com a literatura civilista, encontram-se estudos recentes abraçando a tese de que a propriedade pública igualmente deve observar a sua função social.18 Na mesma direção parece vir o legislador. Na Lei Federal 11.481/2007 passou-se a admitir a regularização fundiária de interesse social em imóveis da União. Já na recente Medida Provisória 759, de 22 de dezembro de 2016, dispôs-se sobre a regularização fundiária urbana em áreas públicas. Ambas invocando como fundamento a necessidade de que a propriedade pública urbana atenda a sua respectiva função social.

A discussão, porém, comporta alguma complexidade, que vai da além da simples retórica favorecendo a função social da propriedade pública que aparece em alguns textos sobre o tema. De fato, é preciso examinar se e em que sentido é possível falar em funcionalização (social) da propriedade pública.

 Reconhece-se, tal qual Cassese fez na Itália ainda nos anos sessenta do século passado, que a Constituição é fonte primária da dominialidade pública. De fato, também na ordem jurídica brasileira, não é outra a fonte originária de atribuição da propriedade pública que não a Carta constitucional. É a Constituição que atribui a propriedade pública, assim como afirma e garante a propriedade privada.19 

A questão que se põe, porém, é saber se ambas, propriedades privada e pública, por terem fundamento constitucional, estão sujeitas aos mesmos parâmetros quanto ao cumprimento de sua função social.  

O tema foi bastante discutido no direito italiano ao longo do século XX, especialmente por conta do art. 42 da Constituição italiana de 1947.20 Vários autores, como Giannini, criticaram a ideia de que a propriedade pública estivesse submetida a uma função social.21 

“O mesmo discurso se pode repetir, com alguma variação, para a outra expressão de ‘função social da propriedade’. Também a propósito desta não faltou quem a tenha qualificado de tautológica porque, como se disse, todo instituto jurídico tem uma função social, e assim também a propriedade. (...) Na verdade, esse discurso vale mais para os operadores-empreendedores que para os operadores-proprietários. De qualquer maneira, permaneceu sempre um discurso de caráter genérico. Em conclusão, com o conceito contido nesta expressão não se obtém outra coisa que não uma descrição.”

Após um extenso relato sobre as diversas opiniões exaradas a respeito na época (final dos anos sessenta), Sabino Cassese conclui que o que realmente difere as noções de funcionalização das propriedades pública e privada seria o momento histórico em que foram difundidas. Enquanto a ideia de função social da propriedade privada teria tido aplicação após a crise de 1929, o princípio da função pública dos bens públicos viria da lei francesa de 1790.22  

A ideia de funcionalização da propriedade pública, de fato, antecede o debate em torno da noção da função social da propriedade. Como visto no capítulo anterior, adotando-se uma ótica objetiva do tema – que se contrapõe a uma visão subjetiva de mera titularidade –, toda propriedade pública deveria ser funcionalizada à realização de um dado fim de interesse público. Toda a propriedade pública deveria ter uma função pública a satisfazer. Nessa acepção, a ideia de funcionalização é ínsita até à propriedade pública.23 A propriedade pública é, de ordinário, funcionalizada à satisfação de um determinado fim de interesse público, sem o que não faria sentido cogitar do próprio domínio público. 

Surge, então, o problema de saber se há coincidência entre as acepções de função social e de função de interesse público no que diz respeito à propriedade pública. E aqui várias leituras parecem possíveis. 

Uma percepção mais restritiva quanto à topologia constitucional nos levaria à conclusão de que a exigência de atendimento da função social, figurando no art. 5º da Carta de 1988, no capítulo dos direitos e garantias fundamentais (em face do Estado), seria direcionada à propriedade privada.

Da mesma forma, em linha de coerência com o exposto mais acima, considerando-se os pressupostos do domínio público diversos daqueles do domínio privado, parece necessário ter cautela na transposição para as discussões do regime jurídico dos bens públicos perspectivas desenvolvidas para as relações de propriedade privada.24

Há, porém, quem faça um esforço de compatibilização e busque uma compreensão da ideia de função social que seja compatível com as peculiaridades da propriedade pública.

Nessa direção, a tese de Floriano de Azevedo Marques Neto, para quem tanto propriedade privada como a pública estão sujeitas ao atendimento de sua função social. Apenas que, em se tratando dos bens privados, a função social operaria como um limite, ao passo que, no que refere à propriedade pública, a função social determina a própria existência dela.25  Segundo o autor, porém, a função social da propriedade pública pode e deve realizar-se pelo aproveitamento de todas as utilidades conciliáveis que possam ser suportadas pelo bem, de modo a promover o seu aproveitamento econômico eficiente.26 Trata-se da defesa de uma perspectiva econômica para a realização de função social da propriedade pública, em consonância com as exigências da contemporaneidade, em que a propriedade pública não mais se justifica por si própria, mas pela maximização de sua utilidade para a sociedade. 

“Vai daí que, para cumprir adequadamente a função social, o Estado tem de passar a atuar, crescentemente, como um agente econômico, como um gestor de um considerável patrimônio, cuidando para que a utilização de seus bens se dê com a máxima eficiência: equilibrando a obtenção de receitas com a plena consagração dos usos públicos e a eficácia das políticas públicas que se servem destes bens”.27 

Considero especialmente relevante a ressalva feita por Floriano Marques Neto de que o atendimento da função social do bem público, na feição por ele proposta, não pode interferir, obstar ou empecer o pleno exercício da finalidade primária do bem.28 A utilidade correspondente à afetação principal do bem deve prevalecer.29  

Partindo dessa premissa como correta, afasto a possibilidade de se sobrepor o atendimento de uma determinada função ou interesse social sobre a coisa pública ao seu fim público primário. Suponha-se, por exemplo, que uma determinada área seja desapropriada para a construção de uma via pública ou para a implantação de um projeto de infraestrutura. A execução do projeto atrasa e, no entretempo, a área é invadida por moradores sem teto. Ou, ao invés, a área invadida é integrante de um parque estadual de proteção ambiental? Poderá a realização do interesse social habitacional se sobrepor ao interesse público que determinou a desapropriação ou à proteção ambiental e determinar a regularização fundiária da área para esse fim? Penso que a defesa da ideia de funcionalização social da propriedade pública não pode ir tão longe. A Administração Pública tem o dever de tutelar inúmeros interesses da sociedade e por múltiplos instrumentos. A noção de funcionalização da propriedade pública deve levar em conta essa multiplicidade. 

Por outro lado, a incorporação da perspectiva da função social pode ter como utilidade o afastamento de certo autoritarismo que sempre pautou a gestão e o uso do patrimônio público. Não é raro que a Administração pretenda excluir os seus bens da incidência de regras, urbanísticas e ambientais, que regem a ocupação do espaço urbano. Tal exclusão, porém, não mais pode ser tida como regra automática, devendo ser adequadamente motivada e justificada com um interesse público contraposto e ponderado caso a caso. Zoneamento, limites construtivos e demais restrições precisam ser observadas pelo Poder Público proprietário sempre que não houver uma justificativa fundada para tanto. 


3. Funcionalização e legitimidade dos bens dominicais30

O debate em torno da funcionalização da propriedade pública suscita outra questão que até aqui tem sido pouco abordada no que diz respeito ao regime jurídico dos bens públicos: como explicar a categoria dos bens dominicais diante da ideia de que a propriedade pública somente se justifica/legitima se estiver funcionalizada à realização de um determinado interesse público?

Lembre-se que a categoria civilista dos bens dominicais se constitui daqueles bens integrantes do domínio público que, não estando afetados, integram o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público. São, ou ao menos deveriam ser, uma classe residual dentro do patrimônio imobiliário. Uma massa patrimonial que não se destina, natural ou artificialmente, à utilização comum e coletiva da população, nem tampouco servem a instrumentalizar a prestação de serviços públicos, sendo, antes, uma espécie de reserva imobiliária, que, nessa qualidade, poderia ser explorada economicamente.31 

Como dispunha o regulamento do antigo Código de Contabilidade da União (Decreto 15.783, de 1922), os bens dominicais integrariam a categoria de bens do patrimônio disponível das pessoas jurídicas de direito público.32 Porque não estão afetados à realização de qualquer interesse público direto e imediato, seriam bens vocacionados apenas à constituição de patrimônio (econômico) dos poderes públicos.  

A pergunta é: como fica a justificativa da permanência destes bens no domínio público se justamente não se acham afetados à realização de um interesse público imediato? É realmente legítimo defender o regime jurídico do domínio público para essa qualidade de bens? Não se perde aqui a legitimidade da sustentação desse regime?

Do meu ponto de vista, não. Há algum tempo venho refletindo a respeito diante das enormes dificuldades de gestão patrimonial por parte da Administração Pública. Por razões histórico-jurídicas – como, por exemplo, as terras devolutas, terrenos de marinha e os bens advindos de herança jacente – as Administrações Públicas brasileiras acabam sendo grandes proprietárias de imóveis (não afetados) e, de ordinário, péssimas administradoras deste patrimônio. E não adianta criticá-las por isso: seu foco direto, de fato, deve ser a realização dos muitos interesses e serviços públicos que está encarregada de satisfazer. Afora a ausência de vocação natural dos governos para a administração imobiliária, concorrem ainda para o fracasso na gestão do patrimônio não afetado os muitos interesses privados e pressões não republicanas que os gestores públicos sofrem (afinal, muitos destes bens acham-se aptos a gerar utilidades privadas). Trata-se de uma faceta quase literal do atávico patrimonialismo do Estado brasileiro e que resulta na percepção e apropriação da coisa pública como se fosse patrimônio privado do gestor e de seus amigos

Tudo isso somado tem me convencido da ideia de que a categoria dos bens dominicais deve ser repensada. Não para excluir tais bens das regras do regime jurídico dos bens públicos, como defendido por alguns.33 Fosse assim, além de alienados, poderiam ser usucapidos, dados em garantia e excutidos. Para essa doutrina, os bens dominicais, porque integrantes apenas do patrimônio econômico das pessoas jurídicas de direito público, sendo bens públicos apenas em sentido formal, não justificariam o regime da propriedade pública. 

Note-se, a propósito, que, incorporando parcialmente no texto da decisão argumentos dessa linha de pensamento, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça veio a entender admissível a proteção possessória conferida a particulares em litígio entre si acerca da ocupação (irregular) de bem público dominical (Recurso Especial 1.296.694, da Relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, julg. em 18 de outubro de 2016). No caso, foi negado provimento a recurso interposto pela Prefeitura do Distrito Federal, proprietária da área,34 que reclamava a impossibilidade desta proteção, e contrariada a orientação em sentido oposto firmada pela Terceira Turma no julgamento do Recurso Especial 998.409, de 2009.

Embora a Quarta Turma do STJ afirme não ter superado a jurisprudência que nega a existência de posse na ocupação irregular de bem público, entendeu, no caso, que em se tratando de bem desafetado (dominical), a ocupação por particular lhe “confere justamente a função social da qual o bem está carente em sua essência”. E, dessa forma, porque a ocupação por particular de um bem desafetado, ainda que irregular, era uma forma de funcionalizar esta propriedade, mereceria ser protegida pelos institutos de proteção possessória.

Algumas reflexões, porém, podem ser extraídas dessa decisão: 

(1) a estranheza que causa em se admitir que a mesma situação de fato possa ser qualificada juridicamente conforme o litígio que se instaure a seu respeito: como detenção, se o ocupante litigar contra a Administração, e como posse, se o litígio for contra outro particular. Especialmente, quando no caso o titular do domínio também interveio na causa e teve seu recurso negado para se proteger a posse do particular; 

(2) na verdade, não há como afastar a percepção de que o acórdão contradiz de algum modo a jurisprudência mais assentada que nega a posse do particular na ocupação irregular de bem público e contradiz expressamente o que foi afirmado no acórdão do julgamento pouco anterior da Terceira Turma no Recurso Especial 1.582.176,35 que ele mesmo invoca como precedente, além do Recurso Especial 998.409, acima citado; e

(3) no fundo, que situações como essa que deram origem ao julgado decorrem mesmo é do fato de que o Poder Público não é um bom administrador do seu patrimônio dominical, frequentemente invadido e alvo de ocupações irregulares por particulares, que se servem da propriedade pública para seus interesses privados raramente com contrapartida ao interesse público.

A solução para o problema, porém, não me parece ser a adoção do regime da propriedade privada para os bens dominicais — tese até aqui minoritária, sem respaldo na legislação ou na Constituição (com a qual, aparentemente, flerta o julgado acima mencionado). Penso que essa ideia, longe de representar uma alternativa adequada, teria o defeito de estimular uma gestão irresponsável deste patrimônio e ainda mais patrimonialismo. 

Acredito, ao invés, que o caminho pode estar em uma mudança um pouco mais ampla no regime normativo vigente: obrigar que o enquadramento de um bem na categoria de dominical seja necessariamente transitório e justificado. Assim, o bem somente poderia ser enquadrado como dominical de forma transitória até que pudesse estar novamente afetado a um uso comum ou especial. Caso, entretanto, essa condição de transitoriedade não se verifique, seja pelas características naturais da coisa, seja em função do tempo decorrido, a Administração Pública deveria ser obrigada a aliená-lo. Apenas em circunstâncias especiais, por motivo de interesse público justificado – por exemplo, a manutenção dos terrenos de marinha no patrimônio público por razões de segurança nacional –, a situação de bem dominical poderia se estabilizar.

Não se justifica que, em nome da alegada constituição de um patrimônio, a Administração seja uma autêntica imobiliária para a gestão de um patrimônio que não se preste à realização direta de um dado interesse público. 

O interesse público que um determinado bem esteja funcionalizado a realizar pode até se alterar durante o tempo de existência deste bem. Contudo, o que não parece encontrar base de legitimação no ordenamento e nas próprias dimensões do que seja propriedade pública – como se viu no item 1, supra – é que este bem permaneça desafetado, sem fim público específico, constituindo apenas um acervo patrimonial das Administrações Públicas. 

O ponto de vista aqui expressado parece encontrar algum eco – embora, reconheça, sem a mesma proposição apresentada – nas teses de Caroline Chamard e de Floriano de Azevedo Marques Neto, respectivamente:

“Além disso, essa pesquisa teve oportunidade de insistir sobre a constância em que a exigência do interesse geral caracteriza o direito dos bens públicos. Os patrimônios públicos, prolongamentos das pessoas públicas inevitavelmente são instrumentos de realização do interesse geral. Logo, as pessoas públicas não têm o direito de se apropriar ou de conservar bens que não configurem, para elas, nenhuma utilidade pública”.36 

“Contudo, no caso dos bens dominicais, parece-nos ser uma verdadeira afronta à cláusula geral de função social imaginar possível que o ente público detenha um acervo de bens (móveis ou imóveis) e não lhes dê qualquer uso, nem mesmo no sentido de geração de receitas empregáveis no custeio de necessidades coletivas ou na viabilização de empreendimentos públicos. Se bens dominicais existem, a eles deve ser dada a destinação patrimonial: o acervo destes bens deve ser administrado de forma a propiciar resultado econômico (rendas para a Administração) ou a permitir que os particulares o façam, preferencialmente com reversão de ônus em favor do poder público. Enfatizamos isso por identificar um certo ranço cultural que vê que a atividade pública como contraposta, antípoda, à atividade econômica”.37 

Avento a necessidade de alienação ou justificação funcionalizada da condição de bem dominical depois de acompanhar por quase duas décadas os dramas e vicissitudes da gestão do extenso patrimônio público imobiliário do Estado do Rio de Janeiro. Gestão essa que redunda em um contencioso judicial grande, custoso e demorado, quase sempre em prejuízo da Administração. Ocupações irregulares de bens desafetados se perpetuando por décadas, apropriações privadas do patrimônio público em benefício único de particulares que não raro contam com favores de políticos e administradores. Isso quando não ocorre de, em função da escassez de recursos de manutenção, o bem terminar por ruir, desmantelar-se, indo com ele junto o patrimônio público. 

Por ter assistido a tudo isso por tanto tempo, convenci-me de que é preciso cogitar de alternativa para o patrimônio público não funcionalizado a um interesse público. Assim, não sendo o bem passível de afetação, o melhor mesmo é vendê-lo para que os recursos possam ser empregados aí sim na realização de um verdadeiro interesse público. O Poder Público não deve ser proprietário imobiliário sem propósito de interesse público específico. Fere a lógica tanto da ideia de domínio público como da de domínio privado.


4. A propriedade privada funcionalizada a um interesse público: regime público?

 

Tendo assentado acima que um bem público não afetado – como o são os dominicais –, não deve, como regra, permanecer no domínio público já que não está funcionalizado à realização de um dado interesse público, cabe agora uma indagação oposta. E quanto aos bens do domínio privado que, eventual e transitoriamente, estejam afetados a uso ou fim público? Merecem que lhe sejam atribuídas características do regime público da propriedade? 

A questão não é desconhecida. Com frequência é suscitada em relação aos bens (de titularidade privada) de concessionários e prestadores privados de serviços públicos quando afetados ao serviço. Nessa hipótese mais comum, acabam sendo invocadas, para fundamentar derrogações do regime público aplicáveis à propriedade privada, regras próprias da legislação de delegação de serviços públicos, quando não o próprio contrato, que, quase sempre, determinam a reversibilidade destes bens. Neste sentido, encontram-se julgados reconhecendo a aplicabilidade do regime público a tais bens para, por exemplo, impedir que sejam penhorados para suportar dívidas do concessionário.38 O regime público, aí, acaba decorrendo da necessidade de assegurar a continuidade do serviço público.39 

E quando o bem afetado a determinado serviço ou utilidade pública não for de titularidade de particular que mantenha relação de delegação ou de prestação de atividade pública? Por exemplo, quando se tratar de imóvel privado simplesmente locado ao Poder Público para a execução de atividade de interesse público. Seria possível impedir a sua penhora ou excussão para suportar dívidas de seu proprietário a fim de que não haja interrupção da atividade pública ali desenvolvida?

No direito italiano, parte expressiva da doutrina reconhece como categoria própria, afirmada por Aldo Sandulli em 1956,40 os bens de interesse público, que seriam justamente aqueles bens que pertencendo a particulares são submetidos a um regime especial derrogatório em virtude da peculiar relevância que lhes é atribuída.41 

Alessandra Bindi, em tese de doutorado defendida em 2010, destaca a relevância da categoria no direito administrativo italiano contemporâneo. Segundo a autora, ao mesmo tempo em que a política de privatizações provocou uma contração no conjunto de bens públicos em sentido estrito, levou a uma ampliação dos bens de titularidade privada caracterizados como de destinação pública.42 E, nesse contexto, discorre sobre a evolução do conceito de domínio público que considera a funcionalização da propriedade à realização de fins públicos, ainda que sob a titularidade privada. Tudo em consonância com uma perspectiva de objetivação da noção de domínio público em comparação com a perspectiva subjetivista que prevaleceu até aqui (em que a caracterização da propriedade pública dependia basicamente da identificação de sua titularidade subjetiva).43 A propriedade pública não representa a única estrada para satisfazer o interesse público.44 

Entretanto, um exame das espécies de bens que a doutrina italiana enquadra nesse conceito de bens privados de interesse público revela que ali se enumeram desde bens afetados a prestação de serviço público a que acima já se referiu, como também algumas formas de limitação da propriedade privada (que aqui consideramos como manifestações do poder de polícia administrativa, como, por exemplo, as restrições decorrentes da proteção do patrimônio histórico-cultural), até o caso mais restrito de bens privados afetados a uso público, de que se cogita neste momento.

Um tanto por isso essa categoria foi objeto da forte crítica de Massimo S. Giannini. Na obra que reproduz suas aulas de direito administrativo sobre a matéria nos anos de 1962-3, o célebre administrativista italiano reconhece que, sob tal designação, enquadram-se bens de naturezas diversas e que, portanto, não é possível dar um significado preciso ao conceito (ou bens públicos sobre os quais os privados possam ter direitos dominicais ou coisas públicas sobre as quais os poderes públicos tenham direitos próprios). Por isso, Giannini a reputa juridicamente imprecisa e afirma que só poderia ser aceita para fim descritivo.45  

Não obstante a crítica pareça procedente, penso que a categoria dos bens privados de interesse público, se admitida de forma mais restrita, teria, por aqui, uma utilidade residual justamente para que nela se pudesse definir, com maior clareza um regime próprio para enquadrar a situação dos bens privados afetados a fins ou usos públicos. Na verdade, embora nesses casos não seja razoável determinar a aplicação integral do regime público, mostra-se perfeitamente possível cogitar de algumas derrogações em circunstâncias predeterminadas.

Recorro, mais uma vez, à tese de Alessandra Bindi, em que defende um regime misto aplicável aos bens formalmente privados, mas substancialmente públicos. Tal regime seria resultante da coordenação de instrumentos e institutos de direito privado e de regras de direito público, enquanto perdurar a funcionalização do bem a uso coletivo ou administrativo.46 

Entre nós, embora o tema ainda careça de maior teorização, tem sido, vez por outra, enfrentado pelos Tribunais. Tomem-se, como exemplos, julgados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região e do Superior Tribunal de Justiça. 

No primeiro caso, julgado em 2010, o Tribunal de Justiça Fluminense entendeu ser impenhorável um bem particular locado a um Município onde se achava em funcionamento uma escola municipal. Conforme consta da ementa do julgado:

“APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EMBARGOS DO DEVEDOR. (...) Por fim, a doutrina e a jurisprudência acolhem o posicionamento de que bens particulares quando afetos as atividades típicas estatais são impenhoráveis. A eventual hasta pública do imóvel onde funciona escola municipal prejudicará o direito fundamental à educação das crianças daquela localidade. Ponderação de interesses. Supremacia do interesse público sobre o particular”.47 

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a seu turno, rejeitou a aplicação do regime público para suspender a penhora de um bem de sociedade de economia mista federal ocupado por órgão da Polícia Civil do Estado de Alagoas. A Justiça Federal, entendeu, no caso, que a penhorabilidade do bem apenas estaria excluída se ele se achasse afetado a serviço público prestado pela própria empresa. Dessa forma, o uso do bem por órgão público estadual, fora das finalidades do ente titular, configuraria destinação anômala e não permitiria a exclusão de sua penhorabilidade, mas, apenas eventualmente, a concessão de prazo mais elástico para desocupação pelo Poder Público. 

Já o Superior Tribunal de Justiça, adotando uma posição mais favorável à ocupação pública, decidiu suspender a execução de uma liminar de imissão de posse concedida em favor de particular pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais para evitar o desalojamento de órgãos administrativos do Município de Governador Valadares que ocupavam bem privado, sob o risco de interrupção da prestação dos serviços pelos órgãos afetados.48 

Como se percebe das decisões mencionadas, a casuística do direito brasileiro ainda é grande na matéria e pouco precisos são os critérios que definem a aplicação ou não do regime público a bens privados afetados. A falta de critérios mais seguros é, portanto, fonte de grande insegurança tanto para particulares como para a Administração Pública.49


Notas

1  Dentre as obras especificamente dedicadas ao tema, confiram-se, dentre outras, GIANNINI, Massimo Severo. I beni pubblici; CASSESE, Sabino. I beni pubblici: circolazione e tutela; DEBBASCH, Charles; BOURDON, Jacques; PONTIER, Jean-Maria; RICCI, Jean-Claude. Droit administratif des biens. No Brasil, a sempre citada obra de CRETELLA JUNIOR, José. Bens públicos.

2  Pesquisando a respeito, encontrei pelo menos quatro teses acadêmicas dedicadas ao tema neste início de século XXI: CHAMARD, Caroline. La distintiction des biens publics et des biens prives: contribution à la definition de la notion des biens publics. Thèse pour le doctorat em droit de l´Université Jean-Moulin (Lyon III), presentée et soutenue publiquement le 25 juin 2002; BINDI, Alessandra. Proprietà e interesse pubblico tra logica dell’appartenenza e logica della destinazione. Tesi dottorale discussa alla Facoltà di Giurisprudenza, Università degli Studi “Roma Tre”, 2010. MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica. O regime jurídico das utilidades públicas (tese de livre-docência apresentada à Faculdade de Direito da USP em outubro de 2008); e MARRARA, Thiago. Bens públicos, domínio urbano, infra-estruturas (dissertação de Mestrado da Faculdade de Direito da USP em 2006). Já tive igualmente a oportunidade de discorrer a respeito em BAPTISTA, Patrícia; SILVA FILHO, Carlos da Costa e; CUNHA, Marcelle Figueiredo da. O patrimônio público estadual e seu regime jurídico. Advocacia Pública Estadual.

3 Tome-se, como exemplo, a base atual da legislação federal que é o Decreto-lei 9.760, de 5 de setembro de 1946. No Estado do Rio de Janeiro, a legislação de regência dos bens públicos é a Lei Complementar 8, de 25 de outubro de 1977. Trata-se de atos normativos muito antigos que, a despeito de terem sofrido umas poucas alterações pontuais, nem de longe tangenciam questões atuais na gestão do patrimônio público, nem atualizam as relações jurídicas nesta matéria.

4 Opinião da autora acerca da qual se discorrerá no item 2, infra.

5 As referências sobre o tema se acham no item 2, infra.

6 Entre as muitas obras que abordam o tema no direito administrativo francês, cf. DEBBASCH, Charles; BOURDON, Jacques; PONTIER, Jean-Maria; RICCI, Jean-Claude. Droit administratif des biens, p. 32 e ss.; CHAPUS, René. Droit administratif general, t. 2, p. 363 e ss.; AUBY, Jean-Marie; DUCOS-ADER, Robert. Droit administratif.

7 CHAPUS, René, Droit administratif general, t. 2., p.  364: “Deve-se principalmente à Hauriou a percepção de que, da mesma forma em que um contrato não deixa de ser um contrato quando submetido a um regime de direito público, um direito pode ser reconhecido como direito de propriedade mesmo que submetido a regime outro que não o do Código Civil” (trad. do original) Veja-se, ainda, MAYER, Otto. Derecho administrativo alemán, t. 3, p. 105: “Analogamente, reconhecemos hoje nas coisas públicas que são propriedade do Estado uma propriedade de outra espécie que a do direito privado. É o domínio público ou propriedade pública no sentido de uma propriedade de direito público. Se situa, em comparação com a propriedade de direito civil, que nos é familiar, como a instituição correspondente do direito público” (trad. do original). A propósito da propriedade pública no direito alemão, porém, Caroline Chamard destacada ter sido frustrada a tentativa de Otto Mayer de introduzir a teoria francesa naquele país. Deste modo, na Alemanha, somente existe um único modo de apropriação de bens que é aquele regido pelo Código Civil. A propriedade das pessoas públicas se rege pelas mesmas regras que a propriedade privada (de forma semelhante ao que ocorre com os contratos). Essa resistência a uma dualidade de regimes naquele país pode ser explicada, entre outros fatores, pela forte tradição civilista tedesca. La distintiction des biens publics et des biens prives: contribution à la definition de la notion des biens publics, pp. 149-150.

8 Em sentido contrário, defendendo a topologia das normas presentes no Código Civil sobre o regime jurídico dos bens públicos, cf. SLAIBI FILHO, Nagib. Notas sobre os bens no novo Código Civil. Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, v. 9, nº 35, pp. 70-71: “Mostra-se oportuna a inclusão no Código Civil das disposições sobre os bens públicos, tema de Direito Administrativo que aparentemente não estaria compatível com o caráter de Lei Comum que muitos vislumbram ser eminentemente privado. Contudo, pela mesma razão que o Código Civil trata da natureza das pessoas jurídicas de direito público (art. 41) ou mesmo da responsabilidade civil do Estado (art. 42), também deve dispor sobre os bens públicos (...). Se e quando tivermos um Código de Direito Administrativo que vincule todas as esferas governamentais, ou então a previsão na Constituição de uma lei sobre bens públicos, então não mais serão necessárias as disposições sobre o tema na Lei Comum”.

9 LEAL, Victor Nunes. Titulação dos estados para primeira alienação de terras devolutas. Parecer de 13 de julho de 1974 publicado na Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 37, p. 7.

10 MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica. O regime jurídico das utilidades públicas, p. 115.

11 Algumas peculiaridades dessa relação serão examinadas no item 3, infra, no que refere ao aspecto  da funcionalização da propriedade pública.

12 CHAMARD, Caroline. La distintiction des biens publics et des biens prives: contribution à la definition de la notion des biens publics, p. 25. A autora, porém, sugere que, para alguns aspectos, as diferenças entre os regimes das propriedades privada e pública não decorrem tanto da distinção essencial entre os regimes de propriedade, mas da natureza de pessoas morais da Administração em relação à personalidade privada do particular. Para  C. Chamard, por exemplo, não há distinção essencial entre as indisponibilidades das propriedades pública e privada (Idem, pp. 668-669). Embora a discussão seja relevante, os limites deste trabalho não permitem que seja aprofundada neste momento.

13 BINDI, Alessandra. Proprietà e interesse pubblico tra logica dell’appartenenza e logica della destinazione, pp. 104-105, 122 (traduzido do original).

14 VANBERG, Viktor J.. Mercados y regulación: el contraste entre el liberalismo de mercado y el liberalismo constitucional. Isonomía, v. 17, pp. 94-95 (traduzido do espanhol).

15 CASSESE, Sabino. I beni pubblici: circolazione e tutela, pp. 93-94.

16 BINDI, Alessandra. Proprietà e interesse pubblico tra logica dell’appartenenza e logica della destinazione, p. 11: “Come già rilevato anni addietro da A.M. Sandulli, la funzione sociale della proprietà privata, stante l’obiettivo dell’ordinamento di rendere la titolarità privata del diritto socialmente utile, si traduce essenzialmente nell’imposizione di limitazioni a quella che è la classica estensione dela situazione giuridica soggettiva in esame, senza tuttavia dar luogo ad uma disciplina speciale della cosa in sé”.

17 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado, pp. 311-312: “A noção de função foi sempre entrelaçada com a disposição de um poder para satisfazer os interesses de outro. Há muito tempo foi reconhecida no Direito. (...) Substancialmente, trata-se de uma missão, uma atividade que é 'funcionalizada’ ao se conferir a ela uma série de características formais. (...) A função permite o exercício de faculdades, como as que se reconhecem ao proprietário, mas ao mesmo tempo impõem deveres, como os que resultam do uso regular deste direito conforme a uma finalidade social. Esta tarefa impõe ao titular o dever de cumprir ou de desenvolver uma atividade tendente a lograr o objetivo proposto. Para tais fins a função outorga poderes, faculdades, direitos e deveres num feixe unificado pela finalidade que lhe confere homogeneidade.”

18 ROCHA, Silvio Luis Ferreira da. Função social da propriedade pública. REIS, João Emílio de Assis. A função social da propriedade e sua aplicabilidade sobre bens públicos.

19 CASSESE, Sabino. I beni pubblici: circolazione e tutela, p. 10. 

20 “Art. 42. A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem ao Estado, às empresas ou aos particulares. A propriedade privada é reconhecida e garantida na lei, que determina o modo de aquisição, o gozo e os limites com o fim de assegurar a função social e de torna-la acessível a todos. A propriedade privada pode ser, nos casos previstos na lei, e mediante indenização, expropriada por motivo de interesse geral. A lei estabelece as normas e os limites da sucessão legítima e testamentária e os direitos do Estado sobre a herança. (traduzido do original italiano).” 

21 GIANNINI, Massimo Severo. I beni pubblici, pp. 126-127.

22 CASSESE, Sabino. I beni pubblici: circolazione e tutela, pp. 93-107 (traduzido do original). 

23 Uma perspectiva contemporânea do tema no direito italiano pode ser encontrada na tese de Alessandra Bindi. Proprietà e interesse pubblico tra logica dell’appartenenza e logica della destinazione, p. 11.

24 Mesmo no âmbito do direito privado, é possível opor alguma crítica ao que se percebe como um movimento de funcionalização de todo o direito civil contemporâneo, típico da corrente teórica que, no Brasil, recebe o nome de direito civil constitucional. Tratando do tema, Fernando Leal, embora ressalve não se opor ao objetivo de funcionalização em si, destaca o risco de que algumas das construções daí decorrentes incorporem, na realidade, uma perspectiva instrumentalista do direito civil: “Esse é um perigo que ronda constantemente teorias normativas da tomada da decisão jurídica orientada na realização de objetivos. Em sua versão mais extremada, a orientação de processos de justificação de decisões jurídicas na realização de objetivos conduz a um modelo decisório que conjuga um consequencialismo de primeira ordem com um ceticismo de regras (...) Reduzido a simples meio para a implementação de fins, o Direito não é mais do que ‘an empty vessel without builty-in-restraints’”. Seis objeções ao direito civil constitucional. LEAL, Fernando (org.). Direito privado em perspectiva: teoria, dogmática e economia, pp. 134-135.

25 MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica. o regime jurídico das utilidades públicas, pp. 95 e 120.

26 Idem, p. 397.

27 Idem, p. 398.

28 Idem, p. 399.

29 Idem, p. 396.

30 Sou grata, pela interlocução acerca do tema, ao Professor Emerson Affonso da Costa Moura, da Universidade Federal de Juiz de Fora, campus Governador Valadares, doutorando no PPGD-UERJ.

31 Nesse sentido, MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica, pp. 221-222.

32 Cf, a propósito, DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 783.

33 Vejam-se a propósito as inúmeras referências citadas por COUTINHO, Elder Luis dos Santos. Da possibilidade de usucapião de bens formalmente públicos. E, ainda, por CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, p. 1172. 

34 Em acórdão um pouco anterior da Terceira Turma, da Relatoria da Min. Nancy Andrighi, julgado em 20 de setembro de 2016, no Recurso Especial nº 1.582.176, o STJ igualmente reconheceu a possibilidade de proteção possessória a particulares em litígio, mas nesse caso sobre a ocupação de bem público de uso comum. A hipótese versava sobre litígio para resguardar o livre exercício do uso de via de municipal instituída como servidão de passagem. Para fundamentar essa decisão, sem afastar a jurisprudência que exclui a posse do particular sobre bem público (que, inclusive, afirma aplicável a litígios entre particulares sobre bens dominicais, em sentido diverso do acórdão posterior da Quarta Turma), o acórdão acaba por fazer certa ginástica semântica, afirmando que “a proposição, não obstante, não se estende à situação de fato exercida por particulares sobre bens públicos de uso comum do povo, razão pela qual há possibilidade jurídica na proteção possessória do exercício do direito de uso de determinada via pública. A posse consiste numa situação de fato criadora de um dever de abstenção oponível erga omnes. Outrossim, o instituto pode ser exercido em comum, na convergência de direitos possessórios sobre determinada coisa. Nessa hipótese, incide o disposto no art. 1.199 do CC, segundo o qual ‘se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores’. Na posse de bens públicos de uso comum do povo, portanto, o compossuidor prejudicado pelo ato de terceiro ou mesmo de outro compossuidor poderá ‘lançar mão do interdito adequado para reprimir o ato turbativo ou esbulhiativo’, já que ‘pode intentar ação possessória não só contra o terceiro que o moleste, como contra o próprio consorte que manifeste propósito de tolhê-lo no gozo de seu direito”.   

35 Do texto do acórdão colhe-se a seguinte passagem: “Por esse motivo, nas discussões relativas à proteção possessória, adotou-se o entendimento de que a ocupação do bem público não passa de mera detenção, sendo incabível, portanto, invocar proteção possessória contra o órgão público. Nesse sentido: AgRg no AgRg no AREsp 66.538/PA, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 01.02.2013; e AgRg no REsp 1.190.693/ES, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 23.11.2012.

As mesmas conclusões podem ser adotadas no caso de conflito entre particulares que ocupam imóveis públicos, também bens públicos dominicais (REsp 998.409/DF, de minha relatoria, Terceira Turma, DJe 03.11.2009)”.

36 CHAMARD, Caroline. La distintiction des biens publics et des biens prives: contribution à la definition de la notion des biens publics, p. 669. 

37 MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica, pp. 221-222.

38 “APELAÇÃO CÍVEL. POSSE (BENS IMÓVEIS). AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM DESFAZIMENTO DE CONSTRUÇÃO. (...)  DOMÍNIO PÚBLICO. BEM IMÓVEL COM DESTINAÇÃO A USO PÚBLICO. O imóvel retirado da esfera patrimonial do particular pela empresa concessionária de serviços públicos assume o caráter de bem afetado à prestação de serviços públicos essenciais, subordinando-se as regras do direito público, motivo pelo qual reveste-se da imprescritibilidade, impenhorabilidade e não oneração. APELAÇÕES DESPROVIDAS” (Apelação Cível 70056497464, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, rel. Marco Antonio Angelo, julgado em 11.03.2014).

“PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO - EXECUÇÃO FISCAL - CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO - IMÓVEL DESTINADO AO FUNCIONAMENTO DE SUAS ATIVIDADES GERENCIAIS E AFINS -ESSENCIALIDADE PARA A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS - PENHORA - IMPOSSIBILIDADE. - É pacífico o entendimento que os bens afetados à prestação de serviço público, mesmo pertencendo à pessoa jurídica de direito privado, são impenhoráveis, ante o princípio maior do resguardo do interesse público e da continuidade dos serviços. Precedentes do STJ. (...)- A afetação de um bem à prestação do serviço público, em que pese repousar muitas das vezes no seu intrincado relacionamento com as atividades-fim da empresa concessionária ou do ente estatal, pode também se fazer presente quando relacionadas com as atividades-meio, desde que essenciais à consecução das finalidades inerentes a determinado serviço público. - A distinção relevante, portanto, não residiria tanto em saber se o bem está relacionado com a prática e execução das atividades objeto do serviço público em si - ou se apenas com ações instrumentais e mediatas a tal realização -, mas, sim, em aferir o grau de essencialidade desse bem à execução do serviço público, em contraposição a um caráter de mera utilidade. - Nesse sentido, o magistério da doutrina: ‘VI.9.3 A vinculação dos bens à satisfação das necessidades. (...). Trata-se da existência de um regime jurídico próprio e peculiar, destinado a proteger o conjunto de bens enquanto instrumento da prestação do serviço público. A instrumentalidade dos bens à satisfação de interesses coletivos impede a incidência do regime jurídico usual e comum, aplicável aos bens isoladamente considerados.’ É necessário, então, estabelecer uma diferenciação entre bens úteis e bens necessários à prestação do serviço público. Há alguns que facilitam, mas não são indispensáveis à referida prestação. Outros, por seu turno, são essenciais a tanto. ‘A essencialidade do bem à prestação do serviço produz sua submissão a esse regime jurídico próprio e inconfundível, dotado de características e peculiaridades próprias. Todos os bens passam a ter um regime próprio de direito público, ainda que se trate de bens de propriedade original do concessionário. A afetação do bem à satisfação da necessidade coletiva impede a aplicação do regime de direito privado comum’ (Marçal Justen Filho. Teoria geral das concessões de serviço público, p. 330). - Para definição do regime jurídico a ser aplicado a um bem de posse ou propriedade de concessionário de serviço público, importa principalmente aferir o seu grau de essencialidade para a consecução dos serviços, em contraposição a um caráter de mera utilidade, podendo figurar, aí sim, como critério de tal aferição, estar ou não o bem relacionado com atividades-fim do prestador. Os critérios balizadores do regime jurídico de tais bens seriam, portanto, mais de necessariedade/utilidade do que atividade-fim/atividade-meio. – (...)” (TRF da 5ª Região. AGTR 86746 AL 0013957-14.2008.4.05.0000, rel. Des. Fed. Sérgio Murilo Wanderley Queiroga (Substituto), julgado em 22.09.2009, Segunda Turma, DJe  11.11.2009).

39 Alinho-me aqui aos críticos da jurisprudência que se firmou no Supremo Tribunal Federal a partir de 2004 atribuindo regime público integral e indistintamente aos bens de todas das (empresas) estatais prestadoras de serviços públicos (sociedades de economia mista ou empresas públicas), estivessem estes bens afetados ou não à prestação do dito serviço. Felizmente já de alguns anos pra cá, o Supremo Tribunal tem retrocedido dessa jurisprudência — que fazia tábula rasa do regime privado eleito pela Administração Pública para essas empresas — para abrigar no regime público apenas os bens realmente afetados de estatais dependentes e nos casos de prestação de serviço em regime de privilégio, sem concorrência com prestadores privados na mesma atividade. Vide, neste sentido, o acórdão proferido no julgamento do RE 599.628, em 25 de maio de 2011, em repercussão geral. De todo modo, parece correta a proteção, pelo menos parcial, do regime público conferida a bens privados (de estatais ou concessionárias) diretamente afetados a serviço, em homenagem a continuidade deste.

40 Sobre o tema, A. M. SANDULLI, Beni pubblici, in Enc. dir., ad vocem; ID., Spunti per lo studio dei beni privati di interesse pubblico, in Dir. ec., p. 163 e ss. Apud  BINDI, Alessandra. Proprietà e interesse pubblico tra logica dell’appartenenza e logica della destinazione, p. 143. Segundo a autora, porém, o primeiro a ter utilizado o conceito foi Grisolia, mas em contexto diverso. Registra, ainda, que a categoria é hoje defendida por boa parte da doutrina contemporânea.

41 GAROFOLI, Roberto. Compendio di diritto amministrativo, p. 229.

42 BINDI, Alessandra. Proprietà e interesse pubblico tra logica dell’appartenenza e logica della destinazione, p. 141.

43 Idem, p. 129: “Peraltro, l’emergere di un regime pubblicistico applicabile non in relazione alla titolarità soggettiva dei beni, bensì in rapporto al dato oggettivo e sostanziale della funzione o del compito pubblico che i medesimi beni sono chiamati a realizzare dimostra come, anche in questo ambito, si sia affermata una concezione funzionale di pubblica amministrazione e come il processo di “desoggettivazione” del diritto amministrativo abbia coinvolto anche i mezzi dell’azione pubblica.”

44 Idem, p. 142.

45 GIANNINI, Massimo Severo. I beni pubblici, pp. 123-126. 

46 BINDI, Alessandra. Proprietà e interesse pubblico tra logica dell’appartenenza e logica della destinazione, p. 125: “Come avviene per gli enti formalmente privati, ma sostanzialmente pubblici, anche per i beni oggetto di privatizzazione formale dovrebbe risultare applicabile un regime giuridico di natura mista, risultante dal coordinamento tra istituti e strumenti di diritto privato, da una parte, e, dall’altra, regole di diritto pubblico legate alla permanente sostanza pubblica dei beni ed alla loro perdurante funzionalizzazione all’uso collettivo o amministrativo.

47 TJ/RJ 19ª Câmara Cível. Apelação Cível 0006671-07.2000.8.19.0011 (2010.001.35256), rel. Des. Ferdinaldo Nascimento, 20.07.2010.

48 “PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. BENS. PENHORABILIDADE. REGRA GERAL. EXCEÇÃO. BENS AFETADOS À PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO QUE SE CONSTITUI EM SUA FINALIDADE. CASO CONCRETO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. 1. A jurisprudência do STJ encontra-se consolidada no sentido de que são penhoráveis os bens das sociedades de economia mista, mesmo que prestem serviço público, excetuando-se, apenas, aqueles bens afetados a essa finalidade. 2. No bem imóvel penhorado na execução embargada está em funcionamento da Corregedoria de Polícia Civil do Estado de Alagoas, conforme mandado de constatação (fls. 66/67), não sendo esse fato, contudo, suficiente para caracterizar a impenhorabilidade do bem, pois a atividade pública desempenhada no imóvel não está incluída no âmbito do serviço público prestado pela Apelada (administrar financiamentos do SFH e realizar cursos de capacitação de pessoal para a administração pública estadual), cuidando-se, por conseguinte, o referido uso de destinação anômala do bem a órgão público vinculado ao sócio majoritário da Apelada, o Estado de Alagoas. 3. Tal situação é similar àquela de um bem imóvel de qualquer particular que esteja locado ou cedido a qualquer título para funcionamento de órgão público, fato que não é suficiente para ensejar sua impenhorabilidade, mas, no máximo, quando de eventual desocupação do imóvel por sua venda judicial, o estabelecimento de prazo mais elástico para realização desta. 4. Provimento da apelação e da remessa oficial para julgar improcedentes os embargos à execução, condenando à Apelada ao pagamento de honorários advocatícios de 0,5% (meio por cento) do valor da causa” (TRF da 5ª Região. AC 368990 AL 0009017-09.2001.4.05.8000, rel. Des. Fed. Emiliano Zapata Leitão (Substituto), julgado em 27.08.2009, Terceira Turma, Diário Eletrônico Judicial 10.09.2009).

49 “AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. DECISÃO QUE AUTORIZA A IMISSÃO DE PARTICULAR NA POSSE DE BEM AFETADO AO SERVIÇO PÚBLICO. LESÃO À ORDEM ADMINISTRATIVA, À SAÚDE E À SEGURANÇA PÚBLICAS RECONHECIDA. PEDIDO DE SUSPENSÃO DEFERIDO.

(...)

II - Espécie em que o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais causa, a um só tempo, grave lesão à ordem administrativa, à saúde e à segurança públicas, pois tem o potencial de inviabilizar a prestação, por duas secretarias municipais, de serviços essenciais à população do Município de Governador Valadares, tais como o recolhimento do lixo urbano e hospitalar, o planejamento, a execução e a fiscalização de obras de infraestrutura, a organização do transporte coletivo e o gerenciamento do sistema de iluminação pública.

III - Imissão de particular na posse de área já afetada ao serviço público, com o imediato desalojamento de órgãos da administração, que não pode subsistir, ao menos considerando o caráter precário da decisão.

IV - Município que tem a posse efetiva do bem objeto da ação originária, com destinação pública, a caracterizar, em última análise, a desapropriação indireta, situação em que eventual perda da propriedade pode ser resolvida em perdas e danos. Agravo regimental desprovido” (STJ - AgRg na SLS: 2000 MG 2015/0054965-2, rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 20.05.2015, Corte Especial, DJe 12.06.2015).

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Citação

BAPTISTA, Patrícia. Regime jurídico dos bens públicos: perspectiva civilista, funcionalização e outros temas. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/45/edicao-2/regime-juridico-dos-bens-publicos:-perspectiva-civilista,-funcionalizacao-e-outros-temas

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017

Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

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