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Estelionato
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Édson Luís Baldan
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Tomo Direito Penal, Edição 1, Agosto de 2020
Estelionato representa modalidade de crime patrimonial mediante fraude, vez que, ao invés da clandestinidade, ameaça ou violência à pessoa, o autor se vale do engano ou o emprega para que a vítima, inadvertidamente, se deixa espoliar, configurando, assim, forma "evoluída" de captação do alheio.1 No início do século passado advertia o mesmo autor que, em substituição à clássica e violenta criminalidade, surgiam novas formas de delinquência, em que “o expoente da improbidade operosa é hoje o architectus fallaciarum, o scroc, o burlão, o cavalheiro de indústria”. Na verdade, assiste-se, hoje, a uma justaposição entre aquela criminalidade bárbara e esta outra engenhosa, a fraude, sob todos os mantos, nas relações interpessoais. Do mesmo doutrinador pátrio colhe-se que a sagacidade dos negócios não se constitui em fraude juridicamente ponderável, sendo tolerada, dentro de certos limites, em homenagem à segurança e estabilidade dos contratos, havendo, pois, uma licença para aquela habitual astúcia pela qual se realiza o vulgarmente dito “bom negócio”. O Direito, concluiu ele, nem sempre se apresenta coincidente com a Moral.2 A tipificação do estelionato e fraudes correlatas vem apresentada no Título II, Capítulo VI do Código Penal Brasileiro.
1. Figura típica fundamental do estelionato
“Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa”.
1.1. Objetividade jurídica
Tutela-se o patrimônio móvel ou imóvel de pessoa natural ou jurídica. Para alguns, a norma penal também protege a segurança, a fidelidade e a veracidade das relações jurídicas afetas ao patrimônio, tutelando-se tanto o interesse social da confiança mútua nas relações patrimoniais privadas como também o interesse público em impedir o emprego do engano para levar alguém a prestações indevidas, com geração de prejuízo3.
1.2. Sujeitos ativo e passivo
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum). Já o passivo é o indivíduo enganado ou o titular da lesão patrimonial, os quais podem ou não se tratar de mesma pessoa. É, assim, possível que a fraude aplicada ao empregado (pessoa natural) produza prejuízo à empresa (pessoa jurídica) empregadora. Tratando-se, no entanto, de polo passivo difuso ou de sujeitos indeterminados, poderá restar configurado crime contra a economia popular (Lei 1.521/1951 ou Lei 8.137/1990). Na hipótese de vítima incapaz (em razão de saúde mental, inferioridade intelectual, inexperiência ou menoridade), o crime será o de abuso de incapazes (CP, art. 173).
1.3. Condutas típicas
Possível reduzir o estelionato a um polinômio: meio fraudulento + erro + vantagem ilícita + lesão patrimonial = estelionato, sendo, com isso, identificáveis seus elementos componentes: (a) consecução de vantagem ilícita; (b) emprego de meio fraudulento; (c) erro causado ou mantido por tal meio; (d) nexo causal entre o erro e a prestação da vantagem; (e) lesão patrimonial4. Estelionato é, portanto, a obtenção de vantagem econômica indevida mediante fraude, isto é, pela indução ou manutenção da vítima em erro conduz-se esta à prática de disposição patrimonial em favor do agente. Consiste o crime em obter, para si ou para outrem, vantagem de natureza econômica indevida, em prejuízo de outrem, pelo emprego de meio fraudulento, dado pelo artifício, ardil ou meio análogo (numa enumeração exemplificativa, característica de norma penal primária continente de fórmula redacional que possibilita o recurso hermenêutico da interpretação analógica).
Embora estéril a discussão, dada a fórmula conclusiva da norma (“qualquer meio fraudulento”), costuma-se diferençar artifício de ardil. O artifício “é qualquer transfiguração do verdadeiro, qualquer simulação da realidade, quer aparentando o que não existe, quer dissimulando ou ocultando o que existe”, enquanto que o ardil consiste de “uma representação engenhosa que ilude o psiquismo alheio (inteligência ou sentimento), causando erro, mediante falsa aparência lógica ou sentimental”.5 Diferentemente de outras legislações, o estatuto penal brasileiro não reclama a “mise-en-scène”, a encenação, um aparato indutor ao erro, podendo mesmo o simples silêncio caracterizar um meio fraudulento quando tivesse o agente o dever jurídico de esclarecer a verdade dos fatos.6
Fraude é o malicioso engano referido a uma locupletação injusta. Se num sentido genérico a fraude é qualquer meio malicioso subterfúgio para alcançar um fim ilícito, numa acepção menos ampla traduz “o engano dolosamente provocado, o malicioso induzimento em erro ou aproveitamento de preexistente erro alheio, para o fim de injusta locupletação”.8 Inexiste uma distinção ontológica entre a fraude penal e a civil, pois ambas representam meios enganosos e se diferenciam apenas pelo grau de gravidade a ser apreciado no caso concreto, sendo identificável a fraude penal quando presente o binômio dolo inicial (ab initio) e gravidade do propósito fraudulento, que deve ser a razão determinante da prática do ato. Exemplificando, o mero inadimplemento contratual configura, em regra, um ilícito civil, exceto se se demonstrar a premeditação do descumprimento, isto é, o dolo inicial mais a gravidade da fraude. No âmbito civil, o dolo secundário ou incidental não figura sequer como causa de anulação do negócio jurídico, menos ainda pode configurar um ilícito penal.9 Não há, em síntese, diferença essencial entre fraude civil e fraude penal, sendo vãs as teorias que buscaram traçar em abstrato um princípio que as pudesse distinguir, incumbindo ao aplicador da norma essa distinção à luz do caso concreto, pois há casos em que a política criminal não julga necessária a pena e outros em que se impõe o magistério punitivo.10
1.3.1. A questão da torpeza liberal
Divergem doutrina e jurisprudência quanto a subsistir ou não o crime de estelionato no caso de também a vítima agir com malícia, objetivando uma vantagem moral ou legalmente reprovadas, como no clássico exemplo em que alguém compra maquinário para produzir dinheiro falso e constata, depois, tratar-se de equipamento absolutamente inservível aos fins anunciados. Por este entendimento, torna-se possível que mesmo um ladrão figure como vítima de estelionato ao ser enganado quando da negociação dos bens por ele subtraídos, hipótese em que o ofendido da lesão patrimonial seria a vítima do furto precedente.11
Os motivos para a não punição seriam: inconveniência de a lei penal amparar a má-fé; a possibilidade de reparação do dano na órbita civil; a impossibilidade de repetição do indébito a quem deu coisa com fim ilícito. Ao revés, as razões para sustentar-se a criminalização consistiram de: inadmissibilidade de se considerar a má-fé do autor que se locupletou; a ocorrência de dano a bem jurídico da vítima; impossibilidade de a vítima efetivamente consumar seu intento em tese ilícito; distinção entre os fins de aplicação do Direito Civil (reparação do dano em favor da vítima) e do Direito Penal (proteção da sociedade e não, unicamente, do indivíduo lesado); inexistência de patrimônio juridicamente desprotegido contra o estelionato.12
2. Forma privilegiada
§ 1º Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.
Trata-se de disposição típica remetida, pois confere, expressamente, ao estelionato “privilegiado” um tratamento benéfico simétrico ao da figura do denominado furto “privilegiado”, aqui falando-se, todavia, em pequeno valor do prejuízo (e não em pequeno valor da coisa).13
Há dissensão doutrinária quanto à aferição do pequeno valor do prejuízo, para alguns sendo este resultante, também, de efeito da posterior reparação do dano pelo agente, situação em que seria admissível a incidência do privilégio. Entendimento diverso14 sustenta que, sendo o estelionato crime instantâneo e que o diminuto valor do prejuízo integra o tipo como circunstância legal específica, o ressarcimento seria dado aleatório e posterior que, assim, não poderia retroagir para operar uma desclassificação no tipo que estaria perfeito quando da consumação delitiva. Para esta última corrente, a ulterior reparação do dano não implicaria em privilégio e poderia ser considerada, apenas, como circunstância atenuante genérica (CP, art. 65, III, “b”) ou causa genérica de redução de pena (CP, art.16).
3. Figuras equiparadas
“§ 2º Nas mesmas penas incorre quem:
Disposição de coisa alheia como própria
I – vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria;
Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
II – vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável, gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias;
Defraudação de penhor
III – defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado;
Fraude na entrega de coisa
IV – defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a alguém;
Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
V – destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro;
Fraude no pagamento por meio de cheque
VI – emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento”.
Trata-se de construções típicas especiais que preservam mesma quantidade e qualidade de pena cominada à figura fundamental do caput. De acordo com o § 2º, “[n]as mesmas penas incorre quem (...)”.
3.1. Disposição de coisa alheia como própria
Pune-se a conduta daquele que vende (aliena onerosamente), permuta (barganha, troca) ou entrega para pagamento, locação (aluguel) ou em garantia coisa pertencente a terceiro como se própria fosse e, como a essência do estelionato é a fraude, não haverá crime se o receptor da coisa estiver ciente de que esta não pertence ao alienante. O objeto material é a coisa alheia tornada indisponível pelo agente. O sujeito ativo é aquele que simula a condição de dono do bem para aliená-lo em prejuízo de terceiro de boa-fé. Não haverá crime na hipótese de se tratar de usufrutuário (pois tem poder legal para locar a coisa alheia) e o locatário (desde que ausente cláusula contratual proibitiva). O sujeito passivo é não apenas o proprietário da coisa injustamente transacionada, mas também o adquirente iludido.15
3.2. Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
Aqui a conduta incriminada consiste na venda (alienação onerosa), troca, dação em pagamento ou em garantia, de um bem pertencente ao próprio agente mas que dele não podia dispor porque: (a) estava gravado de ônus (p. ex., hipoteca); (b) era objeto de disputa judicial (litigioso); (c) consistia de imóvel cuja venda parcelada fora prometida a terceiro. A essência da fraude reside no silêncio sobre o caráter indisponível do bem negociado, daí resultando que a conduta será atípica no caso de ter o adquirente a ciência quanto às circunstâncias elencadas taxativamente no tipo e que tornam o bem não desembaraçado para o negócio. O objeto material é a coisa (móvel ou imóvel) própria, mas inalienável. O sujeito ativo somente pode ser o proprietário do bem transacionado (crime próprio). O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa. Quanto à consumação, o resultado material verifica-se com a vantagem financeira advinda da transação ilegal do bem próprio indisponível.16
3.3. Defraudação de penhor
A conduta típica consiste na defraudação do bem móvel oferecido como penhor (garantia de negócio) operada por meio da venda não consentida “ou por outro modo” (interpretação analógica) daquele objeto empenhado. O consentimento válido prestado pelo credor pignoratício afasta a tipicidade da conduta. O objeto material é o bem móvel dado como penhor e que remanesceu na posse do devedor. O sujeito ativo é somente o devedor pignoratício que conserva a posse do bem empenhado (crime próprio). O sujeito passivo é o credor pignoratício insciente da negociação do bem dado em garantia e do qual não tem a posse. A consumação ocorre com a dissipação do bem empenhado, acarretando lesão ao direito do credor (crime material).17
3.4. Fraude na entrega de coisa
Pune-se a alteração depreciativa (na natureza, características ou montante) de bem móvel ou imóvel cuja entrega é juridicamente devida a outrem. Afasta-se a tipicidade caso o destinatário do bem consinta na espoliação. O objeto material é coisa móvel ou imóvel conspurcada. O sujeito ativo somente pode ser a pessoa obrigada à entrega do bem (crime próprio). Não pode, todavia, praticar a conduta na condição de comerciante, pois nesse caso o crime é o do art. 175, CP. O sujeito passivo é aquele que tem o direito de receber a coisa. O elemento normativo do tipo é o dever (por lei ou contrato) de transmissão do bem a outrem. A consumação se dá com a efetiva entrega ou com a defraudação.18
3.5. Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
A conduta típica é a destruição (total ou parcial) de bem móvel ou imóvel próprio, bem assim a lesão ou agravação de lesão (fisiológica ou anatômica) à integridade física ou à saúde próprias, com o propósito de obter indenização de empresa seguradora. O objeto material na primeira parte do artigo é a coisa material própria; na segunda figura é o organismo do agente. O sujeito ativo é somente o beneficiário e/ou titular da apólice de seguro (crime próprio). Caso ocorra concurso de terceira pessoa para inflição de ofensa física no segurado, somente ela responderá pelo crime de lesão corporal dolosa, vez que a autolesão não merece tipificação no direito penal pátrio. Já o sujeito passivo é somente a empresa seguradora; na hipótese de lesão corporal produzida por outrem, o lesionado não figurará como vítima deste crime mas sim de lesões corporais dolosas (pois a integridade física é bem jurídico indisponível). O elemento subjetivo específico do tipo consiste na intenção de obter indenização ou valor do seguro (dolo específico, para a doutrina causal). Consuma-se tão só com a destruição ou ocultação da coisa ou então com a produção ou agravação de ofensa à integridade corporal ou à saúde do agente, independentemente da percepção do valor do seguro (crime formal).19
3.6. Fraude no pagamento por meio de cheque
A conduta criminosa em questão ocorre quando o agente emite cheque sem a devida provisão de fundos ou, havendo numerário bastante no instante da emissão, frustra a compensação do título por algum meio (v. g., expedição de contraordem, saque dos fundos etc.). O objeto material é o cheque sem provisão de fundos ou com seu pagamento frustrado. Somente o titular ou os titulares de conta corrente bancária (crime próprio) podem figurar como sujeito(s) ativo(s). Já o sujeito passivo é o beneficiário que não logra obter o crédito da importância estampada na cártula de cheque.
O elemento normativo do tipo é o “cheque”, que constitui título de crédito pagável à vista de sua apresentação na instituição financeira respectiva, não sendo válida qualquer outra anotação nele lançada e que em sentido contrário disponha, como na hipótese do denominado cheque “pré-datado” ou “pós-datado”, onde se opera a desnaturação do título e se afasta o juízo de tipicidade nos termos deste inciso.
O crime estará consumado quando da recusa de pagamento pela agência bancária sacada (crime material), sendo que o provimento de fundos após a emissão do título conduz à figura do arrependimento eficaz.
Ressalte-se que o pagamento do valor do cheque antes do recebimento da denúncia obsta à ação penal, nos termos da Súmula n. 554 do STF, aplicada mesmo após a reforma penal de 1984 (a qual introduziu a figura do arrependimento posterior como mera causa de diminuição de pena, no art. 16). Representa, pois, causa de extinção de punibilidade.20
Há situações várias que se situam fora do alcance típico desse dispositivo. Não há crime se o cheque especial emitido não supera o limite de crédito que lhe concede o estabelecimento bancário. Também, como mencionado, o denominado cheque “pré-datado” ou “pós-datado” não constitui ilícito penal, pois, nesse cenário, tal título representa apenas um documento de dívida e o beneficiário não é fraudado em razão do não desconhecimento da inexistência de suficiente provisão de fundos no momento da emissão.21 O mesmo vale para o caso de cheque emitido em substituição a nota promissória ou duplicata vencida, inexistindo subtipo de estelionato na espécie, haja vista que a vítima não se pode dizer enganada ao trocar um título de maior garantia pelo cheque.22
4. Causa especial de aumento de pena
§ 3º A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.
Na hipótese de figurar como vítima entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência, haverá o aumento de pena até a terça parte, a ser dosado na terceira fase de cálculo da pena.
5. Estelionato contra idoso
§ 4º Aplica-se a pena em dobro se o crime for cometido contra idoso.
A Lei 13.228, com publicação e entrada em vigor em 28.12.2015, acresceu novo parágrafo ao art. 171, para o fim de majorar a pena daquele que, empregando fraude, obtenha vantagem patrimonial indevida em prejuízo de pessoa idosa, isto é, daquela vítima que, nos termos do art. 1º da Lei 10.741/2003, tenha completado 60 anos de idade. Trata-se de causa especial de aumento de pena a ser sopesada pelo magistrado na terceira fase da dosimetria, ocasionando a duplicação da sanção provisória obtida na segunda fase de cálculo (quando são consideradas as agravantes e atenuantes genéricas). Trata-se, portanto, de uma majorante, e não de qualificadora, pois nesta última circunstância o legislador comina abstratamente novos patamares mínimo e máximo que fornecem o quantum para a aferição da pena base (já na primeira fase da dosagem da sanção penal).
Cuida-se de opção do legislador, por reconhecer a frequência com que pessoas idosas, muitas delas fragilizadas física e intelectualmente pelo processo natural da senilescência, tornam-se alvo preferencial de fraudes as mais diversas, sendo notória a prática do “conto do bilhete” contra esse universo da chamada “melhor idade”. A maior vulnerabilidade desses ofendidos revelaria um desvalor mais intenso da conduta do agente e, pois, legitimaria uma reprimenda mais severa. Tratando-se de medida mais gravosa, somente incidirá sobre as condutas praticadas após a data de entrada em vigor da novatio legis in pejus.
A aplicação dessa majorante afasta a aplicabilidade da agravante genérica prevista no CP, art. 62, II, “h”, sob pena de bis in idem. Advirta-se, por fim, que esse estelionato majorado pela condição etária da vítima não se confunde com as figuras típicas definidas no Estatuto do Idoso, em seus arts. 102 e 106. No primeiro caso, não existe fraude, e, sim, apropriação indébita (com boa-fé inicial do agente), ao passo que na segunda hipótese incriminadora mencionada (art. 106) o delito de outorga indevida de procuração afigura-se crime formal, em que há apenas a potencialidade do dano ao acervo patrimonial do idoso, com punição menos rigorosa porque, caso se constitua tal manobra apenas meio para perpetração da fraude, correta será a subsunção da conduta ao “estelionato senil”, que, como infração material (cujo resultado implica efetiva lesão patrimonial à vítima), absorve aquela e acarreta, por isso, a imposição de castigo penal mais severo.23
6. Consumação e tentativa
Perfaz-se o crime com a obtenção da vantagem indevida, sendo possível a tentativa. Trata-se de crime classificado doutrinariamente como material (injusto típico que descreve a conduta proibida e prevê o decorrente resultado naturalístico, de cuja produção depende a consumação delitiva).
7. Ação penal
Trata-se de crime perseguido mediante ação penal pública incondicionada, acarretando que devam praticar de ofício seus atos – independentemente de provocação de eventual interessado ou adimplemento de qualquer condição de procedibilidade -- tanto a autoridade policial (instaurando o inquérito policial para determinação da autoria e materialidade da infração penal) quando o membro do Ministério Público (ofertando a denúncia para desencadeamento da persecução penal em juízo criminal).
8. Distinções e confrontos
Existem nítidas distinções típicas do estelionato em confronto com outros crimes, codificados ou não, sendo mais recorrentes os seguintes casos:24
(a) furto mediante fraude (CP, art. 155, § 4º, II): neste existirá sempre uma subtração, ao passo que no estelionato é a própria vítima que, ilaqueada em sua vontade pela fraude, entrega voluntariamente a coisa ao agente;
(b) apropriação indébita (CP, art. 168): nesta jamais estará presente o dolo inicial, sendo apenas posterior essa vontade criminosa, contrariamente ao estelionato em que existe obrigatoriamente o “dolus ab initio”;
(c) extorsão (CP, art. 158): nesta a vítima, submetida à violência ou à grave ameaça, entrega a coisa ao agente contra sua vontade, diversamente do que ocorre no estelionato em que o ofendido, porque iludido, faz a entrega de boa vontade em favor do estelionatário;
(d) curandeirismo (CP, art. 284): pode ocorrer em concurso formal com o estelionato quando o agente obtém vantagem ilícita da vítima sob pretexto de sanar problemas sentimentais ou de saúde;
(e) uso de documento falso (CP, art. 304): antiga controvérsia doutrinária e jurisprudencial foi solvida com o advento da Súmula 17, STJ, ao estabelecer que “quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
9. Súmulas correlatas
Súmula 246, STF: “Comprovado não ter havido fraude, não se configura o crime de emissão de cheque sem fundos”.
Súmula 521, STF: “O foro competente para o processo e julgamento dos crimes de estelionato, sob a modalidade de emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos, é onde se deu a recusa do pagamento do sacado”.
Súmula 554, STF: “O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”.
Súmula 17, STJ: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
Súmula 24, STJ: “Aplica-se ao crime de estelionato, em que figure como vítima entidade autárquica da previdência social, a qualificadora do § 3º do art. 171 do Código Penal”.
Súmula 48, STJ: “Compete ao juízo do local da obtenção da vantagem ilícita processar e julgar crime de estelionato cometido mediante falsificação de cheque”.
Súmula 73, STJ: “A utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da Justiça estadual”.
Súmula n. 107, STJ: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, quando não ocorrente lesão à autarquia federal”.
Súmula n. 244, STJ: “Compete ao foro do local da recusa processar e julgar o crime de estelionato mediante cheque sem provisão de fundos”.
10. Fraudes análogas
10.1. Duplicata simulada25
“Art. 172 - Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado.
Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorrerá aquele que falsificar ou adulterar a escrituração do Livro de Registro de Duplicatas”.
10.1.1. Conduta típica
Configura essa figura típica a conduta do comerciante que, sem correspondência com as operações de fato realizadas, emite (expede, redige, lança, compõe, produz materialmente, preenche, coloca em circulação) fatura, duplicata ou nota de venda. A Lei 8.137/1990, além de elevar a sanção cominada, excluiu da redação típica os verbos “expedir” e “aceitar”, introduzindo única conduta consistente em “emitir”.
Descreve o tipo a conduta de emissão de duplicata, fatura ou nota de venda relativos a mercadoria vendida e serviço prestado, mas silencia quanto à operação comercial inexistente, motivo por que a doutrina divide-se em afirmar que, na segunda hipótese, será a conduta atípica ou, ao contrário, será adequada ao tipo mercê de interpretação extensiva, pois não seria lógico quisesse o legislador punir conduta menos grave e deixar a descoberto a sanção a procedimento mais ofensivo em que sequer uma operação mercantil tenha sido efetivada.
10.1.2. Objeto jurídico
É o patrimônio da pessoa natural ou jurídica potencial ou efetivamente lesada. Para os que o definem como espécie do gênero crime contra a ordem econômica, este delito também põe em risco a ordem pública econômica como bem jurídico mediato, remoto ou espiritualizado, por afetar a boa fé negocial.
10.1.3. Objeto material
É o papel mercantil em que se opera o lançamento dos dados falseados e que constituirá o corpo de delito da infração penal.
10.1.4. Sujeito ativo
É o agente econômico que atua na comercialização de bens ou na prestação de serviços, configurando, por isso, crime próprio. Somente há que se falar em concurso de agentes em relação ao endossatário ou avalista se acumpliciados com o comerciante emissor do documento.
10.1.5. Sujeito passivo
Vítima é o destinatário da duplicata, fatura ou nota de venda continentes de dados que, qualitativa e ou quantitativamente, não estejam em correspondência com a operação mercantil realizada.
10.1.6. Elementos normativos do tipo
São dados pelos vocábulos “fatura”, “duplicata”, “nota de venda”, como conceitos hauridos do Direito Comercial. Fatura é o documento de emissão obrigatória e unilateral pelo vendedor ou prestador de serviços e que comprova uma operação comercial. Duplicata, como título de crédito facultativo, representa uma obrigação decorrente de compra e venda mercantil ou de prestação de serviços. Nota de venda consiste em documento simplificado emitido pelo comerciante e que contém discriminação dos produtos negociados, inclusive para efeitos de fiscalização tributária.
10.1.7. Consumação
Como infração penal de perigo concreto, o crime estará consumado no instante em que o agente colocar em circulação a duplicata, fatura ou nota de venda. A tentativa é, em tese, admissível, por se tratar de crime plurissubsistente.
10.1.8. Ação penal
A ação penal é pública incondicionada.
10.1.9. Figura equiparada
O parágrafo único, não alterado pela Lei 8.137/1990, define como típica a conduta de falsificar ou adulterar o Livro de Registro de Duplicatas, isto é, a inserção intencional de dados incorretos ou alteração deliberada das informações corretas que estejam registrados no livro obrigatório de registro de duplicatas. Caso se trate de omissão na escrituração e no contexto de evento falencial, o crime será aquele tipificado no art. 178 da Lei 11.101/2005.
10.2. Abuso de incapazes26
“Art. 173 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa”.
10.2.1. Conduta típica
É o abusar (no sentido de aproveitar-se, prevalecer-se, exorbitar) da inferioridade etária ou mental de alguém para induzi-lo (isto é, persuadir, mover, levar) à prática de qualquer ato de relevância jurídica (por exemplo assinar documento de renúncia de herança) que lhe cause perda econômica e tenha o potencial efeito de garantir ganho ilícito ao agente, ainda que este não seja a final alcançado.
10.2.2. Objeto jurídico
Bem móvel ou imóvel, material ou imaterial, sobre o qual recaia a conduta do autor.
10.2.3. Objeto material
É o patrimônio da vítima induzida.
10.2.4. Sujeito ativo
Qualquer pessoa, pois se trata de crime comum.
10.2.5. Sujeito passivo
É o indivíduo menor ou hipossuficiente mental. Serão, portanto, vítimas o menor de 18 anos (sugestionável ou impulsivo em razão de necessidade, inexperiência ou paixão) e a pessoa com debilidade mental (oligofrênicos: débeis mentais, imbecis e idiotas, todos com desenvolvimento mental não completo ou retardado) ou alienada (paciente de qualquer enfermidade mental que acarrete diminuição ou elisão da capacidade intelectiva e volitiva).
10.2.6. Elemento subjetivo
É o dolo, vontade livre e consciente de induzir abusando, com a especial finalidade (para a doutrina clássica o “dolo específico”) de obter a ilícita locupletação.
10.2.7. Consumação
Dar-se á a consumação delitiva com a mera indução do inferiorizado pela menoridade ou doença mental, ainda que não obtenha o agente o proveito buscado, haja vista tratar-se de crime formal. A tentativa é possível.
10.2.8. Ação penal
Pública incondicionada.
10.3. Induzimento à especulação27
“Art. 174 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, da inexperiência ou da simplicidade ou inferioridade mental de outrem, induzindo-o à prática de jogo ou aposta, ou à especulação com títulos ou mercadorias, sabendo ou devendo saber que a operação é ruinosa:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa”.
10.3.1. Conduta típica
Praticará esse crime o agente que abusar (fizer mau uso, tirar proveito) da inexperiência ou simplicidade ou inferioridade mental de alguém para induzi-lo (incutir, persuadir, mover) à prática de jogo, aposta, especulação mercantil, quando sabia ou deveria saber que o resultado seria ruinoso. “Jogo” é o contrato aleatório entre pessoas pelo qual se promete certa quantia a quem for favorável determinado resultado dependente apenas do azar ou álea. “Aposta” é o contrato igualmente aleatório em que os contraentes concordam na perda de uma soma em favor daquele ou daqueles cuja opinião sobre determinado tema ou evento verificar-se ao final como correta ou triunfante. Já a especulação é, em si, lícita e inerente à mercantil28, pois em geral não se compra ou vende sem especular, punindo-se criminalmente apenas aquela especulação realizada por pessoas portadoras de inferioridade mental ou de inexperiência e que a isso tenham sido induzidos por outrem.
10.3.2. Objeto jurídico
É o patrimônio da vítima induzida a atividades potencial ou certamente ruinosas.
10.3.3. Objeto material
Jogos, apostas ou especulação (em título ou mercadorias) geradores de perda financeira possível ou real à vítima.
10.3.4. Sujeito ativo
Qualquer pessoa, pois se trata de crime comum.
10.3.5. Sujeito passivo
É o indivíduo marcado pela inexperiência (ausência de conhecimentos práticos da vida) ou pela simplicidade (ingenuidade, credulidade, rudeza cultural) ou pela inferioridade mental (baixo quociente intelectual que reduz a capacidade de intelecção e volição).
10.3.6. Elemento subjetivo
Malgrado dissensões doutrinárias, entende-se que a conduta do agente será informada pelo dolo direto (quando sabe ruinosa a operação) ou por dolo eventual (quando deveria sabê-la prejudicial), com a especial finalidade de obtenção de vantagem econômica ilícita (elemento subjetivo específico do injusto ou “dolo específico” para a doutrina clássica).
10.3.7. Elementos normativos
Dados pelas partículas “jogo”, “aposta” e “especulação”.
10.3.8. Consumação
Verifica-se com a prática do jogo, aposta ou especulação pela vítima induzida, ainda que não sobrevenha vantagem econômica ao indutor (crime formal).
10.3.9. Ação penal
Pública incondicionada.
10.4. Fraude no comércio
“Art. 175 - Enganar, no exercício de atividade comercial, o adquirente ou consumidor:
I - vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada;
II - entregando uma mercadoria por outra:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”.
10.4.1. Conduta típica
Perfaz-se o crime com o ato de o comerciante ou comerciário enganar (iludir, ludibriar, induzir a erro) o adquirente ou consumidor de duas maneiras (crime de forma vinculada). Na primeira, o agente vende, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada (não genuína, alterada prejudicialmente, em geral, em sua substância) ou deteriorada (estragada, danificada, em mau estado de conservação), enquanto que na segunda figura típica, o alienante entrega uma mercadoria no lugar de outra, isto é, substitui, no ato de tradição, o produto originalmente comprado por outro que se apresenta diverso em gênero, espécie, origem, qualidade ou quantidade.
10.4.2. Objeto jurídico
É o patrimônio do consumidor lesado e, como bem jurídico mediato ou espiritualizado, a ordem pública econômica pelo abalo na boa fé comercial (trata-se de crime contido na seara do denominado Direito Penal Econômico).
10.4.3. Objeto material
É a mercadoria falsificada, deteriorada ou substituída.
10.4.4. Sujeito ativo
É o comerciante ou o comerciário (crime próprio). Ausente essa condição, a conduta poderá adequar-se à descrição típica do estelionato.
10.4.5. Sujeito passivo
É o consumidor ou adquirente da mercadoria, pessoa natural ou jurídica.
10.4.6. Elemento subjetivo
Somente é punível a conduta a título de dolo (direto ou eventual), não contemplando o injusto qualquer elemento subjetivo específico.
10.4.7. Consumação
Opera-se com o recebimento da mercadoria e, por conseguinte, com a percepção de prejuízo patrimonial, pelo adquirente (crime material), sendo admissível a figura tentada.
10.4.8. Ação penal
Pública incondicionada.
10.4.9. Confronto:
(a) crimes contra as relações de consumo: doutrina minoritária30 entende revogado tacitamente esse artigo pelo advento da Lei 8.137/90 que, em seu art. 7º, III, prevê como crime a conduta de “misturar gêneros e mercadorias de espécies diferentes para vendê-los ou expô-los à venda como puros; misturar gêneros e mercadorias de qualidade desiguais para vendê-los à venda por preço estabelecido para os de mais alto custo”;
(b) crimes contra a saúde pública: caso a mercadoria deteriorada ou falsificada represente risco à saúde dos destinatários, a tipificação deverá ser buscada nas figuras delitivas definidas nos arts. 272 e 273 do Código Penal;
(c) estelionato: caso as condutas não sejam promovidas no contexto das relações comerciais, ausente, assim, a condição de comerciante ou de comerciário dos sujeitos agentes, a adequação deverá ser deslocada para o tipo penal do estelionato, no art. 171, do Código Penal.
10.4.10. Forma qualificada:
“§ 1º - Alterar em obra que lhe é encomendada a qualidade ou o peso de metal ou substituir, no mesmo caso, pedra verdadeira por falsa ou por outra de menor valor; vender pedra falsa por verdadeira; vender, como precioso, metal de ou outra qualidade:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.”
Pune-se mais severamente aquele que, na execução de obra contratada, altera metal em sua qualidade para pior ou em sua quantidade para menor, ou, então, nas mesmas condições, substitui pedra verdadeira por outra falsificada ou de valor menor. Também descreve o tipo a conduta de vender o comerciante, sem que o consumidor tenha ciência dessa circunstância, pedra falsa como verdadeira ou metal ordinário como se precioso fosse. Objeto material será sempre o metal ou pedra de valor extraordinário, daí que o sujeito ativo somente poderá ser o joalheiro (na modalidade de “alterar” e “substituir”) e o comerciante de pedras e metais preciosos (na conduta de “vender”).
10.4.11. Figura privilegiada
“§ 2º - É aplicável o disposto no art. 155, § 2º”.
Por remissão expressa ao “furto privilegiado”, é possível que o Magistrado deixe de aplicar a pena reclusiva e a substitua pela detentiva, diminua a reprimenda de um a dois terços ou, ainda, aplique unicamente a pena de multa, desde que presentes as condições objetivas e subjetivas ali enunciadas (primariedade do agente e reduzido valor do bem).
10.5. Outras fraudes31
“Art. 176 - Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento:
Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação, e o juiz pode, conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena”.
10.5.1. Conduta típica
O crime consiste de três figuras básicas distintas (tipo penal misto cumulativo, pois a prática de mais de uma conduta implica na imputação de todos os crimes, em concurso material). Configuram o crime dessa verdadeira espécie de estelionato mais brandamente sancionado: (a) consumir refeição (almoço, jantar, café da manhã, lanches intermediários, inclusas as bebidas) em restaurante (ou lanchonete, cantina, pensão ou qualquer estabelecimento onde seja servida comida preparada); (b) permanecer hospedado em hotel (ou pensão, hospedaria, estalagem, motel ou albergue); utilizar-se de qualquer meio de transporte (ferroviário, marítimo, aéreo, rodoviário de tração mecânica ou humana) sem portar consigo o numerário para efetuar o pagamento (admitidos meios alternativos de contraprestação, como o cheque, cartão de débito ou crédito etc). Caso o serviço exija prévia aquisição de bilhete como condição para embarque controlado, ter-se-á hipótese de crime impossível.
10.5.2. Objeto jurídico
É o patrimônio.
10.5.3. Objeto material
A comida, o transporte ou a hospedagem.
10.5.4. Sujeito ativo
Qualquer pessoa sem recursos para efetuar o pagamento pelo produto ou serviço (crime comum).
10.5.5. Sujeito passivo
O fornecedor do produto ou serviço, bem como os respectivos atendentes ludibriados.
10.5.6. Elemento subjetivo
Somente é punível a conduta dolosa, acarretando-lhe a atipicidade a circunstância de desconhecer o agente que não possua consigo dinheiro ou meio de pagamento.
10.5.7. Consumação
O delito estará consumado quando o agente, sem prestar o correspondente pagamento, consome a refeição, locomove-se através do meio de transporte ou utiliza-se de serviço de hospedagem tarifado.
10.5.8. Ação penal
Pública de iniciativa condicionada à representação do ofendido.
10.5.9. Causa de extinção de punibilidade
Pode o Juiz de Direito deixar de aplicar a pena (perdão judicial).
10.5.10. Casuística
Na hipótese do “pendura” em que os acadêmicos de Direito, “animus jocandi”, servem-se de refeição simulando a condição de clientes para, ao final do consumo, anunciar o “calote” em celebração à instalação dos cursos jurídicos no país, restará afastado o crime se portarem consigo dinheiro ou meios, inclusive eletrônicos, para satisfação do pagamento, hipótese em que remanescerá unicamente o ilícito civil a ser reparado (sem interveniência policial). Privar, pelo débito, os consumidores de sua liberdade pessoal, com ou sem emprego de coerção por força policial, conduz, portanto, a potencial infração penal atentatória ao direito deambulatório, se não se caracterizar crime mais grave.
10.6. Fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações32
“Art. 177 - Promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em comunicação ao público ou à assembleia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, se o fato não constitui crime contra a economia popular”.
10.6.1. Introdução
Como sustentamos33 crimes societários são condutas de mandatários de pessoa jurídica e que ofendem a economia pública. Nesse diapasão, oportuno o magistério de Gérson Pereira dos Santos,34 segundo o qual “a sociedade a que se refere o chamado direito societário ou empresarial é a sociedade comercial, e os atos que pratica no exercício da atividade econômica são atos comerciais, regulados pelos institutos do Direito Comercial, senão de direito privado” e – prossegue o mesmo mestre – “ainda que o fastígio da empresa haja escandido as normas comerciais relativas às sociedades ou empresas, ainda assim não se processou a lateri do Direito Comercial a elaboração doutrinária de um direito próprio da empresa”. Percuciente é, ainda, a análise que faz Enzo Musco35 ao enunciar que
“as razões político-criminais que contribuíram para a grande importância do Direito Penal societário no marco da experiência jurídico-penal referem-se, por um lado, à exigência, sempre presente no mundo da política e da economia, de outorgar uma tutela enérgica e adequada ao patrimônio social frente aos abusos cometidos pelos administradores das sociedades anônimas (fator endógeno) e, por outro lado, à necessidade de desenvolver a diretiva comunitária em matéria societária, dirigida à criação de uma normativa da sociedade anônima tendencialmente unitária, como pressuposto indefectível do exercício da empresa em condições efetivas de igualdade (fator exógeno)”.
Podem ser apontados como sendo “dois os objetivos da tutela penal de que goza a sociedade, enquanto pessoa jurídica autônoma: primeiramente, assegurar que seu patrimônio se destine sempre à obtenção dos escopos sociais; em segundo lugar, garantir o regular funcionamento da assembleia geral, órgão social soberano por excelência”. Considera Paulo José da Costa Júnior que, “apesar de concentrado em duas únicas disposições, o Direito Penal societário compreende uma série bastante rica de previsões delituosa. Principalmente no art. 177, que contém uma pluralidade de tipos bem variada”.37
Os tipos penais diferem entre si não só no aspecto da estrutura, mas também pela objetividade jurídica (de substância patrimonial, todavia com a distinção de amplitude difusa ou coletiva dos danos conduzir a subsunção à lei especial). No artigo 177 do CPB estão concentradas as figuras típicas relativas às fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações (aquelas em que o capital é fracionado em títulos denominados “ações”), cuja disciplina legal vem dada pela Lei 6.404, de 15-12-1976, alterada pela Lei 10.303, de 31-10-2001. As sociedades por ações desdobram-se em sociedades anônimas e em sociedades em comandita por ações, ambas sob tutela penal. Importante ressaltar que as figuras típicas do artigo sob comento apresentam caráter nitidamente subsidiário, devendo ser afasta sua incidência quando, demonstrada a lesão ou perigo à economia popular, buscar-se o enquadramento penal na Lei 1.521/51. Reconhece Magalhães Noronha que não é simples diferençar a “economia do povo” das “pequenas economias de um grande, extenso e indefinido número de pessoas”. E explica: “se a lesão real ou potencial atinge apenas a uma ou duas dezenas de pessoas ricas ou de magnatas que subscreveram todo o capital social, cremos que muito mal o delito poderia ser considerado contra a economia do povo. Ao contrário, se a subscrição fosse feita por avultado e extenso número de pessoas que, com seus minguados recursos, subscreveram uma ou outra ação, a ofensa patrimonial seria dirigida contra a economia popular”.
10.6.2. Tipo objetivo
Cuida-se da fraude verificada na formação da sociedade, quando os fundadores afirmam falsamente ou omitem a verdade sobre esse processo, seja nos prospectos ou em comunicação dirigida ao público ou à assembleia dos subscritores do capital, por exemplo a autoatribuição de condições de crédito ou experiência que não detêm, notícia fantasiosa de entradas condicionantes da sociedade, ocultação de circunstâncias que tornam provável o insucesso da empresa em planejamento etc. Tais condutas não se confundem com o otimismo, pois crime somente haverá na hipótese de informações conscientemente falsa ou intencional ocultação da verdade sobre questão relevante.38
10.6.3. Objeto jurídico
É o patrimônio dos acionistas.
10.6.4. Objeto material
Prospecto ou comunicação em que se faça a inserção de informação falsa ou omissão de verdadeira relevante.
10.6.5. Sujeito ativo
São os fundadores da sociedade anônima (crime próprio).
10.6.6. Sujeito passivo
Qualquer pessoa, natural ou jurídica.
10.6.7. Elemento subjetivo
Dolo, com o elemento subjetivo específico consistente no fim de promover a fundação de sociedade por ações.
10.6.8. Consumação
Consuma-se o crime com a efetiva publicação ou comunicação, inadmitindo-se a tentativa em caso de, por circunstâncias alheias à vontade do agente, tal não ocorrer, configurando, pois, o “conatus” indiferente penal.
10.6.9. Ação penal
Pública incondicionada.
10.6.10. Condutas equiparadas
Além da conduta fraudulenta tipificada no “caput”, o art. 177 descreve, ainda, outras nove figuras em que são incriminadas ações relacionadas à fraude ou abuso na administração de sociedade por ações e, também, à negociação de votos pelo acionista nas deliberações da assembleia geral.
“§ 1º - Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular:
I - o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações, que, em prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembleia, faz afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo”.
(a) Conduta típica
Consiste em fazer o diretor, gerente ou fiscal da sociedade por ações afirmação falsa sobre a situação econômica da sociedade ou omitir informação relevante sobre esta, em prospecto (relativo à subscrição pública pra aumento do capital), relatório (documento que condensa os negócios sociais da empresa e os fatos administrativos mais relevantes do exercício finalizado), parecer (manifestação do conselho fiscal aos acionistas e à assembleia geral sobre o relatório anual, balancetes, demonstrações financeiras etc), balanço (documento que sintetiza a situação financeira da sociedade ao final do exercício após inventário de ativo e passivo) ou comunicação (ato pelo qual se dá ciência de informação ao público ou à assembleia geral39.
“II - o diretor, o gerente ou o fiscal que promove, por qualquer artifício, falsa cotação das ações ou de outros títulos da sociedade”.
(b) Conduta típica
Cuida esse dispositivo de incriminar a conduta do diretor, gerente, fiscal ou liquidante que promove, mediante qualquer artifício, cotação falsa (não correspondente ao valor regular do mercado dado pela oferta e procura) de ações ou de outros títulos de sociedade, induzindo em erro aqueles que transacionam com a empresa, seja para aumentar, quer para diminuir, o valor das ações.40
“III - o diretor ou o gerente que toma empréstimo à sociedade ou usa, em proveito próprio ou de terceiro, dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da assembleia geral”.
(c) Conduta típica
Pune-se neste inciso o diretor ou gerente que usa, em interesse seu ou de terceiros, o patrimônio próprio da sociedade e que às finalidades dessa pessoa jurídica deve atender. A tomada de empréstimo (contrato pelo qual se entrega objeto que deva ser depois restituído em espécie ou gênero) ou o simples uso dos bens (móveis ou imóveis) da sociedade representa o ilícito penal aqui incriminado.41
“IV - o diretor ou o gerente que compra ou vende, por conta da sociedade, ações por ela emitidas, salvo quando a lei o permite”
(d) Conduta típica
Pune-se neste inciso a compra ou venda, pelo diretor ou gerente, de ações emitidas pela sociedade por ações, exceto quando autorizados legalmente (art. 30 da Lei 6.404/1976).
“V - o diretor ou o gerente que, como garantia de crédito social, aceita em penhor ou em caução ações da própria sociedade”.
(e) Conduta típica
Vem tipificada neste dispositivo a aceitação (anuência em receber) como penhor (direito real que vincula uma coisa a uma dívida, tornando sua garantia) ou em caução (depósito efetivado como garantia de uma obrigação assumida) as ações da própria sociedade.42
“VI - o diretor ou o gerente que, na falta de balanço, em desacordo com este, ou mediante balanço falso, distribui lucros ou dividendos fictícios”.
(f) Conduta típica
Descreve o tipo penal a conduta de distribuir lucros (superávit da receita sobre a despesa) ou dividendos (parcela do lucro cabível a cada acionista) fictícios (em desacordo com o balanço ou mediante balanço falso), geralmente observável em situações de asfixia financeira da companhia que fomentam a conduta de administradores em defraudar a contabilidade para desviar os recursos da pessoa jurídica43.
“VII - o diretor, o gerente ou o fiscal que, por interposta pessoa, ou conluiado com acionista, consegue a aprovação de conta ou parecer”.
(g) Conduta típica
Prevê este inciso duas modalidades delitivas, sendo a primeira a obtenção de aprovação por interposta pessoa (“testa de ferro”) que comparece para a votação, e a segunda a consecução de aprovação mediante conluio com acionista verdadeiro, porém de má-fé, aliciado ou mesmo subornado.44
Notas
1HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. VII, p. 164.
2HUNGRIA, Nélson. Fraude penal, p. 11.
3HUNGRIA, Nélson. Fraude penal, p. 11.
4NORONHA, E. Magalhães. Direito penal, v.2, p. 360.
5COSTA JR, Paulo José da. Curso de direito penal, p. 398.
6MIRABETE, Julio Fabbrini; MIRABETE, Renato N. Manual de direito penal, v. II, p. 288
7BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537.
8HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. VII, p. 169.
9BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, parte especial, v. II, p. 438
10NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, v. 2, pp. 361-362.
11BALDAN, Édson Luís et all. Código Penal comentado, p. 537
12MIRABETE, Julio Fabbrini; MIRABETE, Renato N. Manual de direito penal, v. II, pp. 289-290.
13BALDAN, Édson Luís et all. Código Penal comentado, p. 537.
14JESUS, Damásio. Direito Penal, v. II, p. 485.
15BALDAN, Édson Luís et all. Código Penal comentado, p. 537.
16Ibidem.
17BALDAN, Édson Luís et all. Código Penal comentado, p. 537.
18Ibidem.
19BALDAN, Édson Luís et all. Código Penal comentado, p. 537.
20BALDAN, Édson Luís et all. Código Penal comentado, p. 537.
21COSTA JR, Paulo José da. Curso de Direito penal, p. 406.
22JESUS, Damásio. Direito penal, v. II, p. 492
23BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537
24MIRABETE, Julio Fabbrini; MIRABETE, Renato N. Manual de direito penal, v. II, p. 291
25BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537.
26BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537.
27BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537.
28NORONHA, E. Magalhães. Direito penal, v. II, p. 441.
29BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537.
30COSTA JR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal, p. 552.
31BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537.
32BALDAN, Édson Luís et al. Código Penal comentado, p. 537.
33BALDAN, Édson Luís. Fundamentos do direito penal econômico, pp. 255-256.
34SANTOS, Gérson Pereira dos. Direito penal econômico, p 128.
35Revista Penal, n. 5, p. 52.
36PEDRAZZI, Cesare; COSTA JR, Paulo José da. Direito penal societário, p. 14.
37JUNIOR, Paulo José da Costa. Direito penal objetivo, comentários atualizados ao código penal e ao código de propriedade industrial, p. 303.
38HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, v. VII, pp. 281-282.
39PRADO, Luiz Régis, Curso de direito penal brasileiro, v. II, pp. 572-573.
40BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de direito penal, v. II, p. 326.
41NORONHA, E. Magalhães, Direito penal, v. II, p. 464.
42NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, p. 836.
43FRANCO, Alberto Silva, Código Penal e sua interpretação, doutrina e jurisprudência, p. 905.
45DELMANTO, Celso, Código penal comentado, p. 547.
Referências
BALDAN, Édson Luís. Fundamentos do direito penal econômico. Curitiba: Juruá, 2012.
BALDAN, Édson Luís et al. Código penal comentado. Barueri: Manole, 2019.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2018. Volume II.
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito penal, parte especial. São Paulo: Saraiva, 2009. Volume II.
COSTA JR, Paulo José da. Curso de direito penal. São Paulo: DPJ, 2005.
_______________. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Saraiva, 2002.
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COSTA JR, Paulo José da; PEDRAZZI, Cesare. Direito penal societário. São Paulo: Malheiros, 1996.
DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
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PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Volume II
SANTOS, Gérson Pereira dos. Direito penal econômico. São Paulo: Saraiva, 1981.
Citação
BALDAN, Édson Luís. Estelionato. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/425/edicao-1/estelionato
Edições
Tomo Direito Penal, Edição 1,
Agosto de 2020