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Tortura
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Édson Luís Baldan
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Tomo Direito Penal, Edição 1, Agosto de 2020
Tortura é, por definição médico-legal, um meio cruel de prática criminosa, entendido como ato desumano, brutal, que atormenta e causa padecimento desnecessário à vítima, por livre deliberação do torturador. O agente se compraz em infligir o sofrimento ou, pelo menos, mostra-se insensível a tal sofrimento tanto que, podendo, não susta ou impede. Mais do que ferir o matar a vítima, busca o agente impor-lhe sofrimento mediante sua ação lesiva.1 O Brasil foi um dos últimos países do Ocidente a tipificar o crime de tortura e, malgrado as críticas feitas à redação da lei respectiva (9.455/97), tem-se que será sempre preferível a existência de uma descrição típica que possa, eventualmente, ser aperfeiçoada, a uma absoluta carência tipológica.2
Amplamente empregada pelos mais distintos regime políticos, religiosos e jurídicos durante a história da humanidade, a tortura acha-se, hoje, rechaçada na maioria das nações do mundo ocidental, conquanto essa vedação legal, em qualquer desses países, embora necessária, não seja suficiente para inibir as mais escabrosas afrontas à dignidade do ser humano que, de tempos em tempos, afloram pelos meios de comunicação social e escandalizam a todos, geralmente produzidas por agentes do próprio Estado e, não raramente, tratadas com explícita condescendência por recair sobre autores de condutas supostamente desviante.
O exercício do monopólio da força reclama moderação, pois somente legitima-se quando da ocorrência de necessidades emergenciais incontornáveis: “o cidadão não delega ao Estado um poder capaz de oprimi-lo por meio inclusive do uso da força, mas sim um poder capaz de libertá-lo e de favorecer ainda mais o progresso social”3, vez que “o bem e o mal não existem apenas nas consciências individuais, mas também nas próprias estruturas institucionalizadas de um sistema”.4
Exemplifique-se com o debate no cenário jurídico-político estadunidense há algum tempo acerca da pretensa tolerância oficial ao emprego da tortura para prevenção e repressão às ações terroristas. Debate análogo pode ser transplantado para a atividade policial com a indagação de se “os fins justificam os meios” ou se “o mal se torna bom diante de um mal maior” ou, ao revés, se tal mal é tão mau quanto aqueloutro mal que se quer combater. A fórmula de que é apenas relativo o mal praticado contra o mal absoluto marcou, mundialmente, no passado, o anticomunismo e, hoje, o antiterrorismo. A polícia brasileira não esteve, por largo período, imune a essa investida nos métodos operativos.
O agente da lei que emprega a tortura como meio de investigação ou de castigo, raciocina, em linhas gerais, da seguinte maneira: “o mal que eu faço é o bem, porque o mal que com ele combato é o mal absoluto”. Como bem pondera Mieth, pode-se, com tal argumento, justificar, em última análise, qualquer guerra, pois, dito em linguagem bíblica, “como o outro tem uma trave no olho, posso negligenciar o cisco que está no meu”.5
A falsidade daquele raciocínio justificador é que o “mal do investigado”, colocado sempre como “mal absoluto”, terá o condão de sempre tornar “mal relativo” o “mal do investigante”. Absolutizando um mal, imagina-se relativizar outro. Olvida-se que idêntico argumento pode ser esgrimido pela outra parte: o outro “mau”, o criminoso, há-de imaginar que o mal por ele praticado acha-se justificado pelo mal do policial.
Na verdade, uma infâmia não justifica outra infâmia, porque “devo submeter os meios que emprego aos mesmo critérios a que submeto meus fins. Se eu submeter os meios meramente ao critério da eficiência no combate ao mal absoluto (que, por sua vez, também se entende como relativo, isto é, justificado pelo mal do outro), então qualquer meio é apropriado. Os ‘danos colaterais’ da minha ação constituem, nesse caso, efeitos colaterais obviamente indesejados, mas com os quais se deve contar. Pois eu propriamente quero sempre o bem, mesmo que temporariamente faça algo que seja próprio do mal que estou combatendo”.6
Os direitos humanos constituem pautas morais porque servem como critérios de deliberação de natureza moral e que devem ser considerados no instante da tomada de decisões políticas ou jurídicas. O caráter moral reside na referência a aspectos transcendentais de nossa vida, a certos aspectos ligados diretamente ao ser moral do homem, com sua dignidade e liberdade.7 A transcendente dignidade é o que, sendo comum a todos os homens, distingue-nos dos demais seres vivos, impondo-se o respeito integral e escrupuloso a ela como consectário da finalidade da justiça que, em sentido amplo, deve reconhecer a todos o que lhes é devido.8
Admite-se, com essa negação do ético, que não se pode permanecer pessoalmente limpo no reino da sujeira. Copia-se o mal do outro, por este deixando-se determinar. Identifica-se com o mal do outro, que se propõe combater. Os meios maus obtêm a vitória sobre os fins bons. Não é sustentável tal paradoxo sem o padecimento de um dano moral. Bem por isso, a preocupação das polícias no mundo é, ao lado da corrupção, a prática da tortura, quando convimos que
“a tortura é inadmissível. Não por ser prática vedada pela Constituição, mas por constituir praxe desumana, hedionda e cruel. E o conceito de tortura deve ser dilargado. Não inclui apenas o sofrimento físico, mas qualquer lesão moral. As ameaças, mesmo que veladas, as pressões, a submissão de indiciados, a detenção ilegal, ainda que abreviada, a criação de situações fictícias como ser reais fossem e todas quaisquer outras formas de constrangimento hão de ser consideradas tortura. É lamentável, mas a tortura continua a existir, como se o profissional não dispusesse de inteligência para elucidar o crime e descobrir a autoria” 9
1. Tratamento legal da tortura
No Brasil, tardou a aportar ao ordenamento positivo a definição de “tortura”, muito embora a Constituição Federal estabelecesse, em seu primeiro artigo, ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República e, em seu art. 5º, III e XLIII, proclamasse que ninguém seria submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante, devendo ser a tortura inafiançável e insuscetível de anistia ou graça.
No plano supranacional, igualmente, preexistiam previsões normativas da necessidade de repressão global à tortura, especialmente pela Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, “Declaração de Tóquio” (ONU, 1975), Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984), e pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (OEA, 1985). Foi malogrado o primeiro intento de positivação da figura penal da tortura, no art. 233 da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) que deixou de ofertar a cabal definição, em prestígio ao princípio da legalidade, terminando expressamente ab-rogado pelo diploma ora comentado. O casuísmo que preside o atuar das agências legislativas (ávidas de efêmera visibilidade garantidora de votos) fez-se presente na elaboração da Lei 9.455/1997 – que inaugurou a tipificação da tortura no Brasil – cuja tramitação viu-se deveras acelerada após ampla divulgação de cenas explícitas de tortura perpetradas por policiais militares contra suspeitos consumidores de drogas que ingressam na “Favela Naval”, no município de Diadema”, supostamente à procura de saciedade ao vício e onde, ao final, muitos foram torturados e um findou morto.10 No Código Penal Brasileiro, a tortura já estava prevista como circunstância agravante genérica (art. 61, II, “d”) e como qualificadora do crime de homicídio doloso (art. 121, § 2º, III).
Outros diplomas internacionais igualmente fazem menção à necessidade de respeito à dignidade humana e da vedação à tortura: (a) Carta das Nações Unidas, no art. 55, quando incita à promoção do respeito universal e da observância dos direitos do homem e das liberdades fundamentais; (b) Declaração Universal dos Direitos do Homem, DUDH, no art. 5º, ao estabelecer que “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”; (c) Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, PIDCP, no art. 7º, ao assentar que é "interdito submeter uma pessoa a uma experiência médica ou científica sem o seu livre consentimento”; (d) Resolução 37/194 da Assembleia Geral da ONU, ao disciplinar os Princípios de Deontologia Médica aplicáveis à atuação do pessoal dos serviços de saúde, especialmente aos médicos, para a proteção de pessoas presas ou detidas contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; (e) Resolução 43/173 da Assembleia Geral da ONU, de 9 de dezembro de 1988, ao estabelecer os Princípios para Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Detenção ou Prisão, impondo que “nenhuma circunstância, seja ela qual for, poderá ser invocada para justificar a tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”; (f) Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, aprovado pela Assembleia Geral ONU através da Resolução 34/169, de 17 de Dezembro de 1979.
Por fim, a tortura é considerada crime contra a humanidade no Estatuto de Roma (1998) do Tribunal Penal Internacional, TPI, introduzido no Brasil pelo Decreto 4.388/2002. Essa norma supranacional prevê, em seu art. 7º, que se deve entender também a tortura como crime contra a humanidade quando praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil. O mesmo estatuto define tortura como a causação intencional de dor ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, a uma pessoa que o agente tenha sob sua custódia ou controle (nisso divergindo da definição legal adotada no Direito doméstico onde a tortura é caracterizada como crime comum, vale dizer, inexigindo-se qualquer especial qualidade especial do torturador, de modo que qualquer pessoa pode figurar como autora desse delito, por exemplo pais, instrutores ou professores). De qualquer modo, em recentes decisões adotou-se o entendimento de que o direito costumeiro internacional não exige que a tortura seja infligida por um indivíduo agindo na qualidade de agente público, não impondo o Estatuto de Roma a essa qualidade pessoal como critério para definição do crime de tortura. 11
2. Bem jurídico e objeto material na tortura
Os tipos penais incriminadores da tortura visam à tutela do bem jurídico considerado inderrogável e avesso à possibilidade de relativização: a dignidade da pessoa humana, cujos primeiros contornos conceituais remontam a Pufendorf,12 que a entendia como centro do complexo fundante do Direito Natural, já que o amor ao próximo, como semelhante, residiria a verdadeira essência do homem e a natureza do ser humano. Também Beccaria,13 ao não admitir os tormentos, evocava “uma compaixão que Deus imprimiu em nossos corações”.
A tortura não atinge apenas a integridade física (ferindo a carne, triturando ossos, impondo a dor atroz), não compromete unicamente a higidez psíquica (pelo terror que infunde, pela expectativa da morte que suscita, pela redução do homem ao sentimento de “não-ser-humano”) do torturado porque, em verdade, atinge o núcleo de direitos intangível de qualquer pessoa, que é sua dignidade. Muitos ordenamentos (também o nacional) permitem a aplicação da pena capital, mas não as penas cruéis; vale dizer, o bem jurídica vida pode ser relativizado e até subtraído, todavia a dignidade humana não comporta concessão em nenhuma medida e em nenhuma hipótese, quando confrontada com qualquer outra razão jurídica.
O objeto material (suporte da ação criminosa do agente) é o organismo humano que, como consequência da violação da dignidade do ofendido, pode ser lesado na sua integridade corporal, saúde (física ou mental), vida e higidez psicológica ou mental.
Entende-se, à luz do direito positivo brasileiro, a tortura nessa dupla acepção: sofrimento físico ou mental, que pode ou não degenerar em resultado mais grave (lesões físicas, transtornos psíquicos ou psicológicos e morte).
3. Meios e modos de execução da tortura
Foi a “Declaração de Tóquio” (ONU, 1975) que assentou uma primeira definição mais sistemática da tortura, conceituando-a como
“Todo o acto pelo qual um funcionário público, ou outrem por ele instigado, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos graves, fisícos ou mentais, com o fim de obter dela ou de terceiro uma informação ou uma confissão, de a punir por um ato que tenha cometido ou se suspeite que cometeu, ou de intimidar essa ou outras pessoas”.
O mesmo diploma asseverou que “não se consideram tortura as penas ou sofrimentos que sejam consequência unicamente da privação legítima da liberdade, inerentes a esta sanção ou por ela provocados, na medida em que estejam em consonância com as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos”, também sublinhando que “a tortura constitui uma forma agravada e deliberada de pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante”.
A tortura pode se revestir de incontáveis maneiras distintas, em conformidade com os caprichos, o grau de perversidade, a imaginação ou o ímpeto passional do torturador, sendo meios cruéis mais recorrentes os açoites, queimaduras com água fervente ou metal aquecido, vitriolagem (ácido), mutilações intencionais, esquartejamento em vida, linchamento, privação de alimentos, “pau-de-arara” (suspensão dolorosa do corpo da vítima), manobras de afogamento incompleto ou interrompido, arrancamento de unhas, choques elétricos em regiões e órgãos pudendos, brutalização sexual etc.
Muitas vezes a natureza cruel não resulta do meio e sim do modo como empregado: o uso de uma faca para causar ferimento não configurará necessariamente tortura, exceto se, por exemplo, for utilizada para mutilar a vítima; o simples arremesso de uma pedra não induz, necessariamente, à caracterização da tortura, o mesmo não valendo afirmar para a lapidação da vítima (apedrejamento); um soco ou pontapé desfechado durante uma contenda não identifica, automaticamente, um meio cruel, todavia revelarão tortura se aplicados contra o corpo da vítima manietada ou, por outra maneira, incapacitada de defesa.14
França 15 agrupa os meios mais usados como imposição de maus tratos a pessoas presas, na seguinte conformidade: físicos (violência efetiva); morais (intimidações, hostilidades, ameaças); sexuais (cumplicidade com a violência sexual) e omissivos (negligência de higiene, alimentação e condições ambientais).
4. Perícia na tortura e ética médica
Como indica França16 no exame de corpo de delito de paciente de tortura importa uma descrição correta e completa das lesões esquelético-tegumentares (mais frequentes e visíveis), valorizando-se, sobretudo, as características de multiplicidade, diversidade, diversidade de idade (da lesão), forma, natureza etiológica, falta de cuidados e local de predileção. São inúmeras as naturezas que podem assumir as lesões de uma pessoa torturada fisicamente, em especial: (a) equimoses e hematomas (as lesões mais comuns, em geral na face, tronco, extremidades, bolsa escrotal etc., com cronologia evolutiva distinta porque produzidas em tempos diferentes); (b) escoriações generalizadas e de idades distintas (geralmente em partes proeminentes do corpo como joelhos, tornozelos, face etc); (c) edemas (resultantes da constrição de punhos e tornozelos); (d) feridas contusas em várias regiões do corpo, mas com predileção em face, com evolução distinta pelas épocas diferentes de sua produção e geralmente infectadas pela falta de higiene e assistência; (e) queimaduras, principalmente por cigarros, em tórax e ventre; (f) fraturas de ossos próprios do nariz, costelas e, mais raramente, ossos de coluna e pélvis; (g) alopecias pelo arrancamento de cabelos; (h) edemas nas regiões palmares, por vezes com fratura de dedos, pelo uso de palmatória; (i) lesões oculares; (j) lesões em ouvidos (muitas vezes com rotura de tímpanos e hemorragia); (l) fraturas e avulsões dentárias por traumatismos faciais; (m) sinais de abuso sexual por outros prisioneiros, como forma de tortura e humilhação; (n) lesões produzidas por eletricidade industrial (geralmente aplicada para obtenção de confissão); (o) lesões decorrentes da permanência em ambientes com baixíssimas temperaturas (podendo gerar gangrenas em extremidades); p) lesões resultantes de privação de alimentação e higiene corporal; (q) ferimentos produzidos por insetos e roedores.
Existem, por fim, as sequelas psíquicas, denominadas "síndrome pós-tortura", caracterizadas por transtornos mentais e de conduta, as quais devem ser exploradas pela perícia médico-legal visando ao completo levantamento da sintomatologia, suas consequências físicas e psíquicas e a correlação com os meios degradantes e desumanos causadores.17 Apontam-se como sequelas: desordens psicossomáticas (dores, cefaleia, pesadelos, terror noturno, insônia, tremores, desmaios, sudorese, diarreia); desordens afetivas (depressão, ansiedade, medos e fobias); desordens comportamentais (isolamento, irritabilidade, impulsividade, disfunções sexuais e tentativas de suicídio); sintomas intelectuais ou mentais (confusão, desorientação, perda da memória e da capacidade de concentração).
O Conselho Federal de Medicina, pela Resolução 1.097/1983, adotou a Resolução da ONU 37/194 como princípios de ética médica concernente ao papel do pessoal de saúde, principalmente os médicos, na proteção de prisioneiros e detentos, contra tortura e outras formas cruéis, desumanas ou degradantes de tratamento ou punição, preceituando que esses profissionais da saúde, quando encarregados da assistência médica de prisioneiros, tem o dever de oferecer-lhes proteção à sua saúde física e mental, bem como tratamento de doença da mesma qualidade e padrão dispensados àqueles que não são prisioneiros ou detentos.
Também se estabeleceu que constitui grave infração à ética médica a participação, ativa ou passiva, de pessoal de saúde, principalmente os médicos, sua cumplicidade, incitação ou tentativas de praticar tortura ou outra forma cruel, desumana, ou degradante de tratamento ou punição.
De igual maneira ficou assentado que constitui infração à ética médica utilizar seu conhecimento e técnica para participar no interrogatório de prisioneiros ou detentos, ou participar na comprovação da condição dos prisioneiros ou detentos para qualquer forma de tratamento ou punição que possa prejudicar sua saúde física ou mental. Previu-se, por fim, como infração à ética médica participar em qualquer processo de repressão de um prisioneiro ou detento, a não ser quando tal processo for determinado por critérios puramente médicos, como sendo necessários à proteção da saúde física ou mental ou da segurança do próprio prisioneiro ou detento, ou de seus colegas prisioneiros ou detentos, ou de seus guardas, e não apresente risco à sua saúde física ou mental.
5. Dos crimes em espécie na Lei 9.455/97 - Lei de Tortura18
“Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa”.
5.1. Tipo fundamental
O inciso I do caput do art. 1º da Lei de Tortura faz conectar três hipóteses (ou especiais finalidades de agir do torturador) a um enunciado típico comum que tem sua centralidade da ação típica de constranger (aqui empregado no sentido de provocar constrangimento, de violar a livre vontade, de viciar o livre arbítrio imanente ao ser humano, de compelir a vítima a fazer ou deixar de fazer algo em razão dos tormentos infligidos, i.e., contra sua vontade íntima) pela causação de sofrimento físico (padecimento aplicado sobre o corpo do ofendido, com ou sem produção de lesões corporais) ou sofrimento mental (aquele exercido contra a normalidade psíquica e ou psicológica da vítima, com ou sem causação de danos) mediante emprego de violência (aqui contempladas tanto a violência própria, quando aplicada direta ou indiretamente contra o organismo da vítima, com ou sem uso de instrumentos, com ou sem ofensa à integridade física e à saúde do ofendido, quanto à assim chamada violência imprópria, isto é, aquela que reduz ou anula a capacidade entender e de querer da vítima através de intoxicação, hipnose ou meios análogos) ou grave ameaça (promessa de mal grave, justo ou injusto, à pessoa da vítima, ou a alguém ou a algum bem móvel ou imóvel àquela afetivamente ligado).
5.1.1. Sujeito Passivo
Qualquer pessoa, prescindindo, em regra, de especial condição.
5.1.2. Consumação e tentativa
Classificado como formal, este crime perfaz-se com a inflição da violência ou grave ameaça que produzem no ofendido o sofrimento físico ou mental, independentemente do alcance do fim objetivado pelo agente com sua conduta (descritos nas alíneas “a”, “b” e “c”), sendo perfeitamente admissível a tentativa quando, iniciada a execução desse crime plurissubsistente, não chega o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, a produzir o padecimento na vítima.
5.2. Tortura-prova
Com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa.
5.2.1. Elemento subjetivo específico
O elemento de distinção desta figura (conectada à construção típica básica do inciso I ) reside na especial finalidade do agente que é a intenção de, com a tortura, obter informação (prestação de esclarecimentos ou fornecimento de quaisquer dados, mesmo circunstanciais, sobre evento certo, repassados de maneira informal), declaração (manifestação verbal, geralmente formalizada, acerca de determinado fato, com imputação de autoria a outrem) ou confissão (admissão de autoria de fato determinado) da vítima (caso em que coincidem a pessoa do torturado com a do informante, declarante ou confitente) ou de terceira pessoa (hipótese em que a tortura recai sobre terceira pessoa para provocar a prestação da informação, da declaração ou da confissão em outrem que está, normalmente, ligado afetivamente àquela).
5.2.2. Sujeitos ativo e passivo
Trata-se de crime comum que não exige do agente qualquer especial condição (p. ex. agente estatal de polícia) ou liame com a vítima, desta, igualmente, não sendo necessária nenhuma qualidade singular (tampouco que ela, de fato, seja portadora da informação buscada pelo torturador).
5.3. Tortura-crime
Para provocar ação ou omissão de natureza criminosa
5.3.1. Elemento subjetivo específico do tipo
Neste segundo enunciado típico, o especial fim de agir do torturador liga-se ao intento de que a tortura leve o torturado a uma ação ou omissão de natureza criminosa (não se aperfeiçoando a adequação típica caso se trate de contravenção ou indiferente penal). O torturado, sob coação moral irresistível (pois preserva-se a voluntariedade da conduta) pratica fato típico e antijurídico, mas não culpável (CP, 22, I), devendo o torturador responder pela tortura e, também, como autor mediato, pelo crime que vier a ser praticado pelo torturado.
5.3.2. Consumação e tentativa
Cuida-se de crime formal que se reputa consumado com a inflição da tortura, independentemente da efetiva ação ou omissão criminosa consequente àquela.
5.4. Tortura-discriminação
Em razão de discriminação racial ou religiosa
5.4.1. Elemento subjetivo específico do tipo
Diferentemente das figuras precedentes, não se exige nesta alínea qualquer ação ou omissão da vítima, bastando que atue o agente animado pela perversa motivação racial (aqui compreendido o preconceito de caráter étnico, o ensejado pela origem nacional e o relacionado à coloração de pele do ofendido) ou religiosa (relativa à crença, credo ou culto professados pela vítima e, até mesmo, pelo exercício da “não-crença” no caso do ateísta ou agnóstico) . Caso a discriminação venha ligada à condição social, à idade, à deficiência (física ou mental), ao gênero ou à orientação sexual do torturado, não se aperfeiçoará esta figura típica.
5.4.2. Consumação e tentativa
Trata-se de crime material cuja consumação depende da causação do sofrimento físico ou mental da vítima, sendo possível a forma tentada quando, iniciada a inflição de violência física ou moral, não sobrevém o padecimento ao ofendido, por motivos alheios à vontade do torturador.
5.5. Tortura-disciplina
“II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.
5.5.1. Conduta típica
Neste inciso II, pune-se a conduta de submeter a vítima, com emprego de violência ou grave ameça (vide comentários ao item 3.1. supra) a intenso sofrimento físico ou mental (grave padecimento corporal ou psíquico-psicológico decorrente da natureza, extensão, repetição ou persistência do suplício imposto). Com razão as críticas da doutrina quanto à insegurança jurídica (e potencial ferimento ao princípio da legalidade) pelo emprego do adjetivo “intenso” anteposto ao “sofrimento físico ou mental”, vez que o padecimento é de difícil mensuração objetiva e, além, pode variar em conformidade com a intrepidez física ou a resistência mental do torturado.
5.5.2 Sujeitos ativo e passivo
Trata-se de crime “bipróprio”, isto é, que reclama especial condição da vítima e, simultaneamente, do autor, pois somente pode protagonizar o verbo típico o algoz que exerce guarda (assistência, cuidado ou vigilância dispensados em caráter não eventual a pessoas que deles necessitam, p. ex. pais, tutores, cuidadores de idosos, enfermeiros etc.) poder (relação de ascendência que decorre de disposições de direito público, v.g. policiais, juízes, promotores, agentes penitenciários, monitores de adolescentes etc.) ou autoridade (vínculo hierárquico estabelecido em relações de direito público ou privado, p. ex. pais, curadores, professores, instrutores, militares etc) sobre sua vítima.
5.5.3. Elemento subjetivo específico do injusto
A conduta dolosa somente se amolda a esse tipo quando praticada com a especial finalidade de de aplicar castigo pessoal (em caráter repressivo, como censura ou mera correspondência a uma conduta positiva ou negativa da vítima) ou medida de caráter preventivo (com o objetivo de potencialmente inibir ou dissuadir o torturado de determinada ação ou omissão futura).
5.6. Tortura carcerária
“§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”.
5.6.1. Tipo objetivo
Nesta figura equiparada (mesma faixa sancionatória cominada às condutas descritas no caput) tipifica-se o ato de submeter (subjugar, compelir, obrigar, constranger) pessoa presa (qualquer indivíduo privado de sua liberdade por agente do Estado, ainda que irregular ou transitoriamente, por força de prisão provisória, definitiva ou, mesmo, em razão de cumprimento de medida socioeducativa de internação aplicada ao adolescente) ou sujeita a medida de segurança (pessoa que, em caráter definitivo ou provisório, acha-se submetida a medida de segurança de internação ou de tratamento ambulatorial) a sofrimento físico ou mental (o padecimento, de natureza corporal ou psicológica, neste caso, não necessita ser “intenso” e tampouco produzido por violência física ou moral) por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal (ato limitador ou violador de direitos não autorizado ou determinado por lei ou não decorrente de ordem regularmente emanada de autoridade competente).
5.6.2. Sujeitos ativo e passivo
Trata-se de crime comum quanto ao sujeito agente e próprio quanto à vítima (pois esta há de ser, necessariamente, o maior preso, a qualquer título, ou submisso a medida de segurança, de qualquer natureza, ou, finalmente, o adolescente apreendido por força de medida socioeducativa de internação.
5.6.3. Elemento normativo do tipo
A ilegalidade da conduta deve ser aferida pela sua correspondência ao “não previsto em lei ou não resultante de medida legal”, elementos que, no caso concreto, podem decorrer de inobservância a preceito legal ou, então, a disposição contida em ordem emitida por autoridade judicial ou administrativa competente.
5.6.4. Consumação e tentativa
Cuidando-se de crime material e plurissubsistente, ter-se-á a conduta consumada quando submetido a sofrimento físico ou mental o preso, ou internado, ou sob tratamento ambulatorial, ou apreendido, sendo admissível a tentativa na hipótese de interrupção da execução por circunstância alheia ao querer do torturador.
5.7. Figura privilegiada: tortura-omissão
“§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos”.
5.7.1. Tipo objetivo
A figura privilegiada visa a incriminar, com sanção deveras bem menos rigorosa, aquele que, podendo e devendo, se abstém de evitar a prática da tortura ou, não sendo possível evitá-la, deixa de adotar as medidas apuratórias cabíveis. A conduta de se omitir para evitar apresenta-se, claramente, como crime omissivo impróprio, vez que exige o enunciado típico que tenha o agente o poder e o dever de impedir a ocorrência da tortura que, efetivamente, findou acontecendo (caso contrário não haverá que se falar em crime consumado).
Todavia, a omissão de apuração é crime omissivo puro pois o agente, não tendo dado causa ao resultado, em momento posterior à prática da conduta vedada, omite-se no dever de promover a apuração desta (diretamente ou, carecendo de atribuição legal para tanto, mediante provocação da autoridade competente para fazê-lo). Andou mal o legislador ao inserir condutas absolutamente distintas, e com juízo de censura igualmente díspar, em idêntico patamar sancionatório, vez que, nos termos do CP, 13, § 2°, existe relevância penal na inércia do omitente que podia e devia agir para evitar o resultado e, por isso, deve ele, pelo evento não evitado, merecer análoga modulação de pena. Fere-se, com isso, o princípio da proporcionalidade da pena e fomenta-se a impunidade pelo tratamento penal benéfico conferido aos que detém o domínio sobre a conduta dos executores das condutas.
5.7.2. Sujeitos ativo e passivo
Trata-se de crime próprio pois somente aquele que tem o dever legal de evitar ou apurar a tortura é que pode figurar como sujeito agente. No plano passivo, qualquer pessoa pode apresentar-se como ofendido.
5.8. Figuras qualificadas pela gravidade da lesão ou pela morte
“§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos”.
5.8.1. Hipóteses qualificadoras
Três situações induzem ao enquadramento no tipo penal derivado do § 3°: lesões corporais graves (correspondentes às situações enumeradas no CP, 129, § 1°) gravíssimas (descritas no CP, 129, § 2°) ou morte. O “quantum” da pena cominada conduz à conclusão de se tratar de crime preterdoloso (dolo na perpetração da tortura e culpa no resultado agravador), pois entendimento oposto afrontaria o princípio da proporcionalidade. Destarte, caso as lesões graves ou gravíssimas tenham resultado de desígnio autônomo do agente (que quis ou assumiu o risco de produzi-los), deverá ele responder pelos dois crimes, com cúmulo de penas.
Na hipótese de morte dolosa com emprego, também, de tortura, desloca-se a tipificação exclusivamente para o crime de homicídio qualificado (CP, 121, § 2°, III) onde a tortura, como meio cruel, encontra-se expressamente prevista na modalidade qualificada desse crime contra a vida (com penas sensivelmente elevadas e com equiparação a crime hediondo). Por fim, sustenta-se que esta qualificadora do § 3° não se estende à figura privilegiada do § 2° da Lei de Tortura.
5.9. Causa especial de aumento de pena
“§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
III - se o crime é cometido mediante sequestro”.
5.9.1. Majorantes
Encontram-se previstas três causas de aumento de pena que incidem na terceira fase da dosimetria, sendo que, na hipótese de concurso dessas majorantes, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição (CP, art. 68, parágrafo único): (a) crime cometido por agente público (devendo ser aqui empregado o conceito mais abrangente trazido pelo CP, 327, caput e § 1°); (b) crime cometido contra criança (indivíduo entre 0 a 12 anos incompletos), gestante (mulher em qualquer fase gestacional, desde que o agente sabia, ou deva saber, desse estado gravídico), portador de deficiência (sendo indiferente seja ela física ou mental, total ou parcialmente incapacitante), adolescente (indivíduo na faixa etária que se estende desde os 12 anos completos até os 18 incompletos) ou maior de 60 anos (independentemente de sua condição de senescência mais ou menos agravada); (c) se o crime é cometido mediante sequestro (restrição ou privação de liberdade da vítima por tempo que exceda aquele dispendido para inflição da tortura ou, ainda, no caso de acentuada distensão temporal desta, objetivando a intermitente reiteração das sevícias). Entende-se cabível sua incidência sobre as figuras simples, qualificadas e privilegiada.
5.10. Efeito automático da sentença condenatória
“§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada”.
5.10.1. Efeito automático
A condenação acarretará a perda do cargo (criado por lei que lhe empresta atribuições, denominação e remuneração específicas), função (exercício de atribuição em favor da Administração Pública, todavia sem cargo correspondente) ou emprego público (instituído por lei na estrutura oficial do Estado, com denominação e atribuições próprias, todavia submisso ao regime celetista) e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Como se trata de efeito decorrente de cominação legal, prescinde de declaração ou fundamentação na sentença penal condenatória, sendo, em verdade, consequência jurídica automática desta.
5.11. Inafiançabilidade e insuscetibilidade de graça ou anistia
“§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”.
5.11.1. Previsão constitucional
Trata-se de previsão legal em reforço ao estabelecido na CF, 5°, XLIII) que veda a concessão de fiança (embora não esteja proibida a liberdade provisória sem fiança, tornando a disposição inócua), de graça (causa de extinção de punibilidade de atribuição Chefe do Executivo e compreendendo, logicamente, o indulto que é sua modalidade coletiva) ou anistia (igualmente extintiva da punibilidade em razão de lei regularmente elaborada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Chefe do Executivo)
5.12 Regime inicial de cumprimento de pena
“§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado”.
Trata-se de previsão preexistente à declaração de inconstitucionalidade do art. 2°, § 1°, da Lei 8.072/1990 (que estabelecida a obrigatoriedade de regime fechado integral ao condenado por crime hediondo) e sua alteração pela Lei 11.464/2007 (que, diversamente, impôs apenas o regime inicial como fechado, tornando possível a progressão aos regimes mais benéficos). Destarte, o condenado por crime de tortura deve iniciar o cumprimento da pena, sendo possível sua posterior progressão aos regimes semiaberto e aberto. Esta disposição é inaplicável à figura típica do § 2°, cuja pena cominada é detenção (e que não admite regime inicial fechado).
5.13. Extraterritorialidade da lei penal brasileira
“Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira”.
Esse dispositivo prevê a possibilidade de aplicação da lei penal brasileira quando o crime de tortura tenha sido praticado fora do território nacional desde que (a) a vítima seja brasileira (por intelecção do princípio da personalidade passiva) e (b) encontrando-se o agente em local sob jurisdição pátria (ainda que o ofendido não seja um nacional, em prestígio ao princípio da Justiça Universal).
6. Tortura no Código Penal Brasileiro (Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940)
6.1. Tortura como agravante genérica
“Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
(...)
II – ter o agente cometido o crime:
(...)
d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum”.
Essa circunstância legal deve ser ponderada pelo Magistrado na segunda das três fases da dosimetria da pena, preponderando o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que esse cálculo não poderá fixar a pena provisória em patamar aquém do mínimo ou além do máximo da pena abstratamente prevista no tipo penal, algo possível apenas na terceira etapa de dosagem da sanção, quando são sopesadas as causas de aumento e de diminuição (gerais e ou especiais).
Trata-se de agravante de natureza mista, isto é, incidente tanto sobre a magnitude do injusto quanto sobre a medida da culpabilidade, vez que é mais elevado o desvalor da ação criminosa em razão de seu meio ou modo de realização, desnudando uma disposição insidiosa ou de ânimo cruel.19 Como o Código Penal não fixou o montante do aumento da pena, restou este ao prudente arbítrio do Juiz, sustentando Bitencourt20 que essa elevação não deva alcançar o limite mínimo das majorantes, fixado em um sexto sobre a pena base.
Na exata dicção do artigo transcrito, não incidirá essa agravante quando a tortura constituir elementar do crime (caso das descrições típicas da Lei 9.455/1997) ou figurar como qualificadora da infração penal (hipótese do homicídio qualificado pelo emprego do meio cruel da tortura, art. 121, § 2°, III), sob pena de se admitir "bis in idem" (dupla exasperação da pena por mesma razão fática).
6.2. Tortura como qualificadora do homicídio doloso
“Art. 121. (...)
(...)
§ 2° - Se o homicídio é cometido:
III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (anos)”.
A presença dessa qualificadora faz elevar os pisos mínimo e máximo da pena abstrata para 12 a 30 anos, além de induzir à caracterização desse homicídio como crime hediondo, com todas as consequências desfavoráveis ao imputado, no plano material e processual. A Exposição de Motivos do Código Penal, em seu número 38, aclara que o maior rigor da reprimenda, nesse caso, justifica-se por o autor aumentar inutilmente o sofrimento da vítima ou revelar uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade.
Fala-se de meio cruel, caracterizado pela produção de sofrimento intenso, excessivo, desnecessário à vítima.21 Importante reprisar que nesta figura do homicídio qualificado pelo emprego da tortura como meio de execução da morte, deve o autor estar animado por dois desígnios ou vontades: de matar e de torturar. A tortura é, portanto, um meio intencional de impor sofrimento adicional e desnecessário à vítima com o objetivo de produzir-lhe a morte. Na hipótese de o óbito sobrevir sem o querer ou assunção do riso de ocorrência desse resultado, ter-se-á a modalidade preterdolosa da tortura seguida da morte (cf. item 3.8.2. supra).
Como a qualificadora somente se verifica com a ocorrência de tormento sofrido pela vítima, não estará ela presente quando os golpes forem desferidos após a morte ou com a vítima desmaiada ou anestesiada.22
Notas
1 ZACHARIAS, Manif Elias. Dicionário de medicina legal, verbete meio insidiou ou cruel, p. 299.
2 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos, p. 123.
3 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de ética jurídica, ética geral e profissional, p. 553.
4 VALLS, Álvaro L. M. O que é ética?, p. 73.
5 MIETH, Dietmar, Pequeno estudo de ética, p. 20.
6 Idem, pp. 20-21.
7 ROBLES, Gregório. Os direitos fundamentais e a ética na sociedade atual, p. 12.
8 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, direito, moral e religião no mundo moderno, p. 622.
9 NALINI, José Renato. Ética geral e profissional, p. 445.
10 BALDAN, Édson Luís et all. Leis penais especiais, p. 247.
11 SCHABAS, Wlliam A. An introduction to the International Criminal Court, p. 111
12 WELZEL, Hans. La dottrina giusnaturalistica de Samuel Puffendorf, pp. 76-77.
13 BECCARIA, Cesare. De los delitos y de las penas, p. 149.
14 ZACHARIAS, Manif Elias. Dicionário de medicina legal, verbete meio insidioso ou cruel, p. 299.
15 FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal, p. 132.
16 Idem, p. 133-134.
17 FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal, p. 132.
18 BALDAN, Édson Luís; LAVORENTI, Wilson; BONINI, Paulo Rogério. Leis penais especiais, pp. 245 e ss.
19 PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal, p. 522
20 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, p. 832
21 SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal, parte geral, p. 573.
22 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto; FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal comentado, p. 135.
Referências
BALDAN, Édson Luís; LAVORENTI, Wilson; BONINI, Paulo Rogério. Leis penais especiais. Campinas: Millenium, 2016.
COMPARATO, Fábio Konder. Ética, direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BECCARIA, Cesare. De los delitos y de las penas. Madrid: Alianza, 2002.
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de ética jurídica, ética geral e profissional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2018.
FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2001.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto; FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal comentado. São Paulo: Malheiros, 2008.
MIETH, Dietmar. Pequeno estudo de ética. Aparecida (SP): Ideias e Letras, 2007.
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
ROBLES, Gregório. Os direitos fundamentais e a ética na sociedade atual. Barueri: Manole, 2005.
SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal, parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006.
SCHABAS, Wlliam A. An introduction to the International Criminal Court. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 2007.
VALLS, Álvaro L. M. O que é ética? São Paulo: Brasiliense, 2006.
WELZEL, Hans. La dottrina giusnaturalistica di Samuel Puffendorf. Torino: Giapichelli, 1993.
ZACHARIAS, Manif Elias. Dicionário de medicina legal. Curitiba: Champagnat, 1991.
Citação
BALDAN, Édson Luís. Tortura. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/424/edicao-1/tortura
Edições
Tomo Direito Penal, Edição 1,
Agosto de 2020