O dolo, no sistema finalista, integra a conduta, e, consequentemente, o fato típico. Trata-se do elemento psicológico do tipo penal, implícito e inerente a todo crime doloso.

No entanto, a partir de uma concepção causal, por outro lado, o dolo funciona como elemento da culpabilidade.

O dolo, a partir da concepção finalista, ora adotada, consiste na vontade e consciência de realizar os elementos do tipo incriminador.


1. Teorias do dolo


1.1. Teoria da representação


O reconhecimento do dolo para a teoria da representação depende apenas da previsão do resultado. Prima-se pelo lado intelectual, deixando de lado o aspecto volitivo, sendo irrelevante se o sujeito ativo quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Basta que o resultado tenha sido antevisto pelo agente.

A teoria não é acolhida por não distinguir o dolo da culpa consciente.


1.2. Teoria da vontade


Não basta a mera previsão do resultado. Exige-se também a vontade de produzi-lo.

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Perangeli dissertam que: 

“O dolo é o querer do resultado típico, a vontade realizadora do tipo objetivo. O nosso código fala em dolo no seguinte sentido: ‘quando o agente quis o resultado’ (art. 18, I). Assim sendo, para que um sujeito possa querer algo como, por exemplo, o ‘querer pintar a igreja da Antuérpia’, que havia na conduta de Van Gogh ao pintá-la, ele necessariamente deve também conhecer algo: Van Gogh devia conhecer a igreja de Antuérpia e os meios que necessitava para pintá-la. Todo querer pressupõe um conhecer. Acontece o mesmo com o dolo, pois é um querer. O conhecimento que este ‘querer’ pressupõe é o dos elementos do tipo objetivo no caso concreto”.1 

De igual modo, Cezar Roberto Bitencourt: 

“Para essa teoria, tida como clássica, dolo é a vontade dirigida ao resultado. Para Carrara, seu mais ilustre defensor, o dolo ‘consistente na intenção mais ou menos perfeita de fazer um ato que se conhece contrário à lei’. A essência do dolo deve estar na vontade, não de violar a lei, mas de realizar a ação e obter o resultado. Essa teoria não nega a existência da representação (consciência) do fato, que é indispensável, mas destaca, sobretudo, a importância da vontade de causar o resultado”.2  


1.3. Teoria do assentimento (consentimento ou anuência) 


A teoria do assentimento admite a existência de dolo não apenas quando o agente quer o resultado, mas também quando realiza a conduta assumindo o risco de produzi-lo.


1.4. Teorias adotadas pelo Código Penal


O art. 18, I, do Código Penal demostra o acolhimento da teoria da vontade (quis o resultado) e da teoria do assentimento (assumiu o risco de produzi-lo).

Adverte Rogério Grecco: “com isso, a simples representação mental do resultado não poderá fazer com que o agente seja responsabilizado dolosamente, uma vez que deve, no mínimo, aceitá-lo, não se importando com a sua ocorrência.”3  


2. Elementos do dolo


O dolo é composto por consciência e vontade. A consciência é seu elemento cognitivo ou intelectual, ao passo que a vontade desponta como seu elemento volitivo. A este respeito: 

“A doutrina penal brasileira instrui que o dolo, conquanto constitua elemento subjetivo do tipo, deve ser compreendido sob dois aspectos: o cognitivo, que traduz o conhecimento dos elementos objetivos do tipo, e o volitivo, configurado pela vontade de realizar a conduta típica. 3. O elemento cognitivo consiste no efetivo conhecimento de que o resultado poderá ocorrer, isto é, o efetivo conhecimento dos elementos integrantes do tipo penal objetivo. A mera possibilidade de conhecimento, o chamado “conhecimento potencial”, não basta para caracterizar o elemento cognitivo do dolo. No elemento volitivo, por seu turno, o agente quer a produção do resultado de forma direta – dolo direto – ou admite a possibilidade de que o resultado sobrevenha – dolo eventual” (STJ, AgRg no REsp 1043279/PR, 6ª Turma, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), j. 14.10.2008).

Os elementos do dolo se relacionam em três momentos distintos e sucessivos.

Em primeiro lugar, opera-se a consciência da conduta e do resultado. Em seguida, o sujeito manifesta sua consciência sobre o nexo de causalidade entre a conduta a ser perpetrada e o resultado que em decorrência dela será produzido.

Ao fim, o agente exterioriza a vontade de realizar a conduta e produzir o resultado. Basta, para a verificação do dolo, que o resultado se produza em conformidade com a vontade esboçada pelo agente no momento da conduta.

Juarez Cirino dos Santos leciona sobre a dimensão temporal do dolo: 

“O dolo, como fundamento subjetivo da realização do plano delituoso, deve existir durante a realização da ação, o que não significa durante toda a realização da ação planejada, mas durante a realização da ação que desencadeia o processo causal típico (a bomba, colocada no automóvel com dolo de homicídio, somente explode quando o autor já está em casa, dormindo). Consequentemente, não existe dolo anterior, nem dolo posterior à realização dação: as situações referidas como dolus antecedens (a arma empunhada por B para ser usada contra A, depois prévia conversação, dispara acidentalmente e mata a vítima) ou como dolus subsequens (ao reconhecer um inimigo na vítima de acidente de trânsito, o autor se alegra com o resultado) constituem meras hipóteses de fatos imprudentes.”4  

Além disso, no que tange ao nexo causal, não é preciso que o iter criminis transcorra na forma idealizada pelo agente. Subsiste o dolo se o objetivo for alcançado, ainda que de modo diverso.

O dolo deverá, ainda, englobar todas as elementares e circunstâncias do tipo penal, sob o risco de configuração de erro de tipo. Neste ponto, confira-se Paulo Busato:

“É óbvio, porém, que não se exige para o dolo um conhecimento absoluto ou exato dos elementos componentes do tipo de ação ou omissão. Por exemplo: não é necessário que se saiba a quem pertence a coisa furtada, basta que se saiba que é alheia. Fala-se, no caso, na exigência de uma ‘valoração paralela na esfera do leigo’, ou seja, o sujeito deve ter um conhecimento aproximado da significação social ou jurídica de tais elementos’, pois do contrário, apenas os juristas seriam capazes de atuar dolosamente. A ausência de tal conhecimento é justamente o que representa o erro. Aliás, a demonstração de que o conhecimento é elemento necessário do dolo é justamente a consequência reconhecida pela doutrina, quando existe um erro, sobre a compreensão de que a atuação representa uma atividade em princípio delitiva, qual seja, a exclusão do dolo”.5   


3. Dolo natural e o dolo normativo


A diferenciação entre dolo natural e dolo normativo relaciona-se ao sistema penal (clássico ou finalista) e à teoria adotada para definição da conduta.

No sistema clássico, em que imperava a teoria causalista ou mecanicista da conduta, o dolo (e a culpa) estava classificado no interior da culpabilidade, composta pela imputabilidade, dolo (ou culpa) e a exigibilidade de conduta diversa. O dolo, para esta concepção, também abarcava a consciência da ilicitude do fato – exatamente por isto, o dolo era chamado de normativo (colorido ou valorado).

Com o surgimento do sistema finalista (teoria finalista da conduta), o dolo migrou da culpabilidade para a conduta, integrando o fato típico. Logo, a culpabilidade passou a ser integrada pela imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Repare que a consciência da ilicitude passou a ser meramente potencial, deixando de constituir apenas elemento do dolo normativo para ganhar existência autônoma como elemento da culpabilidade. Daí porque, o dolo começa a ser chamado de natural, incolor ou avalorado.

Assim, Zaffaroni assinala: 

“Sabemos que a localização do dolo não é uma questão resolvida univocamente na doutrina. Para aqueles que, como nós, sustentam uma estrutura teórica do delito a partir de uma concepção finalista da conduta, nos delitos dolosos, o dolo está no tipo como o núcleo fundamental de seu aspecto subjetivo, enquanto, para os que defendem uma estrutura teórica do delito elaborada partir da teoria causal da ação, o dolo está na culpabilidade. Como é lógico, para nós o dolo está livre de toda reprovação, porque a reprovabilidade (culpabilidade) é um passo posterior à averiguação do injusto (conduta típica e antijurídica), pois o dolo integra o injusto como uma característica da tipicidade dolosa.”6  


4. Espécies de dolo


4.1. Dolo direto (determinado, intencional, imediato, incondicionado)


A vontade do agente é voltada a determinado resultado. O sujeito ativo dirige sua conduta a uma finalidade precisa.


4.2. Dolo indireto (indeterminado)

Nestes casos, o agente não tem a vontade dirigida a um determinado resultado, dividindo-se em dolo alternativo e dolo eventual.

(a) dolo alternativo:

O agente busca, indistintamente, um ou outro resultado. A intenção é dividida com igual intensidade. Em caso de dolo alternativo, o agente sempre responderá pelo resultado mais grave, uma vez que o Código Penal adotou, no art. 18, I, a teoria da vontade. Logo, se o agente teve a vontade de praticar crime mais grave, deverá responder por ele, ainda que na forma tentada.

(b) dolo eventual:

Nesta hipótese, o agente não quer o resultado, por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo. É adotado pelo Código Penal, no art. 18, II, parte final, “assumiu o risco de produzi-lo.”

Sobre o tema, confiram-se os comentários clássicos de Nelson Hungria e Heleno Fragoso sobre as famosas “fórmulas de Frank”: 

“A primeira delas assim decide: a previsão do resultado como possível somente constitui dolo, se a previsão do mesmo resultado como certo não teria tido o agente, isto é, não teria tido o efeito de um decisivo motivo de contraste. É esta a fórmula denominada da teoria hipotética do consentimento, a que o próprio Frank acrescentou esta outra (chamada da teoria positiva do consentimento): se o agente diz a si próprio: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir, é responsável a título de dolo.”7 

Vale ainda a conferência dos ensinamentos de Francisco Muñoz Conde: 

“Com a categoria do dolo direto não se podem abarcar todos os casos nos quais o resultado produzido, por razões de política criminal, deva ser imputado a título de dolo, ainda que o querer do sujeito não esteja referido diretamente a esse resultado. Fala-se aqui de dolo eventual. No dolo eventual o sujeito representa o resultado como de produção provável e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. O sujeito não quer o resultado, mas “conta com ele”, “admite a sua produção”, “assume o risco” etc. Com todas essas expressões pretende-se descrever um complexo processo psicológico no qual se mesclam elementos intelectivos e volitivos, conscientes ou inconscientes, de difícil redução a um conceito unitário de dolo ou culpa. O dolo eventual constitui, portanto, a fronteira entre o dolo e a negligência ou a culpa e dado o diverso tratamento jurídico de uma ou outra categoria é necessário distingui-las com a maior clareza”.8 

Na linha do Supremo Tribunal Federal, 

“O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). Das várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a qual o dolo exige que o agente consinta em causar o resultado, além de considerá-lo como possível. A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou "pega" ou "racha", em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas). Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente” (STF, HC 91159/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 02.09.2008).

O dolo eventual é admitido em todo e qualquer crime que seja com ele compatível, devendo ser detalhadamente descrito na peça acusatória. Porém, existem hipóteses em que o próprio tipo penal exige o dolo direto, sendo insuficiente a mera assunção do risco de produzir o resultado.

A diferenciação de dolo eventual e da imprudência consciente (culpa consciente) é tema de incessante discussão doutrinária. Juarez Cirino esclarece que 

“(a) o dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado – às vezes, com variação para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível, cuja eventual produção o autor aceita; (b) imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou evitação desse resultado, por força da habilidade, atenção, cuidado, etc. na realização concreta da ação”.9  

Alguns autores criticam o dolo eventual, dizendo ser inócuo, pois a sua prova residiria apenas na mente do autor. No entanto, não procedem tais alegações, pois, assim como no dolo direto, a comprovação será aferida de acordo com as circunstâncias concretas. Neste sentido, reiterada a jurisprudência dos Tribunais Superiores: “O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável” (STJ, AgRg no REsp 1.610.298/GO, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, j. 29.03.2017).

De igual modo, parcela da doutrina pontua que o dolo eventual deve ser valorado de forma mais brando do que o dolo direto. Paulo Busato assinala: “é evidente que, em uma estrutura de desvalor criminal, a atitude de quem age com dolo eventual, embora leviana, não é agressiva e, a despeito de que não haja diferença técnica entre as distintas classes de dolo no que tange à imputação, a mensuração da pena, em função da incidência do princípio da culpabilidade, obrigatoriamente diferenciará entre as classes de dolo.”10 Contudo, discordamos desta posição, vez que o Código Penal os colocou em idêntica posição jurídica. A pena-base será fixada levando-se em conta as circunstâncias judiciais previstas pelo art. 59, não se incluindo nesse rolo a modalidade de dolo.

Por fim, a jurisprudência posiciona-se no sentido de existir dolo eventual na conduta do agente responsável por graves crimes praticados na direção de veículo automotor. Esta escolha tem por base as diversas campanhas educativas realizadas, demonstrando os inúmeros riscos da direção ousada e perigosa, como ocorre no racha e no excesso de velocidade praticados em via pública.

Tais advertências são mais do que suficientes para esclarecer motoristas da vedação legal de tais comportamentos, bem como dos resultados nefastos que são ordinariamente causados. E, ainda assim, se o agente continua a agir de forma imprudente, revela a sua indiferença com os bens coletivos, seu desprendimento com a vida e a integridade corporal alheia, sendo lhe imputável o crime doloso.

Em igual perfilhamento, 

“A precompreensão no sentido de que todo e qualquer homicídio praticado na direção de veículo automotor é culposo, desde não se trate de embriaguez preordenada, é assertiva que não se depreende do julgado no HC nº 107801. 14. A diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente. 15. Deveras, tratando-se de culpa consciente, o agente pratica o fato ciente de que o resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. Doutrina de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 1., p. 116-117); Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 17. ed., p. 173 – grifo adicionado) e Zaffaroni e Pierangelli (Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 2011, pp. 434-435 – grifos adicionados). 16. A cognição empreendida nas instâncias originárias demonstrou que o paciente, ao lançar-se em práticas de expressiva periculosidade, em via pública, mediante alta velocidade, consentiu em que o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual previsto no art. 18, inciso I, segunda parte, verbis: “Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” (STF, HC 101698/RJ, rel. Min. Luiz Fux, j. 18.10.2011).

De igual modo, 

“III- Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. Na hipótese de ‘racha’, em se tratando de pronúncia, a desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova por demais sólida, No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dúbio pro societate. IV - O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável. V - O tráfego é atividade própria de risco permitido. O "racha", no entanto, é - em princípio - anomalia que escapa dos limites próprios da atividade regulamentada” (STJ, REsp 247263/MG, rel. Min. Felix Fischer, j. 05.04.2001).

Quanto ao homicídio praticado na direção de veículo automotor, em decorrência do estado de embriaguez, a análise da situação concreta é o norte para a correta tipificação da conduta. Assim, o indivíduo que nem sequer tem condições para andar, por óbvio não pode se aventurar na direção. Se o fizer, não é justo que lhe seja atribuída a mera violação de um dever objetivo de cuidado. Ao revés, assemelha-se justo que se entenda pela assunção de produção do resultado danoso.


4.3. Dolus bonus e dolus malus


A classificação tem como marco os motivos do crime que podem aumentar a pena, como o motivo torpe, ou diminui-la, em sendo de relevante valor social ou moral. É mencionado pela doutrina, mas guarda maior similitude com o Direito Civil.


4.4. Dolo de propósito (refletido) e dolo de ímpeto (ou repentino)

Nos crimes premeditados, há reflexão do agente, mesmo que pena, sobre a prática da conduta criminosa. Diz-se que o dolo é de propósito ou refletido.

Por outro lado, o dolo de ímpeto ou repentino é caracterizado quando o agente age por paixão violenta ou excessiva perturbação do ânimo, inexistindo intervalo entre a cogitação do crime e a execução da conduta. Ocorre, via de regra, nos crimes passionais.


4.5. Dolo genérico e dolo específico


A diferenciação ganhou destaque na teoria clássica da conduta.

O dolo genérico consistia na vontade de praticar a conduta típica, sem nenhuma finalidade específica. Assim, no crime de homicídio, basta a intenção de matar alguém, pouco importando o motivo para configurar do tipo, na modalidade simples.

Ao revés, o dolo específico existia nos tipos em que a vontade genérica era acrescida de uma finalidade especial. Deste modo, no crime de injúria, não basta a mera atribuição de uma qualidade subjetiva depreciativa, vez que o injusto também demanda a finalidade específica de macular a honra subjetiva da pessoa ofendida.

No entanto, atualmente, com a releitura do finalismo, utiliza-se a expressão dolo para referir-se ao dolo genérico. Já o dolo específico é chamado de elemento subjetivo do tipo ou elemento subjetivo do injusto. Segundo Rogério Grecco: 

“Uma vez adotada a teoria finalista da ação, podemos dizer que em todo o tipo penal há uma finalidade que o difere de outro, embora não seja tão evidente quando o próprio artigo se preocupa em direcionar a conduta do agente, trazendo expressões dela indicativas. Isso porque, de acordo com a referida teoria, a ação é o exercício de uma atividade final, ou seja, toda conduta é finalisticamente dirigida à produção de um resultado qualquer, não importando se a intenção do agente é mais ou menos evidenciada no tipo penal”.11 


4.6. Dolo de dano e dolo de perigo

Dolo de dano ou de lesão o agente quer ou assume o risco de lesionar um bem jurídico penalmente tutelado (crimes de dano).

Já no dolo de perigo, o agente quer ou assume o risco de expor a perigo de lesão um bem juridicamente tutelado.


4.7. Dolo presumido

O dolo presumido (ou in re ipsa) dispensaria comprovação no caso concreto, mas não é admitido no Direito Penal moderno, por vedação da responsabilidade penal objetiva.


4.8. Dolo de primeiro grau e dolo de segundo grau

O dolo de primeiro grau consiste na vontade do agente, direcionada a determinado resultado, efetivamente perseguido, englobando os meios necessários para tanto. Há a intenção do agente de atingir um único bem jurídico.

O dolo de segundo grau (ou de consequência necessárias) é a vontade do agente dirigida a determinado resultado, efetivamente desejado, em que a utilização dos meios para alcançá-lo, inclui, obrigatoriamente, efeitos colaterais de verificação praticamente certa. O agente não deseja imediatamente os efeitos colaterais, mas tem por certa a sua superveniência, caso se concretize o resultado pretendido.

Confira-se o famoso caso Thomas de 1875, em que o agente Alexander Keith, almejando receber valores de seguro, deixou uma bomba em um contêiner no navio Mosel que faria trajeto de Bremerhaven até New York. Em meio à travessia do Atlântico, o artefato explodiu, destruindo a carga, como também a vida de oitenta e uma pessoas. O autor tinha como objetivo inicial locupletar-se de forma criminosa, mas não se absteve de causar a morte de inúmeros inocentes, de modo que este resultado necessário pode ser incluído em seu plano criminoso.

Há que se diferenciar, ainda, a figura do dolo de segundo grau (direto) e o dolo eventual, na linha do pensamento de Claus Roxin: 

La delimitación entre el dolo directo (de segundo grado) y el dolo eventual es sencilla: cuando falta la intención y el sujeto no está seguro de si una determinada circunstancia del hecho concurro o de si se producirá una consecuencia típica, no existe ningún caso dolus directus (de segundo grado), sino a la sumo dolo eventual, que habrá que distinguir aún de la imprudencia consciente. A este respecto habrá que admitir que altos grados de probabilidad equivalen a la seguridad. A quien con un 99% de probabilidad parte de la idea de que los hechos lesivos del honor que sobre otro difunde son falsos habrá que castigarle, cuando efectivamente lo sean, por difamación intencional o a sabiendas (§187) y no sólo por maledicencia o difamación no a sabiendas (§186)”.12 


4.9. Dolo geral, por erro sucessivo ou dolus generalis


É o erro que incide no curso da execução do crime, relativamente à forma pela qual se produz o resultado inicialmente desejado pelo agente.

O sujeito, acreditando já ter alcançado o resultado perquirido, prática nova conduta com finalidade outra e, ao final, se constata que foi esta última que produziu o que o indivíduo buscava desde o início. O erro é meramente acidental e irrelevante para o Direito Penal. O agente busca um resultado e o alcançou. Daí porque se diz que o dolo é geral e acabar todo o desenrolar da ação típica, desde o início até o final da consumação do injusto.

Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias: 

“Do que substancialmente se trata sob esta epígrafe é de casos em que o agente erra sobre qual de diversos actos de uma conexão de ação produzirá o resultado almejado. De casos, digamos, que cronologicamente ocorrem em dois tempos: num primeiro momento o agente pensa erroneamente ter produzido, com a sua acção, o resultado típico; num segundo momento, fruto de uma nova actuação do agente (quase sempre com fins de encobrimento), o resultado vem efetivamente a concretizar-se”.13 

Veja o exemplo, “A” encontra o seu desafeto “B” e decide envenena-lo, após uma conversa ardilosa. “B”, desavisado, ingere o veneno e cai ao solo. “A” crê que o envenenamento foi bem sucedido e decide ocultar o cadáver, lançando o corpo de “B” ao mar em um saco plástico com pedras. Para o azar de “A”, o corpo do inimigo é encontrado em uma praia. A perícia, no entanto, constata que a causa da morte foi causada por afogamento e não pelo veneno.

Não consenso na doutrina sobre a incidência da qualificadora do homicídio devida pelo uso do veneno. Para Nucci,14 deve ser utilizado o método realmente empregado (no caso, afogamento). Já para Paulo José da Costa Jr.15 deve ser utilizado o método desejado inicialmente pelo autor do fato.


5. Dolo nas contravenções penais


O art. 3º do Decreto-Lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais estabelece que: “para a existência da contravenção, basta a ação ou omissão voluntária. Deve-se, todavia, ter em conta o dolo ou a culpa, se a lei faz depender, de um ou de outra, qualquer efeito jurídico”.

O dispositivo, vigente desde a década de 1940, revela a adoção da teoria causal.

Porém, a reforma da Parte Geral do Código Penal realizada em 1984 conferiu roupagem nitidamente finalista.

Destarte, questiona-se a possibilidade de existência de contravenção penal, despida de dolo ou culpa, sem que haja infringência ao princípio que veda a responsabilidade penal objetiva.

Mas a regra deve ser interpretada levando-se em conta que as contravenções penais são, geralmente, infrações penais de mera conduta, sem produção de resultado naturalístico. Assim, basta efetivamente a ação ou omissão voluntária, pois o dolo, em consonância com o art. l 8 do Código Penal, ocorre quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. 

E, diz a segunda parte do dispositivo, deve-se ter em conta o dolo ou a culpa, se a lei faz depender, de um ou de outra, qualquer efeito jurídico.

Por outro lado, quando a contravenção penal não se enquadrar como de mera conduta, aí sim a lei exige expressamente o dolo e a culpa.

Conclui-se, assim, que o dispositivo não consagra a responsabilidade penal objetiva. Quando se fala em ação ou omissão voluntária, refere-se à vontade, elemento da conduta e, também, do dolo. Não há, assim, diferença entre o tipo subjetivo do crime e o tipo subjetivo da contravenção penal. 

Em ambos os casos, exige-se o dolo, ainda que sem apontá-lo expressamente, mas chamando-o apenas de “ação ou omissão voluntária”, consistente na vontade de realizar os elementos do tipo, colocando-se o sujeito consciente e deliberadamente em situação ilícita.


Notas

1ZAFFARONI, Eugenio Rául; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, pp. 480-481.

2BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, pp. 333-334.

3GRECCO, Rogério. Curso de direito penal, p. 198.

4DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal, p. 152.

5BUSATO, Paulo César. Direito penal, v. 1.

6ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 484.

7HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, v. 1, p. 122.

8MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito, p. 60.

9DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal, p. 143.

10BUSATO, Paulo César. Direito penal, v. 1.

11GRECO, Rogério. Curso de direito penal, p. 203.

12ROXIN, Claus. Derecho penal, p. 424.

13DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal, p. 360.

14NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado, p. 191.

15COSTA JR. Paulo José da. O crime aberrante, pp. 78-79.

Referências

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. Volume 1.
BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2017, e-book. Volume 1.
COSTA JR. Paulo José da. O crime aberrante. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007. Tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime.
DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008.
GRECCO, Rogério. Curso de direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. Volume 1. Tomo II: arts. 11 ao 27. 
MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Trad. e notas por Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general. Traducción de la 2ª edición alemana y notas por Diego-Manuel Luzón Peña. 2008. Tomo I: Fundamentos. La estructura de la teoría del delito.
ZAFFARONI, Eugenio Rául; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.



Citação

MASSON, Cleber Rogerio. Dolo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/423/edicao-1/dolo

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Tomo Direito Penal, Edição 1, Agosto de 2020