• O crime de telecomunicação clandestina

  • Vicente Greco Filho

  • Tomo Direito Penal, Edição 1, Agosto de 2020

O presente verbete tem como objetivo analisar a história do direito das telecomunicações no Brasil, abordar os crimes de perigo e bem jurídico e explicar a estrutura linguística dos tipos penais, bem como a tutela do espectro eletromagnético como bem jurídico substância do art. 183 da Lei 9.742, de 16 de julho de 1997. Ainda, aborda o fato de ser o crime do art. 183 de perigo abstrato, versa sobre as rádios comunitárias e, por fim, menciona a inaplicabilidade do princípio da insignificância.

1. Aspectos da evolução histórica do direito das telecomunicações no Brasil


O marco histórico do conjunto de normas que regem as Telecomunicações no Brasil, foi sem dúvida o diploma conhecido como Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962.

A partir daí desenvolveram-se estudos, no Brasil, sobre seus aspectos peculiares que levaram ao entendimento de que poder-se-ia destacá-los como um ramo específico do Direito, já que seus conceitos e princípios nem sempre coincidem com o do Direito Administrativo comum.

Não hesitamos em adotar como conceito do novo ramo do direito o formulado por Gaspar Vianna, no trabalho apresentado no III Congresso Brasileiro de Telecomunicações (v. nosso “Curso de direito de telecomunicações”)1,  qual seja: “[o] Direito das Telecomunicações é o conjunto de princípios e normas que regem as relações jurídicas decorrentes da utilização de telecomunicações”.

Por outro lado, a matéria, ou objeto, do Direito das telecomunicações é o conjunto de relações jurídicas decorrentes da utilização de meios ou sistemas de telecomunicações. 

Tentando classificar, para fins de sistematização, os tipos dessas relações jurídicas, podemos dizer que elas existem entre:

(a) A União de um lado, os órgãos da Administração direta ou indireta de outro;

(b) A União de um lado e os concessionários, permissionários ou autorizados a executar o serviço de outro, bem como os que pretendem utilizar os serviços;

(c) A União de um lado e as indústrias de equipamentos de radiodifusão, telefonia ou radiocomunicação de outro;

(d) Os concessionários ou permissionários de um lado e os destinatários ou usuários dos serviços de outro;

(e) Os concessionários ou permissionários de um lado e aqueles que prestam serviços artísticos de outro; e

(f) A União, de um lado, e a comunidade internacional e seus organismos de outro.

No momento interessa-nos o bloco de relações “b”, a União de um lado e os concessionários, permissionários ou autorizados (ou que deveriam sê-lo) a executar o serviço de outro, no plano administrativo e penal.

O Código Brasileiro de Telecomunicações, procurou abranger tanto os serviços de telefonia e afins, quanto a radiodifusão, tendo em vista que o texto constitucional de então e o regente até a Constituição de 1988, unificava todas essas atividades a partir de um único dispositivo, o art. 8º, XV, que atribuía à União a competência para explorar “os serviços de telecomunicações” (na Emenda Constitucional 1/69).

As comunicações à distância por meio eletro-eletrônicos nasceram com o telégrafo com fio, mas com o surgimento de transmissões por rádio, a grande preocupação mundial foi com a disciplina da utilização do espectro eletro-magnético tendo em vista que este é limitado e está sujeito a interferências ou ruídos capazes de prejudicar a utilização de uma pela utilização de outra.

O primeiro passo, no âmbito internacional, no sentido de disciplinar a administração das frequências radioelétricas foi dado na Conferência de Radiocomunicações, em Washington, em 1927. Antes disso, em Berlim, procurou regulamentar-se o Serviço Móvel Marítimo, em 1906, além de acordos preexistentes a respeito de Telegrafia.

Mais tarde, em Madrid (1932) e no Cairo (1938), realizaram-se outras conferências internacionais, adotando a antiga União Telegráfica Internacional a denominação de União Internacional de Telecomunicações. Depois da Grande Guerra, a U.I.T. passou a ser órgão especializado das Nações Unidas, promovendo as Conferências Internacionais de 1963 e 1971, já sob a necessidade de regulamentação dos problemas surgidos com a utilização dos satélites.

A preocupação dominante, como se vê, sempre foi a preservação da utilização do espectro de frequências eletro-magnéticas, quer no serviço público de propiciar aos consumidores uma forma de comunicação mais imediata que a postal e que não interfere no conteúdo das mensagens (telefonia e afins), quer na atribuição de frequências para que entidades as utilizem com conteúdo aberto de sua responsabilidade, no que modernamente se denomina de midia eletrônica aberta.

Tanto isso é verdade que a regulamentação e fiscalização dos órgãos governamentais se estende inclusive à fabricação e distribuição de equipamentos de telecomunicações. Para que, pergunta-se. Para que mantenham a utilização de frequências em padrões de qualidade que evitem as mais possíveis interferências em outras, circunstância, porém, que é impossível de ser eliminada por completo em muitos casos, por mais adequado e funcional que seja o aparelho. Isso sem falar na utilização de frequências para outros fins que não as comunicações, como a dos equipamentos médicos, os computadores e nosso, hoje prosaico, forno de microondas.

Outro marco significativo no panorama do Direito de Telecomunicações é a Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, que dispôs sobre “a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”.

A lei, conhecida como Lei Geral de Telecomunicações, não tratou da radiodifusão, aliás ressalvou a vigência, nesse aspecto, do Código de 1962.

A expressão “lei geral” justifica-se, porque a Constituição de 1988 desmembrou as duas áreas em dois incisos, o XI e o XII, do art. 21 da competência da União: o XI dando os parâmetros gerais das telecomunicações, enquanto serviço meio a ser colocado à disposição das pessoas, e o XII, referindo a exploração da radiodifusão. Como regulamentadora do inciso XI ela é geral, apesar de que a radiodifusão também se insere no conceito amplo de telecomunicação. Acontece que ambas se imbricam, já que as telecomunicações, no sentido do inciso XI, pode utilizar-se de radiofrequências  enquanto transmissão de conteúdo pode dar-se via cabo.

A separação constitucional, porém, tem consequências interpretativas, gerando a pergunta: tratando a Lei 9.472/1997 das telecomunicações no sentido do inciso XI e prevendo o crime (art. 183) de desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicações, aplica-se ele apenas às atividades que não sejam de radiodifusão, punidas as atividades clandestinas nessa área ainda pelo art. 70 do Código de 1962?

A questão será enfrentada no tópico penal deste estudo, de maneira rápida porque visa especificamente a interpretação do art. 183 da Lei 9.472/1997. 

O que se observa, contudo, desde logo, é que a Lei 9.472 somente foi possível em virtude da Emenda Constitucional 8/1995, porque o texto original da Constituição de 1988 previa a exploração das telecomunicações por empresa estatal eis que vigorava o chamado Sistema Telebrás em que a operação é quase monopolizada por entidades controladas pelo União, direta ou indiretamente. Lembre-se, ainda, que o crime de atividade clandestina de telecomunicações já existia na Lei 4.117/1962, abrangendo quaisquer telecomunicações, incluída ou especialmente focalizada a radiodifusão, eis que a preocupação, como se vem discorrendo, era e é com a utilização do espectro eletro-magnético. Lembre-se, também, que até a primeira metade da década de 1990 as telecomunicações no sentido de transmissão de voz e dados ponto a ponto num sistema integrado local era quase que exclusivamente via cabo, excetuando-se as comunicações à distância, intermunicipais, interestaduais e internacionais. Mesmo estas valendo-se, alternativamente ao satélite de cabos submarinos.


2. Apresentação dos conceitos de crimes de perigo e bem jurídico


Os crimes, quanto ao resultado, podem ser de dano ou de perigo, subdividindo-se este em de perigo concreto e de perigo abstrato ou presumido.

O termo resultado tem sentido equívoco. Diz-se: não há crime sem resultado. Neste sentido, resultado significa manifestação exterior da pessoa, conduta, para excluir de qualquer incriminação a simples cogitação, o pensamento, segundo o brocardo tradicional, cogitationem nemo patitur. O significado do termo resultado, como utilizado no parágrafo anterior, diferentemente, significa a modificação do mundo exterior, provocada pela conduta física, mas além dela.

Nos crimes de dano, o tipo penal exige para sua integração, a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, como no homicídio a ocorrência morte, ou no estelionato, o efetivo prejuízo patrimonial. Nos crimes de perigo concreto há a ameaça real ao bem jurídico, aferida no caso concreto. Nos de perigo abstrato é ela potencial, mas decorrente de uma valoração efetiva de risco, como nos crimes de drogas em que se reconhece, sem dúvida, o risco à saúde pública.2  Na categoria dos crimes de perigo abstrato, com maior distância da lesão efetiva ao bem jurídico, há também crimes de mero risco, em que o perigo é hipotético, como ocorre em muitos crimes ambientais, em que a ocorrência de eventual dano é uma mera hipótese. São chamados crimes de cautela ou de precaução, instituída como princípio na sociedade moderna, em que se admite a atuação do Direito Penal ao instituir medidas de restrição de práticas, justificada pela ausência de conhecimento científico sobre suas consequências.3 

Nos crimes de perigo abstrato, ainda que este seja presumido, pode ocorrer, porém, que não exista, nem em tese, o perigo e nem mesmo o risco, de modo que a hipótese da realidade concreta exclui a aplicação da lei penal. Os crimes de perigo abstrato, mesmo se consumando com a conduta independentemente de resultado, pode ocorrer a hipótese de inexistir totalmente a possibilidade de risco, de modo que não são incompatíveis com a figura do crime impossível. Foi o que ocorreu no caso do crime de drogas em que a substância guardada, apesar de ter sido encontrado o princípio ativo proibido, estava em situação de absoluta impossibilidade de utilização, fato por nós relatado em nosso Tóxicos: prevenção e repressão.4

Sob outro aspecto, quanto à sua estrutura linguística, os crimes podem classificar-se em tipos de:

1 - (conduta livre) ------- RESULTADO

(diferente de resultado entendido enquanto a conduta humana, ação)

2 - CONDUTA ++++ RESULTADO

(Na hipótese de o tipo exigir um resultado, mas por meio de determinada conduta)

3 - CONDUTA --------(resultado inexistente ou desprezado)

(São os crimes formais e os de mera conduta)

4 - CONDUTA ++++ FIM OU MOTIVO

(resultado apenas visado)

Essas considerações, desde a preferência que deve ter o Direito Penal para os crimes de dano até a possibilidade de crimes de perigo abstrato, ressalvando-se a impunibilidade no caso de inexistência de perigo, sequer em tese no caso concreto, como também a não incriminação em casos de insignificância, tem por justificativa o conteúdo substancial do Direito Penal, que é a proteção de bens jurídicos.

Como explica Claus Roxin,5 “pode-se definir bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre que garantam todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para funcionamento de um sistema estatal que se baseia nesses objetivos”.

Há dois núcleos, portanto, de geração ou identificação de bens jurídicos: diretamente a pessoa, os direitos humanos e civis de cada um e o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nesses objetivos (aqui se justificam os crimes contra a Administração Pública).

E conclui o mesmo doutrinador: “a proteção de bens jurídicos não só governa a tarefa político-criminal do Direito penal mas também a sistemática da teoria do injusto”.6 

Inexistindo a lesão real ou potencial a um bem jurídico, inexiste razão ou fundamento quer para a instituição de um crime, no plano, portanto, da política criminal legislativa, quer no caso concreto, no momento de aplicação da lei penal.

No caso do art. 183 da Lei 9.472/1997, trata-se de crime de perigo abstrato e, também de norma penal em branco, porque remete a regularidade da conduta à regulamentação da autoridade administrativa. Quanto ao bem jurídico por ele tutelado discorrer-se-á no item relativo à análise do tipo.

Há, ainda, um outro aspecto a considerar.

O Direito penal não é auxiliar dos outros ramos do Direito. Ele existe para reafirmar os valores indispensáveis à convivência social e que já são disciplinados pelos demais ramos, é certo, mas não para auxiliar aquelas áreas da ciência jurídica, não como sanção civil (no sentido de não penal), mas como sanção própria em última ratio, quando os outros ramos são insuficientes para alcançar a proteção social.

O Direito penal não é instrumento ou auxiliar dos poderes da Administração pública, como não é do Direito civil, por exemplo, daí a proibição da prisão por dívida, como não é possível a prisão por infração administrativa. E se as sanções administrativas são suficientes, não tem cabimento a atuação do Direito penal.


3. Análise do tipo penal nos elementos gramatical, lógico, sistemático e teleológico. Bem jurídico tutelado. 


Dispõe o art. 183 da Lei 9.472/1997:

 “Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação:

Pena - detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, direta ou indiretamente, concorrer para o crime”.

Complementa-o o artigo seguinte formando um conjunto único:

“Art. 184. São efeitos da condenação penal transitada em julgado:

I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;

II - a perda, em favor da Agência, ressalvado o direito do lesado ou de terceiros de boa-fé, dos bens empregados na atividade clandestina, sem prejuízo de sua apreensão cautelar.

Parágrafo único. Considera-se clandestina a atividade desenvolvida sem a competente concessão, permissão ou autorização de serviço, de uso de radiofreqüência e de exploração de satélite”.

Há, inicialmente, que se tratar da abrangência do artigo tendo em vista a divergência quanto à sobrevida do art. 70 da Lei 4.117/1962.

A respeito, é possível identificar três posições: a que entende que o art. 70 está revogado e que o art. 183 acima transcrito abrange tanto a radiodifusão quanto as telecomunicações, no sentido da Lei 7.472/1997; a que entende que o art. 70 continua se aplicando à radiodifusão e o art. 183 às telecomunicações;7  e a que entende persistirem duas figuras, a do art. 70 como forma de realização de atividade irregular e o art. 183 como realização de atividade clandestina, porque esse termo, “clandestina” aparece somente na lei mais recente, que institui pena mais grave, sendo a atividade irregular, menos grave. Este último entendimento considera irregular a atividade com autorização, mas em desacordo com a regulamentação e clandestina a atividade sem autorização.8

Dominante é a primeira corrente, ou seja, a de que o art. 70 está revogado, aplicando-se exclusivamente o art. 183 mais recente. Este é o entendimento da Procuradoria Geral da República pelo então Procurador Geral Claudio Leme Fonteles e da jurisprudência mais recente, que tem aplicado somente o art. 183 a partir de sua vigência, inclusive para as chamadas rádios clandestinas ditas comunitárias mas em desacordo com a lei reguladora (Lei 9.612/1998) que, aliás, tem o maior número de casos.9

A jurisprudência e a doutrina, aliás, focadas na radiodifusão, não tem enfrentado com minúcias os elementos do tipo penal que incidiria no caso qual seja, o art. 183 da Lei 9.472/1997 para os casos de telecomunicações no sentido da Lei.

É indispensável fazê-lo.

O crime é de perigo abstrato, mas perigo a que?

Ao bem jurídico tutelado, que resta enfrentar qual seja.

São, sem dúvidas, as telecomunicações enquanto serviço da União, que pode ser concedido, permitido ou autorizado, mas, como imediatamente se demonstrará, que utilizem radiofrequência ou satélite (que não deixa de se comunicar por meio de ondas eletromagnéticas).

Isso está expresso no parágrafo único do art. 184 que integra o elemento normativo “clandestina” do art. 183, verbis:

“Parágrafo único. Considera-se clandestina a atividade desenvolvida sem a competente concessão, permissão ou autorização de serviço, de uso de radiofreqüência e de exploração de satélite”.

O óbvio, o patente, o expresso fica difícil de demonstrar.

Mas não o é no caso em tela porque há outros elementos interpretativos corroborando o que a lei claramente dispõe. É ela mesma, no art. 131 da mesma lei, que ao disciplinar a figura da autorização, conclui “... acarretará o direito de uso das radio frequências necessárias”.

Em suma, o foco da legislação continua sendo o cuidado quanto à utilização do espectro eletromagnético, porque esse é que bem jurídico relevante, predominante e que justifica a incriminação.

O bem jurídico tutelado, portanto, pelo crime do art. 183, é o serviço de telecomunicações que utiliza radiofrequências ou satélite (que também faz uso delas).

Mas e os demais princípios da Lei Geral, a continuidade, a integração a universalidade etc., não são também tutelados?

No plano penal são, mas desde que a atividade se utilize do espectro.

Há outros elementos, ainda.

Nos processos de radiodifusão clandestina é realizado laudo para constatar não somente a falta ou irregularidade da atividade, mas também que a utilização pode causar interferência em outros usuários do mesmo canal.

Isso porque, se não puder causar interferência, não haverá risco e, consequentemente, não há crime a considerar.

Mesmo os crimes de perigo abstrato, como dito em item anterior deste parecer, exigem, em tese, a possibilidade de lesão, que não existe, no caso do art. 183, se não há possibilidade de interferência em outros usuários.

Não é, portanto, qualquer mera irregularidade formal e administrativa que enseja a incidência do tipo penal, mas a que pode colocar em risco o serviço em geral.

Na mesma linha de pensamento, qual seja, o de que para ocorrência do crime há necessidade de perigo, o projeto de novo Código Penal apresentado no Senado, coloca o atual crime do art. 183 no Títulos os Crimes Contra a Incolumidade Pública, a confirmar a necessidade de perigo e reitera que se considera clandestina “a atividade a atividade desenvolvida sem a competente concessão, permissão, ou autorização de serviço, de uso de radiofreqüência e de exploração de satélite” (art. 199, § 1º, II, do Projeto) (grifos nossos).

Ademais, não há identidade entre o “clandestino”, que é o oculto, o dissimulado, o dolosamente irregular, o de má-fé, com a simples irregularidade formal.

Os termos “clandestinamente”, “clandestina” foram introduzidos pela Lei 9.472/1997, inexistindo na legislação anterior. Se assim fez o legislador é porque tem significado, distinguindo-o do simples não atendimento à regulamentação formal.

E não pode o intérprete, nem mesmo o legislador, alterar a natureza das coisas.

E como bem decidiu o Supremo Tribunal Federal em memorável acórdão relatado pelo Ministro Luiz Galotti no Recurso Extraordinário 71.758, com as devidas adaptações:

“Se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição”.

Aliás, ruiria todo o sistema jurídico e o que vale para o legislador, vale, também, para o intérprete.

O afastamento do tipo penal, na hipótese, evidentemente não exclui a responsabilidade administrativa da falta de autorização e, ainda, a responsabilidade civil se a atividade causou dano.


4. A questão das rádios clandestinas e comunitárias


O problema é paralelo mas se insere no âmbito da interpretação do crime comentado e da utilização do espectro eletromagnético.

A respeito há duas posições que podem ter consequências interpretativas quanto ao delito de atividade clandestina de telecomunicações.

Uma entende que o espectro eletromagnético é bem da humanidade e que, em princípio, seria de uso comum do povo, mas, tendo em vista sua limitação, é regulamentado para que possa ser utilizada com proficiência e para que não haja abusos. Ao Estado competiria apenas a autorização e fiscalização para o atendimento dessa finalidade. Adotada essa concepção para a “propriedade” do espectro, o crime relativo à utilização indevida somente poderia ser de perigo concreto ou de dano, ou seja: se o espectro é bem da humanidade a sua utilização seria em princípio livre, somente admitir-se-ia a infração penal se a conduta concretamente causasse perigo ou dano na utilização por outro devidamente autorizado.

Outra entende que o Estado ou os Estados, no plano internacional, se apropriaram do espectro e podem conceder, permitir ou autorizar10 a sua utilização, que não é originalmente livre. Neste caso, o crime pode ser de perigo abstrato porque qualquer utilização sem autorização é desde logo uma apropriação indevida e independe de concreto perigo ou dano ao espectro.

Este é o entendimento dominante, inclusive em decorrência de nosso texto constitucional que institui, no art. 21, incisos XI e XII, a competência da União para a exploração dos serviços de telecomunicações, podendo explorá-los diretamente ou mediante concessão, permissão ou autorização, daí a justificativa para que o crime do art. 183 seja de perigo abstrato, presumido em caráter absoluto.

Se o problema das chamadas rádios comunitárias não autorizadas fosse apenas esse a questão estaria resolvida, mas é que, no caso, incide, também, a problemática do direito à livre manifestação do pensamento e à informação.

Esses direitos, consagrados em todos os países democráticos, têm como referencial a primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América do Norte e está consagrado no art. 5º, incisos IV e IX, da Constituição, sendo que este último inciso expressamente assegura a liberdade de comunicação.

Acontece, como se sabe, que nenhum direito ainda que constitucional é absoluto, porque tem de compatibilizar-se, no seu exercício, com outros direitos e com o direito de outros.

No caso, o direito de comunicação, desde que mediante a utilização do espectro eletromagnético, sofre a restrição do art. 21, incisos XI e XII, da Constituição já referido, e a realidade física de que o espectro é limitado e que a utilização de uma frequência não somente é reservada para quem detém a autorização estatal mas também porque qualquer emissão de sinais pode interferir na utilização de outrem, inclusive em serviços de segurança, como o aeronáutico.

Por mais perfeito que seja um aparelho de telecomunicações, pode gerar interferência além da faixa que se propõe a utilizar, de modo que é adequada a necessidade de autorização para o uso e, consequentemente o crime pela utilização clandestina.

Para compatibilizar o direito à comunicação e o interesse de assegurar uma radiodifusão livre comunitária com a correta utilização do espectro, foi editada a Lei 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que, além de outros requisitos manteve a exigência da autorização pelo órgão competente regulador da atividade de telecomunicações. Como explica André Studart Leitão:11 

“Para uma rádio ser considerada comunitária é imprescindível o preenchimento de requisitos: a autorização de funcionamento, pressuposto constitucional de existência, ante a exegese do art. 21, XII, alínea ‘a’, da Carta Magna, bem como o perfeito ajuste às disposições previstas na Lei 9.612/98”. 

Se não respeitar essas exigências, que culminam com a necessidade de autorização administrativa atestatória do seu cumprimento, a rádio é clandestina e, portanto, os agentes da atividade incidem na prática do crime do art. 183 da Lei 9.472, de 16 de julho de 1997. Não é possível, no caso, alegar o direito à liberdade de expressão ou comunicação, porque prevalece a regra constitucional da proteção ao espectro eletromagnético.

Rádio comunitária, portanto, é a que legitimamente está autorizada segundo os parâmetros legais. Fora disso será clandestina e é farta a jurisprudência reconhecendo a ilegalidade dessa situação.

Por todos, V. o já citado acórdão ACR 503 SP 2005.61.27.000503-0, e o Acórdão em AgRg no HC 258842/SP, observa-se também o Agravo Regimental no Habeas Corpus12,  do qual se extrai o seguinte teor:

“Esta Corte possui o entendimento pacífico de que "a prática de atividade de telecomunicação sem a devida autorização dos órgãos públicos competentes subsume-se no tipo previsto no art. 183 da Lei 9.472/97; divergindo da conduta descrita no art. 70 da Lei 4.117/62, em que se pune aquele que, previamente autorizado, exerce a atividade de telecomunicação de forma contrária aos preceitos legais e aos regulamentos”. 

O paciente foi condenado por “desenvolver clandestinamente atividade de telecomunicação” (fl. 52), pois operava rádio comunitária sem a devida autorização da autoridade competente, o que atrai a incidência do art. 183 da Lei 9.472/1997.13 

Sob outro aspecto, tem decidido o Superior Tribunal de Justiça em AgRg no HC 260074/BA, AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS 2012/0248254-5, que não se aplica o princípio da insignificância ao crime de radiodifusão clandestina considerando-se tratar de crime de perigo abstrato. E mais amplamente em AgRg no AREsp 395249/SP, AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2013/0309940-5.

Como temos sustentado, porém, em outras oportunidades, os crimes de perigo abstrato não excluem a possibilidade de ocorrer a figura do crime impossível. Afirmando inadequadamente ser o caso de insignificância, o Supremo Tribual Federal, em STF, 2ª Turma, HC 115729 (18/12/2012), entendeu de desconsiderar o crime em hipótese em que a emissão de ondas eletromagnéticas claramente não poderiam causar interferências. Ora, a conclusão absolutória está correta, mas a solução não é pela aplicação do princípio da insignificância, mas de crime impossível pela absoluta impropriedade do meio.


5. Conclusões


Do exposto conclui-se:

(a) O bem jurídico tutelado pelo crime do art. 183 da Lei  9.472, de 16 de julho de 1997 é a integridade de utilização do espectro eletromagnético;

(b) Não há o crime se o serviço ou atividade de telecomunicações, ainda que não autorizada, não utiliza, em qualquer de suas fases o referido espectro, restando, apenas, a responsabilidade administrativa e eventual responsabilidade civil se causou prejuízo;

(c) As chamadas Rádios Comunitárias, devem ser autorizadas e respeitar as exigências da Lei 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, sob pena de serem clandestinas e seus responsáveis incidiram nas penas do art. 183 da Lei 9.472, de 16 de julho de 1997.

Não se aplica ao art. 183 da Lei nº 16 de julho de 1997 o princípio da insignificância por se tratar de crime de perigo abstrato, mas a situação não é incompatível com a existência de crime impossível, em virtude da absoluta impropriedade do meio.


Notas

  GRECO FILHO, Vicente. Curso de direito das telecomunicações. Revista Justitia do Ministério Público de São Paulo, v. 88.

  Já se sustentou que os crimes de perigo abstrato seriam inconstitucionais por violação do princípio da lesividade, mas essa alegação jamais foi reconhecida e estão eles aí em grande quantidade especialmente na sociedade moderna chamada, impropriamente, de “sociedade de risco”.

  BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato, p. 257.

  GRECO, Vicente Filho. Tóxicos: prevenção e repressão, p. 183.

  ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal, pp. 18-19.

  Idem, p. 61.

  CARMO, Maria Lina Silva do. Exploração clandestina de serviços de radiodifusão: tipificação e competência.

  8Conforme TEIXEIRA, Francisco Dias. Crime em telecomunicações. Boletim dos Procuradores da República, nº 21, pp. 6-14 e LEITÃO, Andre Studart. Do crime das rádios clandestinas. 

  V., por todos, TRF3, ACR 503 SP 2005.61.27.000503-0, rel. Des. Fed. Cotrim Guimarães, 06.09.2011.

 10 Note-se que os conceitos de concessão, permissão e autorização no Direito das Telecomunicações é diferente dos conceitos tradicionais do Direito Administrativo.

11 Disponível em: .

12  STF, Ag. Reg. HC 101.468/RS, 3ª Seção, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 10.09.2009.

13 AgRg no REsp 1.113.795/SP, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 13.08.2012; CC 94.570/TO, rel. Min. Jorge Mussi, j. 18.12.2008.


Referências

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TEIXEIRA, Francisco Dias. Crime em telecomunicações. Boletim dos Procuradores da República, nº 21, 2000, pp. 6-14.


Citação

GRECO FILHO, Vicente. O crime de telecomunicação clandestina. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/421/edicao-1/o-crime-de-telecomunicacao-clandestina

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Tomo Direito Penal, Edição 1, Agosto de 2020