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Aborto
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Édson Luís Baldan
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Tomo Direito Penal, Edição 1, Agosto de 2020
De maneira genérica, o abortamento (ou aborto) consiste na anormal interrupção do processo de gravidez. Trata-se, pois, de evento em que ocorre a morte do fruto da concepção (ovo, feto ou embrião) com ou sem sua expulsão do organismo materno. Pode esse anormal ou precoce desfecho da gestação, com o necessário óbito do nascituro, vir, basicamente, determinado por causas naturais (aborto espontâneo) ou, ainda, por condutas humanas involuntárias (aborto acidental) e, por fim, por comportamentos voluntários lícitos (aborto legal) ou ilícitos (aborto criminoso), sobre a última hipótese concentrando-se o interesse maior do Direito Penal. A intervenção penal justifica-se, no caso, pela existência de vida humana intrauterina, digna de tutela jurídica, além da necessidade de proteção à vida ou integridade física, também, da gestante. Trata-se de infração penal destinatária de tratamento jurídico alterado no espaço e no tempo, igualmente sendo tema de intenso e persistente debate ético, em várias nações, quanto à necessidade e conveniência da incriminação. O Direito Penal brasileiro, historicamente, pune a prática do aborto, como regra, admitindo-a apenas em três situações excepcionais: perigo à vida da gestante; gravidez resultante de estupro; inviabilidade do feto por anencefalia. As duas primeiras hipóteses permissivas decorrem de originárias disposições legais, ao passo que a derradeira veio acrescida por norma jurisprudencial emanada do Supremo Tribunal Federal. Em obediência ao princípio da individualização da pena, existe modulação, na espécie e quantidade, das sanções penais cominadas em correlação às diversas condutas tipificadas no Título I, Capítulo I, do Código Penal brasileiro, basicamente a partir do protagonismo da própria gestante, ou da existência ou não de seu consentimento para as práticas abortivas ou, ainda, à superveniência de eventuais repercussões colaterais destas sobre o organismo da mãe.
1. Etimologia e conceito
Rigorosamente, malgrado a pragmática linguística consolidada e a terminologia legal adotada, existe distinção entre os vocábulos “aborto” e “abortamento” (“partus abactus, crimen procurati abortus”). Croce e Croce Jr1 esclarecem que "abortamento" corresponde ao ato de abortar, isto é, ao conjunto de meios e manobras empregado para interrupção da gravidez, enquanto que “aborto” (do latim ab + ortus = privação de nascimento; de aboriri = desaparecer) identifica o produto da concepção, morto ou inviável, dali resultante.
Os mesmos autores ressalvam, ainda, uma divergência entre a Obstetrícia e a Medicina Legal para o conceito de aborto. Para a primeira, o aborto consiste da interrupção da gravidez, espontânea ou propositada, desde o momento da fecundação do óvulo pelo gameta masculino até a 21ª semana de gestação. Desta fase e até a 28ª semana, falar-se-á em parto imaturo e, por fim, denominar-se-á parto prematuro a interrupção ocorrente desde a 29ª até a 37ª semana. Para a Medicina Legal, no entanto, não importa o período gestacional em que venha a ocorrer a interrupção da prenhez, podendo verificar-se desde o momento da fecundação até o termo, no nono mês, inexistindo, assim, os conceitos de parto imaturo e prematuro. Na definição sintética de Maranhão2 "entende-se por aborto a interrupção da gravidez por morte fetal, em qualquer fase do ciclo gravídico", não mais se cogitando analisar a questão relativa à expulsão do feto, hoje considerada desnecessária para configuração do aborto.
2. Concepções jurídicas pela criminalização do aborto
A doutrina penal clássica3 aponta duas concepções orientadores da incriminação do aborto. A mais antiga, praticamente inalterada desde a Idade Média, faz consistir o aborto na morte do feto (dentro ou fora do útero) pelas manobras abortivas. Vista no feto uma spes personae (vida de pessoa humana em formação), seria de se outorgar a proteção penal contra os atos atentatórios a essa vida biológica. Tal concepção unilateral, olvidando poder ser também a mãe sujeito passivo do crime, não satisfazia, por si só, as exigências de uma previdente política criminal, passando a justificar-se a punição do aborto não apenas por importar na extinção daquele ser humano ainda imperfeito (spes personae), mas, igualmente, por colocar em perigo a vida da mulher, à qual podem resultar grandes males e, até, a morte. Assim, nas legislações subsequentes, integraram-se as duas concepções e convencionou-se o duplo aspecto do aborto: de um lado, o homicídio ou periclitação do feto; de outro, a periclitação da mulher grávida.
Mirabete4 sintetiza as razões que normalmente são apontadas para defesa da liberação do aborto: “um país que não pode manter seus filhos não tem o direito de exigir seu nascimento; ameaça penal é ineficaz porque o aborto raramente é punido; a proibição raramente leva a mulher a entregar-se a profissionais inescrupulosos; a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo”. Ademais, acrescenta ele, atualmente inúmeros são os países que não mais criminalizam o aborto praticado em estágios iniciais da gravidez: Suécia, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Hungria, Japão, Estados Unidos, dentre outros. Aduz Barros5 que se costuma, também, argumentar que a punição pelo aborto incide apenas sobre mulheres de classe social inferior, haja vista que as de classes média e alta podem recorrer ao aborto em clínicas médicas especializadas com possibilidade maior de impunidade.
Os argumentos dos que advogam pela manutenção da proibição pendem, não raro, a motivações de fundo religioso, como faz Greco6 que se posta entre os defensores da vida, eis que, com a gravidez, uma nova vida começa a crescer. Segundo esse penalista, arrimado nos escritos bíblicos, não se pode, salvo em situações excepcionais, subtrair a vida a um semelhante, independentemente de seu tamanho, pois existe um propósito divino em cada ser humano. Para o mesmo autor, por não existir, no delito de aborto, a percepção da dor sofrida pelo nascituro, aceita-se sua morte com tranquilidade, pois não se presencia, enxerga ou ouve seu sofrimento. Conclui ele que a vida deve ser preservada, não importando se se trata de um ser com dez dias de vida, ainda no interior do útero materno, ou de alguém com dez anos de idade.
Atualmente o Código de Direito Canônico, promulgado por S.S. o Papa João Paulo II, estabelece em seu Cânon 1398 que "quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão 'latae sententiae'", figurando tal conduta dentre os delitos contra a vida e a liberdade do homem, definidas no Título VI.
3. Evolução histórica
Como historiado por Hungria7, conquanto praticado em todos os tempos, o aborto nem sempre foi objeto de incriminação, restando em regra impune, salvo a superveniência de dano à saúde ou morte da gestante. Entre o povo hebreu, somente depois da lei mosaica considerou-se ilícita a prática do aborto, pois, até então, a punição era aplicada apenas em caso de aborto, mesmo não intencional, decorrente de violência, prevendo o Livro do Êxodo (capítulo 21, versículo 22) que, se dois homens em peleja, ferissem mulher grávida, deveria ser aplicada a pena de multa pelo aborto ou, em caso de morte também da mulher, igualmente a morte ao ofensor.
Na Grécia, malgrado o juramento de Hipócrates ("a nenhuma mulher darei substância abortiva"), a prática do aborto era corrente e se difundiu por todas as camadas sociais, existindo profusa lista de substâncias abortivas e anticoncepcionais. Ali, Aristóteles aconselhava o aborto (desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma) para garantia do equilíbrio entre população e meios de subsistência (numa visão predecessora de Malthus). Platão, de modo similar, preconiza o aborto à mulher que concebesse após os quarenta anos de idade.
Também em Roma o aborto tornou-se comuníssimo, mesmo nas classes sociais mais elevadas, inexistindo sua previsão na Lei das XII Tábuas e nas Leis da República. O feto era considerado parte do corpo da gestante e não ser autônomo, de modo que a mulher apenas dispunha de seu próprio corpo ao abortar. Posteriormente, com Septimio Severo, passou-se a considerar o aborto uma ofensa ao direito do marido à prole, havendo cominação, até, de pena capital à mulher que tivesse "destruído a esperança de um pai, a memória de um nome, a garantia de uma raça, o herdeiro de uma família e um cidadão destinado ao Estado".
A reprovação social ao aborto viu-se consolidada definitivamente com o Cristianismo, sendo o aborto criminoso assimilado ao homicídio, sob Adriano, Constantino e Teodósio. No início da Idade Média, com fundamento em Aristóteles, pregava Santo Agostinho que o aborto somente seria reputado crime se o feto já houvesse recebido alma, após 40 dias (se homem) ou 80 dias (se mulher) após a concepção. Inadmitindo qualquer distinção, São Basílio, com base na Vulgata, e preconizava ser sempre criminosa a prática abortiva. Os Penitenciais tratavam com graus de severidade diferentes a expulsão do corpus formatum (equiparado a homicídio) e o aborto do corpus informatum (menos grave). Os canônes de São Gregório estabeleciam que a morte ao feto inanimado deveria ser punida com pena extraordinária, ao passo que ao aborto dado ao feto animado corresponderia o extremo suplício. Preocupava-se o Direito Canônico com a perda da alma do nascituro que morria sem o batismo.
Consoante narra Aníbal Bruno8 foi do Iluminismo que derivou o movimento pela atenuação das penas impostas ao aborto, com reflexos nas legislações subsequentes. No Brasil, o Código Criminal do Império 1830 não incriminava a conduta do autoaborto, mas tão somente a do aborto promovido por terceiro, com ou sem consentimento da gestante. O Código Republicano de 1890, a seu turno, cominava punição mais rigorosa ao aborto em que ocorria a expulsão do feto, com reprovação ainda maior caso sobreviesse a morte da mulher. Mesmo o aborto praticado pela própria mãe era punido, conquanto atenuada a pena na hipótese de ter sido o crime praticado para ocultação de desonra própria. A esse diploma seguiu-se, na década de 1940, o Código Penal ainda vigente que manteve a incriminação do aborto como regra.
4. Condições jurídicas do crime de aborto
São apontadas pela clássica doutrina pátria9 quatro elementos essenciais à configuração do crime de aborto.
4.1. Dolo
Encontra-se tipificada apenas a figura dolosa do aborto, isto é, pelo delito responderá unicamente o agente animado pela vontade livre e consciente de interromper a gravidez e ou eliminar o produto da concepção, ou, ao menos, pela anuência ao previsto advento desses resultados. Inexiste figura culposa autônoma do crime. As figuras preterdolosas, a sua vez, trazem como antecedente doloso a ofensa à integridade física da mulher e como consequente culposo o resultado aborto ou aceleração de parto, estando previstas como formas qualificadas de lesões corporais (Código Penal, arts. 129, § 2°, V, e § 1°, IV, respectivamente).
4.2. Estado fisiológico da gravidez
A gravidez, como estado fisiológico da mulher que carrega dentro de si o produto da concepção, inicia-se com o depósito do espermatozoide na vagina (pela cópula ou artificialmente), seguido de seu avanço e penetração no útero, donde sobe até a tuba uterina, local em que, encontrando o óvulo, fecunda-o e origina o ovo (unidade primeira devida). No terço proximal da tuba uterina o ovo se desenvolve até a fase de blastócito e, num prazo aproximado de oito dias, chega ao útero para a nidação. Encerra-se a prenhez com o início do parto, demarcado, pela Obstetrícia, pelo início das contrações uterina rítmicas e, para fins jurídicos, com a rotura da bolsa amniótica.10 Dessas anotações médico-legais decorre a conclusão de que o crime de aborto apenas poderá ter lugar no período compreendido entre a nidação até o início do parto. Práticas contraceptivas executadas antes do fenômeno da nidação serão reputadas indiferentes penais (por exemplo a chamada "pílula do dia seguinte" e os dispositivos intrauterinos, DIUs). A sua vez, manobras tendentes à morte do feto após o rompimento do saco amniótico poderão vir tipificadas como homicídio ou infanticídio, jamais como aborto, em quaisquer de suas modalidades.
A prova médico-legal da gravidez, atual ou pretérita, em maior ou menor grau de certeza, pode ser promovida por várias maneiras. Montanaro11 aponta que são observáveis sinais de gravidez pregressa, como a presença de colostro (primeiro leite da parida), mamas ingurgitadas (cheias), hiperpigmentação na linha alba do abdômen e cloasma (placa de contornos irregulares) gravídico nas faces, bem como víbices (estriações paralelas) em ambos os flancos abdominais, decorrentes da distensão da parede abdominal até o limite de sua elasticidade. As gonadotrofinas coriônicas (hormônios placentários) permanecem presentes por algum tempo no sangue e menos na urina, por volta de cinco dias. Num crescendo de prova da gravidez, tem-se: (a) orientação: amenorreia (ausência de menstruação) e alterações de paladar; (b) probabilidade: aumento progressivo do volume uterino, marcha anserina pelo desequilíbrio do centro de gravidade, alterações sanguíneas da gonadotrofina; (c) presença do feto intraútero, parto.
Uma gravidez putativa (existente unicamente no âmbito da representação mental do agente mas não no plano da realidade) impede a tipificação penal de aborto, consubstanciando hipótese de tentativa impunível, ou crime impossível, pela impropriedade absoluta do objeto material, nos termos do art. 17 do Código Penal, vez que ausente o bem jurídico tutelado pela norma (vida humana intrauterina). Nesse cenário é possível, no entanto, a punição do terceiro por crime contra a integridade física ou a vida da mulher equivocadamente presumida grávida. A mesma solução jurídica12 deve ser emprestada aos casos de gravidez extrauterina (desenvolvida no ovário, fímbria, trompas ou parede uterina) ou de gravidez molar (formação degenerativa do óvulo fecundado) pois nesses quadros o produto da concepção não atingirá vida própria.
4.3. Emprego de meios dirigidos à provocação do aborto
Ao definir as condutas típicas pela expressão "provocar aborto" (Código Penal, arts. 124, 125 e 126), o legislador designou a ação física ilícita como a de dar causa, promover, produzir, originar a morte do ovo, embrião ou feto, seja no claustro materno, quer depois de sua expulsão, devendo essa ação ser desenvolvida em momento anterior ao parto, pois com o início deste, o crime atribuível ao agente será o de infanticídio ou de homicídio.13
O crime de abortamento, em suas várias aparições jurídicas, classifica-se doutrinariamente como sendo de dano e de resultado material, disso decorrendo que, necessariamente, a conduta ilícita provoca alterações no mundo físico. Para a prática da interrupção da gravidez pode o agente valer-se de inúmeros modos e meios. Os mais comumente relatados pela doutrina médico-legal14 são os seguintes: (a) provocação de contrações uterinas (métodos físicos, substâncias abortivas, punção das membranas ovulares, injeção intrauterina, corrente elétrica por faradização ou galvanização; (b) provocação de dilatação do colo (laminárias, balões, esponjas, dilatadores metálicos, histerectomia vaginal; (c) provocação de deslocamento do ovo (pinças abortivas, curetagem digital, raspado instrumental); (d) provocação de extração do ovo (pinças abortivas, curetagem digital, raspado instrumental, expressão abdômino-vaginal); (e) emprego de cirurgia (pequena cesárea abdominal, amputação supravaginal, pequena cesárea vaginal); (f) provocação da destruição fetal (raios X, injeção de formol na bolsa amniótica). As substâncias químicas empregadas podem variar enormemente e, por vezes, delas ocorre intoxicação grave e até letal da gestante. Os agentes químicos, igualmente, são multiformes: calor, eletricidade, traumas diretos e indiretos, além de intervenção sobre o ovo. A praxe revela que o uso de químicos é usual em inexperientes, ao passo que os agentes físicos são processados por contumazes.
Na hipótese de o meio eleito pelo agente apresentar-se como absolutamente inidôneo à provocação da interrupção da gravidez, ter-se-á uma conduta tentada impunível pela ineficácia absoluta do meio, consoante disposição do art. 17 do Código Penal, pela ausência de risco ou lesão ao bem jurídico protegido.
4.4. Morte do feto
Se o objeto jurídico tem a ver com o bem corpóreo ou incorpóreo sobre o qual a sociedade deposita valor e que, por consequência, recebe tutela penal subsidiária, o objeto material da infração penal diz respeito à pessoa ou coisa atingida pela conduta típica. Tem-se, pois, como objeto material do crime de aborto o produto da concepção: ovo (nas três primeiras semanas de gestação); embrião (nos três primeiros meses) e feto (após esse período), embora a viabilidade sobrevenha a partir do sexto mês de gestação.15 Também o organismo da gestante figura como objeto material do crime, porque as manobras abortivas, por implicar em intervenção corporal obrigatória na mãe, podem gerar lesão à integridade física, à saúde e, mesmo, à vida desta.
Opera-se a consumação do crime de aborto com a morte do ovo, embrião ou feto. Caso ocorra, como produto da ação do agente animado pelo dolo de aborto, a mera expulsão do nascituro, desacompanhada de seu superveniente óbito, possível falar-se em tentativa de aborto, vez que, neste caso, ocorreu, propriamente, uma aceleração do parto e não, rigorosamente, aborto. Montanaro16 leciona que, para o diagnóstico pericial de abortamento, devem ser estudados tanto o feto quanto a mãe. Na mãe serão pesquisados sinais locais de manipulação uterina, com sangramento pelo colo, sinais de trauma nas paredes da vagina, grande relaxamento do períneo. Tratando-se de mulher multípara (que concebeu vários filhos) ou se o abortamento deveu-se tardiamente, o hímen reduz-se a pequenas cicatrizes (carúnculas himenais ou mirtiformes). No feto pode ser encontrada a maceração (prova de permanência do feto já morto dentro do útero) com disjunção dos ossos cranianos e a autólise precoce das estruturas internas do organismo, notadamente do encéfalo. Pelo "Índice de Haase" relaciona-se o comprimento do feto com o quadrado da idade gestacional, auxiliando no estudo se a termo (caso de infanticídio ou homicídio) ou abortamento. A clássica "Docimasia Hidrostática de Galeno", se negativa, prova cabalmente que o feto não chegou a respirar fora do útero e, por conseguinte, foi expelido morto, requisito essencial para configuração do abortamento. Por outro lado, afasta a ocorrência de aborto a "Geleia de Warton" (estrutura de sustentação do feixe vascular do cordão umbilical) a demonstrar sinais de sofrimento intrauterino, indicando problema relacionado à própria gestação.
5. Bem jurídico tutelado
A objetividade jurídica é a vida humana intrauterina do ovo, feto ou embrião. Como assevera Frederico Marques,17 trata-se de crime contra a vida, sendo sujeito passivo o spes personae, o nascituro, o produto da concepção (infans conceptu pro nato habetur), não importando se se trata de óvulo no primeiro mês ou feto de oito meses. Como adverte Bitencourt18 comparativamente ao crime de homicídio, existem duas particularidades, uma em relação ao objeto da proteção legal (pois não é a pessoa humana que se protege, mas sua formação embrionária) e outra quanto ao aspecto temporal (tutela-se a vida humana intrauterina, ou seja, desde a concepção até momentos antes do início do parto). Também na esfera civil o nascituro goza de proteção jurídica, nos termos dos arts. 1609, 1611 e 1799 do Código Civil.
Natural que a proteção penal deva entender-se estendida, igualmente, à integridade física, à vida e à liberdade individual (autodeterminaçao) da mulher gestante.
6. Classificação jurídica
6.1. Aborto natural ou espontâneo
É a interrupção da gravidez provinda de causas patológicas, operando espontaneamente, visto que uma toxemia (auto-intoxicação) resultante de dejetos da vida fetal bastam, por si só, às vezes, a matar o feto ou embrião.19
6.2. Aborto acidental
Trata-se do aborto provocado por ato não intencional que, em geral, desencadeia energia vulnerante exógena suficiente a produzir trauma hábil a interromper o processo gestacional, com a morte do nascituro.
6.3. Aborto provocado
Ao contrário dos anteriores, não decorre de reação natural do organismo da gestante ou de mero infortúnio por acidente, resultando, agora, de conduta deliberada, lícita ou ilícita, de terceiro, com ou sem colaboração da gestante.
6.3.1. Aborto provocado criminoso
(a) Autoaborto
A primeira parte do art. 124 do Código Penal define a conduta de “provocar aborto em si mesma”, com a previsão de pena de detenção, de um a três anos. A doutrina penal classifica esse crime como sendo de mão própria, ou de conduta infungível, porque somente pode ser praticado pela própria gestante. O terceiro pode eventualmente atuar como partícipe, induzindo, instigando ou prestando auxílio material à gestante (mas não ao ato de aborto em si). Todavia, caso o estranho pratique com a mãe atos executórios de aborto, deverá ele responder pelo crime de aborto consentido (art. 126) e não como coautor de autoaborto (num rompimento da regra estabelecida pela teoria monista expressa no art. 29 do Código Penal).
(b) Consentimento para o aborto
A parte final do citado art. 124 incrimina a conduta da gestante que, não tendo provocado o aborto em si mesma, vem a "consentir que outrem lho provoque", cominando-se a mesma sanção de detenção, de um a três anos. A punição criminal, neste caso, recai sobre a gestante em razão de sua conduta de prestar anuência a terceiro que procederá, por qualquer meio, sem auxílio da mãe, à interrupção da gravidez. Nesta hipótese, como exceção da teoria monista adotada pelo Código Penal (art. 29) para disciplinar o concurso de agentes, responderá a gestante por esta figura, ao passo que o executor das manobras abortivas incidirá nas penas previstas ao crime de aborto consentido (art. 126).
(c) Aborto sofrido ou dissensiente
No art. 125 encontra-se definida a conduta daquele que, ao “provocar aborto, sem o consentimento da gestante”, sujeita-se a uma pena de reclusão, de três a dez anos. Como ressalta Frederico Marques,20 neste crime a gestante não tem qualquer participação na ação delituosa mas, ao revés, também ela sofre em seu corpo e em suas entranhas a ação daquele que realiza as manobras abortivas, sendo correto dizer que a mulher figura igualmente como sujeito passivo do delito pois a conduta dirige-se ao feto e à pessoa da gestante. Nesta figura típica a gestante tampouco presta seu consentimento para a morte do nascituro, daí o rigor maior da sanção penal cominada.
(d) Aborto consentido
O tipo penal veiculado pelo art. 126 prevê a pena de reclusão, de um a quatro anos ao que “provocar aborto com o consentimento da gestante”. Como mencionado, elementar desse tipo penal é a preexistência do consentimento, expresso ou tácito, da gestante que aceita, até o final da ação, a interrupção de sua prenhez, objetivando a morte do ovo, feto ou embrião. Entretanto, para que não responda o agente pelas sanções mais severas previstas no art. 125, mister que essa anuência seja válida, isto é, emanada de pessoa capaz que dispõe livremente de sua vontade. Do parágrafo único do art. 126 extrai-se que deve presumir-se a invalidade do consentimento se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Assim, caso a gestante possua idade igual ou inferior a 14 anos, ou então, situada em qualquer faixa etária, seja portadora de qualquer deficiência ou insuficiência mental que lhe subtraia a capacidade de discernimento para consentir, de nada aproveitará a anuência conferida. Por derradeiro, independentemente da idade ou da higidez psíquica da gestante, o consentimento será igualmente imprestável se obtido mediante fraude (engodo), grave ameaça (violência moral) ou violência real.
(e) Aborto dissensiente ou consentido qualificado pelo resultado
O art. 127 dispõe que “as penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte”. Cuida-se de crime preterdoloso em que o resultado qualificador somente pode ser atribuído ao agente mediante culpa, haja vista que, presente o dolo (direto ou indireto), responderá o agente em concurso de infrações entre a figura do aborto e as previsões típicas autônomas de lesões corporais (art. 129) ou de homicídio doloso (art. 121).
6.3.2. Aborto provocado legal ou permitido
O art. 128, cerrando o capítulo, traz duas normas penais permissivas, prevendo duas hipóteses em que “não se pune o aborto praticado por médico”. A despeito da criticável redação, reconhece a doutrina que a natureza jurídica dessa norma é de causa de exclusão de ilicitude ou antijuridicidade (e não de culpabilidade).
(a) Aborto terapêutico ou necessário
A primeira justificante refere-se ao aborto praticado pelo médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e, como pondera Barros,21 são necessários três requisitos para sua perfeita configuração:
(a) perigo real à vida (e não apenas à saúde) da gestante, podendo, todavia a intervenção ser profiláctica ou curativa;
(b) inexistência de outro meio para salvar-lhe a vida, pois caso a ocisão do feto não seja imprescindível, subsistirá o crime;
(c) execução do aborto por médico, sendo dispensável o prévio consentimento da gestante. Embora se trate de manobra estritamente médica, possível afastar-se o caráter criminoso da conduta executada por pessoa sem habilitação médica, enfermeira ou parteira, por exemplo, hipótese em que não se falará desta excludente excepcional mas, corretamente, do estado de necessidade, igualmente justificante, previsto no art. 24 do Código Penal.
(b) Aborto humanitário ou sentimental
A segundas causa de exclusão da antijuridicidade refere-se ao cenário em que a “gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Para Franco,22 nesse caso o aborto será lícito se houver a demonstração cabal de que a gravidez resultou de estupro, exigindo-se, ainda, o consentimento da gestante ou de seus representantes legais, sem a necessidade, todavia, de autorização judicial. Por interpretação extensiva perfeitamente admissível, legal será o aborto no caso de não se tratar de estupro (art. 213) mas sim de estupro de vulnerável (art. 217-A), isto é, a agressão sexual contra pessoa menor de 14 anos de idade, ou vítima que, por enfermidade ou deficiência mental, não possui o necessário discernimento para a prática, ou, ainda, que, por qualquer motivo, não pode opor resistência.
(c) Antecipação de nascimento de feto anencéfalo
Em Alegação de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF-54/DF, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento realizado aos 12.4.2012, decidiu, por maioria de votos, declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo possua tipificação nos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal. Antes disso, escrevendo sobre o aborto eugenésico em casos de graves anomalias do feto (má formação congênita, agenesia renal, abertura de parede abdominal, etc), obtemperou Mirabete23 que a “inviabilidade da vida extrauterina do feto e os danos psicológicos à gestante justificam tal posição, apoiando-se na tese da existência da possibilidade de aborto terapêutico e outros no reconhecimento da excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta diversa”. Importante a ressalva de Bitencourt24 quanto a não se tratar de obrigação a constranger a gestante, mas, sim, uma faculdade que, se não desejar, não precisará invocar, podendo aguardar o curso natural do ciclo biológico, sem estar
“‘condenada’ a abrigar dentro de si um tormento que a aniquila, brutaliza, desumaniza e destroi emocional e psicologicamente, visto que, ao contrário de outras gestantes, que se preparam para dar à luz a vida, regozijando-se com a beleza da repetição milenar da natureza, afoga-se na tristeza, no desgosto e na desilusão de ser condenada a – além da perda irreparável – continuar abrigando em seu ventre um ser inanimado, disforme e sem vida”.
A partir desse permissivo legal, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1.989/12, de 10.05.2012, disciplinou os procedimentos médicos para diagnóstico da anencefalia e consequente antecipação terapêutica do parto.
6.4. Aborto eugênico ou eugenésico
Visto como um dos processos de seleção de raça, visando a eliminar indivíduos classificados como “prejudiciais”, assenta em razões ligadas à hereditariedade, recebendo tal denominação em lei dinamarquesa de 18 de maio de 1937, quando se permitiu o aborto em situação de perigo certo de que o filho, em razão de predisposição hereditária, padeceria de enfermidade mental, imbecilidade, grave perturbação psíquica, epilepsia ou outra enfermidade corporal perigosa ou incurável.25 Essa indicação, não amparada pela legislação penal brasileira, permitiria a interrupção da gravidez quando presentes riscos fundados de que o feto fosse portador de graves anomalias genéticas de qualquer natureza ou, ainda, de outras deficiências físicas ou psíquicas decorrentes da gravidez. Tratar-se-ia de causa de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, obedecidos certos requisitos. De qualquer modo, o advento de norma jurisdicional permissiva (vide item anterior) a legitimar a antecipação de nascimento do feto anencéfalo inviável, reinstaura ou reforça esse debate.
6.5. Aborto econômico ou social
Trata-se da interrupção da gravidez visando a evitar dificuldades sociais e econômicas decorrentes das exigências para a criação do fruto da concepção. Configura conduta socialmente inadequada autorizadora da imputação objetiva do crime de aborto, vez que não deve, no dizer de Galvão27 admitir-se que erros de planejamento familiar sejam corrigidos com a morte do nascituro. No mesmo sentido, França28 entende que o Estado jamais poderia autorizar a ameaça à existência de alguém por motivos dessa natureza, o que configuraria sinal de insensibilidade e desvalorização da vida, impondo-se, por isso, a luta por mudanças sociais e não a permissão ao aborto.
Notas
1CROCE, Delton; CROCE JR, Delton. Manual de medicina legal, p. 434.
2MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal, p. 185.
3SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal, t. I, pp. 104-106.
4MIRABETE, Júlio Fabbrini; MIRABETE, Renato M. Manual de direito penal, p. 59.
5BARROS, Flávio Monteiro de. Direito penal, v. 2, p. 69.
6GRECO, Rogério. Curso de direito penal, v. II, p. 224.
7HUNGRIA, Nelson. Comentário ao Código Penal, pp. 233-236.
8BRUNO, Aníbal. Direito penal, pp. 158-159.
9HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, v. V, pp. 253 e ss.
10FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal, p. 219.
11MONTANARO, Juarez Oscar. Medicina legal para cursos e concursos, p. 110.
12COSTA JR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal, p. 383
13NORONHA, E. Magalhães. Direito penal, v. II, p. 51.
14MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal, pp. 190-194.
15NORONHA, Magalhães. Direito penal, v. II, p. 50.
16MONTANARO, Juarez Oscar. Medicina legal para cursos e concursos, p. 110.
17MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 98.
18BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. II, p. 185.
19MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 184.
20MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 201.
21BARROS, Flávio Monteiro de. Direito penal, v. 2, pp. 85-86.
22FRANCO, Alberto Silva et. al. Código Penal e sua interpretação, doutrina e jurisprudência, p. 669.
23MIRABETE, Júlio Fabbrini; MIRABETE, Renato M. Manual de direito penal, p. 67
24BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, p. 197.
25SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal, t. I, p. 115.
26PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, pp. 104-105.
27GALVÃO, Fernando. Direito penal: crimes contra a pessoa, p. 121.
28FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal, p. 248.
Referências
BARROS, Flávio Monteiro de. Direito penal, parte especial. São Paulo: Saraiva, 2009. Volume 2.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2018. Volume II.
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MONTANARO, Juarez Oscar. Medicina legal para cursos e concursos. São Paulo: Gamatron, 1995.
NORONHA, Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1986. Volume II.
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SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal. Rio de Janeiro: Jose Konfino, 1951. Tomo I: parte especial.
Citação
BALDAN, Édson Luís. Aborto. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/410/edicao-1/aborto
Edições
Tomo Direito Penal, Edição 1,
Agosto de 2020