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Saneamento básico: titularidade, regulação e descentralização
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André Luiz Freire
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Tomo Direitos Difusos e Coletivos, Edição 1, Julho de 2020
No setor de saneamento básico, a questão da titularidade sempre foi bastante debatida. A força do debate diminuiu com a decisão na ADI 1.842/RJ, que – embora não seja muito clara em alguns pontos – trouxe um direcionamento. E este direcionamento foi previsto de modo expresso no art. 8º da Lei 11.445/2007 (“Lei do Saneamento Básico” ou apenas “Lei do Saneamento”), com a alteração feita pela Lei 14.026/2020 (veja o verbete sobre competências constitucionais em matéria de saneamento básico, publicado neste tomo da Enciclopédia). Pelo art. 8º, I e II, são titulares dos serviços públicos de saneamento básico:
(a) os Municípios e o Distrito Federal, no caso de interesse local;
(b) o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões.
Mas o que significa ser o “titular” do serviço público? Quais são as competências que estão incluídas no conceito de “titularidade”? Qualquer pessoa jurídica de direito público poderá ser titular do serviço, inclusive autarquias, ou apenas os entes políticos? E quando houver, nos termos do art. 3º, VI, da Lei do Saneamento uma prestação regionalizada (ex.: região metropolitana, unidade regional de saneamento básico, bloco de referência)? É o Estado ou a entidade administrativa regional o titular do serviço? Dizer que um sujeito é o “titular” do serviço público é o mesmo que qualificá-lo como “Poder Concedente”?
As respostas a essas questões são de extrema importância prática. Afinal, será o titular que editará os atos normativos aplicáveis à prestação do serviço. A delegação por concessão ou contrato de programa é feita pelo titular do serviço. A primeira coisa que um interessado em prestar o serviço por concessão deseja saber é quem é o Poder Concedente. O usuário – se desejar fazer alguma reclamação ou denúncia, por exemplo – precisa saber para quem ele se dirige.
O objetivo deste verbete consiste justamente em indicar quem são os titulares dos serviços de saneamento básico e quais são as formas de descentralização possíveis.
1. O que significa ser o "titular" do serviço de saneamento básico?
Falar que alguém é o “titular” de serviço público significa algumas coisas.
Em primeiro lugar, significa que aquele serviço voltado aos administrados em geral é uma atividade pública (ou estatal). A partir do critério formal (jurídico), uma atividade será pública quando for expressamente atribuída pela ordem jurídica ao Estado como sendo de sua responsabilidade. Não havendo previsão de que a atividade é do Estado, ela será privada e vigerá aqui o princípio da liberdade. No caso das atividades públicas, como estas deverão estar previstas na Constituição e nas leis (nesse último caso, observados certos limites constitucionais), vige um princípio de competência.1
Em segundo lugar, falar que um ente é o titular do serviço público significa que tem a obrigação de estruturar (ou criar) tal serviço em sede legislativa, está obrigado organizá-los administrativamente (por meio de regulamentos e outros atos administrativos individuais e/ou concretos) e de prestá-los concretamente, oferecendo as prestações materiais que configuram o serviço. De forma simples, ter essas competências (legislativas e administrativas) referentes a dado serviço público é o que significa ser o titular do serviço público.
1.1. Um aumento da complexidade...
Em alguns casos, a identificação do ente titular é bastante simples. Num único ente político estão aglutinadas todas as competências legislativas e administrativas de estruturação/criação, organização e prestação.
É o caso do transporte ferroviário de cargas “entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, que transponham os limites de Estado” (art. 21, XII, “d”, da CF). Este dispositivo constitucional atribui à União a competência para explorar, diretamente, ou mediante concessão, permissão ou autorização tal serviço público por determinação constitucional. O mesmo art. 21, inciso XXIII, dispõe ainda ser a União o ente competente para estabelecer os princípios e diretrizes do sistema nacional de viação. Ademais, o art. 22 atribui a tal ente político a competência para legislar sobre as diretrizes da política nacional de transportes (inciso IX) e trânsito e transporte (inciso XI). Dentre as leis da União que tratam do tema, a mais relevante é a Lei 10.233/2001, que disciplina o regime do transporte ferroviário federal e cria a Agência Reguladora de Transportes Terrestres, a ANTT. Esta agência, por sua vez, editou uma série de resoluções que disciplinam as diversas relações relacionadas ao serviço, como, por exemplo, a Resolução 3.694/2011, que aprova o Regulamento do Usuário do Transporte Ferroviário de Cargas. O que importa destacar aqui é o seguinte: no caso do serviço público de transporte ferroviário de cargas interestadual, todas as respectivas competências públicas (legislativas e administrativas) estão concentradas num único ente político: a União.2
Em relação a outros serviços, essa divisão de competências é mais complexa. Isso porque, não há apenas um ente federativo titular de todas as competências públicas relacionadas aos serviços públicos. Esse é justamente o caso dos serviços de saneamento básico.
1.2. A titularidade original das competências referentes aos serviços de saneamento básico
Como já destacado no verbete sobre competências constitucionais em saneamento, a União é a titular da competência legislativa para a edição de normas gerais (art. 21, XX). Já a competência legislativa suplementar, e a competência administrativa para organizar e prestar os serviços será dos Municípios e Distrito Federal, em relação a serviços de interesse local, e será dos Estados quando estiver em pauta região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião. Por isso, quando o art. 8º da Lei 11.445/2007 (alterada pela Lei 14.026/2020) dispõe que são “titulares” os Municípios e os Estados, conforme o caso, é preciso interpretar o dispositivo conforme a Constituição. Em suma, são originalmente titulares:
(a) da competência legislativa voltada à edição de normas gerais: a União;
(b) da competência legislativa suplementar:
(b.1) os Municípios e o Distrito Federal quando a prestação do serviço se circunscrever ao espaço do Município (ou quando for de “interesse local”);
(b.2) os Estados quando houver a necessidade de integração da organização, planejamento e execução, em Municípios limítrofes, de serviços de saneamento básico de interesse comum a estes;
(c) das competências administrativas de organização e prestação:
(c.1) os Municípios e o Distrito Federal, na mesma hipótese de (b.1);
(c.2) os Estados, na mesma hipótese de (b.2);
(d) das competências administrativas de colaboração no âmbito dos serviços de saneamento básico:
(d.1) a União em relação a Estados e Municípios;
(d.2) os Estados em relação aos Municípios.
Note que falamos em titularidade “originária”. A razão para isso é simples: embora as competências legislativas sejam indelegáveis, é possível que os entes políticos acima citados descentralizem a titularidade das competências administrativas de organização e prestação a pessoas jurídicas de direito público. Trata-se de uma descentralização administrativa técnica. Além disso, o exercício de competências de organização também poderá ser objeto de descentralização por colaboração, por meio de convênios, bem como o exercício de competências de prestação por meio dos polêmicos contratos de programa e por contratos de concessão.
Antes de entrar nessas formas de descentralização no saneamento básico, vale descrever um pouco mais sobre o conteúdo de tais competências administrativas.
1.3. O conteúdo das competências administrativas no saneamento básico
Em trabalho anterior3 e no verbete sobre competências constitucionais no saneamento básico, falamos das competências referentes à organização e à prestação do serviço público. Que modalidades de competências públicas estão inseridas dentro das atividades de organização e de prestação de serviços públicos? Vamos dar alguns exemplos aqui, focando no saneamento básico.
1.3.1. Competências administrativas de organização
Em relação às competências públicas de organização dos serviços de saneamento básico, podemos agrupar em dois tipos: competências referentes ao planejamento e à regulação. A utilidade dessa distinção está no fato de que a Lei 11.445/2007 diferencia essas duas dimensões.
a) Planejamento
O art. 9º, I, da Lei do Saneamento dispõe que o titular dos serviços deverá elaborar a política pública de saneamento básico, devendo, dentre outros aspectos, elaborar os planos de saneamento básico (“PSB”). Este PSB pode ser específico para cada um dos quatros tipos de serviços públicos de saneamento básico, devendo abranger, ao menos: (a) o diagnóstico da situação e seus impactos nas condições de vida; (b) os objetivos e metas a curto, médio e longo prazos para a universalização; (c) os programas, projetos e ações necessárias; (d) as ações para emergências e contingências; e (e) os mecanismos e procedimentos para a avaliação sistemática da eficiência e eficácia das ações programadas (art. 19).
O art. 19, § 1º, dispõe que os PSBs deverão ser compatíveis com os planos das bacias hidrográficas e com os planos diretores dos Municípios em que estiverem inseridos. Eles também deverão ser compatíveis com os planos de desenvolvimento urbano integrado das unidades regionais por eles abrangidas.
A Lei 11.445/2007 determina ainda, em seu art. 19, § 4º (com redação dada pela Lei 14.026/2020), que os PSBs deverão ser revistos periodicamente, em prazo não superior a 10 (dez) anos. As propostas de planos deverão ser também submetidas a consulta pública ou audiência pública (art. 19, § 5º).
A Lei do Saneamento dispõe que, mesmo no caso de ter havido delegação do serviço, o prestador (seja a Administração direta, seja empresa estatal estadual ou concessionário) deverá cumprir o plano em vigor quando da delegação (art. 19, § 6º). É claro que, havendo contrato de programa ou contrato de concessão vigente e havendo modificação no plano que implique modificação contratual, esta poderá ser feita unilateralmente pelo titular. É claro, desde que isso respeite todos os requisitos necessários para uma alteração unilateral, como impossibilidade de transfiguração do objeto contratual e recomposição concomitante do reequilíbrio econômico-financeiro, se necessário.
O art. 19, § 7º, estabelece que os planos regionais de saneamento básico devem obedecer ao art. 14 da Lei 11.445/2020. No entanto, o art. 14 foi revogado pela Lei 14.026/2020. Esse dispositivo determinava que a prestação regionalizada era caracterizada: (i) por um único prestador para vários Municípios (contíguos ou não); (ii) uniformidade de fiscalização e regulação; e (iii) compatibilidade de planejamento. Esses, portanto, não são mais requisitos para os planos regionais. Nada impede que o ente regional tenha mais de um prestador atuando na região. Ex.: um prestador para o serviço de abastecimento de água e outro para o serviço de esgotamento sanitário. Se essa for a melhor decisão pública a ser adotada (o que deverá ser demonstrado em estudos que fundamentam a opção administrativa adotada), não há mais impedimento legal. A uniformidade de fiscalização e regulação também não precisa ser única; mas, como qualquer decisão administrativa, ela deverá ser motivada. Quanto à “compatibilidade”, note que o § 2º do art. 17 determina que os planos regionais prevalecerão sobre os planos municipais (o que pressupõe uma potencial incompatibilidade entre eles). Aliás, o § 3º do art. 17 não obriga os Municípios a elaborar e publicar os planos municipais quando existente plano regional.
O art. 17 da Lei 11.445/2007 (totalmente modificado pela Lei 14.026/2020) estabelece que o serviço regionalizado “poderá” obedecer a plano regional de saneamento básico elaborado para o conjunto de Municípios envolvidos. Embora o dispositivo use o verbo “poder” (no sentido de “autorizar”, “estar habilitado”), parece pouco crível supor que os entes regionais não irão elaborar um plano regional de saneamento básico. A decisão de não fazer um plano regional demandaria um ônus argumentativo muito grande para tal ente, de tal modo que essa “faculdade” acaba sendo uma verdadeira “obrigação” do ente. Se ele não o fizer e não tiver justificativa adequada para essa omissão, os próprios órgãos de controle irão tomar as medidas necessárias para que o plano seja realizado. Este plano regionalizado poderá contemplar um ou mais dos serviços de saneamento básico (art. 17, § 1º). Por fim, os planos – que deverão abranger todo território do ente regional (art. 19, § 8º) – deverão seguir, por analogia, os requisitos constantes no art. 19, caput e incisos, já que não há requisitos específicos para eles.
b) Regulação
Com o termo “regulação”, costuma-se fazer referência às atividades de edição de atos normativos gerais e abstratos (isto é, atos introdutores de normas gerais e abstratas), fiscalização das atividades desempenhadas por sujeitos privados e a aplicação das sanções. No saneamento, o Capítulo V da Lei 11.445/2007 trata do tema de modo específico.
O art. 21 (com redação dada pela Lei 14.026/2020) estabelece que a função de regulação deverá ser desempenhada por entidade de natureza autárquica, dotada de independência decisória e autonomia administrativa, orçamentária e financeira e atender aos princípios da transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade das decisões. Em suma, o que o legislador pretendeu foi obrigar os titulares dos serviços a criar pessoas jurídicas de direito público, isto é, entidades da Administração Pública indireta. Logo, quando estivermos falando de uma prestação regionalizada, o ente regional deverá ser uma autarquia. Note que o dispositivo não obriga a criar “agências reguladoras”, que são autarquias cuja maior característica é o mandato de seus dirigentes com impossibilidade de sua exoneração ad nutum. A Lei de Saneamento obriga, portanto, a autarquia a ter independência decisória em relação à Administração direta. Não cabe aqui, portanto, o Chefe do Poder Executivo rever as decisões de tais autarquias, seja ela qualificada como “agência reguladora” ou não.
Uma das perguntas aqui é se esse dispositivo é constitucional. Afinal, a decisão por descentralizar tecnicamente uma atividade administrativa a pessoa jurídica de direito público está reservada ao ente político titular da atividade. Usualmente, a União não pode obrigar Estados e Municípios a criar autarquias, sob pena de ofensa ao princípio federativo (art. 18 da Constituição); logo, nada impediria o titular a atribuir a função de regulação a um órgão da Administração Pública direta. A defesa pela constitucionalidade seria argumentar que a União tem a competência para estabelecer diretrizes em matéria de saneamento básico e o art. 21 seria uma “diretriz” (art. 21, XX, da Constituição). Ao que me parece, a determinação para que os entes titulares constituam uma autarquia vai além de uma “diretriz”, sendo uma obrigação bem específica. Mas, como “diretriz” traz um conceito vago e a decisão legislativa parece ser politicamente conveniente (afinal, o setor sofre com a falta de segurança jurídica na regulação dos serviços), o dispositivo tende a não ser questionando. Ou, se questionado juridicamente, tende a ser considerado constitucional, tal como acontece com alguns dispositivos legais ou leis inteiras cujo conteúdo se mostra política ou economicamente positivo para a sociedade. Mas o mais correto – na minha visão – seria interpretar o dispositivo conforme a Constituição, não havendo, portanto, uma obrigação jurídica de criação de autarquia (apesar de a regra parecer conveniente).
O art. 22 indica quais são os objetivos da regulação em saneamento básico, quais sejam:
(i) estabelecer padrões e normas para a adequada prestação e a expansão da qualidade dos serviços e para a satisfação dos usuários, com observação das normas de referência editadas pela ANA;
(ii) garantir o cumprimento das condições e metas estabelecidas nos contratos de prestação de serviços e nos planos municipais ou de prestação regionalizada de saneamento básico;
(iii) prevenir e reprimir o abuso do poder econômico, ressalvada a competência dos órgãos integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; e
(iv) definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos quanto a modicidade tarifária, por mecanismos que gerem eficiência e eficácia dos serviços e que permitam o compartilhamento dos ganhos de produtividade com os usuários.
O art. 23 – que, com redação dada pela Lei 14.026/2020, usa a expressão “entidade reguladora” – determina que esta edite normas técnicas, econômicas e sociais de prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Isso envolve o estabelecimento de padrões e indicadores de qualidade, requisitos operacionais e de manutenção, estrutura tarifária, medição, faturamento e cobrança, subsídios tarifários e não-tarifários, dentre outros.
O art. 23 determina ainda que a entidade regional deverá observar “as diretrizes determinadas pela ANA” e o 25-A dispõe que tal agência federal editará normas de referência. A pergunta é: os entes reguladores estão obrigados a seguir as normas de referência da ANA? Vamos tratar deste tema na Seção 4; por enquanto, vamos deixar a pergunta em suspenso.
1.3.2. Competências administrativas de prestação
As competências relacionadas à prestação do serviço público dizem respeito ao oferecimento efetivo das utilidades dos serviços de saneamento básico. Por exemplo, no serviço de abastecimento de água: envolvem as posições jurídicas ativas e passivas (ex.: dever de seguir os parâmetros definidos no contrato, direito de cobrar tarifa pelos serviços prestados etc.) relativas à reservação de água bruta, à captação da água bruta, à adução da água bruta, ao tratamento desta, à adução da água tratada e à reservação da água tratada (art. 8º-A da Lei 11.445/2007, alterada pela Lei 14.026/2020). Estas competências, como será abordado à frente, poderão ser objeto de descentralização técnica e de descentralização por colaboração. Convém agora discorrer brevemente sobre essas duas modalidades de descentralização.
1.4. As formas de descentralização administrativa
As competências administrativas (seja de organização, seja de descentralização) podem passar por um processo de descentralização. A descentralização consiste na transferência da titularidade ou apenas do exercício de competências administrativas a outras pessoas, naturais ou jurídicas, com personalidade jurídica de direito público ou de direito privado.4 As duas formas de descentralização administrativa são as seguintes: (a) descentralização técnica a outra pessoa administrativa; ou (b) descentralização por colaboração.5
Na descentralização técnica, será a lei que realizará a descentralização e sempre a uma pessoa jurídica que integrará a Administração Pública do ente político descentralizador. Assim, na descentralização técnica, há a criação de uma autarquia – corporativa, fundacional (as fundações estatais públicas) ou interfederativa –, as empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) e as fundações estatais de direito privado.
Já a descentralização por colaboração ocorre por meio de um ato administrativo unilateral ou bilateral a pessoas administrativas não integrantes do ente descentralizador, ou a pessoas privadas, naturais ou jurídicas. A celebração de convênios de delegação, contratos de programa e contratos de concessão de serviço público são exemplos de descentralização por colaboração. Nós voltaremos à descentralização por colaboração. Vale agora aprofundar um pouco mais a descentralização técnica.
2. A descentralização técnica da titularidade de competências administrativas
Quando um ente político descentraliza tecnicamente competências administrativas a oura pessoa, ele acaba criando uma entidade da sua Administração Pública indireta, sujeita aos ditamos do art. 37 da Constituição. A relação com o ente político que a criou não é hierárquica, mas de tutela ou supervisão (cujos limites são os estabelecidos na lei descentralizadora). Por isso que, ao se falar em descentralização técnica, o ente descentralizado possui autonomia decisória nos termos específicos da lei descentralizadora. Até mesmo por isso, também não há que se falar em contrato de concessão ou equilíbrio econômico-financeiro, já que a descentralização é feita por lei.
A pessoa administrativa descentralizada pode ter personalidade jurídica de direito público ou de direito privado. As pessoas administrativas de direito público são as pessoas administrativas sujeitas, de forma característica e normal, ao regime jurídico de direito público. Elas têm o mesmo regime do ente político, com a diferença que goza de uma autonomia administrativa fixada em lei. Elas são chamadas, genericamente, de autarquias. Estas podem ser corporativas, fundacionais (são as fundações estatais com personalidade jurídica de direito público) ou interfederativas (ex.: as associações públicas do art. 6º, I, da Lei de Consórcios Públicos, a Lei 11.107/2005). Além disso, as autarquias podem ser “especiais”, porque possuem um regime jurídico publicístico diferente das demais autarquias. É o caso das agências reguladoras, caracterizadas principalmente pelo mandato de seus diretores. Já as pessoas administrativas com personalidade de direito privado são as empresas estatais – isto é, empresas públicas e sociedades de economia mista, atualmente regidas pela Lei 13.3030/2016 – e as fundações estatais de direito privado. Neste caso, o regime característico e normal a que elas se submetem é o de direito privado, com derrogações de direito público fixadas na Constituição e nas leis.
Essa distinção é de extrema importância, especialmente para entender o regime no âmbito do saneamento básico. A primeira diferença (e mais óbvia) está no regime jurídico, já mencionado acima. Além disso, as autarquias (seja qual for a sua modalidade) são criadas por lei, enquanto as empresas estatais e fundações estatais privadas têm a sua criação autorizada pela lei, seguindo o regime de criação do direito privado (registro dos atos constitutivos no órgão competente).
2.1. A distinção em relação à titularidade de interesses públicos
Mas a distinção mais importante entre os tipos de entidades administrativas está justamente na questão da titularidade. Enquanto as autarquias – justamente por terem o mesmo regime administrativo dos entes políticos – podem ser titulares de qualquer tipo de atividade pública. Isso significa que elas são as titulares das competências que lhe são descentralizadas. É claro que sempre nos termos e limites fixados na lei. E essa é uma grande diferença para as empresas estatais e fundações estatais privadas que – por serem pessoas privadas – não titularizam interesses públicos, mas apenas exercem tais competências (também nos termos e limites legais). Aliás, em alguns círculos, existe uma presunção de que a titularidade é “indelegável” (para ser mais preciso, “descentralizável”), porque deve sempre ficar retida nas mãos dos entes políticos. A rigor, não me parece haver fundamento teórico e jurídico-positivo para esse tipo de afirmação. Sempre foi uma característica das autarquias justamente o fato de poderem ser titulares. Aliás, é justamente por isso que possuem personalidade jurídica de direito público.
Há ainda outra diferença muito importante para explicar como a questão funciona no saneamento: as autarquias não podem exercer atividades privadas econômicas, já que a intervenção do Estado no domínio econômico se dá por empresas estatais (art. 173 da Constituição). Já as pessoas administrativas privadas, além de poderem exercer certas atividades administrativas, também podem ser usadas intervir no domínio econômico (empresas estatais) e social (fundações estatais privadas). E, neste último caso, não se trata propriamente de descentralização técnica, mas única e exclusivamente uma intervenção no domínio privado. Vale exemplificar.
A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, a Infraero, é uma empresa estatal que exerce uma atividade pública de titularidade da União: a gestão de infraestrutura aeroportuária (art. 21, XII, “c”, da CF). Ela é fruto de uma descentralização técnica. Mas o Banco do Brasil não é uma empresa estatal descentralizada; afinal, a União não detém a titularidade da atividade econômica realizada por bancos; logo, não tem como descentralizar o que não possui. O Banco do Brasil é uma empresa estatal que intervém no domínio privado (isto é, a atividade econômica6). Mas há casos em que uma empresa estatal de um ente político acaba executando atividade pública de outro ente político. É o caso da CEMIG Distribuição S.A. (detida pela Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG), que presta o serviço público de distribuição de energia elétrica em praticamente todo Estado de Minas Gerais. O serviço público de distribuição de energia elétrica é de titularidade da União, e a CEMIG Distribuição possui um contrato de concessão com a União. Nesses casos, a descentralização feita pela União não é uma descentralização técnica; o ato que delega o serviço público de distribuição de energia elétrica é o contrato de concessão, sendo essa uma descentralização por colaboração. Aqui, a CEMIG Distribuição não é uma empresa estatal fruto de descentralização do Estado de Minas Gerais (afinal, os Estados não são titulares dos serviços de energia elétrica; logo não podem descentralizar competências que não possuem). Aqui, o Estado de Minas Gerais intervém no domínio econômico, nos termos do art. 173 da Constituição; a CEMIG Distribuição atua tal como uma pessoa privada que possui uma concessão de distribuição de energia elétrica. Esse tipo de situação também ocorre no serviço de saneamento básico, mas trataremos deste tema novamente em outro tópico.
2.2. A descentralização técnica para autarquias municipais no saneamento básico
Voltemos à descentralização técnica para autarquias, agora com foco maior no saneamento básico. Tal como já destacado, as competências a ela descentralizadas (e, portanto, titularizadas por tais entes de direito público), desde que sejam administrativas, podem ser de qualquer natureza. Podem se situar no âmbito da atividade administrativa ordenadora, fomentadora, prestacional ou de atividades administrativas instrumentais.7 No caso de serviços públicos (espécies de atividades administrativas prestacionais), podem envolver competências de organização do serviço ou da sua prestação direta.
Então, nada impede um Município titular do serviço público de abastecimento de água, por exemplo, de descentralizar o planejamento, a fiscalização, a edição de atos normativos, bem como a própria prestação de tais serviços a uma autarquia. Em relação à descentralização apenas das competências de organização, vale citar o caso da Agência Reguladora de Serviços de Saneamento Básico do Município de Natal, a ARSBAN. Aqui, as competências administrativas de organização do serviço foram descentralizadas pelo Município de Natal à ARSBAN (cfr. <https://natal.rn.gov.br/arsban>
2.3. A descentralização técnica para associações públicas (consórcio público) no saneamento básico
Outra possibilidade de descentralização das competências referentes à organização e/ou à prestação dos serviços de saneamento básico reside na formação de consórcios públicos municipais.
O art. 241 da Constituição admite, como modalidade de gestão associada de serviços públicos pelos entes federativos, a celebração de convênios de cooperação e a formação de consórcios. O mesmo dispositivo estabelece que, por meio de tais instrumentos, será possível a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.
A Lei 11.107/2005 (“Lei dos Consórcios Públicos”) disciplinou a figura dos consórcios públicos. Aqui, os consórcios públicos serão constituídos – após o complexo procedimento previsto na referida Lei – pelos entes políticos interessados numa gestão associada de serviços públicos (ex.: consórcio público apenas entre Municípios). Este não é um trabalho sobre consórcios públicos. Então, não vamos adentrar muito no tema. Para os fins deste verbete, o que importa destacar é que, ao contrário do convênio, o consórcio público possui personalidade jurídica, a qual pode ser de direito público ou de direito privado. Em se tratando de consórcio com personalidade jurídica de direito público, ele será chamado de “associação pública”, passando a integrar a estrutura da Administração indireta de todos os entes consorciados (art. 6º, I e § 1º, da Lei 11.107/2005). Então, uma das modalidades de autarquias existentes no direito brasileiro é justamente a associação pública, cujo objeto será a gestão associada de um ou mais serviços públicos de interesse comum dos entes consorciados.
Esse tipo de consórcio também está presente no âmbito do saneamento básico. Assim, os Municípios titulares podem decidir formar um ente competente para regular o serviço e prestá-lo, diretamente ou mediante concessão à iniciativa privada. Serão os atos constitutivos do consórcio que irão definir suas competências e estrutura. Como exemplo, vale citar o Consórcio Público de Saneamento Básico da Grande Aracaju (<consorciograndearacaju.se.gov.br>
Antes de encerrar este tópico, algumas observações. A Lei 14.026/2020 trouxe algumas inovações para os consórcios públicos de saneamento básico. Em primeiro lugar, ela está admitida para a prestação direta apenas por meio de autarquia intermunicipal. Logo, está vedada a prestação por empresa estatal intermunicipal (art. 8º, § 1º, I, da Lei 11.445/2020, incluído pela Lei 14.026/2020). Em segundo lugar, foi vedada a celebração, pelas associações públicas, de contrato de programa com empresas estaduais de saneamento básico ou subdelegação, salvo se decorrer de licitação pública (art. 8º, § 1º, I, da Lei 11.445/2020, incluído pela Lei 14.026/2020).
2.4. A descentralização técnica para entes regionais estaduais
A Constituição, em seu art. 25, § 3º, autoriza os Estados a instituir, mediante lei complementar (estadual, evidentemente), “regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”.8 Em primeiro lugar, remetemos o leitor ao verbete sobre competências constitucionais em saneamento básico, publicado neste tomo da Enciclopédia, em que tecemos outros comentários a essas entidades regionais.
Aliás, o tema foi amplamente discutido na já citada ADI 1.842/RJ e o determinado pelo STF passou a integrar a Lei 13.089/2015, o Estatuto da Metrópole, que disciplina o tema. Regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões possuem características comuns. As três são entidades regionais integradas por Municípios limítrofes, os quais não podem se recusar a participar de tais entes regionais, embora o art. 8º-A da Lei 11.445/2020 (incluído pela Lei 14.026/2020) possa sugerir o contrário; afinal, a obrigação de integrar tais entes decorre diretamente da Constituição (vide ADI 1.842/RJ e ADI 1.841-MC/RJ). Caberá sempre ao Estado criar, por lei complementar, tais entidades. E o objetivo, nas três entidades, é o mesmo: integração da organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum.9 Essas características derivam diretamente da Constituição.
Na ADI 1.842/RJ, o STF foi além do que prevê o Texto Constitucional e decidiu que os Municípios integrantes dessas entidades regionais deverão participar do exercício do poder decisório e do poder concedente de tais entidades. Nos termos da decisão do STF, a instituição de uma entidade regional não pode implicar esvaziamento da autonomia municipal com uma mera transferência das competências municipais ao Estado. Por isso, o Estatuto da Metrópole estabeleceu que a lei complementar estadual deverá estabelecer a estrutura de governança interfederativa (art. 5º, III), que devem observar os princípios constantes no art. 6º do referido Estatuto.10 Essa estrutura terá, necessariamente: (a) uma instância executiva composta pelos representantes do Poder Executivo dos entes federativos integrantes da entidade regional; (b) instância colegiada deliberativa com representação da sociedade civil; (c) organização pública com funções técnico-consultivas; e (iv) sistema integrado de alocação de recursos e prestação de contas (art. 8º).
A Constituição não diferenciou os três tipos de entidades regionais. Algumas constituições estaduais acabaram fazendo isso. É o caso da Constituição do Estado de São Paulo (art. 154, §§ 1º a 3º).11 O Estatuto da Metrópole apenas definiu regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, determinando a aplicação às microrregiões (sem defini-las) com características urbanas, no que couber (art. 1º, § 1º). Região metropolitana, nos termos do art. 2º, VII, do Estatuto da Metrópole (com redação dada pela Lei 13.683/2018), é a “unidade regional instituída pelos Estados, mediante lei complementar, constituída por agrupamento de Municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”. Como se pode perceber, a definição legal não agrega em relação ao art. 25, § 3º, da Constituição. Já aglomeração urbana é a “unidade territorial urbana constituída pelo agrupamento de 2 (dois) ou mais Municípios limítrofes, caracterizada por complementaridade funcional e integração das dinâmicas geográficas, ambientais, políticas e socioeconômicas” (art. 2º, I). Neste ponto, as definições da Constituição do Estado de São Paulo são melhores para identificar as três unidades.
Uma dúvida que pode surgir é a seguinte: a entidade regional possui personalidade jurídica? Tanto a Constituição como o Estatuto da Metrópole são silentes a esse respeito. Como haverá o exercício de funções de planejamento e regulação das funções comuns de interesse comum, parece ser mais adequado que elas estejam alocadas a uma pessoa jurídica de direito público. Isso significa que a estrutura básica da governança interfederativa do ente regional poderia estar integrada no próprio ente político estadual (seriam órgãos da Administração direta), ou poderá ser criada uma autarquia estadual. No entanto, o art. 21 da Lei 11.445/2007, com redação dada pela Lei 14.026/2020, estabelece que a função de regulação deverá ser realizada por uma autarquia. Assim, a entidade regionalizada deve ser uma autarquia (embora, como já destacado no verbete sobre competências constitucionais, esta decisão legislativa possa ser questionada quanto à sua constitucionalidade).
Para os fins deste verbete, o que importa destacar é que uma região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião poderá regular e prestar (direta ou indiretamente) os serviços de saneamento básico que sejam de interesse comum dos Municípios integrantes da entidade regional. Nos termos do art. 3º, VI, “a”, da Lei 11.445/2007 (alterada pela Lei 14.026/2020) ela é uma das formas de “prestação regionalizada”, isto é, de “prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços de saneamento básico em determinada região cujo território abranjam mais de um Município”. Nesses casos, deverão estar inseridos no âmbito de competência do ente regional os “serviços de saneamento básico de interesse comum”. Estes são definidos, no art. 3º, XIV, da Lei do Saneamento (com redação dada pela Lei 14.026/2020) como:
“serviços de saneamento básico prestados em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões instituídas por lei complementar estadual, em que se verifique o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre 2 (dois) ou mais Municípios, denotando a necessidade de organizá-los, planejá-los, executá-los e operá-los de forma conjunta e integrada pelo Estado e pelos Munícipios que compartilham, no todo ou em parte, as referidas instalações operacionais” (sublinhamos).
Convém fazer algumas observações em relação a essa redação. A leitura do dispositivo legal leva à ideia de que um ente regional somente poderá inserir em seu escopo de atuação os serviços em que já exista compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e esgoto entre 2 (dois) ou mais Municípios. Isto é: antes mesmo da lei complementar estadual, deverá haver esse compartilhamento de infraestrutura. Isso não parece fazer muito sentido, já que, se hoje o Estado verifica que um conjunto de municípios seria melhor atendido com esse compartilhamento futuro – ou melhor, que há necessidade política de integração das funções de planejamento, organização e execução dos serviços de saneamento básico –, então nada o impede de fazê-lo. Afinal, esta é uma competência que decorre diretamente da Constituição Federal (art. 25, § 3º). Outra observação diz respeito ao fato de que apenas os serviços de saneamento básico de abastecimento de água e de esgotamento sanitário seriam de interesse comum. Isso também não faz muito sentido, já que nada impede que a lei complementar estadual repute que os outros serviços de saneamento básico também possam ser objeto de ação de região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião. O requisito constitucional para isso é que haja a avaliação da necessidade de integração das funções de planejamento, organização e execução.
De todo modo, caberá à lei complementar estadual apenas estabelecer de forma precisa quais competências ficarão a cargo da entidade regional. Aliás, caberá a este ente elaborar um plano regional de saneamento básico, as quais prevalecerão sobre os planos municipais (art. 17). Seja como for, como a entidade regional deverá ser autarquia, esta será mais uma forma de descentralização técnica no âmbito do saneamento básico.
2.5. As novas figuras da Lei 14.026/2020: unidade regional e bloco de referência
Ao se falar em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões como competentes para organizar e prestar os serviços de saneamento básico, está em pauta uma “prestação regionalizada” (isto é, “modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município”; art. 2º, VI, da Lei do Saneamento). A Lei 14.026/2020 trouxe duas novas possibilidades em termos de regionalização do serviço de saneamento básico: (a) unidade regional de saneamento básico; e (b) bloco de referência.
Nos termos da Lei de Saneamento, unidade regional de saneamento básico é a “unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos” (art. 2º, VI, “b”). Note que a unidade regional deverá incluir, ao menos, uma região metropolitana e sua estrutura de governança deverá seguir o Estatuto da Metrópole (art. 8º, §§ 2º e 3º). Assim, a unidade regional terá área de abrangência igual ou maior ao da região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião. Ela parece servir para aqueles casos em que a região metropolitana (aglomeração urbana e microrregião) não alcança certo município (que não é limítrofe e, a princípio, poderia ser até de outro Estado), mas que, por alguma das razões citadas no art. 2º, VI, “b”, seja conveniente a sua inserção.
Por sua vez, o bloco de referência é o “agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52 desta Lei e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares” (art. 2º, VI, “c”). O referido § 3º do art. 52 dispõe que a União poderá, subsidiariamente aos Estados, criar blocos de referência para a prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico. Aliás, a promoção pela União da formação de blocos de referência é um dos objetivos da Política Nacional do Saneamento Básico (art. 49, XIV, incluído na Lei do Saneamento pela Lei 14.029/2020). Essa possibilidade de sua criação pela União é uma das diferenças em relação à unidade regional. A outra reside na inexistência de lei ordinária estadual para a sua criação, sendo que o art. 2º, VI, “c”, dá a entender que haveria uma formação por meio de ato administrativo plurilateral, eventualmente um convênio.
Unidade regional e bloco de referência possuem características comuns. Em primeiro lugar, em ambos os casos os Municípios integrantes não precisam ser limítrofes (e essa é uma diferença para a região metropolitana, aglomerações urbanas e microrregiões). Em segundo, em ambos os casos, é facultativa a adesão dos titulares (art. 8º, § 2º, e art. 8º-A), o que já não ocorre no caso das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Por fim, o art. 50, VIII, dispõe que a alocação de recursos públicos federais e financiamentos com recursos federais serão condicionados, dentre outros, à adesão pelos titulares dos serviços de saneamento básico à estrutura de governança em caso de unidade regional, bloco de referência e gestão associada.
2.6. A possibilidade de descentralização de qualquer competência administrativa de saneamento básico
Já comentamos no início desta Seção, mas vale retomar: qualquer competência administrativa poderá ser descentralizada a uma autarquia. Logo, no âmbito do saneamento básico, tanto as competências de organização como as competências de prestação podem ficar nas mãos dos tipos de autarquias citadas acima.
A figura abaixo resume essas possibilidades.
3. A descentralização por colaboração em saneamento básico
3.1. Os convênios para delegação de competências de organização a autarquias estaduais
3.2. Os polêmicos contratos de programa
3.3. Os contratos de concessão e subconcessão
3.4. As formas de descentralização por colaboração
4. O novo papel da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico
5. Um resumo...
Notas
1 Para ampliar, vide: FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, pp. 29-41.
2 Para uma visão geral sobre os serviços de transporte ferroviário e exploração da infraestrutura ferroviária, vide: FREIRE, André Luiz. Introdução: panorama jurídico do setor ferroviário brasileiro. Aspectos do direito ferroviário: uma visão através do contencioso.
3 FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, Cap. V.
4 Para aprofundar sobre o conceito de descentralização administrativa, confira: FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, Cap. III.
5 Em verdade, há uma terceira forma, que é a descentralização territorial. Embora teoricamente possível e já praticada no passado, atualmente o Brasil não possui territórios formados nos termos do art. 33 da Constituição. Por isso, sob a perspectiva da aplicação prática, podemos restringir as formas de descentralização às duas citadas.
6 Como se pode perceber, não acolho a conhecida classificação das atividades econômicas em serviços públicos e atividades econômicas em sentido estrito. Parto de outro modelo teórico (cfr. FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, Cap. I), o qual me parece mais útil sob a perspectiva jurídica (Idem, p. 245 e ss.).
7 Sobre a distinção das diversas atividades administrativas, vide: FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, Cap. II.
8 O estabelecimento de regiões metropolitanas era, no direito anterior, uma competência da União. Com a atual Constituição, passou ela a figurar como competência privativa dos Estados. A inserção das aglomerações urbanas e das microrregiões é, por outro lado, uma inovação da Lei Maior de 1988.
9 Nos termos do art. 2º, II, do Estatuto da Metrópole, função pública de interesse comum é definida como “política pública ou ação nela inserida cuja realização por parte de um Município, isoladamente, seja inviável ou cause impacto em Municípios limítrofes”.
10 “Art. 6º A governança interfederativa das regiões metropolitanas e das aglomerações urbanas respeitará os seguintes princípios:
I – prevalência do interesse comum sobre o local;
II - compartilhamento de responsabilidades e de gestão para a promoção do desenvolvimento urbano integrado; (Redação dada pela Lei nº 13.683, de 2018)
III – autonomia dos entes da Federação;
IV – observância das peculiaridades regionais e locais;
V – gestão democrática da cidade, consoante os arts. 43 a 45 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001;
VI – efetividade no uso dos recursos públicos;
VII – busca do desenvolvimento sustentável”.
11 “Art. 154. (...)
§ 1º - Considera-se região metropolitana o agrupamento de Municípios limítrofes que assuma destacada expressão nacional, em razão de elevada densidade demográfica, significativa conurbação e de funções urbanas e regionais com alto grau de diversidade, especialização e integração sócio-econômica, exigindo planejamento integrado e ação conjunta permanente dos entes públicos nela atuantes.
§ 2º - Considera-se aglomeração urbana o agrupamento de Municípios limítrofes que apresente relação de integração funcional de natureza econômico-social e urbanização contínua entre dois ou mais Municípios ou manifesta tendência nesse sentido, que exija planejamento integrado e recomende ação coordenada dos entes públicos nela atuantes.
§ 3º - Considera-se microrregião o agrupamento de Municípios limítrofes que apresente, entre si, relações de interação funcional de natureza físico-territorial, econômico-social e administrativa, exigindo planejamento integrado com vistas a criar condições adequadas para o desenvolvimento e integração regional.”
12 Sobre a potencial diferença entre “delegação” e “outorga”, vide: FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, p. 190 e ss.
13 Sobre o conceito constitucional de concessão de serviço público, vide: FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, p. 334 e ss.
Referências
FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
_______________. Introdução: panorama jurídico do setor ferroviário brasileiro. Aspectos do direito ferroviário: uma visão através do contencioso. Elias Marques de Medeiros Neto, Hebert Lima Araujo, Rafaela Comunello Eleotero e Daniela Peretti D’Ávila (orgs.). São Paulo: Verbatim, 2018.
Citação
FREIRE, André Luiz. Saneamento básico: titularidade, regulação e descentralização. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Difusos e Coletivos. Nelson Nery Jr., Georges Abboud, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/379/edicao-1/saneamento-basico:-titularidade,-regulacao-e-descentralizacao
Edições
Tomo Direitos Difusos e Coletivos, Edição 1,
Julho de 2020
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