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Políticas públicas
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Andréia R. Schneider Nunes
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Tomo Direitos Difusos e Coletivos, Edição 1, Julho de 2020
Com a democratização do país após a Constituição Federal de 1988, questões de relevância política e social que, até então eram debatidas apenas no âmbito da representatividade política, tiveram seu local de decisão transferido para o Poder Judiciário. É o que acontece em matéria de políticas públicas.
Parte-se do pressuposto de que política pública possui natureza coletiva enquanto categoria jurídica, pois é a partir do direito que se estrutura o quadro institucional de determinado programa de ação governamental, a fim de que esteja em conformidade à Constituição Federal no sentido da concretização dos direitos fundamentais e projeção da cidadania.
O desenvolvimento deste verbete leva em conta o conceito de política pública na dimensão jurídica e trabalha o ciclo de formação com ênfase na atuação do Poder Judiciário, mediante o exercício do controle judicial, cujo conteúdo foi por nós aprofundado em pesquisa anterior.1
1. Políticas públicas como categoria jurídica
Para a conceituação de políticas públicas deve-se levar em consideração a relação governo, política e direito, de modo que a política venha a ser a força originária, representada pelas ações do governo, e a sua institucionalização se dê por meio do direito.2
Política pública consiste em programa de ação governamental, do qual se extrai a atuação do Estado na elaboração de metas, definição de prioridades, levantamento do orçamento e meios de execução para a consecução dos compromissos constitucionais, que se exterioriza mediante arranjos institucionais.
A partir da compreensão de política pública enquanto programa de ação governamental, Maria Paula Dallari Bucci retrata o ponto de encontro entre política e direito, responsável pela articulação de medidas e movimentação da máquina pública, cujo liame é voltado à concretização de direitos fundamentais.
Seu núcleo de sentido reside na ação governamental, isto é, o movimento que se dá à máquina pública, conjugando competências, objetivos e meios estatais, a partir do impulso do governo. A apresentação exterior da política pública se materializa num arranjo institucional, conjunto de iniciativas e medidas articulado por suportes e formas jurídicos diversos.3
Parte-se, pois, do princípio de que política pública deve ser entendida como categoria jurídica.
A começar pela definição dada por Ronald Dworkin ao conceituar a política pública (policies) no âmbito da Teoria do Direito, considerando-a como “(...) aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade”.4
Já Fábio Konder Comparato considera a política pública como atividade, outrora advinda da teoria da empresa e hoje também empregada na esfera governamental. Conceitua como “(...) um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado. (...) A política, como conjunto de normas e atos, é unificada pela sua finalidade”.5
A respeito da natureza jurídica da política pública, outras concepções a definem como categoria normativa, ao lado dos princípios e das regras. Por outro lado, a política pública, por possuir objetivos determinados, atua de forma complementar no sentido de preencher os espaços normativos e concretizar as regras e os princípios.6 Tanto que para Ronald Dworkin, “Princípios são proposições que descrevem direitos; políticas (policies) são proposições que descrevem objetivos”.7
Maria Paula Dallari Bucci ao trabalhar a conceituação de política pública no âmbito do direito e seu controle judicial, demostra a preocupação em identificar qual o teor da expressão jurídica a ser submetida à análise judicial. Se considerada atividade, composta por atos, decisões e normas de natureza heterogênea, recai na seara da discricionariedade administrativa; se considerada categoria normativa, enfrenta-se a dificuldade de exigibilidade e efetivação de direitos sociais, econômicos e culturais, desde seu nascimento até incorporar determinado programa de ação governamental.8
Em acréscimo à definição de Maria Paula Dallari Bucci de que o programa da ação governamental resulta de um processo ou um conjunto de processos juridicamente regulados, complementa que: “[a]s políticas públicas devem ser vistas também como processo ou conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito”.9
Para que se delineie o alcance do controle judicial com maior precisão, não poderia deixar de trazer o conceito do que vem a ser política pública, pois, do contrário, o ponto de partida já estaria fadado a uma inadequada prestação da tutela jurisdicional. Com efeito, Maria Paula Dallari Bucci define juridicamente política pública:
"Política pública é programa de ação governamental que resulta de um conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados".10
De tal modo, política pública só deve ser entendida como pública se contemplar interesses de uma coletividade. Eis a explicação de Maria Paula Dallari Bucci:
"Uma política é pública quando contempla os interesses públicos, isto é, da coletividade — não como fórmula justificadora do cuidado diferenciado com interesses particulares ou do descuido indiferenciado de interesses que merecem proteção — mas como realização desejada pela sociedade. Mas uma política pública também deve ser expressão de um processo público, no sentido de abertura à participação de todos os interessados, diretos e indiretos, para a manifestação clara e transparente das posições em jogo".11
As políticas públicas são instrumentos capazes de proporcionar, mediante a ação conjunta dos poderes públicos, a efetivação de direitos fundamentais sociais, conferindo aos cidadãos as condições necessárias para usufruírem a real liberdade e a igualdade material e, tão logo, a dignidade humana.
Nessa linha, Gianpaolo Poggio Smanio complementa:
"As Políticas Públicas são instrumentos importantes para a concretização dos Direitos Fundamentais. Exigem atuação da Administração Pública, dos órgãos e Poderes do Estado na sua consecução. O arcabouço normativo que constitui as Políticas Públicas deve trazer a sua legitimação e eficiência.
(...) as Políticas Públicas têm sua legitimidade e eficiência ao garantir a efetivação da cidadania no Estado Constitucional".12
Para que o Estado cumpra os compromissos constitucionais e promova a efetividade de tais direitos, há que pautar sua atuação governamental na elaboração de políticas públicas sob a dimensão coletiva. É importante, contudo, compreender a política pública como força originária, que se exterioriza no governo e tem sua forma institucionalizada por meio do direito que se reconhece no Estado.13
Isso retrata a importância de se teorizar juridicamente o entendimento das políticas públicas, pois é sobre o direito que se estrutura o quadro institucional no qual atua uma política pública. “Trata-se, assim, da comunicação entre o Poder Legislativo, o governo (direção política) e a Administração Pública (estrutura burocrática), delimitada pelo regramento pertinente”.14
Justamente por isso, se a política pública não estiver cumprindo seu propósito enquanto efetivação de direitos, poderá ser submetida ao controle judicial mediante as ações coletivas, oriundas das class actions norte-americanas, para a solução dos conflitos envolvendo direitos sistematizados nas políticas públicas.15
Tanto é que a importância do tema de políticas públicas, em seu sentido jurídico, concentra-se não somente no direito público, que disciplina a atuação do Poder Público, mas, sobremaneira, no campo processual. Não é para menos. A partir da Lei Federal 7.347/1985 e do Código de Defesa do Consumidor, amparados na Constituição Federal, a tutela de direitos passou por uma revolução paradigmática ao conferir proteção aos direitos tidos como difusos, coletivos e individuais homogêneos, superando o modelo individualista.
É certo que os direitos coletivos são amparados por instrumentos jurídicos específicos, a exemplo da ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção coletivo e ação de improbidade administrativa, mas não se pode perder de vista que uma demanda individual pode ter efeitos coletivos, beneficiando a totalidade de indivíduos que se encontram na mesma situação.16
Se existe um controle mais efetivo por parte do Poder Judiciário sobre a atuação governamental ou diante de omissão legislativa, do que em outras estruturas institucionais, não significa dizer que a atuação dos magistrados seja movida por estímulo volitivo que culmine em ativismo judicial. Pelo contrário, sua intermediação por meios das ações coletivas e ações constitucionais é formalizada pelo Poder Legislativo.17
2. Ciclo de formação das políticas públicas: o papel do Poder Judiciário no controle judicial
Ao se falar de Estado Social e Democrático de Direito estamos diante do ambiente adequado para a consecução de objetivos coletivos, cuja atuação estatal passa a ser voltada à prestação de serviços públicos e de condições mínimas necessárias aos cidadãos. Para tanto, a ação do Estado deve ser racional e planejada mediante a elaboração e implementação de políticas públicas.
Na medida em que políticas públicas representam programas de ação governamental fundados na concretização de direitos sociais, devem seguir um processo concatenado de ações desde a atividade de planejamento, a regulação de comportamentos, a organização da burocracia estatal, a distribuição de benefícios, a arrecadação de impostos, por exemplo.18 A par disso, as etapas de realização das políticas públicas, no formato cíclico, envolvem elaboração e planejamento, execução, avaliação e fiscalização.
Antes mesmo de delinearmos cada etapa, importante compreender que a legitimidade da política pública está condicionada a obrigações juridicamente relevantes, ou seja, previstas na Constituição Federal, em tratados ou legislação infraconstitucional, mas a eles não se esgota. Ocorre que o ordenamento jurídico, ao consagrá-las, vincula o Estado a agir de forma coordenada, envolvendo a participação dos Poderes, entes da Federação e órgãos de governo, visando o atendimento prioritário de grupos marginalizados e, tão logo, da redução da desigualdade existente.
Sob a perspectiva do conceito19 de política pública enquanto programa de ação governamental, desenvolvido pela Professora Maria Paula Dallari Bucci, associado à ideia de processos estatais pertinentes e interligados, demonstra-se o encadeamento de atos juridicamente coordenados e determinados. Com efeito, confere a clareza necessária:
"(...) o processo administrativo, porque é a matriz de organização do processo decisório no âmbito da Administração Pública, corpo executivo do governo; o processo legislativo, dado o interesse no exercício da iniciativa governamental sobre a elaboração das leis; o processo judicial, porque o Poder Judiciário é o foro último de decisão sobre conflitos relacionados à implementação dos direitos objeto das políticas públicas".20
Acrescenta, ainda, o processo orçamentário, centrado na alocação de recursos, bem como o processo de planejamento, que orienta comportamentos futuros do Poder Público e dos agentes privados, e o processo eleitoral em função da eleição pelo povo de seus representantes.21
Cada processo dentro de suas particularidades exerce importante função no resultado e avaliação da política pública, objetivando orientar as condutas no interior do Estado e fora dele. Ou seja,
"(...) no sentido de produzir um quadro de ação sustentável no tempo, hábil, portanto, a realizar de fato (e não apenas no plano da retórica, no sentido vulgar) os resultados enunciados na política, buscando a qualidade e clareza da composição do arranjo institucional, com repercussão sobre as dimensões ética e técnica".22
A par disso, há quatro elementos tidos como essenciais para a configuração de política pública: ação, coordenação, processo e programa, os quais nada mais são do que parâmetros objetivos que imprimem racionalidade à ação estatal.
O modo pelo qual cada elemento relaciona-se ao outro depende da verificação de uma série de etapas e atividades distintas expressada no modelo de ciclo das políticas públicas. Dentre elas, Clarice Seixas Duarte destaca:
"(a) identificação dos problemas e demandas a serem atacados para a definição das prioridades a serem decididas junto aos formuladores de políticas públicas; (b) formulação de propostas concretas entre diferentes opções de programas a serem adotados; (c) implementação propriamente dita da política, com a criação da estrutura necessária e observância da burocracia existente, gasto de recursos e aprovação de leis; (d) avaliação dos resultados da política por meio da verificação dos resultados e aprovação das leis; (e) fiscalização e controle da execução da política por meio da atuação da sociedade civil, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público".23
Assim, a formulação de uma política pública, a partir de um planejamento racional, visa alcançar o máximo de ganho social possível, cujo delineamento pode se dar mediante estudos multidisciplinares e identificação dos grupos vulneráveis. Feito isso é possível estabelecer metas e resultados a serem atingidos em determinado intervalo de tempo, de modo a ampliar o alcance de um determinado direito.24
Tamanha a importância das diretrizes iniciais que guiarão a fase de implementação ou execução da política pública e a utilização dos recursos disponíveis para a satisfação do fim coletivo. No entanto, nesta fase é mais comum o irregular destino das verbas destinadas, razão pela qual é imprescindível a fiscalização e controle da política pública.
A avaliação, segundo Clarice Seixas Duarte é:
"(...) o momento em que se verifica o impacto concreto da política, se os objetivos previstos estão sendo atingidos e se há algo a ser modificado; se existe uma relação de adequação entre os meios escolhidos e os fins almejados e se estes estão de acordo com determinados parâmetros preestabelecidos".25
Trata-se, pois, da verificação da eficácia da política.
Em decorrência das duas primeiras etapas, fundamental é a fase de fiscalização e controle, atividade a ser desenvolvida pelo Poder Judiciário mediante o controle judicial das políticas públicas, pela sociedade civil, por meio dos Conselhos Gestores e Auditorias Públicas, pelos Tribunais de Contas ao fiscalizarem os gastos públicos, e pelo Ministério Público na esfera da exigibilidade judicial das políticas públicas.26
A atuação do Poder Judiciário era limitada a litígios individuais de caráter patrimonial, de modo que o controle judicial de políticas públicas era até então impensável, já que a intervenção jurisdicional era barrada pela intangibilidade da Administração Pública e do Poder Legislativo, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes.
Ao se falar em limites e aferição do controle judicial das políticas públicas não está em questionamento a legitimidade do Poder Judiciário no exercício do controle judicial de políticas públicas e sua compatibilização com os objetivos constitucionais e direitos fundamentais, desde que observados os parâmetros do mínimo existencial e averiguado o alcance devido da reserva do possível, sempre pautados pelo filtro da Constituição Federal.
Não há que se levantar dúvida sobre a legitimidade do Poder Judiciário pelo fato de os juízes não serem eleitos democraticamente, tal como ocorre com os agentes políticos da Administração Pública e do Poder Legislativo. A atuação do magistrado ao proferir decisão judicial cujo objeto veicule política pública não é fundada na representatividade, mas sim no devido processo legal, na ampla defesa e no contraditório, fundada na argumentação racional em conformidade à Constituição Federal.
Parte-se do propósito de que não há mais como sustentar o raciocínio de que o papel do juiz se reduz a declarar o direito e a criar a norma individual, sob a proteção da neutralidade e da premissa liberal de que todos são iguais perante a lei. No Estado Constitucional a jurisdição tem o dever de realizar os direitos fundamentais prometidos pela Constituição Federal, de modo a alcançar a igualdade material ¬– concretizada no mundo dos fatos –, e assegurar aos indivíduos as mínimas condições para desfrutarem a liberdade.
Dada a complexidade da realidade social, demanda-se do Estado a implementação e execução de ações governamentais, de cunho prestacional, para cumprir seu dever constitucional no intuito de oferecer a todos direitos indispensáveis à preservação da dignidade humana e, tão logo, garantir o exercício da cidadania.
Apesar de a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, § 1º, conferir aplicação imediata às normas de direito fundamental, muitos dos direitos sociais necessitam da intervenção do legislador para que possam produzir seus principais efeitos. Isso porque as normas de direitos sociais são bem mais complexas para alcançar a efetividade do que as de direitos individuais e políticos, por exigirem do Estado prestações de ordem positiva.
A partir da concepção de direitos prestacionais sociais é que se dará o enfoque aos limites ao controle judicial das políticas públicas. Para tanto, importante trazer a definição de Robert Alexy sobre direitos sociais tidos como direito a prestações materiais em sentido estrito, concretizados mediante políticas públicas.
"Direitos à prestação em sentido estrito são direitos do indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares. Quando se fala em direitos fundamentais sociais, como, por exemplo, direitos à assistência à saúde, ao trabalho, à moradia e à educação, quer-se primariamente fazer menção a direitos a prestação em sentido estrito".27
É sabido que em se tratando de direitos à prestação cabe, primacialmente, ao Estado, na figura do legislador, a incumbência de definir as metas prioritárias e a elaboração de políticas públicas, ao Executivo a proposta, a implementação e execução de tais políticas e ao Judiciário, por sua vez, o controle da legalidade.
Significa dizer que o Estado, enquanto Social e Democrático de Direito, tem a tarefa de promover prestações necessárias e serviços públicos adequados para o cumprimento dos objetivos fundamentais constitucionais e, tão logo, proporcionar o desenvolvimento da dignidade humana. Ou seja: “para cumprir os ideais do Estado Social, a ação dos governantes deve ser racional e planejada, o que ocorre por meio da elaboração e implementação de políticas públicas”.28
A concretização das políticas públicas está condicionada a uma série de processos de natureza administrativa, legislativa e orçamentária, interligados à discricionariedade da Administração Pública e do próprio legislador, sob o escopo de alcançar a consecução dos direitos sociais.
No entanto, importante ressaltar que conveniência e oportunidade jamais podem ser convertidas em inércia do Estado, já que a tomada de decisão deve ser no sentido de conceber políticas públicas para cumprir prestações positivas e materiais, atenuando desigualdades e promovendo a liberdade e a igualdade substantiva entre os indivíduos.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet:29
"O certo é que os direitos fundamentais sociais a prestações, diversamente dos direitos de defesa, objetivam assegurar, mediante a compensação das desigualdades sociais, o exercício de uma liberdade e igualdade real e efetiva, que pressupõem um comportamento ativo do Estado, já que a igualdade material não se oferece simplesmente por si mesma, devendo ser devidamente implementada".
Para tanto, a proposta de uma política pública precisa ser legitimada pela racionalidade estatal, de modo que as diferentes atividades e etapas pertencentes ao ciclo das políticas públicas estejam alinhadas e devidamente articuladas entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Isso porque o processo de definição e implementação de políticas públicas deve perpassar pelos três Poderes, desde a fase de identificação dos problemas e de prioridades, a formulação de propostas, a implementação propriamente dita em conformidade ao aparato administrativo, à dotação orçamentária e ao processo legislativo, a avaliação dos resultados e do impacto da política pública, e, por fim, a fiscalização e controle da execução da política pública mediante a atuação da sociedade (controle social), dos Tribunais de Contas e, judicialmente, pelo Poder Judiciário.30
Tal concatenação de fases, abrangendo, pois, desde a definição à implementação de políticas públicas, traduz a racionalidade da atuação estatal e permite identificar prioridades, previsão de dotação orçamentária, eventuais problemas entre uma etapa e outra, e, tão logo, a conjectura dos resultados.
Justamente por isso o diálogo entre os poderes públicos e a sociedade, se presente em todas as etapas, é fundamental para a viabilização plena dos direitos sociais e ao cumprimento dos fins constitucionais do Estado Social. No entanto, se omisso o Poder Legislativo na regulamentação e definição das diretrizes, ou inerte o Poder Executivo na execução das políticas públicas, propicia a fiscalização e o controle judicial da efetivação dos direitos sociais, cujos limites de sua atuação serão avaliados na sequência.
A respeito da judicialização dos direitos sociais, Maria Paula Dallari Bucci esclarece:
"A própria existência da chamada ‘judicialização da política’ é um fator que por si demonstra a processualidade das políticas públicas, na medida em que maior número de conflitos sociais passa a ser submetido à lógica processual, submetendo ao Poder Judiciário, uma vez que o modelo jurídico da Constituição favorece a admissão do conflito, e não sua rejeição. O processo judicial vem-se modernizando e atualizando, não apenas no Brasil, de modo a buscar corresponder ao anseio social. São exemplos disso os processos coletivos, a abertura ao tratamento dos interesses difusos e coletivos, a adoção das tecnologias de informação e comunicação, e uma série de inovações processuais e procedimentais que decorrem da litigiosidade de massa, isto é, a ampliação das formas de acesso à justiça e, ligado a isso, o aumento da importância social dessas formas de solução de controvérsias, em busca de maior amplitude e eficácia".31
Tamanha a repetição de ações ao atendimento de direitos individuais – em detrimento do interesse da coletividade – que refletiu na seara das políticas públicas. É o que tem ocorrido, notadamente, com os direitos prestacionais à saúde, a exemplo da grande quantidade de demandas judiciais individuais visando o fornecimento de remédio ou tratamento médico a quem dele necessite.32
Considerando que as políticas públicas constituem direitos de ordem coletiva há que se buscar, assim, meios processuais que objetivem a prestação coletiva da tutela jurisdicional, sem, contudo, ferir o compromisso democrático e exceder os limites da discricionariedade judicial.
Não se pretende avocar o controle judicial como mártir da efetivação das políticas públicas, mas viabilizar a democratização do acesso à justiça na busca da concretização dos direitos sociais e, por sua vez, da cidadania. Para tanto, o trabalho desloca-se para a análise da ação civil pública e das ações de controle de constitucionalidade enquanto limites ao controle judicial.
Aliado ao ciclo das políticas públicas faz-se necessário um sistema de indicadores técnico-científicos para mensurar os avanços e retrocessos na aplicação dos direitos sociais, bem como manter viva a rede de articulação, coordenação e participação de todos os envolvidos.
2.1. Fundamento constitucional do controle judicial
Para analisar o fundamento constitucional do controle judicial é importante trazer o panorama histórico que delineou a construção do direito e, por via de consequência, a atuação do Poder Judiciário, sobretudo representada pela figura do juiz.
A construção dos direitos não nasceu de uma só vez, nem de uma vez por todas.33 O direito, por ser dinâmico e vivo, acompanha as transformações sociais, políticas, econômicas e culturais do período histórico que vivencia. Tanto é assim que a ideia de constitucionalismo, enquanto limitação de poder e supremacia da Constituição, foi desenhada sob uma perspectiva histórica voltada ao reconhecimento e proteção de direitos. Se fundado fosse no absolutismo, não estaria a se falar de constitucionalismo, mas sim de mera decisão política.
Georges Abboud retrata que:
"O Constitucionalismo surge como fenômeno histórico-político, cuja função consiste em limitar e racionalizar o poder político, estabelecendo regras normativas a partir dos quais o Estado pode agir. Ademais, é o constitucionalismo que impõe limites ao poder soberano, mediante a divisão dos poderes, estabelecendo como valores primordiais da sociedade a liberdade, igualdade e a preservação dos direitos fundamentais".34
Justamente em razão disso é que a teoria da separação dos poderes de Montesquieu vem no sentido de limitar a liberdade política no âmbito da Constituição. Isso porque, “em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer”.35
Para tanto, Montesquieu delimita a função judicial, legislativa e executiva sob o fundamento de evitar a tirania.
"Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente".36
Foi no período do liberalismo que a teoria da separação dos poderes se consagrou de tal forma que passou a representar condição imprescindível para a validade e legitimidade do ordenamento constitucional. Tanto que o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão assim previu: “[a] sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.37
Apesar de o juiz ter sido retratado como a “boca da lei”, restrito a declarar a lei ao caso concreto e desprovido do poder de dar ordem às partes por lhe faltar o poder de imperium, tal concepção foi sendo alterada ao longo do tempo. Basta pensar na judicial review norte-americana decorrente do controle de constitucionalidade exercido pelo juiz John Marshall no caso Madison versus Marbury, em 1803. Em seu voto sustenta que qualquer lei incompatível com a Constituição não pode ser considerada válida, devendo prevalecer a supremacia da Constituição.
Em contraponto ao constitucionalismo liberal, novas exigências sociais advieram do processo de industrialização no sentido de promover o bem-estar social e a dignidade humana e, tão logo, inseri-los no texto constitucional. No entanto, de nada adiantaria introduzi-los na Constituição Federal se os meios de implementá-los fossem desprovidos de efetividade, daí a necessidade do controle judicial.
A partir do Estado Social, a atuação do Poder Judiciário se amplia. Para Ada Pellegrini Grinover:38
"A transição entre o Estado liberal e o Estado social promove alteração substancial na concepção do Estado e de suas finalidades. Nesse quadro, o Estado existe para atender ao bem comum e, consequentemente, satisfazer direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material entre os componentes do corpo social. (...) Agora, ao dever de abstenção do Estado substitui-se seu dever a um dare, facere, praestare, por intermédio de uma atuação positiva, que realmente permita a fruição dos direitos de liberdade da primeira geração, assim como dos novos direitos. E a função de controle do Poder Judiciário se amplia".
Desde então os textos constitucionais passaram a contemplar os direitos sociais e sua exequibilidade ficou a cargo da prestação jurisdicional mediante o controle judicial da discricionariedade administrativa.39
Acresce-se ao fato de que a própria Constituição Federal contemplou no artigo 3º dentre os objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos e o do desenvolvimento nacional.
Apesar de lá estarem previstos, a concretização depende de uma série de variáveis que envolvem desde a vontade política na formulação de metas e execução de políticas públicas, previsão orçamentária, a devida avaliação se os objetivos estão sendo alcançados e a que custo até a fiscalização por meio da própria sociedade, do Tribunal de Contas e do Ministério Público.
A partir do comando constitucional ou legal, cabe ao Estado promover as ações necessárias para a consecução dos objetivos fundamentais contidos no art. 3º.
Segundo Oswaldo Canela Junior:40
"Se a igualdade substancial, matriz do referido art. 3.º, somente puder ser alcançada com a satisfação dos direitos fundamentais –, sobretudo dos direitos sociais –, a omissão dos Poderes Legislativo e Executivo na promoção de políticas públicas destinadas à respectiva satisfação espontânea gerará dano à sociedade, reparável por meio da atividade jurisdicional".
Para cumprir o propósito constitucional, o Poder Judiciário é legitimado a exercer o controle judicial de políticas públicas que, em razão de ação ou omissão dos demais Poderes Executivo e Legislativo, não promoveram a satisfação integral dos direitos fundamentais.
Isso porque, segundo Marçal Justen Filho:41
"A transformação concreta da realidade social e sua adequação ao modelo constitucional dependem primordialmente do desenvolvimento de atividades administrativas efetivas. (...) a supremacia da Constituição não pode ser mero elemento do discurso político. Deve constituir o núcleo concreto e real da atividade administrativa. Isso equivale a rejeitar o enfoque tradicional, que inviabiliza o controle nas atividades administrativas por meio de soluções opacas e destituídas de transparência, tais como ‘discricionariedade administrativa’, ‘conveniência e oportunidade’ e ‘interesse público’. Essas fórmulas não devem ser definitivamente suprimidas, mas sua extensão e importância têm de ser restringidas à dimensão constitucional e democrática".
Ao inserir os objetivos fundamentais dentre os mandamentos constitucionais, o Estado brasileiro assume, inclusive, um compromisso ético perante a comunidade internacional. Uma vez consagrado o sistema ético de referência fundado na garantia de direitos fundamentais, não pode o Poder Judiciário se esquivar do compromisso político-institucional que a Constituição lhe outorgou.42
2.2. Limites ao controle judicial de políticas públicas
Partindo do pressuposto de que os direitos sociais são de ordem prestacional, ou seja, contemplam prestação do Estado diretamente vinculada à destinação, distribuição e criação de bens materiais, cujo objeto deduz uma conduta estatal positiva voltada a uma prestação de natureza fática, não se pode desprezar, por outro lado, a dimensão econômica necessária para efetivá-los.43 Diferente dos direitos de defesa que, em regra, podem receber proteção como direitos subjetivos sem estarem condicionados à disponibilidade do orçamento.44
Ingo Wolfgang Sarlet considera ambos os direitos complementares e de conciliação necessária à concretização da igualdade. Isso porque,
"(...) os direitos fundamentais sociais almejam uma igualdade real para todos, atingível apenas por intermédio de uma eliminação das desigualdades, e não por meio de uma igualdade sem liberdade, podendo afirmar-se, neste contexto, que, em certa medida, a liberdade e a igualdade são efetivadas por meio dos direitos fundamentais sociais".45
Importante compreender que os direitos à prestação exigem, em sentido restrito, a atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social voltada ao fornecimento e distribuição de prestações materiais, bem como abrangem direitos de participação na organização e procedimento sob a ótica da liberdade e da igualdade defensiva.46 Robert Alexy, amparado na Teoria dos Status de Jellinek, os classifica como status negativus e positivus.47
Para a compreensão do que se pretende dizer:
"O indivíduo está inserido nesse status sempre que o Estado a ele ‘reconhece a capacidade jurídica para recorrer ao aparato estatal e utilizar as instituições estatais, ou seja [quando] garante ao indivíduo pretensões positivas.’ O que se quer dizer com isso não é algo muito claro. Fica mais claro quando Jellinek afirma que o Estado confere ao indivíduo o ‘status cívico’ quando (1) lhe garante ‘pretensões à sua atividade’ e (2) ‘cria meios jurídicos para a realização desse fim’. (...) O fato de o indivíduo ter esse tipo de pretensão em face ao Estado significa, em primeiro lugar, que ele tem direitos a algo em face do Estado e, em segundo lugar, que tem uma competência em relação ao seu cumprimento".48
Ponto de partida que pressupõe a previsão de direito fundamental à garantia do mínimo existencial necessário à dignidade humana, cuja concretização muitas vezes depende de implementação de políticas públicas, sujeitas, por sua vez, à dotação orçamentária.
Isso reflete no momento da tomada de decisão em sede de controle judicial de políticas públicas. Eis os limites à atuação judicial a serem considerados:
(1) o limite fixado pelo mínimo existencial a ser garantido ao cidadão; (2) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público; (3) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.49
O conteúdo do mínimo existencial está atrelado não só à promoção da igualdade, mas também à liberdade. O indivíduo, enquanto cidadão, somente é capaz de exercer as liberdades políticas, civis, econômicas e culturais, se reunir condições fáticas mínimas à dignidade humana.
Ricardo Lobo Torres, na linha da Teoria dos Status, retrata que o mínimo existencial é composto pelo status negativus libertatis, status positivus libertatis e status positivus socialis.
O primeiro deles se afirma no campo tributário ao limitar o poder de tributação do Estado em razão da situação econômica do cidadão, mediante as imunidades fiscais. É o caso, por exemplo, da isenção de IPI e de ICMS no valor das cestas básicas, de IPTU nas localidades menos favorecidas e de ITR nas pequenas glebas rurais.50
Ainda no patamar da liberdade como condicionante ao mínimo existencial, o status positivus libertatis contempla o fornecimento de serviços públicos gratuitamente mediante a garantia constitucional de imunidade de taxas ou tributos contraprestacionais, tal como a prestação jurisdicional gratuita assegurada aos necessitados. Porém, não se confunde com o status positivus socialis, pois a proteção estatal está vinculada a garantir as condições de liberdade, o mínimo existencial e a formação do cidadão.51
O status positivus socialis, enquanto direitos a prestações em sentido estrito – direitos fundamentais sociais de natureza prestacional52 –, para Ricardo Lobo Torres, é “(...) de suma importância para o aperfeiçoamento do Estado Social de Direito, sob a sua configuração de estado de prestações e em sua missão de protetor de direitos sociais e de curador da vida social”.53
Para Ingo Wolfgang Sarlet:
"Os direitos fundamentais, em geral, mas também os assim designados direitos sociais possuem em princípio uma dupla dimensão negativa (defensiva) e positiva (prestacional), implicando, portanto, poderes (direitos) subjetivos correspondentes, de conteúdo negativo e positivo, o que não afasta (...) a possível e útil classificação (dadas as diferenças existentes entre a dimensão negativa e prestacional) dos direitos fundamentais em direitos de defesa e direitos a prestações".54
Para executar as prestações positivas, a exemplo da implementação de políticas públicas, não se pode desprezar a previsão de disponibilidade orçamentária, ou seja, se os limites materiais aos recursos do Estado foram observados. Trata-se, aqui, do limite (relativo) da reserva do possível.
No caso de direitos sociais a prestações, Ingo Wolfgang Sarlet dispõe sobre o “fator custo”:
"Já no que diz com os direitos sociais a prestações, seu ‘custo’ assume especial relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando, pelo menos para significativa parcela da doutrina, que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se despenda algum recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a possibilidade de os órgãos jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação das prestações reclamadas".55
A respeito do controle judicial e o argumento da reserva do possível é preciso analisar fática e juridicamente. Sob os aspectos fáticos, o Poder Judiciário há de observar os limites materiais disponíveis aos recursos do Estado, seja financeiramente, seja estruturalmente. Quando aos aspectos jurídicos, a limitação encontra-se no sentido de que os gastos públicos dependem de prévia disponibilidade financeira.56-57
Isso significa que a prestação positiva por parte do Estado envolve a arrecadação de verbas sujeita à autorização orçamentária, tema este firmado no Tribunal Constitucional Federal alemão em que os direitos prestacionais se submetem à reserva do possível, na medida em que a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode racionalmente exigir da sociedade.58
A reserva do possível é objeto da teoria dos custos dos direitos, de Stephen Holmes e Cass R. Sunstein,59 por meio da qual não se restringe à classificação em direitos de defesa e direitos prestacionais. Consideram que não apenas os direitos sociais acarretam encargos econômicos e financeiros substanciosos para o poder público, mas também os direitos negativos possuem um custo a eles atrelados.60
Interessante análise de Holmes e Sunstein, aos considerarem não apenas os direitos econômicos, sociais e culturais implementáveis por política pública, mas também os direitos individuais, já que para assegurar a efetividade tanto de um, como de outro, é necessária a alocação de recursos públicos.61
Nesse sentido, Ana Paula de Barcellos afirma: “toda e qualquer ação estatal envolve gasto de dinheiro público e os recursos públicos são limitados. Essas são evidências fáticas e não teses jurídicas. (...) As políticas públicas, igualmente, envolvem gastos”.62
Justamente em razão de os recursos públicos serem finitos, é preciso priorizar as escolhas em que o dinheiro público será investido. Isso deve ser não apenas por deliberação política, mas em observância aos compromissos constitucionais.63
A partir desse cenário, Ana Paula de Barcellos estabelece as premissas a serem observadas:
"(i) a Constituição estabelece como um de seus fins essenciais a promoção dos direitos fundamentais; (ii) as políticas públicas constituem o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizados de forma sistemática e abrangente; (iii) as políticas públicas envolvem gasto de dinheiro público; (iv) os recursos são limitados e é preciso fazer escolhas; logo (v) a Constituição vincula as escolhas em matéria de políticas públicas e dispêndio de recursos públicos".64
E, ainda, faz a ressalva de que a definição dos gastos públicos deve ser dada primacialmente pela via da deliberação político-majoritária, mas tal discricionariedade não estará livre do controle judicial para o cumprimento do dever constitucional.65
É inegável que ao se falar do cumprimento dos fins constitucionais, atrela-se à promoção do mínimo existencial e à proteção dos direitos fundamentais. A pergunta que se faz é: se o poder público diante das metas constitucionais, em tese, deve priorizar o gasto de dinheiro público disponível em políticas públicas que alcancem tal resultado e não o faz, qual o grau de ingerência autorizado ao Poder Judiciário por meio do controle judicial?
Ana Paula de Barcellos propõe três parâmetros a serem observados.
O primeiro é de natureza puramente objetiva relacionado à quantidade de recurso que deverá ser destinado à implementação de política pública para o cumprimento dos fins constitucionais. A resposta vem fundamentada na própria Constituição Federal, a exemplo dos artigos 195, 198, § 2º e 212.66
Apesar de ser uma equação racional e objetiva, que, em tese, bastaria apurar qual o percentual a ser destinado em matéria de saúde e de educação baseado na arrecadação dos impostos e o valor total das receitas geradas pelas contribuições e, por sua vez, verificar se estão sendo de fato aplicados à execução das políticas públicas, o resultado não é simples de se obter.67
Esbarra-se, aqui, no obstáculo ao acesso à informação sobre os recursos públicos disponíveis, a previsão orçamentária e a execução orçamentária. Por consequência, a falta de transparência acaba por dificultar o controle judicial.
A partir da Constituição Federal, extrai um segundo parâmetro fundado no resultado final esperado da atuação estatal, ou seja, diz respeito à verificação se os bens mínimos assegurados pelo Estado foram efetivamente implementados para a promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais.68
Para Ana Paula de Barcellos:69
"A construção desses parâmetros envolve um trabalho hermenêutico que consiste em extrair das disposições constitucionais efeitos específicos, que possam ser descritos como metas concretas a serem atingidas em caráter prioritário pela ação do Poder Público".
Isso significa que se a saúde é direito de todos e dever do Estado, há de ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, segundo meta constitucional do artigo 196. Diante desse compromisso, os recursos públicos disponíveis devem ser investidos em políticas públicas que concretizem tal meta. Enquanto não for atingida, “outras políticas públicas não prioritárias do ponto de vista constitucional terão de aguardar”.70
Tanto o parâmetro objetivo concernente à destinação de recursos públicos disponíveis, como o parâmetro voltado ao cumprimento das metas constitucionais, deve ser considerado na tomada de decisão no tocante à escolha das políticas públicas. É certo que por meio das políticas públicas é que se busca concretizar os fins constitucionais, mas, para tanto, envolve gasto de dinheiro público.71
É inegável que a previsão de despesas deve integrar o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, sendo vedado o início de programa ou projeto não incluídos na lei orçamentária anual, mas como afirma Luis Manuel Fonseca Pires:72
Não há amarras à Administração Pública com rubricas detalhadas minimamente precisas sobre o emprego do dinheiro público, o que representa, inclusive, a espargida liberdade discricionária de que goza o Executivo na escolha das políticas públicas e respectiva definição dos meios. Se a Administração prefere, quanto à verba destinada à educação, construir mais escolas, erigir um plano de carreira aos professores, implementar uma política salarial diferenciada, investir em pesquisa, reformar a grade escolar com o investimento em computadores, laboratórios ou outras atividades de ensino, há uma expressiva liberdade. Por isso, diante da pluralidade de opções padece o argumento que pretende afastar o controle judicial com fundamento na legislação orçamentária como se à Administração fosse conferida apenas uma única opção de ação, como se fosse uma competência vinculada.
No entanto, para que a escolha de políticas públicas para o cumprimento de meta concreta constitucional seja eficiente, Ana Paula de Barcellos propõe o terceiro parâmetro que envolve o controle da própria definição das políticas públicas a serem implementadas, atividade reservada pela Constituição aos entes majoritários.73
Se nos dois parâmetros anteriores prezou-se pelo cumprimento de meta constitucional considerando o recurso público disponível, este terceiro parâmetro trabalha em como atingi-lo, ou seja, o objetivo é assegurar uma eficácia mínima às ações estatais.74
Isso porque,
"As políticas públicas têm de contribuir com uma eficiência mínima para a realização das metas estabelecidas na Constituição; caso contrário, não apenas se estará fraudando as disposições constitucionais, como também desperdiçando recursos públicos".75
Eis o momento em que o controle judicial contribui para a fiscalização e eventual coibição da ineficiência, uma vez que as escolhas no tocante aos gastos públicos e às políticas públicas não se submetem apenas à deliberação política, mas devem observância à Constituição Federal.
Notas
1 CARVALHAES, Andréia R. Schneider Nunes. Limites e aferição do controle judicial de políticas públicas.
2 BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas, p. 37.
3 Idem, p. 39.
4 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 36.
5 COMPARATO, Fabio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, nº 138.
6 BUCCI, Maria Paula Dallari. Buscando um conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos humanos. Direitos humanos e políticas públicas, p. 10.
7 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 90.
8 BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 12.
9 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas, p. 264.
10 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas, p. 39.
11 Idem, p. 269.
12 SMANIO, Gianpaolo Poggio. O direito e as políticas públicas no Brasil, p. 12.
13 BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 97.
14 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas, p. 31.
15 Ibidem.
16 GRINOVER, Ada Pelegrini. O controljurisdicional de políticas públicas. O controle jurisdicional de políticas públicas.
17 BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 194.
18 DUARTE, Clarice Seixas. O direito e as políticas públicas no Brasil.
19 “Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e determinados”. BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, p. 39.
20 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas, p. 146.
21 Ibidem.
22 Idem, p. 149.
23 DUARTE, Clarice Seixas. O direito e as políticas públicas no Brasil, p. 26.
24 Idem, p. 27.
25 Idem, p. 31.
26 Idem, p. 33.
27 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 499.
28 DUARTE, Clarice Seixas. O direito e as políticas públicas no Brasil, p. 17.
29 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 199.
30 DUARTE, Clarice Seixas. O direito e as políticas públicas no Brasil, pp. 25-26.
31 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas, p. 192.
32 Entre o ano de 2010 e 2015, houve o aumento da judicialização da saúde em mais de 90%, segundo dados extraídos da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo.
33 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 05.
34 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, p. 49.
35 MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 166.
36 MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 168.
37 NUNES, Andréia Regina Schneider. Judicialização da política: o Poder Judiciário como instrumento de realização dos direitos fundamentais, p. 122.
38 GRINOVER, Ada Pelegrini. O controle judicial de políticas públicas. O controle judicial de políticas públicas, p. 126.
39 GRINOVER, Ada Pelegrini. O controle judicial de políticas públicas. O controle judicial de políticas públicas, p. 127.
40 CANELA JUNIOR, Oswaldo. Controle judicial de políticas públicas, p. 22.
41 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, p. 13-14.
42 CANELA JUNIOR, Oswaldo. Controle judicial de políticas públicas, p. 95.
43 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 282.
44 Idem, p. 284.
45 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 199.
46 Idem, p. 191.
47 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 433.
48 Idem, pp. 263-264.
49 GRINOVER, Ada Pelegrini. O controle jurisdicional das políticas públicas. O controle jurisdicional das políticas públicas, p. 140.
50 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de direito administrativo, v. 177, p. 35.
51 Idem, p. 40.
52 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 199.
53 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de direito administrativo, v. 177, p. 40.
54 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 207.
55 Idem, p. 285.
56 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas, p. 288.
57 Em atenção à devida destinação de recursos pelo Poder Público, segue crítica de Luis Manuel Fonseca Pires: “[...] entendemos que esta constatação não pode restringir-se à leitura simplista e estreita do que os olhos conseguem enxergar. Em contraste com este discurso titubeante da Administração Pública toda vez que demandada judicialmente também devemos considerar que há atividades concretas – e igualmente notórias – de empenho de quantias exorbitantes de recursos públicos – financeiros, de pessoal e de material – em campanhas de propagandas das realizações do governo, em projetos cujos bens almejados (festas populares, monumentos etc.) são de discutível prioridade em relação aos valores preteridos (saúde, educação, segurança pública e outros), enfim, há diversas situações em que é possível cotejar os discursos de larga lamentações que são formulados pela Administração Pública em sua defesa nas ações judiciais com o dispêndio de vultosas quantias com outras atividades que não se justificam como máxima prioridade de um Estado Social.” (PIRES, Luis Manuel Fonseca. Op. cit., p. 309).
58 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 287; SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos, p. 153.
59 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights. Why liberty depends on taxes.
60 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 204.
61 Idem, p. 206.
62 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista diálogo jurídico, nº 15, p. 11.
63 Idem, p. 12.
64 Ibidem.
65 Idem, p. 14.
66 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista diálogo jurídico, nº 15, p. 18.
67 Idem, p. 19.
68 Idem, p. 20.
69 Idem, p. 20.
70 Idem, p. 21.
71 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista diálogo jurídico, nº 15, p. 31.
72 PIRES, Luís Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas, pp. 288-289.
73 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 23.
74 Ibidem.
75 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista diálogo jurídico, nº 15, p. 24.
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Citação
NUNES, Andréia R. Schneider. Políticas públicas. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Difusos e Coletivos. Nelson Nery Jr., Georges Abboud, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/376/edicao-1/politicas-publicas
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Tomo Direitos Difusos e Coletivos, Edição 1,
Julho de 2020
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