O processo coletivo é a técnica processual colocada à disposição da sociedade, pelo ordenamento, para permitir a tutela jurisdicional dos direitos afetados pelos litígios coletivos. Neste verbete, serão feitas considerações sobre o tema.

1. Processo coletivo


Em um mundo globalizado, em que as relações jurídicas são predominantemente massificadas, a ocorrência de litígios coletivos é inevitável. Qualquer país viverá situações em que distintas acepções de sociedade, formadas por seus habitantes, se verão envolvidas em litígios que não derivam de relações jurídicas individualizadas, mas coletivas. Mais que isso, como observa Michele Taruffo, “no atual mundo globalizado, a administração da justiça e a proteção de direitos não podem ser consideradas – como tem sido até agora – como questões pertencentes apenas à soberania pós-wesphaliana de estados-nação”.1 Nesse sentido, os litígios coletivos podem ser e, em muitos casos, efetivamente são, transnacionais. Basta pensar no aquecimento global, que talvez seja o mais importante litígio coletivo ambiental da atualidade, que não está afeto ao sistema jurídico de nenhum país, especificamente. As tentativas que têm sido feitas para tratar o problema estão na esfera do direito internacional.

Se os litígios coletivos são necessários, o processo coletivo, por outro lado, é contingente. A existência de processos coletivos depende do ordenamento jurídico de cada país. Diversos países europeus não contam com sistemas processuais coletivos ou, quanto o têm, ele se limita a algumas áreas do Direito. Assim, por exemplo, tanto na Itália quanto na Espanha, a regulamentação do processo coletivo se limita, basicamente, a um dispositivo legal, vinculado apenas ao direito do consumidor. Na Itália, trata-se do art. 140-bis, do Código de Consumo2 e, na Espanha, do art. 11 do Código de Processo Civil.3  

Isso não significa, por óbvio, que os litígios coletivos, nesses países, só existam em matéria de consumo. Significa apenas que o ordenamento jurídico não colocou à disposição das partes instrumentos processuais civis para obter a tutela coletiva em outras searas. Litígios coletivos em matéria de saúde ou de educação, por exemplo, serão resolvidos pelo Direito Administrativo, com a atuação de órgãos e entidades governamentais, ou pelo processo individual. Litígios ambientais estarão afetos ao Direito Penal e assim por diante. 

Mesmo no Brasil, que tem um sistema processual coletivo bastante amplo, ele não está disponível para todos os litígios, ainda que coletivos. O parágrafo único do art. 1º da Lei da Ação Civil Pública exclui a incidência do processo coletivo sobre os litígios que versem sobre questões tributárias, relacionadas a contribuições previdenciárias ou a fundos institucionais cujos beneficiários podem ser individualmente identificados, como é o caso do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS. Apesar disso, é muito mais provável que os litígios tributários e previdenciários sejam coletivos, não individuais. Afinal, o Estado impõe exações tributárias, em regra, à sociedade de contribuintes que se encontrem em determinada situação, não a pessoas singularmente escolhidas. 

Nesse quadro, os conceitos de processo coletivo e de litígio coletivo não são sinônimos, nem se relacionam, necessariamente. O processo coletivo é a técnica processual colocada à disposição da sociedade, pelo ordenamento, para permitir a tutela jurisdicional dos direitos afetados pelos litígios coletivos. Se essa técnica não existir, os litígios coletivos serão tratados por outras técnicas processuais, de acordo com o sistema de cada país. 

Via de regra, o processo coletivo foi moldado, nos diversos países em que foi adotado, por intermédio de técnicas representativas: algum sujeito que não titulariza o direito material, ou, pelo menos, não titulariza a totalidade dele, é legitimado pela ordem jurídica para conduzir um processo cuja decisão, ao final, terá efeitos sobre a sociedade titular do direito litigioso.4 O processo coletivo rompe, assim, com a lógica tradicional do “day in court”. É a tese, não o sujeito, que será submetido ao tribunal.5  

No Brasil, os litígios coletivos podem ser processados coletivamente, na forma das disposições que compõem o microssistema processual coletivo, principalmente a Lei da Ação Civil Pública e a parte processual (arts. 81 a 104) do Código de Defesa do Consumidor. É de se recordar também a existência de disposições quanto ao processo coletivo na Consolidação das Leis do Trabalho, na Lei do Mandado de Segurança, na Lei da Ação Popular, na Lei de Improbidade Administrativa, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto do Idoso, dentre outros. O sistema de formação de precedentes obrigatórios também pode servir para solucionar litígios coletivos. Quando a decisão de um processo define uma questão de direito com efeitos para toda uma sociedade, entendida como estrutura, como solidariedade ou como criação, poderá proporcionar soluções para litígios coletivos.6  

Observe-se que, mesmo que exista, no ordenamento jurídico, a possibilidade de ajuizamento de ações coletivas, elas podem não ser propostas e o litígio, embora coletivo, acabar sendo tratado em processos individuais. Isso ocorre no Brasil, em diversas situações, nas diversas situações que se convencionou chamar de litigância de massa ou litigância repetitiva. Um exemplo emblemático é a do litígio decorrente dos limites das prestações devidas pelo Sistema Único de Saúde. Embora esse litígio seja claramente coletivo, uma vez que a saúde pública é um serviço oferecido a todos, em igualdade de condições, a interpretação que se produziu do princípio da inafastabilidade da jurisdição permitiu que fossem ajuizadas milhões de ações requerendo, individualmente, medicamentos ou tratamentos médicos.7 Tanto é assim que o sistema de precedentes obrigatórios, estabelecido pelo Código de Processo Civil de 2015, prevê, em diversas disposições, que os precedentes, ainda que formados em processos individuais, se aplicam também aos processos coletivos,8 denotando que a solução atribuída ao caso individual pode ser extensível a um processo coletivo, exatamente porque ambos podem incidir sobre o mesmo litígio. O texto do CPC também reconhecia expressamente essa possibilidade no art. 333, vetado, que permitia a conversão de ação individual e coletiva. 

O contrário também é possível. Litígios puramente individuais podem ser tratados em processos coletivos, quando o ordenamento assim o permite. O Código de Defesa do Consumidor autoriza que sejam propostas ações coletivas para tutelar direitos individuais homogêneos, que são aqueles decorrentes de “origem comum”. Dependendo de como se interpreta essa origem comum – e Sérgio Arenhart já demonstrou que tal interpretação não é unívoca9 - será possível permitir que os clientes lesados pelo alfaiate sejam tutelados em uma ação proposta por uma associação de consumidores, ainda que seus litígios sejam individuais. 

Em sentido análogo, o STJ e o STF vêm permitindo, ainda que sem unanimidade,10 o processamento de habeas corpus coletivos, que pretendem tutelar a liberdade de grupos de presos, como foi o caso das presas mães de filhos menores.11 Apesar da aceitação, pelos tribunais, do (discutível12) instrumento processual coletivo, os litígios, nesses casos, são claramente individuais, uma vez que cada uma dessas mulheres tinha sido presa por uma ordem judicial distinta, por crimes diversos e em situações carcerárias completamente diferentes. A liberdade dessas pessoas não foi cerceada enquanto grupo, coletivamente.   

Também é preciso perceber que, embora o litígio coletivo usualmente decorra da sociedade ter sofrido uma lesão, é possível, em alguns casos, que ela seja a causadora da lesão. É o que ocorre, por exemplo, quando um grupo de trabalhadores organizados causa danos ao seu empregador, ou quando um grupo social, organizado pela internet, realiza manifestações violentas, que lesam o direito de indivíduos. 

Em alguns países, como é o caso dos Estados Unidos, o ordenamento jurídico fornece à vítima uma ferramenta para processar a sociedade, que é a ação coletiva passiva (defendant class action). Um representante adequado é apontado pelo autor, para assumir a defesa do grupo e, caso ele seja derrotado, as consequências poderão ser impostas aos integrantes da sociedade, ainda que eles não tenham tido oportunidade de intervir no processo. 

Apesar de alguns autores entenderem que essa possibilidade existe também no Brasil,13 já se demonstrou, em outro estudo, que não há condições, de acordo com o ordenamento vigente, para que um representante possa ser processado e, caso seja derrotado, o vencedor imponha a condenação aos ausentes, que não puderam participar do processo. A interpretação que se faz, presentemente, dos limites subjetivos da coisa julgada e da cláusula constitucional do devido processo legal impedem esse resultado.14 Assim, ao litígio coletivo passivo, no Brasil, não corresponde uma ação coletiva passiva. É bom mencionar que, mesmo nos Estados Unidos, a atenção e entusiasmo da doutrina com a modalidade passiva das class actions são consideravelmente reduzidos.15  

Em síntese, o processo coletivo é a técnica que o ordenamento jurídico coloca à disposição da sociedade para obter tutela dos direitos materiais violados no contexto de litígios coletivos. Esse processo se desenvolve por intermédio da atividade de um representante, que figura como parte, mas litiga em nome dos verdadeiros titulares do direito. Embora o processo coletivo seja a melhor forma de se prestar tutela jurisdicional para os litígios coletivos, ele pode não ser a única, ou pode mesmo não estar disponível, dependendo do ordenamento jurídico de cada país. Da indisponibilidade de um sistema processual coletivo não se pode extrair a inexistência de litígios coletivos, que são inerentes à organização social moderna. Eles serão resolvidos por outras vias, jurisidicionais ou não. 

No Brasil, embora o processo coletivo esteja disponível, é comum que litígios coletivos sejam tratados por múltiplos processos individuais. Apesar de lícita, essa alternativa prejudica a qualidade e economicidade da prestação jurisdicional, propicia julgamentos contraditórios, em prejuízo ao princípio da isonomia e impede que o problema seja solucionado como um todo, a partir da consideração completa de seus elementos.


Notas

1 TARUFFO, Michele. Notes on the collective protection of rights. I Conferencia Internacional y XXIII Jornadas Iberoamericanas de derecho procesal: procesos colectivos class actions, pp. 23-30. A citação está na p. 27.  

2 Decreto legislativo 206/2005, Art. 140-bis Azione di classe.

3 Ley de Enjuiciamiento Civil, Artículo 11. Legitimación para la defensa de derechos e intereses de consumidores y usuarios.

4 “Segundo pensamos, ação coletiva é a proposta por um legitimado autônomo (legitimidade), em defesa de um direito coletivamente considerado (objeto), cuja imutabilidade do comando da sentença atingirá uma comunidade ou coletividade (coisa julgada). Aí está, em breves linhas, esboçada a nossa definição de ação coletiva. Consideramos elementos indispensáveis para a caracterização de uma ação como coletiva a legitimidade para agir, o objeto do processo e a coisa julgada" GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas, p. 16. 

5 Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. apresentam uma exceção ao caráter representativo do processo coletivo. Trata-se do art. 37, da Lei 6.001/1973, o Estatuto do Índio, que dispõe que “Os grupos tribais ou comunidades indígenas são partes legítimas para a defesa dos seus direitos em juízo, cabendo-lhes, no caso, a assistência do Ministério Público Federal ou do órgão de proteção ao índio”. Esse dispositivo é compatível com o teor do art. 232 da Constituição, que determina que “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. O STJ, no julgamento do REsp 990.085/PA, rel. Min. Francisco Falcão, j. 19.02.2008, não apenas admitiu a legitimidade recursal da Comunidade Indígena Gavião da Montanha, como ainda lhe reconheceu as prerrogativas processuais inerentes à Fazenda Pública. Essa seria uma situação de legitimação coletiva ordinária, de índole não representativa: a comunidade age em defesa dos seus próprios direitos. Trata-se, todavia, de exceção única, que não compromete o conceito apresentado no texto, para outras situações.  

6 No sentido do texto, DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Ações coletivas e o incidente de julgamento de casos repetitivos – espécies de processo coletivo no direito brasileiro: aproximações e distinções. Revista de processo, v. 256, 2016, pp. 209-2018.

7 O mesmo fenômeno ocorre com a pretensão de obtenção de vagas para crianças em creches públicas. Embora o litígio seja coletivo (faltam vagas em um serviço público), há milhares de processos judiciais individuais solicitando, cada um, vaga para uma criança. 

8 “Art. 982. Admitido o incidente, o relator:

I - suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso; 

(...)

§ 3º Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado mencionado no art. 977, incisos II e III, poderá requerer, ao tribunal competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já instaurado.

(...)

Art. 985.  Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada:

I - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região;

(...)

Art. 987.  Do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário ou especial, conforme o caso.

(...)

§ 2º Apreciado o mérito do recurso, a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito”.

9 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos interesses individuais homogêneos

10 Não aceitando o HC coletivo, por exemplo, no STJ, AgRg no RHC 41.675/SP, rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 05.10.2017. No STF, HC 148.459, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 19.02.2018.  

11 STF, HC 143641/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20.02.2018.

12 O habeas corpus é um remédio existente em praticamente todos os sistemas jurídicos ocidentais, destinado a tutelar a liberdade individual de alguém. A ponderação das características e circunstâncias pessoais daquele indivíduo são essenciais para a decisão de sua soltura, assim como são essenciais para a decisão da sua prisão. Basta que se pense no exemplo oposto – a possibilidade de se editar ordens coletivas de prisão – para que se perceba que a garantia de liberdade individual contra o encarceramento determinado por um juiz é impassível de tutela coletiva, na via do habeas corpus. Cria-se, mais uma vez, uma espécie de “teoria brasileira do habeas corpus”, tal como ocorreu no início do século XX.  

13 Por exemplo, DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo, pp. 495-502; PEIXOTO, Ravi. Presente e futuro da coisa julgada no processo coletivo passivo: uma análise do sistema atual e as propostas dos anteprojetos. Revista de processo, v. 256, pp. 229-254; RUDINIKI NETO, Rogério. Ação coletiva passiva e ação duplamente coletiva.

14 Nesse sentido, ver VITORELLI, Edilson. Ações coletivas passivas: por que elas não existem nem deveriam existir. Revista de processo, v. 278, pp. 297-335.  

15 Francis Shen conduziu uma pesquisa quantitativa que apontou que, desde 1972, são propostas em juízos federais norte-americanos mais de 1000 ações coletivas ativas por ano, chegando, em 2006, a aproximadamente 5000. Em todo esse período, as ações coletivas passivas nunca atingiram a marca de 100 processos em um ano. SHEN, Francis X. The overlooked utility of the defendant class action. Denver University Law Review, v. 88, n. 1, pp. 73-181.


Referências

ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos interesses individuais homogêneos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Ações coletivas e o incidente de julgamento de casos repetitivos – espécies de processo coletivo no direito brasileiro: aproximações e distinções. Revista de processo, vol. 256, 2016.

_______________. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 11. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.

GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995.

PEIXOTO, Ravi. Presente e futuro da coisa julgada no processo coletivo passivo: uma análise do sistema atual e as propostas dos anteprojetos. Revista de processo, vol. 256, 2016.

RUDINIKI NETO, Rogério. Ação coletiva passiva e ação duplamente coletiva. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2015.

SHEN, Francis X. The overlooked utility of the defendant class action. Denver University Law Review, vol. 88, n. 1, 2010.

TARUFFO, Michele. Notes on the collective protection of rights. I Conferencia Internacional y XXIII Jornadas Iberoamericanas de derecho procesal: procesos colectivos class actions. Buenos Aires: International Association of Procedural Law y Instituto Iberoamericano de derecho procesal, 2012.

VITORELLI, Edilson. Ações coletivas passivas: por que elas não existem nem deveriam existir. Revista de processo, vol. 278, 2018.


Citação

VITORELLI, Edilson. Processo coletivo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Difusos e Coletivos. Nelson Nery Jr., Georges Abboud, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/333/edicao-1/processo-coletivo

Edições

Tomo Direitos Difusos e Coletivos, Edição 1, Julho de 2020

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