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Extraterritorialidade
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Carla de Lourdes Gonçalves
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Tomo Direito Tributário, Edição 1, Maio de 2019
A extraterritorialidade está intrinsecamente relacionada com a regra-matriz de incidência que, nos dizeres de Paulo de Barros Carvalho,1 trata-se da norma tributária em sentido estrito, que prescreve a incidência tributária. Referida regra-matriz é formada pelos critérios material (núcleo da incidência), temporal (coordenada de tempo), espacial (coordenada de espaço), pessoal (sujeitos ativo e passivo) e quantitativo (base de cálculo e alíquota).
O fundamento da extraterritorialidade, no ordenamento jurídico brasileiro, está no art. 102 do Código Tributário Nacional, o qual estabelece que a “legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País, fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta ou outras leis de normas gerais expedidas pela União”.
1. Critério espacial da regra-matriz de incidência
Considerando-se o critério espacial como premissa para o exame da extraterritorialidade, impõe-se conhecer os diferentes níveis de fixação da coordenada de espaço da regra-matriz de incidência
Na qualidade de enunciado que delimita o local da incidência, Paulo de Barros Carvalho2 pontifica que o critério espacial pode ser dividido da seguinte forma: (i) pontual, quando faz menção a determinado local para a ocorrência do fato tributável; (ii) regional, quando faz menção a áreas específicas, sendo que a incidência se perfará quando ocorrer dentro dos limites delimitados pelo legislador ordinário; (iii) territorial, quando ocorrer dentro dos limites territoriais coincidentes com aqueles delimitados para a pessoa política que instituir a exação.
Como exemplo da primeira situação temos os tributos que incidem em determinado ponto específico, previamente delimitado pela legislação. O Imposto de importação traduz-se, na visão da doutrina tradicional, em primoroso exemplo desta situação, uma vez haveria a incidência dentro das repartições alfandegarias.3 Contudo, como veremos mais adiante, o Imposto de Importação também poderia se constituir em típico exemplo de extraterritorialidade.
A segunda hipótese – incidência regional – tem vez e lugar quando o ente político, dentro de sua competência para a instituição de tributos, estabelece a incidência de determinada exação em limites previamente determinados, inseridos em certa coordenada regional. Como exemplo desta situação tem-se o ITR e o IPTU. Os dois impostos incidem sobre a propriedade. Contudo, o ITR incide sobre os imóveis situados na zona rural, ao passo que o IPTU incide sobre as propriedades localizadas na zona urbana de determinado município. Logo, a dualidade zona urbana e zona rural reveste-se na condicionante para a incidência do ITR ou IPTU, balizado por estas zonas previamente delimitadas. Note-se que o ITR é de competência da União, enquanto o IPTU pode ser instituído pelos municípios.
A terceira situação compreende a incidência do tributo na mesma coordenada espacial do âmbito de competência do sujeito ativo. Assim, tem-se que o IPI incidirá sobre toda e qualquer industrialização no território nacional; o ITCMD sobre as doações e transmissões “causa mortis” ocorrida nos estados da federação; o ITBI, sobre as transmissões onerosas verificadas no âmbito espacial dos municípios.
Contudo, pode-se eleger um quarto elemento do critério espacial da regra-matriz de incidência: o denominado critério universal, que permite que determinada norma possa vir a produzir seus efeitos (incidência) fora dos limites territoriais do espectro da pessoa política que a institua. Tem-se, assim, a figura da extraterritorialidade.
2. Requisitos gerais da extraterritorialidade
A extraterritorialidade consiste na incidência, de determinado tributo, em área mais abrangente do que aquela que coincide com o território da pessoa política que detém a competência para a instituição da citada exação.
Assim, ultrapassa-se os limites territoriais políticos de cada ente tributante – inclusive os brasileiros – para que o âmbito de vigência de determinada norma – (no caso, a regra-matriz de incidência) – possa alcançar eventos colhidos em territórios alheios àqueles que, a priori, estariam adstritos os sujeitos ativos. Tem-se, nesse esteio, que normas brasileiras possam vir a incidir sobre fatos ocorridos no exterior.
No entanto, o legislador ordinário não pode, livremente, estabelecer espectro espacial fora do seu âmbito de competência política. Critérios devem ser observados para se coibir a coleta de fatos jurídicos para o âmbito de incidência da norma. É o que se pode denominar de “conexão espacial”.
Berliri, Sainz de Bujanda e Klaus Vogel4 admitem que “o espaço ou conexão espacial previsto pela norma é uma condição, entre outras, para que às situações em causa se apliquem à estatuição contida na norma interna, não tendo por fim indicar um critério para identificar a ordem jurídica que há de fornecer a norma material destinada a regular, na ordem do foro, aquele tipo de situação”.
Note-se assim, que o legislador se encontra adstrito à elementos de conexão no que diz respeito ao âmbito de incidência da norma.
Um primeiro – e importante – elemento de conexão é a própria materialidade da norma. Não poderá certa norma colher fatos fora de seu âmbito original de incidência sem conexão com sua materialidade.
Tome-se como exemplo o ITBI. Trata-se de tributo, cuja competência foi outorgada aos Municípios pela Constituição Federal para a incidência em atos de transmissão “inter-vivos”, ocorridos dentro do âmbito espacial de determinado município no qual está localizado um bem imóvel. A sua materialidade é explícita no sentido de abarcar somente as situações de transmissão onerosa, limitadas ao espaço territorial dos municípios. Logo, ausente o elemento de conexão com os imóveis localizados no exterior e lá transmitidos a terceiros, a título oneroso, pois ausente o elemento de conexão que autorizaria a extraterritorialidade. Ademais, como bem assevera Aires F. Barreto5 “a extraterritorialidade da tributação municipal implicaria invasão de idêntica competência dos demais municípios”.
Alberto Xavier teceu importantes considerações acerca do elemento de conexão que permite a aplicação extraterritorial das normas. Para ele, “os elementos de conexão consistem nas relações ou ligações existentes entre as pessoas, os objetos e os fatos com os ordenamentos tributários, distinguindo-se em subjetivos, se se reportam às pessoas (como a nacionalidade ou a residência), ou objetivos, se se reportam às coisas e aos fatos (como a fonte de produção ou pagamento da renda, o lugar do exercício da atividade, o lugar da situação dos bens, o lugar do estabelecimento permanente, o lugar da celebração de um contrato)”.6
Impõe-se, nessa conformidade, verificar como o elemento de conexão relaciona-se com a regra-matriz de incidência.
Como vimos, o legislador elege determinada fração espacial para determinar que, uma vez ocorrida a incidência da norma geral e abstrata sobre o evento que a ela se subsume, faz nascer a relação jurídica tributária, em cujo antecedente estará descrito o fato jurídico tributário praticado pelo contribuinte.
O legislador, ao adotar esta conduta, como bem assevera Lucas Galvão de Brito,7 não amplia o espectro de vigência da norma, nem amplia seu domínio espacial. O que ocorre é a delimitação do âmbito eficacial da norma, que poderá produzir seus efeitos nos limites eleitos pelo legislador, ainda que a incidência possa vir a ocorrer em localidades que sequer estejam dentro do território nacional.
3. Exemplos de "extraterritorialidade" no direito positivo brasileiro
A extraterritorialidade consiste na incidência, de determinado tributo, em área mais abrangente do que aquela que coincide com o território da pessoa política que detém a competência para a instituição da citada exação.
3.1. Imposto sobre a renda de pessoas físicas
O denominado “princípio da universalidade” da tributação do imposto sobre a renda, para as pessoas físicas, é há muito vigente no ordenamento jurídico brasileiro. O critério do domicílio tributário do contribuinte é elemento dominante para colher fatos ocorridos em territórios alienígenas nos quais se verifica o âmbito eficacial pleno da norma brasileira.
Desta forma, um residente no Brasil, que auferir rendimentos no exterior, estará sujeito à tributação no Brasil, observados os tratados e convenções para evitar a dupla tributação.
Referida tributação aplica-se ao ganho de capital na alienação de bens e direitos realizada no exterior, bem como ao resgate ou liquidação de aplicações financeiras; ao resultado da atividade rural exercida no exterior; a outros rendimentos, regulares ou não, recebidos de fontes situadas no exterior.
No caso em análise, o âmbito eficacial da norma brasileira transpassa os limites do território nacional para açambarcar fatos ocorridos no exterior, mas que deverão ser objeto de tributação no Brasil. É a denominada “conexão pessoal”. Como bem assevera Paulo de Barros Carvalho8 “nada impede que o sistema direito positivo eleja, como critério de conexão legítimo para fazer incidir as suas normas tributárias impositivas da produção de rendimentos, um vínculo de natureza pessoal, como a residência, o domicilio ou a nacionalidade, independente da presença física da fonte efetiva no território”. E exatamente assim agiu o legislador brasileiro ao determinar que os rendimentos auferidos no exterior, por pessoas físicas residentes no brasil, também estejam sujeitos à tributação neste país.
3.2. Imposto sobre a renda de pessoas jurídicas
O imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, a exemplo do que ocorre com o das pessoas físicas, também é objeto de tributação em bases universais.
Contudo, a “extraterritorialidade” do IRPJ é relativamente recente no sistema normativo brasileiro. Sua instituição dá-se com o advento da Lei 9.249/1995, observando-se, ainda, os enunciados prescritivos sobre o tema veiculados nas Leis 9.430/1996 e 9.532/1997.
Os fatos colhidos pela norma geral e abstrata da extraterritorialidade assumem conformações mais profundas – e as discussões judiciais se tornam mais acirradas – com o advento da Medida Provisória 2.158/2001, reeditada até a 35ª edição. Em seu art. 74, a referida MP determinou a tributação dos lucros auferidos no exterior por controladas e coligadas às empresas brasileiras situadas em território estrangeiro, apurados na data do balanço, sem que tivesse ocorrido a disponibilidade econômica de tais valores.
O STF, ao julgar a ADI 2.588, considerou constitucional a tributação instituída em conformidade com o art. 74 anteriormente mencionado, restando apenas a discussão acerca da impossibilidade desta tributação diante de coligadas e controladas situadas em países com os quais o Brasil mantém tratado para evitar a dupla tributação.9
Contudo, em 2014, foi publicada a Lei 12.973, fruto da conversão da Medida Provisória 627, por intermédio da qual houve instituição do sistema de tributação em bases universais, mediante a consolidação dos resultados das controladas e coligadas no exterior.
Com a publicação da citada lei, pode-se afirmar que, em linhas gerais, que foi mantida a tributação das sociedades controladas no exterior, anteriormente disciplinada pela MP 2.158-35/2001, com alguns benefícios pontuais. Já em relação às coligadas, foram criadas condicionantes para a tributação apenas quando da disponibilização dos lucros para a investidora, a saber: (a) não estar sujeita a regime de subtributação; (b) não estar localizada em país com tributação favorecida ou ser beneficiária de regime fiscal privilegiado; (c) não ser controlada, direta ou indiretamente, por pessoa jurídica em país de tributação favorecida.10
Nota-se, assim, que a extraterritorialidade é patente no caso do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, colhendo-se fatos ocorridos no exterior e reputando-os como elegíveis para a tributação no Brasil. Uma vez mais verifica-se a delimitação abrangente do âmbito eficacial da norma.
3.3. O imposto de importação
Sobre o critério espacial do imposto de importação, a doutrina tradicional assevera que consistiria em pontos específicos do território nacional: as repartições aduaneiras.
No entanto, pode-se considerar que o imposto de importação tem por critério espacial o território aduaneiro, no qual estão compreendidos o território nacional, inclusive as áreas de livre comércio e áreas de controle integrado do Mercosul, as quais se encontram localizadas nos países membros.11
Desta forma, evidencia-se, também, a extraterritorialidade do imposto de importação, tendo em vista que a norma brasileira também alcança os fatos ocorridos em todo o território aduaneiro.
Notas
1 Na regra matriz de incidência tributária, vale dizer, aquela responsável pelo impacto da exação, quando reduzida à sua estrutura formal, no mínimo irredutível que é o ponto de confluência das indagações lógicas, vamos encontrar o pressuposto ou antecedente representado simbolicamente da maneira supramencionada. Sabemos, contudo, que a interpretação não se esgota no plano formal, havendo necessidade de investigarmos os conteúdos de significação que a linguagem do direito positivo carrega e, ainda, os modos como os utentes dessa linguagem empregam seus signos. O passo subsequente, então, será preencher as variáveis daquela fórmula lógica com as constantes do direito posto. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método, pp. 153-154.
2 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, pp. 255-256.
3 Sobre o tema, preleciona Americo Lacombe em sua clássica obra… dizer que o ingresso no território brasileiro de mercadoria estrangeira realiza a hipótese de incidência do imposto de importação pode ser falso. Para tanto, é preciso que tal ingress se verifique através das repartições fiscais legalmente qualificadas para procedentes ao despacho aduaneiro, promovendo a fiscalização e a cobrança do imposto. LACOMBE, Americo Masset. Imposto de importação, p. 285.
4 XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil, p. 51.
5 BARRETO, Aires Fernandino. Curso de direito tributário municipal, p. 312.
6 XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil, p. 262.
7 BRITO, Lucas Galvão. O lugar e o tributo, p. 150. São suas palavras: “nessas condições, aquilo que se observa é a escolha dessa fração que tem lugar no território do sujeito competente para, a ela, atribuir o significado unitário à conduta, firmar-lhe seu lugar. Nao se trata de ampliar o dominio especial de vigência, ou mesmo de estipular lugar fora deste, mas sim de eleger um local dentro do âmbito eficacial da norma para e ele apenas, desprezando a complexidade geográfica do conjunto de movimentos, atribuir a ocorrência do fato jurídico tributário(…) Para que se possa atribuir um lugar e promover a incidência, com o relato adequado, é preciso sempre a complexidade espacial à unidade. É o que faz o elementO de conexão, como também o critério espacial de toda e qualquer norma jurídica tributária em sentido estrito”.
8 CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da territorialidade no regime de tributação da renda mundial (Universalidade). Justiça tributária, p. 9.
9 O STJ decidiu pela ilegalidade desta tributação no REsp 1.325.709/RJ.
10 BARRETO, Paulo Ayres; TAKANO, Caio Augusto. Tributação do resultado de coligadas e controladas no exterior, em face da Lei nº 12.973/14. Grandes questões atuais de direito tributário.
11 Sobre o tema, conferir SEHN, Solon. Imposto de importação, pp. 114-115.
Referências
BARRETO, Aires Fernandino. Curso de direito tributário municipal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BARRETO, Paulo Ayres; TAKANO, Caio Augusto. Tributação do resultado de coligadas e controladas no exterior, em face da Lei nº 12.973/14. Grandes questões atuais de direito tributário. Valdir de Oliveira Rocha. 18. ed. São Paulo: Dialética, 2014.
BRITO, Lucas Galvão. O lugar e o tributo. São Paulo: Noeses, 2014.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 20. ed. São Paulo: Noeses, 2008.
__________________. Direito tributário, linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2013.
__________________. O princípio da territorialidade no regime de tributação da renda mundial (Universalidade). Justiça tributária. IBET. São Paulo: Max Limonad, 1998.
LACOMBE, Americo Masset. Imposto de importação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979.
SEHN, Solon. Imposto de importação. São Paulo: Noeses, 2016.
XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
Citação
GONÇALVES, Carla de Lourdes. Extraterritorialidade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Tributário. Paulo de Barros Carvalho, Maria Leonor Leite Vieira, Robson Maia Lins (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/285/edicao-1/extraterritorialidade
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Tomo Direito Tributário, Edição 1,
Maio de 2019