-
Repartição de riscos nas Parcerias Público-Privadas
-
Fernando Vernalha Guimarães
-
Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022
A repartição de riscos é um dos temas fundamentais dos contratos de longo prazo, como as Concessões e Parcerias Público-Privadas. Sujeitos a muitas vicissitudes, esses contratos dependem de uma adequada distribuição de riscos para que possam adquirir maior eficiência ao longo de seu ciclo de vida. A racionalidade dessa partilha é o que permitirá gerar estruturas de custos mais eficientes e propiciar maior estabilidade contratual. Daí a relevância cada vez maior que o tema vem adquirindo na formatação de programas estruturantes.
Não é por acaso, portanto, a preocupação da Lei 11.079/2004 com a temática da alocação de riscos nos contratos de Parceria Público-Privada, que não apenas estabeleceu como uma de suas diretrizes fundamentais a repartição objetiva de riscos entre as partes (art. 4º, inc. VI), como definiu como cláusula essencial de um contrato de PPP “a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária” (art. 5º, inciso III). É perceptível que o interesse na realização de contratos mais eficientes conduziu o legislador da PPP a não apenas autorizar como a estimular a alocação racional de riscos, inclusive daqueles ditos extraordinários.
O tema, no entanto, não é simples e muito menos puramente jurídico. A repartição de riscos depende de uma necessária interface do direito com a economia, obedecendo a uma racionalidade que se poderia dizer jurídico-econômica. Há regras jurídicas a condicionar a alocação ex ante de certos riscos, assim como princípios a orientar, com maior generalidade, as escolhas do “arquiteto” do contrato, neste particular. É sobretudo em observância ao princípio da eficiência que os riscos no contrato de PPP serão catalogados e distribuídos ou partilhados pelas partes, num ambiente de forte interlocução entre o direito e a economia. Uma vez constituída a matriz de riscos do contrato, será ela o seu conteúdo econômico fundamental e o cerne de sua equação econômico-financeira.
O presente texto pretende oferecer algumas abordagens sobre esse tema, buscando identificar não apenas os condicionantes à alocação ex ante dos riscos, como a tutela da responsabilização pelos riscos materializados (alocação ex post). Para tanto, serão examinadas as restrições à liberdade de estipulação da repartição de riscos administrador, tanto no que se refere a um certo arbitramento legislativo de riscos, pelo efeito de regras estatuídas pela Lei 11.079/2004, como à definição de padrões e parâmetros mais genéricos para esse fim, fruto da imposição de diretrizes e princípios. Neste particular, será considerado o influxo de certas premissas econômicas a orientar a distribuição de riscos nos casos concretos. Por fim, o texto pretende oferecer algumas ponderações sobre o arbitramento de responsabilidade relativamente a riscos extracontratuais.
1. A disciplina jurídica da alocação de riscos em contratos concessionários
A alocação de riscos em contratos de PPP está disciplinada pelo direito por meio de regras e princípios, que não apenas exigem que o desenho dos contratos conte com uma alocação eficiente dos riscos, como impõem o arbitramento ex ante de certos riscos.
Além disso, a teoria jurídica vem historicamente se ocupando também de buscar critérios para orientar a distribuição ex post dos riscos, o que se relaciona com a tutela da equação econômico-financeira dos contratos.1
Observe-se, em primeiro lugar, que a alocação detalhada de riscos é uma demanda inerente à confecção de todos os contratos de parceria público-privada. É isso o que exige o inciso III do art. 5º da Lei 11.079/2004, que estabeleceu como cláusula essencial de todo contrato de PPP “a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária”, assim como o inciso VI do art. 4o da mesma lei, que definiu como uma das diretrizes fundamentais da PPP a “repartição objetiva de riscos entre as partes”.
Já por isso, é certo que, por força da legislação, os contratos de PPP deverão conter uma alocação objetiva (precisa e detalhada, portanto) dos riscos à responsabilidade de cada uma das partes, nos termos examinados adiante.
Embora seja certo que esta alocação dependerá fundamentalmente da consideração das circunstâncias concretas, sendo inapropriada a alocação abstrata e prévia de riscos, o legislador arbitrou excepcionalmente a alocação de certos riscos contratuais à responsabilidade do parceiro público. É o que se passa com o (i) risco de inflação (transferido parcialmente ao usuário, em se tratando de concessão patrocinada); o (ii) risco de alteração unilateral do objeto (pelo poder concedente) e o (iii) risco de criação de novos encargos legais ou de modificação na alíquota de tributos (exceção feita à modificação nos impostos sobre a renda) que impactem os custos da PPP. Além disso, a legislação estabeleceu a partilha entre as partes (em proporção a ser definida em contrato, o que decorrerá da liberdade de estipulação das partes) dos ganhos derivados da “redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado”, como determina o art. 5º, inc. IV, da Lei 11.079/2004.
Essa alocação prévia e legislativa de riscos tem coerência com a racionalidade da alocação de riscos, que pressupõe – como se verá mais detidamente adiante – a assunção do risco pela parte com maior aptidão para o seu gerenciamento. Todos os riscos referidos acima e legislativamente alocados à esfera do parceiro público equivalem a riscos notoriamente não-gerenciáveis pelo parceiro privado. Transferi-los, em qualquer cenário, à responsabilidade do parceiro privado importará em onerar sobremaneira o valor do contrato de PPP - decorrência do provisionamento, pelo concessionário, de custos expressivos para lidar com a prevenção do risco e para neutralizar os efeitos danosos na hipótese de sua materialização.
Portanto, há uma alocação legislativa de certos riscos que não pode ser desprezada pelo “arquiteto” do contrato. Esta alocação prévia, imposta pela incidência das referidas regras jurídicas, afigura-se um primeiro condicionante para a distribuição de riscos nos casos concretos.
Além do arbitramento de riscos referido acima, poder-se-ia indagar também se o direito tutelou objetivamente a alocação do risco de demanda e a alocação do risco de projeto, ante o disposto, respectivamente, no inc. III do art. 2º da Lei 8.987/1995, incorporado ao regime das PPPs pelo § 1º do art. 2º da Lei 11.079/2004, e no § 4º do art. 10 da Lei 11.079/2004.
Quanto ao risco de demanda, não me parece que o direito tenha condicionado a sua alocação a ponto de atribui-lo integralmente à responsabilidade do concessionário, raciocínio que poderia extrair-se da locução por sua conta e risco utilizada na definição da concessão de serviço público (extensível, daí, à concessão patrocinada) veiculada pela norma do inc. III do art. 2º da Lei 8.987/1995. Se é certo, como já afirmei em outro estudo, que a letra da norma não deve ser desprezada, neste particular, depreendendo-se daí que o legislador desejou que o concessionário seja exposto a um certo nível de risco (traço que historicamente tem diferenciado contratos de concessão de outros modelos de contratos administrativos), “parece nitidamente excessivo o raciocínio que pretende extrair desta norma vedação a que o risco de demanda (ou parcela deste) possa ser alocado à responsabilidade do poder concedente em contratos de concessão”. “A locução “por sua conta e risco” relaciona-se muito mais à transferência dos riscos inerentes ao gerenciamento da concessão em si, o que pressupõe assegurar ao concessionário certa liberdade de gestão para a escolha dos meios adequados à produção de resultados identificados como metas da concessão, do que propriamente com a absorção pelo concessionário de riscos específicos.
Nem seria adequado que o legislador tivesse deslocado, de forma abstrata e generalizada, o risco de demanda ao concessionário. Não é possível afirmar que o concessionário seria, em todos os casos, o único detentor do controle sobre o risco de demanda – o que, de um ponto de vista da racionalidade econômica, justificaria o deslocamento do risco para sua responsabilidade. Os níveis de demanda, a depender da natureza do serviço, podem ser influenciados por outros fatores que não o desempenho do concessionário na prestação do serviço. As concessões rodoviárias são um exemplo. As variações na demanda são influenciadas por fatores diversos, como a ausência de vias alternativas, o crescimento da frota de veículos, o advento de restrições de acesso à rodovia etc. O concessionário não será o único a influir na variação do fluxo de veículos inerente ao funcionamento de uma concessão rodoviária. Assim também se passa com outros serviços públicos. Logo, seria excessivo pretender vincular, em todos os casos, o risco de demanda à responsabilidade do concessionário”.2
Já com relação ao risco de projeto, deve-se lembrar que a Lei 11.079/2004 definiu o nível de anteprojeto para a caracterização dos estudos de engenharia estabelecida pelo § 4º do art. 10. Indaga-se, a partir desta definição, se o legislador teria transferido os riscos de projeto (naquilo que extravasar o anteprojeto) ao concessionário. Isto é: se, ao limitar o nível de detalhamento de projeto para a licitação da PPP, a legislação teria automaticamente transferido ao concessionário o encargo de execução e detalhamento do projeto básico e executivo, atraindo-lhe a responsabilidade pelos riscos derivados de seus defeitos e imperfeições.
Não há dúvida que tal definição acabará por deslocar o risco de projetos ao concessionário na grande maioria dos casos. Inclusive porque a atribuição destes riscos geralmente estará associada à transferência dos riscos de construção e dos riscos de manutenção da infraestrutura pelo prazo da concessão, criando-se uma estrutura de incentivos adequada para otimizar a eficiência ao longo do ciclo de vida do contrato – como adiante explicado. Lembre-se também que o modelo concessionário pressupõe a delimitação do serviço a partir de indicadores de resultado (outputs), transferindo-se ao concessionário certa autonomia para eleger os meios mais eficientes para a entrega dos resultados esperados. Logo, faz sentido que o nível de detalhamento de projeto disponibilizado com a licitação não impeça a transferência desses riscos ao concessionário, bastando, por isso, a delimitação de um anteprojeto.3
Para além desta limitação, o desenho da matriz de riscos dos contratos de PPP deve orientar-se pela eficiência. Isto é: o contrato de PPP deve prestigiar uma alocação eficiente dos riscos, o que se extrai do inciso I do art. 4º da Lei 11.079/2004. Esse, na verdade, é o objetivo natural de toda a alocação de riscos: calibrar o nível de eficiência de uma contratação. Ao distribuir os riscos de acordo com a aptidão de cada parte para gerenciá-los a custos mais baixos do que a outra, alcança-se a redução do somatório de custos envolvidos na PPP, promovendo-se ganhos de eficiência. Além disso, é mediante a alocação (e integração) de riscos que se obtém um desejável alinhamento de incentivo otimizando-se a eficiência contratual.
Assim, o direito não apenas cuidou de limitar objetivamente a alocação de riscos, ao associar certos riscos à responsabilidade do parceiro público, mas impôs uma diretriz de eficiência a orientar o conteúdo daquela alocação. Há, por isso, um primeiro nível de vinculação, mais objetivo e determinado, efeito da imposição de certas regras jurídicas de arbitramento da alocação de riscos, e um segundo nível de vinculação, mais genérico e algo indeterminado, que deriva da projeção de diretrizes-princípios – e que também cumprem o papel de restringir a liberdade de estipulação contratual do administrador público. E é precisamente como efeito da aplicação do princípio da eficiência à alocação dos riscos que se ergue uma inevitável interface do direito com a teoria econômica, no propósito de buscar as premissas a guiar a melhor alocação dos riscos.4
2. As premissas jurídico-econômicas
Decorrência da aplicação da diretriz de eficiência aplicável aos contratos de PPP, a alocação de riscos nestes contratos deve estar orientada por certas premissas econômicas.
2.1. Objetividade, exatidão e detalhamento da matriz de riscos
Em primeiro lugar, a alocação de riscos deverá orientar-se pela objetividade, pela clareza e exatidão em seus termos e condições e pela suficiência na identificação e detalhamento dos riscos.
Lembre-se que o inciso VI do art. 4o da Lei Geral de PPP impõe a repartição objetiva de riscos entre as partes. Decorre desta diretriz que a repartição de riscos deve estar orientada pela certeza e objetividade necessárias a eliminar ou minorar as dúvidas e obscuridades na delimitação dos riscos e mesmo na sua alocação e partilha à responsabilidade das partes. Considerando que a repartição de riscos é o que forma a porção econômica relevante do contrato, eventual déficit de objetividade e de clareza na sua delimitação propiciará o incremento de custos de transação, com prejuízos à eficiência da contratação.
Além disso, da mesma diretriz referida depreende-se um comando a que o administrador persiga um nível de detalhamento adequado à identificação dos riscos. Muito embora nem sempre seja factível ou economicamente viável alcançar-se um nível avançado de identificação e detalhamento dos riscos, deve-se evitar a alocação genérica ou relapsa, pois isso enseja não apenas ineficiência contratual, como abre a porta para comportamentos oportunistas das partes.
2.2. Perseguindo um nível de detalhamento avançado para a alocação dos riscos
É evidente que quanto maior o nível de detalhamento da matriz de riscos tanto menores serão os espaços gerados para leituras e interpretações discrepantes acerca da responsabilização das partes sobre as consequências derivada da materialização dos riscos.
“Num mundo ideal, em que os riscos pudessem ser todos identificados e alocados induvidosamente à responsabilidade de cada uma das partes, a margem para disputas e litígios seria mínima, sendo que a valoração de suas ofertas estaria livre (ou quase livre) dos custos de transação associados a estas inseguranças. Mas é evidentemente impossível eliminar completamente a suscetibilidade do contrato à materialização de riscos não catalogados. Há não apenas um problema de cognoscibilidade dos riscos, sendo humanamente impossível atingir-se um grau de detalhamento absoluto em relação a isso, como um problema econômico, pois estudos de risco com nível avançado de detalhamento e especificação podem incrementar a tal ponto os custos de transação da contratação administrativa que a tornem ineficiente.5 Além disso, dentro do espectro de contingências possivelmente previsíveis, muitas opções alocativas podem simplesmente ser prejudicadas pelos limites de racionalidade. As partes de um contrato não são completamente racionais para realizar as melhores opções e estabelecer sua priorização ideal”.6
A despeito desta limitação, não se duvida que o administrador deve perseguir um nível avançado de identificação dos riscos. Matrizes de risco vagas ou lacunosas ensejam diversas consequências indesejáveis, como adiante referido.
2.2.1.A incompletude dos contratos e as distorções geradas no processo de licitação
Matrizes de riscos com nível insatisfatório de detalhamento podem dar ensejo a três efeitos indesejáveis no âmbito do processo de licitação.
Em primeiro lugar, a insuficiência na identificação dos riscos prejudica a comparabilidade entre as propostas. A ausência de detalhamento avançado em relação à matriz de riscos abre espaço para interpretações discrepantes pelos interessados, dando origem a propostas orientadas por premissas divergentes. Abre-se a possibilidade a que as propostas estejam referenciadas por cenários distintos, o que subtrai a identidade de premissas necessárias para que se tenha um ambiente adequado para a disputa licitatória.
Como já afirmei em outro estudo, “[a] comparabilidade entre as propostas é evidentemente prejudicada pela omissão do contrato, pois essa pode gerar percepções distintas pelos interessados com relação à responsabilidade sobre os riscos. Contratos lacunosos ou dúbios permitem visões discrepantes quanto à assunção de riscos, o que se reflete em discrepâncias na contabilização e provisionamento dos custos necessários para o gerenciamento de riscos.7 Com isso, subtrai-se a equivalência de condições para a comparabilidade entre as propostas, com prejuízos ao processo de licitação”.8 A identificação genérica ou insuficiente dos riscos, enfim, importa prejuízos evidentes para o exercício da comparabilidade entre propostas.
Em segundo lugar, essa insuficiência na identificação dos riscos concorrerá para incrementar os custos envolvidos na contratação, tornando as ofertas mais onerosas. Além de discrepantes por divergência de premissas, as propostas tenderão a incorporar os custos da insegurança gerada pelas omissões e imprecisão da matriz de riscos. Lembre-se que, num cenário de insegurança, os agentes econômicos tendem a provisionar custos para suas possíveis perdas sob cenários pessimistas. Isso significa que, sob a indeterminação da matriz de riscos, os custos para o gerenciamento de riscos implícitos ou insuficientemente identificados tenderão a ser incorporados nas propostas, ampliando-se os preços ofertados.
Por outro lado, a incorporação de custos para lidar com riscos ocultos ou não identificados no contrato ainda pode ser influenciada por outro fator: a interpretação acerca da disciplina jurídica da tutela da equação econômico-financeira do contrato administrativo. O provisionamento de custos para gerenciar riscos será também orientado pela sua percepção da tutela jurídica da responsabilização sobre certos riscos, assim como pela (in)eficácia do sistema de execução de seu direito (enforcement). A percepção de que todos os riscos não delimitados em contrato e relacionados à álea imprevisível e extraordinária possam ser atribuídos à responsabilidade da Administração (segundo interpretação que se possa fazer do disposto na alínea “d” do inc. II do artigo 65 da Lei 8.666/19939) tenderá a influenciar o provisionamento de custos, com vistas a desonerar as propostas dos custos de seu gerenciamento.
Portanto, riscos não identificados podem merecer uma percepção pelos ofertantes distinta de riscos mal identificados (ou insuficientemente identificados). Neste caso, o custo para o gerenciamento dos riscos tenderá a ser incorporado nas propostas, com vistas a evitar prejuízos futuros decorrentes de sua materialização, onerando, em todos os casos, as ofertas. No outro, os proponentes, caso confiem na garantia de ressarcimento derivada da aplicabilidade da norma do na alínea “d” do inc. II do artigo 65 da Lei 8.666/1993, tenderão a livrar suas propostas daquele ônus.10
Além disso, e em terceiro lugar, matrizes de riscos indeterminadas são aptas a gerar distorções no resultado da licitação, favorecendo licitantes com maior capacidade para renegociar contratos. Num cenário de incompletude contratual, alguns ofertantes tendem a levar em consideração sua condição para renegociação futura de contratos, o que lhes permite a manifestação de propostas mais econômicas. Situação dessa ordem pode provocar distorções no resultado da licitação, abrindo-se espaço a que o vencedor do certame seja não necessariamente aquele com melhor aptidão para a execução do contrato, mas o ofertante com as melhores perspectivas para sua renegociação.11 Daí que tais renegociações, quando ocorridas, acabam por subverter o resultado da licitação, eliminando ou minimizando os ganhos conquistados no ambiente competitivo do certame.
A possibilidade de renegociações será identificada não apenas por aqueles que detenham maiores informações ou uma melhor capacidade para renegociar contratos, e que confiem na sua capacidade de implementá-las, mas também por aqueles que vislumbrem nas brechas do contrato espaços para comportamentos oportunistas que possam redundar em renegociações.
Segundo já escrevi, “numa contratação de longo prazo, como é a concessão e a PPP, há custos diversos incidentes para a evasão de uma das partes da relação contratual. Isso se passa especialmente com o poder concedente, que tem prejuízos de diversas ordens num cenário de extinção precoce do contrato (descontinuidade na prestação do serviço público, desenvolvimento do processo de extinção da concessão, custos com a reinauguração do processo de licitação-contratação, prejuízos políticos ao governo etc.). Essa suscetibilidade de uma parte em relação à outra pode gerar aquilo que se denomina de efeito de lock-in, pondo-a como refém da extinção da relação jurídico-contratual. Lacunas contratuais podem favorecer, neste contexto, a adoção de práticas oportunistas pelo concessionário, gerando impasses (holdup) que desaguam na oportunidade de renovações e revisões contratuais em contratos ainda jovens, com riscos para a estabilidade e continuidade do vínculo. Minimizar a incompletude dos contratos em matéria de alocação e riscos pode concorrer para evitar práticas desta natureza”.12
Por outro lado, não se olvide que o concessionário também pode se ver preso à relação contratual na posição de refém do poder concedente, abrindo-se o risco para comportamentos oportunistas da parte deste. “Num negócio de concessão, é costumeiro que haja concentração de investimentos do concessionário nos primeiros anos do contrato (fase pré-operacional), sendo que a sua amortização dependerá do desenvolvimento de todo o ciclo de operação, quando haverá a percepção de receitas. É evidente que o rompimento precoce da relação contratual gera risco de prejuízos significativos ao concessionário, o que instala uma forte suscetibilidade sua ao risco de comportamentos oportunistas do poder concedente – que pode se materializar em exigências do regulador ou do poder concedente de investimentos não previstos ou em iniciativas de reequilibrar o contrato para reduzir taxas de retorno etc.”.13
2.3.O efeito de deslocamento do papel de alocar riscos ao Poder Judiciário
Note-se também que, ao veicular matrizes de riscos vagas e genéricas, o contrato acaba por deslocar o papel de alocação de riscos ao juiz. Assim se passa porque as disputas e litígios que se erguerem da lacuna contratual em relação a riscos serão dirimidas no âmbito de ações judiciais, cabendo ao juiz arbitrar a responsabilidade de cada parte sobre o risco materializado.
Com isso, a distribuição dos riscos deixa de ser feita ex ante pelo gestor do contrato, detentor natural de informações relevantes para tal, para ser arbitrada, ex post, pelo juiz, cujo ponto de observação não lhe garante acesso ao conjunto de dados e informações necessários para decidir sobre a alocação mais eficiente em cada caso concreto. A repartição de riscos, neste caso, acaba sendo influenciada por premissas puramente jurídicas, deixando de ser um exercício orientado pela busca de maior eficiência contratual.
2.4. Alocando-se o risco à parte com melhores condições para o seu gerenciamento
Lembre-se que a repartição de riscos em contratos de Parceria Público-Privada será guiada por uma diretriz de eficiência. Isso significa que a Administração deverá buscar a matriz mais eficiente possível, o que levará em consideração a capacidade de cada parte para gerenciar adequadamente o risco.
É evidente que cada parte apresenta condições subjetivas e específicas para gerenciar os riscos, o que significa tanto sua aptidão para se prevenir da ocorrência do risco como para minimizar os prejuízos na hipótese de sua materialização. Isso se reflete em diferentes custos para lidar com o risco, de modo que a opção por alocar o risco a uma ou a outra parte necessariamente repercutirá na estrutura de custos de um contrato de PPP.
A busca pela maior eficiência no âmbito de um contrato como a PPP importará em alocar cada risco catalogado à responsabilidade daquela parte que consegue, a custos mais baixos do que a outra, administrar o risco. Se assim for feito, promove-se a redução do somatório de custos envolvidos na contratação, gerando-se ganhos de eficiência.
A capacidade de administrar o risco envolve a aptidão não apenas para conhecer o risco, mas especialmente para (i) reduzir a probabilidade de sua ocorrência e (ii) minimizar os prejuízos na hipótese de sua materialização. A capacidade, portanto, de controlar a ocorrência do risco e, ainda, a capacidade de minorar os prejuízos derivados de sua materialização serão simultaneamente consideradas para o efeito da alocação e partilha da responsabilidade sobre o risco. Essa alocação nem sempre é simples e dependerá da análise de cada risco no caso concreto.
O controle sobre a ocorrência do risco pode derivar, em primeiro lugar, de sua posição em relação à matriz de obrigações contratada. Assim, e por exemplo, em relação às obras a serem implementadas no âmbito de uma PPP, os riscos atinentes à variação dos custos de materiais de construção, ao seu desgaste precoce, assim como às falhas das metodologias construtivas estão costumeiramente associados à responsabilidade do parceiro privado. Isso porque será ele o responsável pela gestão da comercialização dos materiais; pelas escolhas atinentes à sua qualidade; e pela definição das metodologias de execução. Daí ser ele quem deterá o maior controle sobre os riscos de modificação no preço dos materiais, pois o responsável pela sua comercialização; o maior controle sobre o risco de desgaste dos materiais, pois será o responsável pela definição de sua qualidade; e o maior controle sobre a eficácia das metodologias de execução, pois será igualmente responsável por essa definição.
Logo, é evidente que a parte responsável pelas escolhas que influem nos fatores de risco há de ser a responsável pelos prejuízos que derivam de sua materialização. Caso aqueles riscos estivessem alocados à responsabilidade do parceiro público, o concessionário simplesmente não teria qualquer incentivo para exercitar a sua prevenção, investir em materiais de qualidade e na definição de metodologias mais eficazes ou se esforçar para alcançar preços mais vantajosos para os insumos da construção. Isso subverteria o sistema natural de incentivos a regular o adimplemento contratual pelas partes. Inclusive porque dissociar a responsabilidade do controle sobre o risco abre a porta para comportamentos oportunistas, que podem ser adotados caso a parte responsável por exercer o controle sobre as escolhas inerentes aos fatores de risco não fique exposta às suas consequências.
Observe-se que impor a alocação do risco à parte com maior controle sobre ele pressupõe a integração de certos riscos com vistas a otimizar o regime de incentivos ao concessionário à busca de maior eficiência contratual. Tem sido costumeiro a integração (bundling) do risco de projeto, do risco de construção e do risco de manutenção da obra ou da infraestrutura por todo o prazo da PPP.
Lembre-se que a Lei Geral de PPP definiu que os estudos de engenharia para a definição do valor do investimento da PPP deverão ter nível de anteprojeto (art. 10, § 4º).14 Ou seja: diversamente do que se passa com a contratação convencional sob regime de empreitada, para a qual se exige minimamente o nível de projeto básico, a Lei 11.079/2004 estabeleceu o nível de anteprojeto para a contratação de PPP. Com isso, será natural que o encargo de elaboração dos projetos fique a cargo do concessionário, assim como a responsabilidade pelos seus defeitos e incorreções – naquilo que não derivar de falhas de anteprojeto, quando esse tiver caráter vinculativo.
A finalidade subjacente a essa exigência está em transferir os riscos de projeto ao concessionário, permitindo-se que esses sejam associados e integrados aos riscos de construção e de manutenção da obra por todo o período da construção. Integrando-se o risco de projeto com o risco de construção e com o risco de manutenção da infraestrutura pelo prazo do contrato, otimiza-se a eficiência da concessão, pois se gera incentivo a que o concessionário persiga a formatação mais eficiente do projeto a ponto de evitar a oneração da construção, assim como zele pelas escolhas relacionadas à construção a ponto de evitar a oneração de sua manutenção por todo o ciclo de vida da concessão. Como o concessionário passa a se responsabilizar pelos defeitos e imperfeições do projeto, ele tenderá a perseguir um projeto de qualidade e com aderência à realidade, evitando-se que suas falhas resultem em custos maiores durante a construção. Da mesma forma, como ele será o responsável pela manutenção da obra/infraestrutura durante o período da concessão, terá o incentivo necessário para evitar subinvestimentos na construção, o que ampliaria o risco de custos maiores durante o período de manutenção/operação. Essa estrutura de incentivos concorre para otimizar a eficiência do contrato de PPP.
É certo, contudo e como já observei em outro estudo, que as vantagens derivadas da alocação desses riscos ao parceiro privado dependerão em boa medida do poder de decisão que lhe é delegado no bojo das atribuições contratadas. Isto é: “a estrutura de incentivos e eficácia da alocação de riscos pode ser neutralizada caso sejam impostas ao parceiro privado indicações e obrigações detalhadas sobre aspectos relacionados ao projeto e à construção”.15 O excesso de informação e de orientação ao parceiro privado subtrai-lhe a autonomia e, de consequência, a margem de risco correspondente.
Essa estrutura é apta, no entanto e como já observei em outro estudo, a gerar trade-offs, “pois a concentração dos riscos à responsabilidade do parceiro privado – que pressupõe a assunção por si dos encargos de elaboração do projeto básico (design), além da condição de gerenciar os meios adequados para o atingimento das metas estabelecidas para o serviço (quando haverá o prevalecimento de remuneração por performance – output specification) – gera uma espécie de déficit de controle pelo parceiro público, além de propiciar dificuldades atinentes ao processo de licitação”.16-17
A capacidade de controle da ocorrência do risco pode ainda derivar de um conhecimento especializado da parte sobre os fatores de risco. Geralmente, a parte que detém expertise técnica sobre os fatores de risco possui melhores condições para reduzir a probabilidade de sua ocorrência ou ainda para estimar a probabilidade e os custos de sua materialização. Como os agentes econômicos avessos ao risco e com conhecimento limitado sobre ele tenderão a estimar seus custos sob cenários pessimistas, o valor provisionado para tanto será tendentemente mais elevado do que o valor esperado pela parte detentora de conhecimento especializado sobre os fatores risco.
Além da capacidade subjetiva da parte para o controle do risco (que pode derivar da matriz de obrigações do próprio contrato ou mesmo de seu melhor conhecimento sobre os fatores de risco), deve-se levar em consideração a sua condição para transferir o risco ao mercado de seguros. A existência de um mercado desenvolvido de seguro para certos riscos pode atrair sua alocação ao parceiro privado, cujo custo de prevenção pode ser mais econômico do que o custo de sua retenção pela Administração. Pode-se afirmar, inclusive, que a capacidade de controlar o risco pressupõe também a sua condição para adquirir a cobertura securitária.
Para riscos não-controláveis pelo concessionário, mas seguráveis pelo mercado especializado, a hipótese de transferi-lo ao concessionário pressupõe uma avaliação comparativa com o aqui denominado auto-seguro, isto é: com a retenção do risco pela Administração.
Costuma-se aduzir que o auto-seguro será, em muitos casos (principalmente, em se tratando de riscos não-controláveis e não-seguráveis), uma opção mais econômica do que a transferência de riscos à parte privada, pois essa sempre provisionará custos para gerenciar a prevenção desses riscos, incorporando-os no preço de sua proposta. Nesta hipótese, a Administração estará pagando pelo risco mesmo que ele não se materialize. E, em sendo um risco não controlável pelo concessionário, a tendência é que a estimativa de custos para o gerenciamento do risco esteja orientada por um cenário pessimista, como referido acima.
Esse raciocínio pressupõe a comparação entre os custos de provisionamento do risco pelos interessados em contratar com a Administração, inclusive mediante a utilização de seguro, e os custos estimados para o auto-seguro. Essa análise passa pela consideração da probabilidade estatística de ocorrência de certo risco, dos valores que vêm sendo aplicados no ressarcimento dos prejuízos que derivam de sua materialização e dos custos que vêm sendo provisionados pelos contratados da Administração para gerenciar determinado risco. O problema é que as Administrações não possuem informações fidedignas para alimentar essas avaliações. Não há, no Brasil, contabilização de dados relevantes acerca de riscos em contratos públicos, muito menos a gestão inteligente dessas informações para orientar a alocação de riscos.
Uma variável que deve interferir nesta análise é a probabilidade, que se altera na medida em que se altera a capacidade da parte em exercitar a prevenção do risco. Neste particular, deve-se lembrar uma fórmula que vem sendo utilizada para estimar custos de gerenciamento de risco (esperança matemática18), a qual considera a multiplicação do montante necessário para fazer frente aos prejuízos derivados da materialização do risco pela probabilidade de sua ocorrência. Logo, e para se avançar nesta análise, afigura-se fundamental o conhecimento sobre a probabilidade de materialização do risco.
A probabilidade é precisamente o fator que variará conforme o comportamento das partes, segundo a sua capacidade e o incentivo que possuem para gerenciar a prevenção do risco. Um cenário de cotejo entre o auto-seguro e o recurso ao seguro de mercado pressupõe considerar que neste são frequentemente utilizados métodos para estimular o segurado a exercer a prevenção, como é o caso do pagamento de franquias. Logo, a desconsiderar a interferência de outros fatores nesta análise, seria possível afirmar que a probabilidade tenderá a ser menor no caso do seguro de mercado comparativamente ao auto-seguro (embora seja perfeitamente possível, e até desejável em algumas hipóteses, como será explicitado adiante, que a Administração Pública se valha do compartilhamento de riscos para estimular o concessionário a exercer a prevenção), evidenciando-se uma vantagem daquele em relação esse. Inclusive porque os incentivos da Administração para exercitar a prevenção do risco serão ainda comprometidos pela facilidade que tem de transferir suas perdas a terceiros: os contribuintes. O efeito de dissipação do custo do risco pelo universo de contribuintes pode relativizar o incentivo da Administração a gerenciar adequadamente a prevenção do risco.
Há casos, no entanto, em que não se verifica no mercado especializado a disponibilidade, a preços acessíveis, de seguro para a cobertura de certo risco. Nestas hipóteses, e mesmo que se trate de um risco não controlável pela Administração, pode ser conveniente associar o risco à sua responsabilidade, evitando-se o incremento de custos na PPP ante a precificação onerosa do risco pelo concessionário. Volte-se a afirmar que riscos não gerenciáveis serão invariavelmente precificados pelo concessionário sob contextos pessimistas, onerando a contratação da PPP.
Mas a alocação de riscos não plenamente controláveis por qualquer das partes nunca será simples, pois levará em consideração não apenas sua capacidade de se prevenir da ocorrência do risco como sua aptidão para minorar os prejuízos num cenário de materialização do risco. Em boa parte dos casos, será o concessionário, encarregado da execução do contrato de PPP, que estará em posição a lhe permitir gerenciar mais eficazmente a contenção dos efeitos da ocorrência do risco. Há técnicas voltadas a induzir o concessionário à adoção de ações dirigidas para a redução dos prejuízos derivados da materialização do risco, mediante tanto o compartilhamento da responsabilidade sobre o risco como pelo estabelecimento de sanções de outra natureza ante o não implemento de providências fundamentais vocacionadas à contenção dos danos.
2.4.1. Compartilhamento de riscos
O compartilhamento da responsabilidade por certo risco, em proporções arbitradas racionalmente no contrato, será uma técnica a manter o incentivo de ambas as partes à adoção de medidas mitigadoras. Esse compartilhamento será utilizado para hipóteses em que ambas as partas revelem-se aptas, em alguma medida, ao seu gerenciamento.
O risco de demanda pode ser um bom exemplo. Embora esse risco tenha sido classicamente alocado à inteira responsabilidade do concessionário, há uma tendência na sua partilha com o Poder Concedente, uma vez que em muitos casos os fatores de risco podem ser gerenciáveis por ambas as partes. Como já afirmei em outro estudo:
“É bastante comum, ..., que o risco de demanda em projetos concessionários seja, em alguma medida, assumido pelo concessionário. Isso deriva do fato de que, em muitos casos, o concessionário detém controle sobre situações diversas que influem neste tipo de risco. Quanto maior a liberdade e autonomia do parceiro privado para gerenciar os meios adequados para a disponibilização do serviço ao usuário, tanto maior tenderá a ser a sua exposição ao risco de utilização ou risco de demanda. Por outro lado, nos casos em que o risco de demanda não se afigura tão suscetível ao desempenho do concessionário, quando outros fatores exercem influência direta sobre a variação de demanda, é comum a partilha desse risco entre as partes, pois não será ele o único ou o principal detentor do controle sobre esse risco. São mais raras configurações em que o parceiro público assume integralmente o risco de demanda. A avaliação desse risco passa pela capacidade das partes em gerar estimativas confiáveis para a demanda futura do serviço. Os estudos de projeção de demanda são a referência fundamental para que os interessados possam estruturar suas propostas e dimensionar a taxa de retorno esperada para o projeto. Bem por isso, em projetos greenfield, especialmente naqueles em que há grande dificuldade em se gerar as estimativas de demanda,19 cresce a relevância do compartilhamento desse tipo de risco, com vistas a minimizar a insegurança do concessionário (e do agente financiador), trazendo benefícios econômicos ao contrato".20
A alta longevidade dos contratos de PPP faz com que os níveis de demanda estejam expostos à influência de causas diversas, que muitas escapam do controle do concessionário: “O ambiente macroeconômico (crises agudas na economia), por exemplo, pode propiciar quedas significativas de demanda, sem que isso possa ser adequadamente prevenido pelo parceiro privado. Diversos outros fatores poderão influenciar na variação da demanda de um serviço público, como o aumento de usuários estimulado por políticas governamentais ou como decorrência do próprio crescimento do PIB etc. Como essas projeções são difíceis e envolvem margens de erro não desprezíveis, o compartilhamento do risco de demanda surge como um mecanismo eficaz para impedir variações desproporcionais nos resultados financeiros da concessão, minimizando-se também problemas de instabilidade da taxa de retorno do projeto (o que acautela o financiador, desonerando custos financeiros do projeto)”.
Diversos contratos mais recentes de PPP, principalmente na área de transportes, têm optado pelo compartilhamento desse risco mediante a delimitação de “bandas” de variação da demanda em relação às estimativas constantes do contrato, onde se identifica uma banda de risco do concessionário (por exemplo: entre X% acima e X% abaixo da demanda estimada), uma banda de compartilhamento dos ganhos (risco positivo) e uma banda de compartilhamento das perdas (risco negativo). O compartilhamento desse risco mostra-se uma solução eficaz para reduzir a insegurança do concessionário, o que melhora a condição de financiabilidade do projeto e concorre para a estabilidade da PPP, além de evitar a percepção de ganhos desproporcionais, apropriando-os ao benefício do usuário e dos contribuintes.22
Outros exemplos poderiam ser lembrados, como o risco de depredação de equipamentos de monitoramento de tráfego por força de movimentos populares. Pode fazer sentido a alocação deste risco ao poder concedente, uma vez que a ele cabe o exercício do poder de polícia apto a evitar, repreender ou dissipar movimentos populares de cunho violento. No entanto, a intensidade dos danos que possam ser gerados em situações dessa ordem relaciona-se também à qualidade dos materiais de proteção aos equipamentos. Associar esse risco à responsabilidade, mesmo que parcial, do concessionário o induz a investir em estruturas mais robustas para a proteção dos equipamentos, minorando a intensidade dos danos que possam lhe ser gerados.
Há casos outros em que o concessionário não possui qualquer controle sobre a prevenção do risco, mas tem aptidão para influir na contenção de seus efeitos, quando materializado. Cogite-se do risco de interferências subterrâneas que podem advir ao longo da escavação de obras para a infraestrutura metroviária. É bastante difícil ao concessionário o mapeamento dessas interferências. Trata-se de um risco que, da perspectiva da prevenção, deveria ser retido pela Administração, com vistas a desonerar a PPP dos custos de provisionamento, que tenderiam a ser elevados. No entanto, o concessionário, na condição de responsável pela execução da obra, será a parte apta a influir na contenção dos efeitos derivados do surgimento dessas interferências, minorando os prejuízos decorrentes. Talvez em casos assim seja conveniente compartilhar com o concessionário, em alguma proporção, a responsabilidade pela ocorrência do risco. Isso gerará incentivo para que adote medidas eficazes para a contenção dos problemas relacionados às interferências.
2.4.2. Obrigações associadas à prevenção ou à contenção dos efeitos do risco imputadas à parte irresponsável pelas consequências derivadas da sua materialização
Há situações em que o incentivo à adoção de um comportamento potencialmente eficaz para contribuir com a contenção do dano, num cenário de materialização de riscos, está associado à imposição pelo contrato de sanções ao concessionário. O concessionário há de se ver compelido a tomar ações positivas com vistas a evitar a ampliação dos prejuízos derivados da ocorrência de riscos. Obrigações de estabelecer uma comunicação ágil e eficaz ao poder concedente sobre os entraves que interfiram na execução do contrato, assim como a adoção de planos de contingenciamento de sinistros, são medidas que podem contribuir para evitar prejuízos maiores no âmbito da contratação, e, por isso, o seu inadimplemento pelo concessionário pode estar associado a multas e outras espécies de sanções.
Assim, certos riscos podem estar integralmente alocados à responsabilidade do Poder Concedente, mas sem que se elimine o incentivo do concessionário à adoção de medidas mitigadoras, o que se alcança mediante a imposição de sanções contratuais.
3. A tutela jurídica dos riscos extracontratuais
Como já afirmado atrás, o direito, além de condicionar (pontualmente) a alocação de certos riscos no plano do contrato, estabelece o dever de busca pela formatação mais eficiente da matriz de riscos da PPP. A projeção destes condicionamentos jurídicos visa a orientar a tutela ex ante dos riscos contratuais, inclusive com vistas a minimizar as chances de litígios e disputas relacionados ao arbitramento da responsabilidade sobre riscos e contingências surgidas durante a execução do contrato. No entanto, e como se viu, por mais que se pretenda alcançar um nível avançado quanto ao detalhamento do catálogo de riscos e de sua alocação, é obviamente inviável esgotar no plano do contrato todo o repertório de eventos potencialmente lesivos à esfera das partes. Daí surge a necessidade de o direito oferecer critérios e parâmetros para o arbitramento da responsabilidade sobre os riscos extracontratuais.
Num cenário de ausência de delimitação contratual acerca da responsabilidade sobre certos riscos – e a compreensão sobre se o evento em questão está ou não albergado em determinada categoria de risco delimitado pelo contrato nem sempre é simples – será necessário encontrar na legislação critérios secundários para orientar esse arbitramento.
Quanto a isso, é perceptível que nem a Lei 8.987/1995 nem a Lei 11.079/2004 disciplinaram a alocação ou o arbitramento dos riscos extracontratuais. Já a lei 8.666/1993, que tem aplicação subsidiária aos contratos concessionários, trata expressamente do problema, estabelecendo na alínea “d” do inc. II do art. 65 a responsabilidade da Administração Pública em relação aos riscos atinentes à álea extraordinária e extracontratual.
Neste particular, e como já anotei em outro estudo, o tratamento dispensado pela Lei 8.666/93 para a tutela de riscos extracontratuais (alínea “d” do inc. II do art. 65) não parece inconciliável com o modelo concessionário: “Observe-se que essa regra visa a tutelar uma situação própria de risco extracontratual, desconsiderado pelo contratado ao tempo da contratação. O objetivo do legislador parece ter sido precisamente o de desestimular, nas propostas oferecidas na licitação, a precificação de situações de risco cujo controle pelos interessados é impossível ou bastante limitado. A finalidade é desonerar as propostas desses custos, transferindo-se a responsabilidade de gerenciamento desses riscos à Administração. Essa orientação está alinhada com a premissa fundamental costumeiramente utilizada para nortear a alocação de riscos em contratos complexos e de longo prazo, como as concessões e as PPPs, a qual recomenda alocar o risco à parte que detém melhores condições para o seu gerenciamento, donde se extrai a exegese de que riscos que não possam ser adequadamente gerenciados pelo parceiro privado devem ser retidos pelo parceiro público. Como esses riscos serão aqueles considerados imprevisíveis (e extracontratuais), o parceiro privado não terá meios para gerenciá-los adequadamente, fazendo sentido, portanto, que sejam eles alocados à responsabilidade do parceiro público”.23
Parece-me, portanto, que essa regra será perfeitamente aplicável aos contratos concessionários para hipóteses de riscos imprevisíveis e extracontratuais.
Notas
1 “A temática do equilíbrio contratual adquiriu novos contornos, quando a preocupação com a tutela dos riscos extracontratuais passa a ser substituída pela preocupação com alocação dos riscos contratuais. Com isso, reduziu-se o espaço para a tutela jurídica do arbitramento ex post de riscos (conduzida pelo juiz, no âmbito de disputas judiciais sobre a responsabilidade acerca de riscos materializados) e ampliou-se a sua “tutela” econômica, exercitada no momento da confecção dos contratos, o que promove uma substituição da lógica do arbitramento jurídico corretivo da responsabilidade sobre os riscos contratuais por uma alocação preventiva de riscos”. GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno, p. 90.
2 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público, pp. 342-343.
3 Uma questão está em saber se, apesar da definição do nível de anteprojeto prescrita pela norma do § 4º do art. 10, seria lícita a estipulação de caráter não vinculante ao anteprojeto, o que permitiria deslocar ao concessionário os riscos atinentes à incorreção ou inadequação das informações veiculadas com o anteprojeto.
4 Como já referi em outro estudo: “É evidente que a estipulação contratual pelo gestor público não está pautada apenas por regras que lhe são objetivamente aplicáveis, mas também por normas de cunho principiológico. Naquilo que suas atribuições não estiverem limitadas pela incidência injuntiva das regras, nascerá um espaço de discricionariedade. Neste particular, as escolhas realizadas com vistas a definir o conteúdo dos contratos administrativos e sua equação econômico-financeira são escolhas discricionárias, ainda que guiadas por princípios e diretrizes. Esses princípios e diretrizes, se é verdade que geram limites à atuação do administrador, não possuem o mesmo alcance e o mesmo potencial de restrição do que as regras. Guiarão o administrador a observar certos padrões, mas sem que se lhe imponha enquadramentos definitivos. O quadro das diretrizes e dos princípios não impõe soluções exatas, mas, antes, sugere a observância de certos standards.
O princípio fundamental a orientar a partilha de riscos é o principio da eficiência, que vem acolhido no capítulo de diretrizes da Lei Geral de PPPs (inciso I do art. 4º). O conteúdo jurídico dessa diretriz tem uma forte interface com a teoria econômica que orienta a distribuição de riscos contratuais, determinado ao gestor a observância de certas regras e premissas econômicas para esse fim”. GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno, p. 97.
5 Há casos também em que os contratos são propositadamente omissos, com vistas a propiciar a adoção de comportamentos oportunistas por alguma das partes.
6 Conforme GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno, p. 92. Ver também GUASCH, J. Luis. Granting and renegotiating infrastructure concessions: doing it right, p. 71.
7 Não se trata, aqui, de percepções diferentes em relação a um risco delimitado contratualmente – o que decorre da distinta aptidão de cada operador para o gerenciamento do risco –, mas de discrepâncias na percepção do risco que se originam de sua falha delimitação contratual.
8 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno, p. 92.
9 Esse dispositivo não será automaticamente aplicável às concessões e PPPs. Para aprofundar a discussão, consulte-se GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público, p. 331.
10 Lembre-se a advertência de Egon Bockmann Moreira, no sentido de que “se o edital omitir ou errar algum dado que tenha impacto causal sobre o risco da concessão (por dolo, negligência ou ignorância – tanto faz), e caso isso não seja detectável icto oculi pelos interessados (a quem se atribui o ônus de pedir esclarecimentos ou impugnar o edital), as consequências de sua futura instalação não poderão ser atribuídas ao concessionário”, fato é que, de um prisma prático, tais riscos tenderão a ser incorporados nas ofertas, caso a regulação contratual não neutralize a ineficácia dos mecanismos de compensação ao concessionário num cenário de incumprimento contratual pelo Poder Concedente (refiro-me a todo o arcabouço que pretende garantir o exercício e a eficácia de direitos em situações desta natureza). Por isso, é essencial – como o mesmo Egon arremata – “que as partes definam como se dará a administração de tal ou qual risco; onde serão inseridos os custos; quem o supervisionará e quem será o responsável por suas sequelas”. MOREIRA, Egon Bockmann. Riscos, incertezas e concessões de serviço público. Revista de direito público da economia – RDPE, nº 20, p. 45.
11 Veja-se GUASCH, J. Luis. Granting and renegotiating infrastructure concessions: doing it right, p. 35.
12 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Alocação de riscos na PPP. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004, pp. 240 e 241.
13 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno, p. 94.
14 “Os estudos de engenharia para a definição do valor do investimento da PPP deverão ter nível de detalhamento de anteprojeto, e o valor dos investimentos para definição do preço de referência para a licitação será calculado com base em valores de mercado considerando o custo global de obras semelhantes no Brasil ou no exterior ou com base em sistemas de custos que utilizem como insumo valores de mercado do setor específico do projeto, aferidos, em qualquer caso, mediante orçamento sintético, elaborado por meio de metodologia expedita ou paramétrica”.
15 Vide FRANCO, Viviane G.; PAMPLONA, João Batista. Alocação de Riscos em Parcerias Público-Privadas no Brasil. Revista econômica do Nordeste, nº 1, v. 39, p. 37.
16 A ausência de completude do projeto é o que propicia o desenho de contratos mais eficientes, permitindo-se que a remuneração do parceiro privado esteja atrelada à performance (resultados). Mas isso importa um déficit de objetividade no processo de licitação.
17 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Alocação de riscos na PPP. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004, pp. 251-252.
18 Veja-se MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito, p. 134 e seguintes.
19 Cristina Checherita e Jonathan Gifford apontam que “[t]he demand risk is particularly strong in the case of newly built transportation facilities, where the absence of historical data complicates demand estimates. Even in case of extension of existing facilities or the introduction of new demand instruments (e.g., HOV or HOT lanes), demand modeling in transportation is difficult because of the variability of traveler’s discrete choices and the difficulty of incorporating realistic assumptions. The traffic volume risk is related to the price risk through the price elasticity of demand, which is in turn influenced by the availability of substitutes for the toll road. A PPP contract should provide for an adequate balance regarding restrictions on competing facilities or development of adjacent roads, so that neither the project, nor the long-term sustainability of transportation development be endangered”. Risk Sharing in Public-Private Partnerships: General Considerations and an Evaluation of the U.S. Practice in Road Transportation. 11th World Conference on Transportation (WCTR), pp. 24-28.
20 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Alocação de riscos na PPP. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004, p. 247.
21 Idem, p. 248.
22 Não se olvide que o compartilhamento desses riscos exige cautelas em relação ao controle fiscal. Segundo os economistas Luiz Brandão e Eduardo Saraiva, “[a] concessão de garantias de demanda mínima é um modo de reduzir o risco de um projeto para o investidor privado de forma a viabilizar a sua implantação. O valor dessa garantia representa o valor esperado, ou seja, a média aritmética das garantias exercidas quando é realizada a simulação estocástica do projeto de concessão. Por outro lado, dada a natureza probabilística da incerteza a respeito da demanda futura, existe sempre o risco de o valor devido pelo governo ser significativamente maior do que o esperado. Uma preocupação do responsável pela gestão dos recursos públicos é de que o valor das garantias prestadas pelo governo possa atingir montantes consideráveis e, com isso, resultar em ônus a ser pago por gerações futuras. Uma forma de limitar o risco do governo é estabelecer um limite superior para o total dos pagamentos efetuados a título de garantia, acima do qual cessa qualquer apoio do governo à concessão, estabelecendo efetivamente uma trava superior no valor da garantia”. BRANDÃO, Luiz. SARAIVA, Eduardo. Garantias governamentais em projetos de PPP: uma avaliação por opções reais. Pesquisa e planejamento econômico – PPE, nº 3.
23 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Alocação de riscos na PPP. Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004, p. 238.
Referências
BRANDÃO, Luiz. SARAIVA, Eduardo. Garantias governamentais em projetos de PPP: uma avaliação por opções reais. Pesquisa e planejamento econômico – PPE, nº 3, v. 37. Brasil: IPEA, dezembro de 2007. Disponível em
CHECHERITA, Cristina; GIFFORD, Jonathan. Risk sharing in public-private partnerships: general considerations and an evaluation of the U.S. practice in road transportation. 11th World Conference on Transportation (WCTR). Berkeley: University of California, 2007. Disponível em:
FRANCO, Viviane G.; PAMPLONA, João Batista. Alocação de riscos em parcerias público-privadas no Brasil. Revista econômica do Nordeste, nº 1, v. 39. Fortaleza: ETENE/Banco do Nordeste do Brasil, 2008.
GUASCH, J. Luis. Granting and renegotiating infrastructure concessions: doing it right. Washington, D.C: The World Bank, 2004.
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
__________________. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno. Egon Bockmann Moreira (coord.). Belo Horizonte: Fórum. 2016.
__________________. Alocação de riscos na PPP. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. Marçal Justen Filho e Rafael Wallbach Schwind (coords.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. Trad. por Rachel Sztajn. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
MOREIRA, Egon Bockmann. Riscos, incertezas e concessões de serviço público. Revista de direito público da economia – RDPE, nº 20. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
Citação
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Repartição de riscos nas Parcerias Público-Privadas. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/28/edicao-2/reparticao-de-riscos-nas-parcerias-publico-privadas
Edições
Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1,
Abril de 2017
Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2,
Abril de 2022
Verbetes Relacionados
- Parcerias público-privadas: conceito Floriano de Azevedo Marques Neto
- Receitas alternativas, complementares, acessórias ou derivadas de projetos associados Marcos Augusto Perez
- Direito público e infraestrutura Jacintho Arruda Câmara
- Concessão urbanística Alexandre Levin