• Função social da empresa

  • Ana Frazão

  • Tomo Direito Comercial, Edição 1, Julho de 2018

A função social da empresa é importante princípio e vetor para o exercício da atividade econômica, tendo em vista que o seu sentido advém da articulação entre os diversos princípios da ordem econômica constitucional. Longe de ser mera norma interpretativa e integrativa, traduz-se igualmente em abstenções e mesmo em deveres positivos que orientam a atividade empresarial, de maneira a contemplar, além dos interesses dos sócios, os interesses dos diversos sujeitos envolvidos e afetados pelas empresas, como é o caso dos trabalhadores, dos consumidores, dos concorrentes, do poder público e da comunidade como um todo. Dessa maneira, a função social da empresa contém também uma essencial função sistematizadora do ordenamento jurídico, sendo adensada por intermédio de normas jurídicas que têm por objetivo compatibilizar os diversos interesses envolvidos na atividade econômica ao mesmo tempo em que se busca a preservação da empresa e da atividade lucrativa que assim a qualifica.

1. O Estado Social e a função social da empresa 

A função social da empresa e, antes disso, a noção de finalidade social dos direitos subjetivos são discussões que se inserem no contexto de crítica e superação do formalismo e individualismo exacerbados do Estado Liberal, quadro que possibilitou, a partir do final do século XIX e início do século XX, maior discussão acerca da intersubjetividade das relações jurídicas e da reaproximação do direito com a moral e a justiça.1  

Nesse sentido, tem-se que a alteração do paradigma do Estado Liberal – caracterizado pela fruição absoluta e egoística de direitos subjetivos e pelo receio de intervenção estatal nas relações privadas – para o Estado Social ocorreu antes mesmo do advento das primeiras Constituições sociais do século XX, isto é, da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, de 1919,2 em razão da crescente superação da ideia de direitos subjetivos e liberdades como poderes absolutos, vistos sob uma perspectiva individualista e formalista.

Foi nesse contexto que, no intuito de reparar falhas do sistema de livre mercado e de compensar desigualdades econômicas, surgiram diversas teorias favoráveis à intervenção do Estado na economia, de maneira a conciliar a liberdade de iniciativa e a propriedade privada, de um lado, e os interesses sociais, de outro. Nesse sentido, desempenhou fundamental importância o pensamento de Keynes, que forneceu modelo capaz de estabelecer correspondência global entre os imperativos de crescimento econômico e as demandas sociais no âmbito de um Estado econômica e socialmente ativo.3 

Antes que se discorra diretamente sobre a função social da empresa, é necessário pontuar que, tendo em vista a vinculação entre liberdade e propriedade, esta última oposteriormente ainda foi desenvolvido pela sociologia e pela doutrina social da Igreja Catócupou posição central nas primeiras discussões sobre a função social dos direitos subjetivos.4 Vale notar que os primeiros delineamentos sobre a função social da propriedade advêm do pensamento de Auguste Comte,5 que procurou substituir o caráter pessoal e arbitrário da propriedade privada por finalidade orientada para o bem da sociedade, o que posteriormente ainda foi desenvolvido pela sociologia e pela doutrina social da Igreja Católica.6  

Certo é que, posteriormente, a ideia de função social projetou-se sobre outros direitos e inclusive sobre a liberdade de contratar, suscitando discussões sobre a boa-fé, o equilíbrio contratual e a justiça material. Assim, como decorrência necessária do reconhecimento da função social da propriedade e da função social do contrato, a função social da empresa foi ganhando relevância, na medida em que aumentava o reconhecimento da empresa como instituição fundamental não apenas no âmbito econômico, mas também nos âmbitos político e social.7 

Passo importante para a consolidação da função social da empresa foi o advento do Estado Social, que surge, de certa forma, para conciliar o capitalismo com o bem-estar social,8 além de promover a superação da dicotomia entre direito público e direito privado,9  para que sejam entendidos no âmbito de uma relação de recíproca complementaridade e dependência, de modo a realçar o compromisso dos direitos subjetivos privados em assegurar o bem-estar comum.10  

É importante observar que o reconhecimento da noção de função social não foi capaz de resolver, por si só, o problema do exercício de direitos subjetivos, na medida em que a fluidez do conceito ensejou as mais diversas interpretações sobre seu alcance, sobretudo no que toca à criação de deveres positivos, e não apenas a abstenções decorrentes dos direitos.11 Acrescente-se, também, que o fato de a função social ter sido alçada a princípio jurídico ensejou grande discussão – persistente até os dias de hoje – sobre a possibilidade de os poderes e faculdades que caracterizam os direitos subjetivos coexistirem com deveres positivos em favor da coletividade.12 

Não obstante, a função social da empresa, pelo menos como proposta, consolidou-se a partir do momento em que a função social da propriedade projetou seus efeitos sobre os bens de produção, que igualmente têm sua estrutura alterada para assumir compromissos e obrigações com empregados, consumidores e com a comunidade como um todo.13 Assim, o patrimônio da empresa não pode estar comprometido tão somente com os interesses dos sócios, mas também com os interesses da coletividade.

Contudo, a função social dos bens de produção compreende apenas uma parcela da função social da empresa, que diz respeito a realidade complexa que não se limita ao seu aspecto patrimonial. Vale observar que, em face da existência do poder de controle e de sua possível dissociação da propriedade,14 a função social da empresa precisou ampliar seu âmbito de incidência para abranger também o controle e a administração. Dessa maneira, o foco da função social deslocou-se da propriedade dos bens de produção para o poder de organização e controle.15  

A grande dificuldade do princípio da função social da empresa é justamente a de operacionalizar os deveres e responsabilidades advindos de tais modificações produzidas sobre a concepção clássica de direitos subjetivos. Não obstante, o estudo dos efeitos da função social da empresa sobre as relações privadas estabelecidas requer a harmonização de tal princípio com as demais normas orientadoras da ordem econômica constitucional de 1988, o que será explorado na seção a seguir. 


2. A função social da empresa na Constituição de 1988

Dispõe o caput do art. 170 da Constituição Federal de 1988 que a ordem econômica está “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e “tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social”, para então elencar os princípios que conformam a ordem econômica constitucional: (i) a soberania nacional; (ii) a propriedade privada; (iii) a função social da propriedade; (iv) a livre concorrência; (v) a defesa do consumidor; (vi) a defesa do meio ambiente; (vii) a redução das desigualdades regionais e sociais; (viii) a busca do pleno emprego; e (ix) o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.

 A norma em questão, juntamente dos arts. 1º e 3º da Constituição, permite compreender a base sobre a qual se estrutura a ordem econômica brasileira, mostrando claramente que não existe oposição entre a liberdade de iniciativa e as responsabilidades inerentes à autonomia. Note-se que, como manifestação da autonomia, da emancipação do homem e do desenvolvimento da personalidade, a livre iniciativa recebe proteção constitucional em todos os seus desdobramentos, seja na liberdade de investimento, na liberdade de organização ou na liberdade de contratação.16 

Importa ressaltar que o art. 170 traz diversos princípios que orientam e direcionam o exercício da livre iniciativa empresarial, a exemplo da livre concorrência, da proteção dos empregados, da defesa do consumidor e do meio ambiente, da redução das desigualdades e do tratamento diferenciado à empresa de pequeno porte.17 A função social, nesse sentido, mantém relação com todos esses princípios, procurando destacar que o fim da empresa é o de proporcionar benefícios para todos os envolvidos diretamente com a atividade e, ainda, para a coletividade. Não é por outra razão que há considerável ação do legislador nos assuntos descritos pelo art. 170, com vistas a concretizar tais princípios em regulação jurídica específica.18 

É o que se verifica, por exemplo, nas normas de proteção da concorrência e de repressão estatal sobre atos praticados por detentores de poder econômico, que adensam o princípio da livre concorrência (CF, art. 170, IV), ao promover seu objetivo de garantir nível de competitividade que tanto possibilite a liberdade dos agentes econômicos que pretendam ingressar ou permanecer no mercado, quanto assegure aos consumidores menores preços advindos da liberdade de escolha e da difusão do conhecimento econômico. No mesmo sentido, o princípio da defesa do consumidor (CF, art. 170, V) concede proteção diferenciada aos destinatários finais de produtos e serviços, o que se concretiza por intermédio do Código de Defesa do Consumidor, aplicável a todas as atividades empresariais.

No que diz respeito à proteção dos trabalhadores, consubstanciada pela busca ao pleno emprego (CF, art. 170, VIII) e pelos direitos fundamentais dos trabalhadores previstos pelo art. 7º da Constituição de 1988, a função social age no sentido de legitimar ou promover a implementação de mecanismos para a distribuição dos resultados da atividade empresarial e a viabilização de iniciativas de co-gestão.19 

Importa, ainda, destacar que a proteção ao meio ambiente (CF, art. 170, VI) mantém importante vinculação com a função social da empresa, na medida em que impõe à atividade empresarial vários deveres positivos em prol de tal objetivo, limitando em grande medida seu âmbito de atuação com vistas a preservar os recursos naturais e promover o desenvolvimento econômico sustentável.20  

A exposição dos exemplos acima serve para demonstrar que todos esses princípios da ordem econômica constitucional estão conectados à função social da empresa, uma vez que têm por objetivo ampliar os interesses que devem ser protegidos e atendidos por meio da atividade empresarial,21 constituindo importantes parâmetros para o direito societário como um todo.

É claro, contudo, que os princípios constantes do art. 170 da Constituição não esgotam o sentido da função social da empresa. Na verdade, o equilíbrio entre liberdade empresarial e o igual direito à liberdade do restante da sociedade suscita importantes questões concernentes à justiça social, que não pode ser reduzida a fórmulas fechadas e insensíveis ao processo democrático e ao contexto social em que é analisada.22 

Por óbvio, a função social não tem por fim aniquilar liberdades e direitos dos empresários e tampouco de tornar a empresa mero instrumento para a consecução de fins sociais. A função social tem por objetivo, com efeito, reinserir a solidariedade social na atividade econômica sem desconsiderar a autonomia privada, fornecendo padrão mínimo de distribuição de riquezas e de redução das desigualdades. 

A proximidade da função social da empresa com a justiça social levanta importantes questões sobre sua amplitude e seu alcance e, ainda, sobre a possibilidade de se imputarem deveres positivos a empresários e gestores sem que sequer exista prévia identificação dessas obrigações pelo legislador. Por essa razão, é importante que se discuta de que maneira a função social altera a própria noção de interesse social da empresa e, assim, projetar seus efeitos sobre a atividade empresarial como um todo.


3. O alcance da função social da empresa

A compreensão do âmbito de incidência da função social da empresa requer que sejam superadas discussões polarizadas e contaminadas de discursos maniqueístas ou excessivamente ideológicos, procurando articular maneiras efetivas de equilíbrio da dimensão funcional com a autonomia privada. Existe grande necessidade, nesse sentido, de adoção de visão integrada da empresa, a fim de se chegar a soluções coerentes, sistemáticas e que evitem uma excessiva funcionalização.

É necessário pontuar que a função social da empresa é princípio que amplia e modifica o interesse social das sociedades empresárias e mesmo os objetivos da atividade empresarial. Com isso, tal princípio tem impacto direto sobre a compreensão do interesse social, que continua sendo questão fundamental do direito societário nos dias atuais.

O interesse social “é o parâmetro que conforma os fins e os meios pelos quais tal atividade deve ser exercida, diante dos valores ou objetivos maiores que justificam a existência da própria sociedade”.23 Dessa maneira, o interesse social é a baliza estrutural e valorativa da gestão das sociedades empresárias, estando seus desdobramentos filosóficos e técnico-operacionais em constante interpenetração.

A noção de interesse social, contudo, foi elaborada de maneiras diversas ao longo dos tempos, destacando-se o embate entre concepções contratualistas e institucionalistas. A abordagem contratualista do interesse social, estruturada no século XIX, parte do pressuposto de que o interesse social corresponderia ao interesse dos próprios acionistas.24 Com a derrocada do Estado Liberal, foram dados os primeiros passos para a construção de uma abordagem institucionalista do interesse social, a partir de perspectiva que considera as pessoas jurídicas como “núcleos sociais autônomos destinados a atender finalidades socialmente úteis em torno das quais os indivíduos se unem e criam uma organização”.25 Uma das consequências da nova abordagem, que passou igualmente pela influência da função social da empresa, foi a de considerar que o interesse social deve abranger interesses outros que não apenas os dos acionistas e que “a racionalidade empresarial precisa direcionar-se igualmente para o atendimento de padrões mínimos de justiça”,26  ainda que haja dúvidas sobre como compatibilizar os interesses contrapostos que se projetam sobre a sociedade.

Por essa razão, o debate entre contratualismo e institucionalismo ainda mantém relevância, ainda que sob nova roupagem.27 É o que se verifica na oposição entre o modelo clássico (shareholder-oriented), direcionado à proteção dos interesses dos sócios, personagens centrais no regime de governança corporativa das empresas; e o modelo de proteção a stakeholders (stakeholder-oriented), alternativa por meio da qual serão também sujeitos relevantes no regime de governança corporativa todos aqueles que estejam de alguma maneira ligados à atividade em questão, sejam empregados, credores, consumidores, o poder público, entre outros.28 

É importante lembrar que, mesmo sob a ótica do contratualismo, as sociedades – e especialmente a sociedade anônima – são palcos naturais de conflitos. No direito anglo-saxão, em razão da grande disseminação do controle gerencial,29 o principal conflito societário (agency problem) ocorre entre acionistas e administradores, enquanto que, nos países de tradição romano-germânica, o principal conflito ainda diz respeito à relação entre acionistas controladores e minoritários.

O que ocorre em razão da função social da empresa é o aumento exponencial desses conflitos, que deixam de se referir apenas aos acionistas e aos gestores. Afinal, mesmo as versões mais moderadas do institucionalismo mostram que os interesses dos sócios, embora importantes, não são os únicos que merecem tutela, sendo igualmente dignos de proteção os interesses dos trabalhadores, dos consumidores, do poder público e da própria coletividade.

Segundo Hansmann e Kraakman,30 a diferença entre os modelos de proteção aos shareholders ou aos stakeholders foi mitigada em razão de a própria estrutura do capital das empresas ter sofrido alterações nos últimos anos, sobretudo com a rápida expansão do private equity, o que facilita em grande medida o acesso à propriedade acionária pelo público geral; e com a obtenção de direitos importantes destinados à proteção dessas minorias societárias, o que acirra e renova os conflitos societários. Além disso, diagnosticam os autores que iniciativas destinadas a incluir stakeholders no regime de governança corporativa, a exemplo da inclusão de empregados em conselhos de administração, têm se mostrado pouco eficientes. De acordo com os autores, o modelo de proteção aos shareholders apresenta maiores vantagens, uma vez que as estratégias comerciais tomadas com vistas à maximização de lucros e ao abandono de investimentos ineficientes permitiria maior competitividade e, assim, traria melhores resultados. Dessa forma, a proteção dos stakeholders viria não mediante sua inclusão na ideia de interesse social da empresa, mas por intermédio de salvaguardas contratuais e regulatórias.

Com isso, Hansmann e Kraakman procuram sinalizar para o fim do debate entre contratualismo e institucionalismo, indicando a superioridade do primeiro com relação ao segundo. No entanto, a solução para o conflito entre as duas vertentes não deve ser de tal maneira extrema, reduzindo o interesse social aos interesses dos sócios sem considerar interesses de stakeholders: é necessário que se formule uma visão que integre empresa e ordenamento para que se alcancem soluções coerentes. 

Daí o acerto da observação de Calixto Salomão Filho,31 para quem o maior saldo do institucionalismo é destacar que a empresa é uma “instituição não-redutível ao interesse dos sócios”. Tal afirmação, que é válida na atualidade para todas as sociedades empresárias, o é com maior razão em relação às companhias abertas, em face do seu caráter marcadamente institucional e “quase público”.32 Nesse sentido, as companhias abertas representam exemplos claros e capazes de justificar esse amálgama entre contratualismo e institucionalismo.

Importa notar que, muito embora a frequência de conflitos seja em grande medida aumentou em razão da inclusão de interesses de stakeholders na noção de interesse social, é necessário partir do pressuposto de que o interesse da empresa é maior do que o de qualquer grupo envolvido, devendo ser preservada sua estrutura privada e destinada ao lucro. 

Com efeito, qualquer que seja a dimensão que se atribua à função social da empresa, deve ser ela compatibilizada com o princípio da manutenção da empresa, na medida em que a subsistência rentável da sociedade empresária é pressuposto para a realização de qualquer outro interesse. Consequentemente, a manutenção da empresa não pode ficar sujeita à vontade ou aos interesses de determinados sócios ou credores ou qualquer outro grupo, diante da magnitude de interesses que dependem da atividade empresarial para serem atendidos.33 A correta compreensão do âmbito de incidência da função social da empresa requer que se considerem os diversos interesses que compõem o “interesse social” e da preservação da empresa como parâmetros interpretativos das regras existentes sobre diversas disputas societárias. 

Há que se esclarecer igualmente que, muito embora a função social apresente grande amplitude, há formas de manifestação do poder empresarial no âmbito das quais a própria lei pode restringir seu âmbito de incidência. É o caso das empresas estatais, regidas pela Lei 13.303/2016, que delimitou o conceito de função social da empresa estatal de forma mais precisa, identificando-o com a realização do interesse coletivo ou o atendimento a imperativo de segurança nacional constantes da lei autorizadora (art. 27).34 

Por fim, não se pode esquecer que a incidência do princípio da função social da empresa encontra também importante problemática na recente mudança das formas de organização da atividade econômica, que paulatinamente deixa de se estruturar por estruturas hierárquicas para adotar outros formatos, a exemplo dos chamados contratos associativos e contratos híbridos.35 Para alguns, como é o caso de Ronald Dore,36 a realidade atual é marcada pela fragmentação ou desagregação da empresa, ou seja, pela substituição de um sistema de produção coordenado dentro de uma empresa verticalmente integrada por um sistema de produção coordenado entre um largo número de empresas que precisam encontrar arranjos contratuais que assegurem a estabilidade de suas relações.

Frente a tal quadro, a incidência da função social da empresa tão somente sobre o controle ou a administração se mostra insuficiente para tutelar as situações de materialização do poder empresarial de maneira a proteger os demais afetados por suas consequências. Além disso, passam a exercer papel importante na organização empresarial figuras como fundos de investimento e formas de “controle” como a influência relevante produzida por práticas como o interlocking,37 cuja estrutura sem dúvida enseja maiores reflexões sobre a necessidade de garantia da observância dos deveres advindos da função social da empresa.


4. A dimensão ativa da função social da empresa

4.1. Projeções da dimensão ativa sobre a distribuição dos recursos da empresa

A função social, conforme construída pela doutrina italiana, não tem por finalidade apenas a anulação de condutas antissociais, mas também o direcionamento e orientação do exercício dos direitos para a realização do interesse público, sem comprometer o núcleo de individualidade a eles inerente. Segundo Pietro Perlingieri,38 a função social não serve apenas à delimitação dos limites dos interesses e direitos subjetivos, mas também comporta uma dimensão ativa ou impulsiva. 

Apesar das diferenças encontradas na doutrina sobre o aspecto positivo ou impulsivo da função social,39 a base comum de sentido que une as várias teorias sobre o assunto é a preocupação de que os direitos subjetivos possam e devam ser instrumentos de construção de uma sociedade mais justa e solidária, resgatando o compromisso destes com liberdade e a emancipação não apenas dos seus titulares, como também dos demais membros da sociedade.

Entretanto, uma das discussões que subsiste diz respeito à necessidade da prévia intermediação legal para a concretização da dimensão ativa da função social, sob o fundamento de que seria mera norma programática, direcionada apenas ao legislador e não aos cidadãos. A prevalecer esta linha de raciocínio, o princípio não teria nenhuma eficácia prática como cláusula geral a orientar o exercício dos direitos subjetivos.40 Tal questão diz respeito não apenas aos enunciados constitucionais relativos à função social, mas também a normas legais, como aquela prevista pelo art. 154 da Lei das S/A, segundo a qual “[o] administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”.

Já se viu que a função social da empresa não se resume a norma programática, mas é princípio que vincula a atividade empresarial à realização da justiça social, de maneira a modificar a noção de interesse social para abarcar todos os sujeitos que, de alguma forma, sejam afetados pela atividade empresarial, interna ou externamente. Logo, resta saber a medida a dimensão ativa ou impulsiva da função social da empresa.

Se a dimensão ativa da função social consiste justamente na criação de um plus ao princípio norteador da atividade econômica constante da Constituição de 1988, impondo obrigações destinadas a garantir que o patrimônio, os lucros e demais recursos da companhia sejam igualmente investidos para o atendimento dos demais interesses que se projetam sobre a empresa,41 uma questão fundamental é saber se o princípio impõe algum tipo de redistribuição direta dos recursos empresariais. 

A melhor compreensão é que políticas distributivas devam ser feitas por obrigações legais específicas e claras, sob pena de sujeitar os gestores das sociedades empresárias à tarefa complexa e praticamente inexequível, com muitos efeitos deletérios, dentre os quais: (i) o engessamento da atividade empresarial em razão da ampliação dos deveres passíveis de responsabilização; (ii) o aumento de custos de transação em razão da incerteza quanto à extensão dos deveres; (iii) o repasse dessas dificuldades para os custos finais; (iv) o aumento da discricionariedade dos administradores, enfraquecendo a prestação de contas; (v) a admissibilidade de amplo controle judicial sobre o mérito das decisões empresariais;42 (vi) o risco de fuga de investimentos em razão da discricionariedade dos gestores.43 

É necessário, pois, que o ordenamento forneça regras que estabeleçam claramente as obrigações imputáveis aos gestores, não havendo que se falar em sua responsabilização pessoal em virtude do descumprimento de cláusulas gerais excessivamente amplas. Exemplos de regras dessa espécie são a regulamentação estatal do mercado de capitais; a adoção de estratégias de governança adequadas à natureza da atividade, como ocorre no regime da Lei das Estatais (Lei 13.303/2016); a introdução de soluções estruturais; a prevenção do conflito de interesses; a legitimação e estímulo da responsabilidade social voluntária, entre outros, como se mostrará a seguir.

Dessa maneira, é forçoso concluir que a função social da empresa não tem o condão de obrigar que o patrimônio, os lucros e demais recursos da companhia sejam distribuídos diretamente para atender aos interesses que se projetam sobre a empresa, ainda mais quando a ação dos gestores já é naturalmente conformada pelas inúmeras exigências impostas, tais como as previstas nas leis protetivas dos consumidores, trabalhadores, meio ambiente, mercado de capitais, dentre outros.44  

Daí a dificuldade de se impor aos gestores uma redefinição dos seus deveres que os obrigue a realizar a distribuição dos recursos da companhia a partir de uma cláusula geral da função social da empresa sem nenhuma especificação. Por essa razão, o processo distributivo a ser sustentado pela imperatividade do princípio da função social da empresa requer a intermediação da lei ou a previsão de critérios mais consistentes, sob pena de imputar aos gestores tarefa inexequível, para a qual teriam poderes tão incontroláveis como arbitrários.45 


4.2. A reconfiguração dos destinatários dos deveres dos gestores

Um dos principais efeitos da função social da empresa é o de reconfigurar os deveres gerais dos gestores e mesmo dos sócios minoritários, bem como de modificar os destinatários de suas atividades. Nesse sentido, tendo em vista a já comentada transformação produzida pela função social sobre o conceito de interesse social, ganha fundamental relevância o dever de agir no interesse da companhia. É claro que a atribuição de deveres decorrentes da função social não pode comprometer o conteúdo mínimo da autonomia e individualidade dos sócios, porém o dever de agir no interesse da companhia se fará presente quando este for convergente com sua posição de sócio, isto é, com a comunhão dos acionistas em torno do objeto social;46 e com o respeito aos demais interesses que se projetam sobre a empresa.47 

Dessa maneira, o compromisso dos acionistas com o interesse social se traduz nos deveres de cuidado e proteção que necessariamente deverão orientar o exercício do direito de voto, sobretudo no que diz respeito à tutela de valores constitucionalmente protegidos. Importa rememorar, portanto, que embora diversos interesses sejam merecedores de tutela, o interesse da empresa deve prevalecer sobre o de qualquer grupo envolvido.

Por mais que tal dever se imponha a todos os sócios, a situação do controlador apresenta peculiaridade que agrava o grau de cuidado a ser observado em sua tomada de decisões: a necessária observância a acentuados deveres de diligência e lealdade, que aumentam consideravelmente o grau de cuidado no uso de seus direitos e prerrogativas, lembrando que o abuso de direito de voto muitas vezes se conecta com o abuso de poder de controle.48 

O dever de lealdade está fortemente conectado ao interesse social, constituindo-se como cláusula geral que permite a evolução do direito societário e sua adaptação a novos fatos e, também, como fonte de uma série de condutas vedadas que adensam a cláusula geral em regras de comportamento que têm por objetivo evitar a ação do controlador em detrimento do interesse da companhia.49 É importante notar que a quebra dos deveres de lealdade nem sempre está associada a danos ao patrimônio social, mas a situações nas quais o gestor age com base em interesses próprios ou de terceiros, em detrimento do interesse da companhia.50 É por essa razão que, em casos de violação ao dever de lealdade, o controlador tem a obrigação não apenas de ressarcir o dano, mas de devolver o benefício indevido.51 

Embora a companhia e os acionistas, especialmente os minoritários, sejam importantes destinatários do dever de lealdade, as reflexões propiciadas pelo institucionalismo e pela função social da empresa alargaram o rol de beneficiados. Em razão do princípio da função social da empresa, o espectro dos interesses a serem observados pelo dever de lealdade ganha considerável expansão não somente em relação aos administradores, mas também em relação aos controladores. Não é sem razão que o art. 116, § único da Lei das S/A, chega a mencionar os deveres que o controlador tem em relação à comunidade, cujos “direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.52 

Os gestores também são submetidos ao dever de informação, na medida em que a tomada de decisões deve estar aparelhada com todas as informações postas à sua disposição, buscando aconselhamento próprio quando não estiverem munidos do conhecimento necessário para realizar determinada escolha.53 Tal dever se caracteriza, ainda, pela necessidade de os gestores desconfiarem e certificarem-se da higidez das informações recebidas, com vistas a assegurar o cumprimento do interesse da companhia.54  Sob essa perspectiva, o dever de informação deve projetar-se igualmente sobre as consequências da gestão sobre todos os interesses que compõem o interesse social. 

Já o dever de diligência é caracterizado pela adoção como parâmetros de conduta os padrões de cuidado todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus negócios (Lei 6.404/1973, art. 153), razão pela qual se sustenta que tal dever é o primeiro aos quais os gestores estarão sujeitos. Trata-se de dever de grande fluidez que deve ser avaliado de forma casuística, considerando fatores como o tamanho da companhia, a natureza de suas atividades, a forma de estruturação da administração e o tempo e as circunstâncias em que a decisão foi tomada.55 

O dever em questão determina que controladores deverão agir apenas se detiverem as informações necessárias para tanto, o que dependerá da complexidade da questão envolvida e do tempo para a tomada da decisão. Dessa maneira, sustenta-se que o conteúdo mínimo do dever de diligência é o dever de agir informado.56 

Nesse sentido, o significado do dever de diligência não se resume ao dever de agir informado, mas também apresenta importante aspecto organizacional, tendo em vista que faz parte de seu âmbito de aplicação o dever de estruturação da atividade empresarial segundo as regras cogentes aplicáveis às empresas como um todo ou ao setor da atividade explorada. Pode-se, a título de exemplo, mencionar a necessidade de organização da empresa em consonância com as legislações anticorrupção e antitruste, no âmbito das quais têm adquirido relevância os programas de compliance,57  instrumentos capazes de demonstrar o cumprimento dessas regras por intermédio de mecanismos de vigilância, supervisão e investigação sobre as atividades da sociedade, viabilizando a intervenção adequada diante da identificação de problemas e ameaças.58  

O compliance, assim, constitui ferramenta capaz de apresentar o comprometimento da empresa com o cumprimento das normas legais e, assim, de conferir accountability à gestão empresária. Na mesma linha, o fortalecimento de boas práticas de governança corporativa igualmente contribui para a construção de gestão transparente e orientada pelos princípios reitores da atividade empresarial.59  Não é por outra razão que o próprio mercado de capitais dispõe de listagens específicas para empresas que adotem determinadas práticas de governança corporativa, como é o caso do Novo Mercado e dos níveis de governança 1 e 2 da Bovespa.

Embora a companhia continue sendo uma importante destinatária do dever de diligência, é certo que a função social da empresa tem como importante consequência a de ampliar os destinatários deste, incluindo, no seu espectro de proteção, outros direitos e interesses que não apenas os da companhia.60 Nesse sentido, uma das tendências atuais do direito societário é precisamente a de reforçar o dever de diligência dos administradores em relação aos acionistas, empregados, investidores em títulos de companhias abertas, poder público e terceiros.61 O principal efeito da ampliação subjetiva do dever de diligência é a de impor aos gestores das companhias que assumam a postura de árbitros de vários interesses, devendo sopesá-los com prudência, para tomar decisões equilibradas.62 

Apesar das dificuldades relacionadas à mediação dos conflitos provenientes da ampliação do rol de destinatários do dever de diligência, pode-se concluir que os poderes de controle e de administração sejam exercidos de maneira informada, moderada e proporcional, a fim de não criar danos desnecessários, inadequados ou desarrazoados para os demais interesses que se projetam sobre a empresa. Desse modo, por mais que a gestão deva ser orientada para o lucro e para a manutenção da empresa, caberá aos administradores trilhar esse caminho de forma ponderada e não excessiva, diante dos demais interesses que devem ser resguardados, sendo possível inclusive o afastamento de ações vantajosas para a sociedade e os sócios sempre que trouxerem danos desproporcionais a outros grupos envolvidos.63  

Tais cláusulas gerais dedutíveis do princípio da função social da empresa constituem importantes vetores da gestão empresarial, servindo inclusive para a identificação da culpa no exercício do controle, de poderes administrativos ou mesmo de direitos de sócios minoritários.64 Mesmo assim, apesar de apresentarem algum grau de densificação com relação aos princípios constitucionais incidentes, ainda carecem de concretização por deveres específicos a serem observados pelas empresas.


4.3. Alternativas para a implementação da dimensão ativa da função social da empresa

Ainda resta discorrer sobre importantes alternativas idôneas para a implementação da função social da empresa, como é o caso das soluções organizativas. Excelente exemplo é o modelo de co-gestão, mediante o qual os interesses de stakeholders como os trabalhadores podem ser internalizados através da participação desses sujeitos nos órgãos administrativos. Precedente importante é o da Alemanha, cujo modelo de co-gestão foi implantado no intuito de resolver conflitos de interesses entre acionistas e empregados, partindo-se do pressuposto de que ambos convergiam para a manutenção duradoura e rentável da empresa.65 Muito embora alguns autores defendam que o modelo de co-gestão foi iniciativa de sucesso local que não poderia ser expandido de forma eficiente para outros ordenamentos.66 Ainda assim, a adoção de soluções estruturais é alternativa relevante de solução das controvérsias advindas de interesses externos à gestão, razão pela qual é possibilidade digna de reflexão.

É também da função social da empresa e de seu efeito de expansão do interesse social que advém a legitimação da responsabilidade social voluntária, cuja possibilidade decorre não apenas do texto constitucional, mas também da própria Lei das S/A, que no § 4º de seu art. 154 dispõe que “o conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais”. A responsabilidade social diz respeito à integração voluntária de preocupações sociais à atividade empresarial, indo além das obrigações básicas previstas pela legislação – motivo pelo qual difere do compliance –, de sorte a conciliar o desenvolvimento social ao desenvolvimento das empresas.67  

Na esteira da legitimação da responsabilidade social, pode-se indagar a respeito da compatibilidade de atos gratuitos com objetivos filantrópicos com relação à finalidade lucrativa da atividade empresarial. Partindo-se do pressuposto de que as empresas têm por objetivo precípuo o lucro, em que medida empreendimentos filantrópicos estariam de acordo com o objeto social das empresas? Apesar de o ordenamento brasileiro franquear a responsabilidade social voluntária, pode-se cogitar de modelos empresariais cuja atividade social seja a própria atividade da empresa, atividade esta que serve concomitantemente à busca pelo lucro. 

Questões como essas ensejaram, em outros sistemas, a criação de modelos de organização empresarial especificamente destinados a conformar empreendimentos caracterizados por essa dupla missão, isto é, a busca pelo lucro atrelada ao desenvolvimento social. Trata-se das chamadas benefit corporations, que no modelo norte-americano ampliam os deveres de transparência, cuidado, lealdade e boa-fé para que a persecução da finalidade social possa ser fiscalizada e que, como contrapartida, a empresa possa fruir de certas vantagens legais e mesmo do ganho em reputação oriundo de sua qualificação como empresa social.68 


4.4. Síntese conclusiva: os desafios da operacionalização dos deveres oriundos da função social

Partindo-se das premissas acima expostas, segundo as quais a função social da empresa, consequência direta da articulação dos princípios da ordem econômica constitucional, tem o condão de ampliar o rol de destinatários da atividade empresarial, é forçoso reconhecer que de tal norma geral é possível deduzir normas imperativas a serem observadas pelos gestores. Certo é que, mesmo com a intermediação da lei, há diversos problemas relativos à criação dos deveres positivos a serem endereçados. Por essa razão, não se pode cogitar de um dever geral, de caráter redistributivo, em relação aos recursos e ao patrimônio da empresa. 

Em qualquer caso, o ideal é que a função social da empresa seja implementada por meio de deveres claros e objetivos, e não cláusulas excessivamente abertas. Por conseguinte, também será necessário harmonizar as diversas hipóteses de “aplicação” da função social – como se verá na seção destinada à dimensão hermenêutico-integrativa do princípio –, bem como os procedimentos para o cumprimento de tais imperativos. 

Há que se pensar igualmente em como o direito pode incentivar a realização da função social da empresa por meio de iniciativas como as soluções estruturais e a responsabilidade social voluntária.

Por fim, é preciso que se verifique em que medida tais regras serão eficazes, de que maneira ocorrerá seu enforcement e quais serão seus impactos do ponto de vista econômico, tendo em vista que somente se pode cogitar de efetividade da função social da empresa se o princípio da preservação da empresa for também posto em evidência. Com isso, haverá espaço para a concretização do princípio na reconfiguração dos deveres de cuidado e proteção dos gestores, com vistas a incluir igualmente os shareholders como destinatários.


5. A dimensão de limitação a exercício de direitos e liberdades 

Além de projetar seus efeitos sobre a atividade empresarial para criar deveres positivos a serem observados por seus gestores, a função social da empresa apresenta também importante dimensão negativa ou passiva, direcionada à proibição do exercício de direitos subjetivos e liberdades que, por mais que estejam em aparente conformidade com o direito, sejam contrários às finalidades e princípios maiores do ordenamento jurídico. Por essa razão, a dimensão negativa da função social da empresa está intimamente relacionada à cláusula geral de vedação ao abuso de direito,69 traduzindo-se em crítica ao formalismo e ao absolutismo da concepção liberal dos direitos subjetivos.70 

Como já se comentou, os princípios constitucionais que regem a livre iniciativa empresarial ampliam os deveres a que estão submetidos os gestores de empresas, de maneira que o desrespeito aos imperativos de tais normas de conduta terá por consequência a sua responsabilização pessoal. Diferentemente do que ocorre com a infração a deveres positivos, o abuso de direito possui a particularidade de decorrer de suposto assento em direito,71 apesar de ser ato ilícito.72  Por essa razão, os atos abusivos têm apuração mais difícil do que a do ato ilícito comum, mesmo porque requerem a análise dos limites a partir do qual o exercício de determinado direito deixa de ser legítimo.73   

Em última análise, as abordagens sobre o abuso de direito têm em comum o pressuposto de que direitos subjetivos e liberdades não podem estar restritos a uma definição formal-legalista, mas devem ser contextualizados diante de suas finalidades sociais, da moral, da boa-fé, dos bons costumes, da aceitação ou reprovabilidade social das condutas, dentre outros critérios. Esses aspectos servem para demonstrar que deve haver equilíbrio entre a liberdade do titular do direito subjetivo e os direitos dos demais membros da sociedade, característica convergente com os ditames da função social da empresa e sua projeção sobre o conceito de interesse social.74 

Tendo em vista que os juízos de moderação, proporcionalidade ou equilíbrio para aferição do exercício abusivo de direitos pode conduzir a resultados equivocados em virtude de compreensão inadequada do que pode ser considerado exercício regular de direito subjetivo, a relação entre abuso de direito e função social da empresa se perfaz mediante a observância de critérios como a autonomia e a dignidade da pessoa humana. Esses critérios são capazes de orientar, de maneira mais coerente e segura, a verificação do exercício desproporcional de direitos ou liberdades, na medida em que propiciam juízo de comparação não entre diversos interesses ou direitos supostamente conflitantes, mas entre o igual direito dos membros da sociedade de serem livres e iguais.75  

O exame imposto pelo critério da autonomia diz respeito à garantia de coexistência de direitos e interesses que impõem limites e condicionamentos recíprocos, cujo desrespeito pode configurar exercício excessivo, desproporcional e abusivo. Nesse sentido, ganha relevo a noção de “culpa normativa”, pela qual o parâmetro definidor do ilícito deixa de ser buscado em aspectos subjetivos e psicológicos do ofensor para que se encontre a medida da reprovabilidade da conduta a partir de seu cotejo com padrões objetivos estabelecidos em lei.76   

Por conseguinte, embora não exista previsão constitucional explícita sobre a vedação ao abuso da livre iniciativa empresarial, a existência de cláusula geral nesse sentido é consequência do caráter deontológico e vinculante dos princípios previstos pelo art. 170 da Constituição de 1988. Sendo certo que as infrações à ordem econômica são justificadoras de punição (CF, art. 173, § 5º), com maior razão devem ser consideradas as condutas abusivas que causarem danos a terceiros para efeitos da responsabilidade civil tanto da companhia quanto, em certos casos, de seus dirigentes.77 

Como já se mencionou, a função social da empresa não tem por objetivo tolher o âmbito de atuação dos empresários por intermédio de normas extremamente abarcantes, mas sim de oferecer tratamento adequado à grande questão do direito societário: o correto equilíbrio entre poder e responsabilidade. Com isso, tem-se que os deveres imputados aos gestores devem ser lidos à luz da Constituição e, assim, reconfigurados para corretamente endereçar a necessidade de consideração dos interesses dos diversos stakeholders

Nesse contexto, ganha importância a figura do abuso de direito dos gestores – tanto administradores quanto controladores, seja no exercício do poder de controle ou do direito de voto – tanto na modalidade dolosa, como na culposa, conforme já admitido pelo STJ,78  e, ainda, a possibilidade de abuso por omissão nos casos em que houver dever jurídico de atuar.79 Isso porque sobre a conduta dos gestores incide não apenas a função social da empresa, mas também a boa-fé objetiva, que da mesma maneira funciona como parâmetro para identificação do abuso de direito ao impor uma série de deveres especiais de proteção, de sorte que o abuso ocorrerá também sempre que houver omissão no cumprimento de tais deveres.80 Além disso, vale notar que o abuso por omissão está muito mais vinculado à dimensão ativa da função social do que a modalidade comissiva, relacionada ao excesso no exercício de direito, cujo combate está mais associado à dimensão passiva da função social.

Questão importante a ser esclarecida, ainda a respeito do espaço de atuação dos gestores das sociedades e da criação de deveres positivos, é a distinção entre o regime aplicável aos controladores e administradores, categorias aqui tratadas conjuntamente sob a denominação de “gestores”. Por mais que ambos devam agir no interesse da companhia, a função social da empresa e a aplicação de instrumentos como a responsabilização pessoal devem operar de maneira diversa, uma vez que, ao passo que os administradores exercem competência funcional – e, portanto, estão obrigados a votar –, controladores exercem direitos subjetivos ou situações jurídicas complexas, motivo pelo qual podem inclusive optar por não votar, até para o fim de renunciarem ao controle, já que tal posição pressupõe a efetividade do poder.81 

Dessa forma, é perfeitamente possível interpretar o § único do art. 116 da Lei das S/A, por exemplo, de forma ampliativa, de maneira coibir, também o abuso por omissão. Acrescente-se que, muito embora tais abusos geralmente ocorram no exercício de poderes ou direitos de controladores e administradores, é possível também que o abuso, aqui entendido como ação em desacordo com o interesse social ou com os deveres gerais impostos a todos os sócios, ocorra também por parte da minoria societária, também passível de responsabilização pessoal.82 

A dimensão de limitação do exercício de direitos e liberdades mantém também, como já se pontuou, importante relação com o princípio da boa-fé objetiva, na medida em que o exercício de direitos subjetivos ou competências administrativas na gestão empresarial deverá observar os limites qualitativos e quantitativos que tal princípio impõe, especialmente diante de interesses constitucionalmente protegidos. A boa-fé objetiva, na verdade, representa parâmetro de aferição do abuso de direito, uma vez que serve para delinear o alcance das liberdades dos gestores no que diz respeito às relações com terceiros interessados na atividade empresarial em questão. Assim, o princípio da boa-fé – para além de produzir deveres positivos e de realçar o dever de cuidado – impõe que as decisões sejam tomadas por intermédio de procedimento razoável e bem informado.83 

Essa dimensão negativa da função social da empresa igualmente não se resume a enunciados normativos gerais, mas encontra densificação em diversas regras que têm por objetivo a limitação do exercício dos direitos e liberdades empresariais em prol do atendimento do interesse social. 

Exemplos disso são visualizados no âmbito da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei 11.101/2005), que apresenta uma série de dispositivos destinados a limitar atos de gestão em prol da proteção dos credores (arts. 129 e seguintes.) e, ainda, disposições especiais acerca da proteção de detentores de créditos oriundos da legislação trabalhista (arts. 54; 83, I; etc.). 

No mesmo sentido, pode-se citar o já mencionado abuso de direito de voto, consequência lógica do princípio maior da vedação ao abuso de direito. Tal hipótese é regulada, ao menos para as sociedades por ações, pelo art. 115 da Lei das S/A, segundo o qual “considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas”. Desse modo, tem-se novamente por consequência do exercício abusivo do direito de voto a responsabilização pessoal do acionista, ainda que o voto não tenha prevalecido, já que mesmo esta hipótese é capaz de causar danos à companhia. Por óbvio, em razão da importância da função conferida pelo Direito Societário aos controladores, seu voto abusivo ou mesmo o abuso do poder de controle devem ser combatidos, com vistas a compatibilizar adequadamente poder e responsabilidade.84 

Importa notar que o voto emulativo, isto é, aquele proferido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, não é a única hipótese de voto abusivo descrita pela Lei das S/A. O referido diploma também prevê a abusividade do voto que traz vantagens indevidas para acionistas ou terceiros em detrimento da companhia ou demais acionistas. Trata-se de voto proferido em conflito de interesses, que consiste na violação do dever maior de agir no interesse da companhia. A proibição do conflito de interesses é consequência direta do dever de agir no interesse a companhia, pois o primeiro ocorre precisamente quando o interesse da companhia é preterido diante de outros interesses.85 

Não se pode esquecer, também, que o poder de gestão é condicionado pela incidência não apenas do § único do art. 116 da Lei das S/A, mas também da cláusula geral de vedação ao abuso de poder de controle constante do caput do art. 117 mesmo diploma e da enumeração exemplificativa de condutas vedadas que se lê no § 1º do art. 117. Com isso, além de enumerar as condutas mais comumente associadas ao abuso de poder de controle, a lei societária contém princípio geral que proíbe o controlador de utilizar-se indevidamente do seu poder, como já se comentou na seção anterior.86   

Por fim, a limitação aos direitos e liberdades produzida pela incidência da função social da empresa não pode se estender de tal maneira a controlar o resultado das decisões negociais das companhias. As obrigações relacionadas aos deveres e vedações aplicáveis à gestão empresarial são de meio, mas jamais de fim. Tal constatação é assegurada por intermédio da aplicação da business judgement rule, que consiste na presunção de que a tomada de decisões dos gestores parte de base informada em boa-fé e de que a ação foi tomada no melhor interesse da companhia e, ainda, na ideia de que o mérito das decisões dos administradores não é suscetível de alteração judicial, salvo se incorrerem em alguma das vedações legais supramencionadas (fraude, conflito de interesses, ilegalidade, entre outros).87 

 

6. A dimensão hermenêutico -integrativa 

A operacionalização do princípio da função social da empresa por intermédio de cláusulas gerais é decorrência direta da dimensão hermenêutico-integrativa do princípio, por meio da qual opera efeito sistematizador sobre todas as normas legais e constitucionais concernentes ao regime jurídico da atividade empresarial. 

Nas ocasiões em que a lei prevê determinadas condutas como proibidas, a preocupação do ordenamento é a de facilitar a missão do intérprete diante de situações que já foram consolidadas, tanto na experiência doméstica como na internacional, como reveladoras de comportamentos abusivos ou incompatíveis com as cláusulas gerais que orientam a gestão, bem como com os deveres de lealdade, diligência e cuidado.88  

Nesse sentido, não é sem razão que muitas das condutas expressamente vedadas pelo ordenamento, são exemplos de expropriação dos recursos sociais por controladores e administradores, hipóteses que, mesmo sob a ótica do contratualismo clássico, se mostram contrárias à ideia de que os gestores não podem sobrepor os seus interesses pessoais ao interesse da companhia e da comunhão acionária.89 

No entanto, nem todas as normas aptas a ensejar a responsabilização pessoal de sócios ou gestores se apresentam na forma de condutas vedadas, como ocorre, por exemplo, no § 1º do art.117 da Lei das S/A. Por essa razão, tem-se que todas as cláusulas gerais aplicáveis à atividade empresarial devem ser interpretadas em conformidade com os princípios constitucionais da ordem econômica e também com as regras norteadoras da responsabilidade extracontratual, sob pena de restar comprometida a unidade do sistema.90 

A dimensão hermenêutico-integrativa da função social da empresa, dessa maneira, projeta nova luz sobre a histórica contraposição entre institucionalismo e contratualismo, pondo em dúvida a afirmação de alguns autores sobre o fim desse debate.91  É necessário que se busque equilíbrio entre contratualismo e institucionalismo: partindo-se do pressuposto de que o interesse social não pode ser redutível apenas ao interesse dos sócios ou acionistas, há que se admitir a consideração dos interesses dos stakeholders. A grande questão, como já se viu, é descobrir em que medida e como tal compatibilização pode ser realizada, sobretudo nas companhias abertas, nas quais a dicotomia entre interesse privado e público não é tão nítida.92 

Vale pontuar, novamente, que a função social da empresa não significa a priorização de um dado grupo de interesse em detrimento de outro, mas determina a realização de balanceamento entre os interesses dos diversos credores envolvidos. Tanto é assim que, ao julgar ação de controle concentrado de constitucionalidade questionando, na Lei de Recuperação de Empresas e Falências, (i) a ausência de sucessão de créditos trabalhistas na alienação judicial de empresas; e (ii) a qualificação, como quirografários, dos créditos oriundos da legislação do trabalho excedentes a 150 salários mínimos; o Supremo Tribunal Federal entendeu que não haveria ofensa à Constituição, uma vez que a Lei 11.101/2005 “objetiva prestigiar a função social da empresa e assegurar, tanto quanto possível, a preservação dos postos de trabalho”.93 

O exemplo acima serve para mostrar que a função social da empresa não tem por objetivo minimizar ou ampliar a importância dos anseios de qualquer grupo interessado, mas, antes de tudo, de assegurar a preservação e manutenção da atividade empresarial como geradora de empregos, tributos e riquezas para a comunidade, fator indispensável em qualquer formulação a respeito do interesse social. Da mesma maneira, a preservação da empresa como parâmetro interpretativo atrelado à função social da empresa se encontra refletida em vários pontos do ordenamento, a exemplo da possibilidade de acordo entre sócios para a substituição de sócio falecido, em lugar da liquidação de suas quotas pela ocasião de sua morte.94 

Por fim, o caráter sistematizador do princípio da função social da empresa não necessariamente resultará na imposição de deveres ou na responsabilização pessoal, mas também se traduz no estímulo à remodelagem institucional das corporações, de maneira a acolher em maior medida os interesses dos stakeholders e evitar conflitos; à responsabilidade social voluntária e à adoção de parâmetros mais claros para a prática empresarial, inclusive no que diz respeito a iniciativas de autorregulação; à adoção de medidas instrumentais que facilitem a circulação de informações sobre a atividade empresarial, de modo a permitir maior controle social e transparência; entre outras alternativas capazes de fornecer respostas adequadas aos imperativos legais e constitucionais.


Notas

1 Diante desse quadro, Habermas conclui que a transição do Estado Liberal para o Estado Social apresenta, pelo menos como um dos seus objetivos iniciais, a intenção de resgatar a intersubjetividade dos direitos, estabelecendo relações simétricas de reconhecimento recíproco com a finalidade de coordenar as diferentes pretensões de liberdades das pessoas (HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez, pp. 323-324).

2 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 93-95.

3 ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-Providência, p. 38.

4 É pertinente a observação de Isabel Vaz de que “as propriedades talvez configurem o instituto jurídico mais visado pelas transformações sociais” (VAZ, Isabel. Direito econômico das propriedades, p. 66).

5 O pensamento de Comte é bem sintetizado por Aron: “[a] propriedade privada é necessária, inevitável, indispensável; mas só é tolerável quando assumida, não com o direito de usar e abusar, mas como o exercício de uma função coletiva por aqueles que a sorte ou o mérito pessoal designou para isso. Comte assume, portanto, uma posição intermediária entre o liberalismo e o socialismo. Não é um doutrinário da propriedade privada, concebida à maneira do direito romano. Não é um reformador que se inclina à socialização dos meios de produção. É um organizador que deseja manter a propriedade privada e transformar seu sentido, para que, embora exercida por alguns indivíduos, tenha também uma função social. Essa concepção não se afasta muito de certas doutrinas do catolicismo social” (ARON, Raymon. As etapas do pensamento sociológico, pp. 101-102).

6 No que diz respeito à sociologia, destaca-se o trabalho de Durkheim a respeito da necessária solidariedade orgânica que deveria haver nas sociedades contemporâneas, em oposição à solidariedade mecânica característica das sociedades arcaicas. (DURKHEIM, Emile. Coleção grandes cientistas sociais, 2001) Já sobre a importância da doutrina social da Igreja Católica, ver: CASTAN TOBEÑAS, Jose. La idea de justicia social.

7 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, p. 97.

8 De acordo com José Afonso da Silva, o Estado Social “caracteriza-se no propósito de compatibilizar, em um mesmo sistema, como anota Elías Díaz, dois elementos: o capitalismo, como forma de produção, e a consecução do bem-estar social geral, servindo de base ao neocapitalismo típico do Welfare State” (SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo.).

9 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito económico, pp. 24-25.

10 FRAZÃO, Ana. Op. cit., pp. 98-102.

11 Isso fica bem claro na lição de Orlando Gomes, para quem “apesar da imprecisão da expressão função social e, sobretudo, da dificuldade de convertê-la num conceito jurídico, tornou-se corrente o seu uso na lei, preferencialmente nas Constituições, sem univocidade, mas com expressiva carga psicológica, recebida, sem precauções, pelos juristas em geral” (GOMES, Orlando. Direitos reais, p. 97).

12 FRAZÃO, Ana. Op. cit., p. 100.

13 VAZ, Isabel. Direito econômico das propriedades, p. 151.

14 Ver: BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C. The modern corporation & private property.

15 Ver: SALOMÃO FILHO, Calixto; COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. Não é por outra razão que a Lei das S/A, reconhecendo a importância do controle como instância autônoma de poder, imputou-lhe compromissos decorrentes da função social, conforme se verifica no § único de seu art. 116.

16 VAZ, Manuel Afonso. Direito econômico. A ordem econômica portuguesa, p. 165. Segundo Galgano, a liberdade de iniciativa não se exaure no exercício da propriedade ou das liberdades contratuais, mas é um quid pluris, decorrente da utilização conjunta de uma soma de direitos e liberdades para o exercício de uma atividade organizada com o fim de produção ou comercialização de bens e serviços (GALGANO, Francesco. Il diritto privato fra Codice e Constituzione, p. 126).

17 Vale ressaltar o seguinte ensinamento de Calixto Salomão Filho: “[n]o Brasil, a ideia de função social da empresa também deriva da previsão constitucional sobre a função social da propriedade (art. 170, inciso III). Estendida à empresa, a ideia de função social da empresa é talvez uma das noções de mais relevante influência prática e legislativa no direito brasileiro. É o principal princípio norteador da “regulamentação externa” dos interesses envolvidos pela grande empresa. Sua influência pode ser sentida em campos tão díspares como o direito antitruste, direito do consumidor e direito ambiental. Em todos eles é da convicção da influência da grande empresa sobre o meio em que atua que deriva o reconhecimento da necessidade de impor obrigações positivas à empresa. Exatamente na imposição de deveres positivos está o seu traço característico, a distingui-la da aplicação do princípio geral neminem laedere. Aí está a concepção social intervencionista, de influência reequilibradora de relações sociais desiguais” (SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário, p. 132-133).

18 Ver: FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 192-195.

19 Essa é a razão da Lei 10.101/2000, no que se refere à participação dos trabalhadores nos lucros empresariais, e da nova Lei das S/A no tocante à co-gestão, ressaltando-se que esta última acrescentou o § único ao art. 140 da Lei das S/A (Lei 6.404/1976), passando a admitir que o estatuto das companhias contenha regra permitindo que representantes dos trabalhadores componham o conselho de administração de sociedades anônimas. É claro que a disciplina legal nestes dois aspectos acabou sendo tímida, uma vez que é meramente facultativa, restando submetida à discricionariedade do empresário. Entretanto, o mero respaldo legal para a adoção de tais iniciativas já mostra a tentativa de se operacionalizar a função social da empresa em maior extensão (FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 195-196).

20 Como bem define Eloy Lemos Jr.: “a sustentabilidade é atualmente um conceito sistêmico, diretamente ligado à continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais da humanidade. De tal forma que uma empresa, através de seus membros e no contexto de sua economia regional e quiçá mundial, possa alcançar suas necessidades e expressar seu maior potencial e, ao mesmo tempo, preservar a biodiversidade e os ecossistemas naturais, planejando e agindo de forma a atingir eficiência na manutenção desses ideais”. (LEMOS JR., Eloy. Empresa & função social, p. 238)

21 Calixto Salomão Filho (O novo direito societário, pp. 133-134) expressamente relaciona exemplos nos quais o legislador cria obrigações positivas para o empresário – tais como (i) a lei antitruste, (ii) o CDC e o regime de responsabilidade dos fornecedores de produtos e serviços e (iii) a responsabilidade do direito ambiental mesmo sem a causação do dano, além de obrigações positivas como tratamento de resíduos sólidos, reciclagem de determinados produtos, dentre outros – à função social da empresa, concluindo que “todos esses exemplos demonstram a total ligação da ideia de função social à proteção de terceiros interesses envolvidos pela grande empresa que cada vez mais influência e modifica a comunidade em que atua. A proteção de interesses externos (e não internos) parece ser, portanto, o grande objetivo da disciplina da função social da empresa”. Em sentido semelhante, vale ressaltar a conclusão de Eloy Lemos Jr. (Op. cit., p. 237) em tese de doutorado sobre o tema: “[a] empresa moderna, apesar de continuar a ter como objetivo o lucro e o interesse de seus agentes internos e externos, é, cada vez mais, considerada o instrumento de realização dos princípios da Ordem Econômica, conforme o art. 170 da Constituição Federal brasileira de 1988”.

22 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 198-199.

23 FRAZÃO, Ana. Regime societário das empresas públicas e sociedades de economia mista. Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303, de 30.06.2016, no prelo.

24 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, p. 64.

25 Idem, pp. 110-118.

26 Idem, p. 206.

27 Lembra Jorge Manuel Coutinho de Abreu que as mais recentes teorias do shareholder value e do stakeholder value não deixam de ser novas roupagens, respectivamente, do contratualismo e do institucionalismo (ABREU, Jorge Manuel Coutinho. Deveres de cuidado e de lealdade dos administradores e interesse social. Reformas do Código das Sociedades, pp. 32-33).

28 HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. The Harvard Center for Law, Economics and Business.

29 Segundo Hertig e Kanda (HERTIG, Gerard; KANDA, Hideki. Related parties transactions. The anatomy of corporate law. A comparative and functional approach, p. 119), a regra no direito estrangeiro ainda são as companhias controladas por acionistas, situação que apenas não ocorre nos Estados Unidos e no Reino Unido, nos quais há controlador ou grupo de controle apenas em companhias menores. 

30 HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Op. cit.

31 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. p. 31.

32 Tal conclusão está presente, por exemplo, no estudo de Berle e Means (The modern corporation & private property). No âmbito da doutrina brasileira, Fábio Comparato e Calixto Salomão Filho (O poder de controle na sociedade anônima, p. 558) insistem na diferenciação entre a macro e a microempresa, assim concluindo em relação à primeira: “No que tange, porém, à macrocompanhia de capital aberto, isto é impossível. Além dos interesses dos acionistas, que já não são homogêneos, deve aduzir-se o dos empregados e colaboradores autônomos da empresa, o da comunidade em que atua e o próprio interesse nacional, por vezes”.

33 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 215-216.

34 Na verdade, os parâmetros objetivos para a compreensão da função social das estatais fizeram com que o regime destas passasse a ser inclusive mais rígido do que o das companhias privadas, especialmente no que diz respeito à possibilidade da prática de liberalidades e de outras atividades não atreladas diretamente ao objeto social (FRAZÃO, Ana. Regime societário das empresas públicas e sociedades de economia mista. Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303, de 30.06.2016).

35 Ensina Paula Forgioni que, contemporaneamente, o desenvolvimento das empresas liga-se cada vez mais a sua colaboração com outras, não mais por meio de contratos de sociedade ou de intercâmbio, mas através de instrumentos diversos das “fórmulas tradicionais oferecidas pelo ordenamento jurídico para acomodar interesses em empreendimentos comuns” (FORGIONI, Paula. Teoria geral dos contratos empresariais, p. 173). Nesse sentido, é notável a diversidade das formas empresariais empiricamente observáveis que procuram estabelecer relações inovadoras de gestão de riscos e de custos de transação (MÉNARD, Claude. Économie néo-institutionnelle et politique de la concurrence les cas des formes organisationnelles hybrides. Économie rurale, pp. 45-60).

36 DORE, Ronald. Goodwill and market capitalism. Firms, organizations and contracts, pp. 361-365.

37 Nesse sentido: FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas.

38 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, p. 940.

39 A título de exemplo, no que diz respeito à função social da propriedade, pode ser citada a classificação de Salvatore Pugliatti, que considera que a dimensão ativa da função social corresponde à finalidade mediata do princípio, enquanto que a finalidade imediata diria respeito aos limites negativos ao exercício da propriedade (PUGLIATTI, Salvatore. Instituzioni di diritto civile. La proprietá, pp. 149-152). Já Ludovico Barassi considera a dimensão ativa da função social como o seu aspecto impulsivo, em contraste com o aspecto limitativo, que se preocupa tão somente em impossibilitar o exercício da propriedade que cause prejuízos a terceiros (BARASSI, Ludovico. La proprietá nel nuovo codice civile, pp. 80-99).

40 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, p. 104.

41 Idem, p. 263.

42 Para Dominique Schmidt a indeterminação do conceito de interesse da empresa daria aos juízes um poder de apreciação extremamente amplo, já que poderia ele invalidar decisões mesmo consideradas pelos acionistas em conformidade aos seus interesses (SCHMIDT, Dominique. Les conflits d’intérêts dans la société anonyme, pp. 18-19). No direito inglês, Wedderburn mostra que os juízes ingleses nem mesmo estariam dispostos a assumir o papel de administrar as políticas empresariais, até por não estarem equipados para isso. Cita, inclusive, julgado inglês de 1927, segundo o qual não é papel das cortes gerenciar os negócios de uma companhia (WEDDERBURN, Lord of Charlton. The legal development of corporate responsibility. Corporate governance and directors’ liabilities. Legal, economic and sociological analyses on corporate social responsibility. Klaus J. Hopt; Gunther Teubner (org.), p. 15).

43 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 263-264.

44 Idem, pp. 263-265.

45 Idem, pp. 263-265.

46 Daí a afirmação de Modesto Carvalhosa de que “o interesse legítimo dos sócios deve manifestar-se uti socii, ou seja, em função da comunidade representada pela consecução do objeto social”, ressaltando o autor que tal entendimento não se opõe ao contratualismo (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei das sociedades anônimas, p. 453).

47 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 288-289.

48 Idem, p. 291.

49 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 334-354.

50 Idem, p. 338. Nesse sentido: “No que se refere ao direito brasileiro, a atual Lei das S/A, seguindo a experiência do direito comparado, acolhe expressamente a maior parte dessas vedações, proibindo o uso indevido de oportunidades corporativas ou a omissão em aproveitar oportunidades em favor da companhia para atender a interesses próprios ou alheios (art. 155), o insider trading (art. 155, § 4º), bem como o self-dealing e o conflito de interesses (arts. 115 e 156). Embora não haja regra expressa quanto à proibição de remuneração excessiva, esta pode ser considerada uma decorrência do dever geral de lealdade e da cláusula geral de vedação ao abuso dos poderes de controle e administração (arts. 116, §único e 154)” (Idem, pp. 338-339).

51 Idem, p. 321.

52 Idem, pp. 343-344.

53 HALF, Ek von; HOYENBERG, Philipp von. Aktiengesellschaften, p. 111.

54 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades, p. 227.

55 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 353-354.

56 Ver: FRAZÃO, Ana. Dever de diligência: novas perspectivas em face de programas de compliance e de atingimento de metas. Jota. Como sintetiza Maddalena Rabitti, o conteúdo mínimo do dever de diligência está contido no princípio de agir informado. Destaca-se que, com a expansão dos destinatários do dever de diligência, a informação deve abranger igualmente os dados referentes aos outros interesses e valores que devem ser realizados e tutelados pela atividade empresarial (RABITTI, Maddalena. Rischio organizzativo e responsabilità degli amministratori: contributo allo studio dell’illecito civile p. 144).

57 Compliance, segundo Maurice Stucke, consiste na incorporação de um padrão ético empresarial a partir da adoção de um conjunto de práticas corporativas que reforce anuência da empresa à legislação vigente, tendo por objetivo prevenir infrações ou mesmo reestruturar a empresa após o cometimento de um ilícito (STUCKE, Maurice E. In search of effective ethics & compliance programs. Journal of corporation law, nº 769, pp. 771-772).

58 FRAZÃO, Ana. Dever de diligência: novas perspectivas em face de programas de compliance e de atingimento de metas. Jota.

59 Segundo o Código de Melhores Práticas do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC, “Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, Conselho de Administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas” (IBGC, Código das melhores práticas de governança corporativa, p. 20).

60 FRAZÃO, Ana. Op. cit., pp. 361-364.

61 Um bom exemplo dessa tendência é o Código das Sociedades Comerciais português, cujo art. 64, ao definir o dever de diligência, prevê que “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”. No direito alemão, Jürgen von Kann esclarece que os atuais desenvolvimentos do direito acionário vão além das preocupações com os direitos e obrigações dos administradores em relação à companhia, abrangendo também os direitos e obrigações perante os credores sociais e os acionistas como investidores de capital. Isso ficou claro com recentes inovações legislativas visando à melhoria da proteção dos investidores, o que não deixou de ser reflexo do fato de o discurso jurídico ter se ocupado, desde 2001, e em medida crescente, com demandas ressarcitórias de danos por parte de credores e acionistas contra os membros do Vorstand, tal como ocorreu nos famosos casos “Bremer Vulkan”, “Comroad” e “Informatec” (KANN, Jürgen von. Vorstand der ag: führungsaufgaben, rechtspflichten und corporate governance, p. 99).

62 FRAZÃO, Ana. Op. cit., pp. 361-364.

63 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 361-364.

64 Idem, p. 262.

65 Segundo Teubner, a ideia da co-gestão era não apenas a de harmonizar os interesses concorrentes, mas também de determinar as obrigações dos representantes dos diferentes grupos, já que a própria companhia passou a ser vista como uma coalizão entre estes, que seriam integrados pela ideia de empresa e de interesse da empresa (Unternehmensinteresse). Daí porque o autor (idem) conclui que o desenvolvimento desta alternativa na Alemanha teve finalidade semelhante à construção dos deveres fiduciários no direito anglo-saxão, no sentido de também buscar a delimitação das consequências para o fenômeno da separação entre a propriedade e o controle, oferecendo diretrizes jurídicas para resolver os conflitos de interesse (TEUBNER, Gunther. Corporate fiduciary duties and their beneficiaries. A functional approach to the legal institutionalization of corporate responsibility. Corporate governance and directors’ liabilities. Legal, economic and sociological analyses on corporate social responsibility. Klaus J. Hopt; Gunther Teubner (org.), p. 155).

66 Ver: HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. The Harvard Center for Law, Economics and Business.

67 FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Ângelo Gamba. Responsabilidade social empresarial. Constituição, empresa e mercado, p. 208.

68 FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Ângelo Gamba. Responsabilidade social empresarial. Constituição, empresa e mercado, p. 215.

69 Por essa razão, Gianluigi Palombella (PALOMBELLA, Gianluigi. El abuso del derecho, del poder y del rule of law. DOXA Cuadernos de filosofia del derecho, pp. 35-37) considera que o abuso de direito diz respeito ao problema do “lado obscuro” dos direitos, consistindo na lesão de um interesse por parte do titular de um direito (right) que atua em aparente conformidade com uma regra de direito, a qual é utilizada de forma instrumental e contrária ao próprio direito em sentido objetivo (law). Não se pode esquecer que a vedação ao abuso de direito foi marcada por diversas dificuldades, muitas das quais persistem até os dias atuais. É o que explicita San Tiago Dantas ao advertir que “a noção de abuso de direito tem se ressentido sempre de uma grande imprecisão de contornos, o que lhe tem valido ser invocada pelos autores e tribunais em face das situações mais diversas, sempre que é preciso fundamentar a responsabilidade fora das bases clássicas da culpa, ou corrigir as injustiças a que a prática dos contratos frequentemente conduz.” (DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição, p. 96).

70 Como ensinam Atienza e Manero, a figura do abuso de direito surgiu como reação e correção ao formalismo e ao individualismo que até então caracterizavam os direitos subjetivos. Salientam os autores que, no common law, apesar de referências a expressões como o abuse of right ou abuse of freedom, não houve necessidade de desenvolver o abuso de direito como instituição jurídica, na medida que, por meio do distinguishing, os juízes podem se apartar do precedente e revisar os entendimentos passados, adaptando o direito às novas necessidades (ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos atípicos. Sobre el abuso del derecho, el fraude de ley y la desviación de poder, pp. 34-35).

71 Essa característica é ressaltada pela doutrina de acordo com distintas nuances. Jorge Americano, refere-se ao abuso a partir de uma aparência de direito (AMERICANO, Jorge. Do abuso de direito no exercício da demanda, pp. 7 e 40). Fernando Augusto Cunha de Sá destaca a doutrina de Castanheira Neves, que distingue entre os atos ilícitos formais ou ilegalidades, que representam contrariedades à estrutural formal-definidora do direito e os atos ilícitos materiais ou abusos de direito, que implicam violação ao aspecto axiológico da norma, à intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado. Assim, a distinção entre o ato ilícito e o ato abusivo partiria da dimensão da ofensa à ordem jurídica (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito, p. 494). Para Martin Bernal, a particularidade que faz com que o ato abusivo seja uma categoria autônoma do ato ilícito é o fato daquele não possuir limites definidos, como ocorre no ato ilícito normal. Assim, o abuso possuiria uma dimensão mais ampla, até porque o seu diagnóstico não seria automático, obrigando, para a sua configuração, uma integração da norma jurídica muito próxima à própria criação do direito (BERNAL, Martin. El abuso del derecho, p. 140). Jorge Americano (Op. cit., p. 40) distingue o ato abusivo do ato ilícito por um critério prático, qual seja, a aparência de direito existente no primeiro. Teófilo de Castro Duarte distingue o abuso de direito do ato ilícito normal em razão da influência sobre o primeiro da equidade e da moral social (DUARTE, Teófilo de Castro. O abuso do direito e as deliberações sociais, p. 38). Por último, vale ressaltar a posição de Paulo Dourado de Gusmão, assim transcrita por Lúcio Flávio de Vasconcellos Naves: “[o] uso de direito constitui a transgressão por parte do titular dos limites implícitos no ordenamento jurídico, enquanto que a violação dos limites explícitos não é abuso de direito porque não chega a ser direito, sendo violação de norma jurídica expressa” (NAVES, Lúcio Flávio de Vasconcellos. Abuso no exercício do direito, p. 133).

72 Sobre o tema, reproduz-se a lição de Marcus Elidius Michelli de Almeida de que “muito embora resida certa celeuma sobre a natureza do abuso de direito, é certo que a maioria dos autores está convencida de que o direito brasileiro adotou tal situação dentre aquelas onde está inserido o ato ilícito.” (ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli. Abuso do direito e concorrência desleal, p. 78). Independentemente da questão doutrinária, o autor (idem, p. 88) sustenta que “o abuso do direito, tomando por base no novo Código Civil, é classificado como ato ilícito, por força de lei”.

73 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 222-223.

74 Idem, p. 223. Eis porque o Código Civil brasileiro, concretizando esta dimensão passiva da função social dos direitos, prevê, no seu art. 187, que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

75 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, p. 224.

76 Segundo Jorge Americano (Do abuso de direito no exercício da demanda, p. 22): “[a] culpa toma então uma feição nova, pela qual consiste no próprio facto de desprezar o agente as precauções necessárias ao exercício da sua liberdade, passando-se a considerar que age com imprudência ou negligência desde que se afaste da norma jurídica, ou exceda os respectivos limites, traçados, na falta de texto expresso, pelo conceito ordinário dos homens”. 

77 FRAZÃO, Ana. Op. cit., p. 226.

78 “RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO SOCIETÁRIO. ART. 117, § 1°, DA LEI N.º 6.404/76 (LEI DAS SOCIEDADES). MODALIDADES DE ABUSO DE PODER DE ACIONISTA CONTROLADOR. FORMA EXEMPLIFICATIVA. CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO DE PODER. PROVA DO DANO. PRECEDENTE. MONTANTE DO DANO CAUSADO PELO ABUSO DE PODER DO ACIONISTA CONTROLADOR. FIXAÇÃO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. POSSIBILIDADE.

O § 1°, do art. 117, da Lei das Sociedades Anônimas enumera as modalidades de exercício abusivo de poder pelo acionista controlador de forma apenas exemplificativa. Doutrina.

A Lei das Sociedades Anônimas adotou padrões amplos no que tange aos atos caracterizadores de exercício abusivo de poder pelos acionistas controladores, porquanto esse critério normativo permite ao juiz e às autoridades administrativas, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), incluir outros atos lesivos efetivamente praticados pelos controladores.

Para a caracterização do abuso de poder de que trata o art. 117 da Lei das Sociedades por ações, ainda que desnecessária a prova da intenção subjetiva do acionista controlador em prejudicar a companhia ou os minoritários, é indispensável a prova do dano.

Precedente.

Se, não obstante, a iniciativa probatória do acionista prejudicado, não for possível fixar, já no processo de conhecimento, o montante do dano causado pelo abuso de poder do acionista controlador, esta fixação deverá ser deixada para a liquidação de sentença.

Recurso especial provido.”

(STJ, 3ª Turma, REsp 798.264/SP, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, rel. p/ acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 06.02.2007, DJ 16.04.2007)

79 Fábio Comparato e Calixto Salomão Filho (O poder de controle na sociedade anônima, p. 392) defendem essa possibilidade, a partir da interpretação sistemática do art. 117 com o art. 116, § único, da Lei das S/A, o que é igualmente aceito por Paulo César Simões na hipótese em que o controlador se omite deliberadamente de exercer o seu poder, segundo os ditames dos arts. 116 e 117, da Lei das S/A (SIMÕES, Paulo César. Governança corporativa e o exercício do voto nas S.A., p. 74). Todavia, é precisa a advertência de Sanchéz Calero de que apenas se pode cogitar de abuso por omissão quando houver uma obrigação ou dever jurídico de atuar (SANCHÉZ CALERO, Fernando. Los administradores em lãs sociedades de capital., p. 295).

80 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 328-329.

81 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 325-326.

82 Nesse sentido: “O abuso de minoria, portanto, verifica-se quando o sócio, por ação ou omissão (a oposição abusiva), atua de maneira conflitante com o interesse social, entendido este como o interesse comum dos sócios uti socii, ou em desacordo com o dever geral de lealdade societária: para a satisfação de interesse próprio, o sócio sacrifica o interesse comum dos sócios uti socii; pratica atos meramente emulativos; ou lesiona legítimos interesses e expectativas de outros sócios ou da sociedade de que é membro – sendo que os legítimos interesses e expectativas tutelados são inclusive os de cunho individual dos sócios, desde que se relacionem ou guardem relação de conexão com o fim comum ou a causa do contrato de sociedade (abrangendo, assim o interesse comum dos sócios uti socii e os interesses individuais legítimos ex causa societatis)” (ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário: abuso das posições subjetivas minoritárias, 2010).

83 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 400-401.

84 Idem, p. 318.

85 Ver, nesse sentido: SCHMIDT, Dominique. Les conflits d’intérêts dans la société anonyme, p. 31. Vale ressaltar que, muito embora se aproxime ao abuso de direito de voto, o conflito de interesses apresenta a especificidade de estar relacionado diretamente com a proteção da companhia e da comunhão acionária, ao passo que as hipóteses de abuso de direito de voto resguardam o interesse social em sentido amplo: enquanto o abuso de direito de voto se define pela orientação do voto em sentido contrário ao do interesse social, o conflito de interesses ocorre quando os objetivos da companhia e do acionista são divergentes (CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura de interesses nas sociedades anônimas. Hierarquia e conflitos, pp. 264-265).

86 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, pp. 326-332.

87 CLARK, Robert Charles. Corporate law, pp. 123-124.

88 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, p. 260.

89 Idem, p. 260.

90 Idem, pp. 260-261.

91 Ver: HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. The Harvard Center for Law, Economics and Business.

92 Ver: COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima.

93 STF, ADI 3934, Tribunal Pleno, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27.05.2009, DJe 06.11.2009.

94 Ver, nesse sentido: FRAZÃO, Ana. A morte de sócio e o problema da sucessão das participações societárias. Revista direito empresarial, nº 3, pp. 103-124.

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Citação

FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/222/edicao-1/funcao-social-da-empresa

Edições

Tomo Direito Comercial, Edição 1, Julho de 2018

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