• Incidente de desconsideração da personalidade jurídica

  • André Pagani de Souza

  • Tomo Processo Civil, Edição 1, Junho de 2018

Este verbete tem como objetivo apresentar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica disciplinado pelos arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). 

Trata-se de uma modalidade de intervenção de terceiros que permite, incidentalmente ao processo, desconsiderar a personalidade jurídica e, desse modo, conseguir responsabilizar pessoalmente o integrante da pessoa jurídica (sócio ou administrador) nos casos em que a lei material o autoriza. É uma novidade trazida pela codificação atual e que não era encontrada no diploma anterior (a Lei 5.869/1976).

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve ser pensado da perspectiva traçada pelo art. 1º do Código de Processo Civil (CPC): “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.1

Ao que tudo indica, o objetivo buscado pelos arts. 133 a 137 do CPC foi o de harmonizar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica prevista na lei material com o princípio do contraditório (Constituição Federal, art. 5º, LV). Por exemplo, é preciso que seja observado o princípio do contraditório para se aplicar o art. 50 do Código Civil (Lei 10.406/2002); o art. 28, caput e § 5º, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990); o art. 34, da Lei Antitruste (Lei 12.529/2011); o art. 4º da Lei do Meio Ambiente (Lei 9.605/1998); o art. 14, da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013). Em todas estas hipóteses a lei material confere a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, mas não prevê a forma pela qual, mediante o processo, isto deve ser feito.

Em outras palavras, a preocupação maior do legislador foi compatibilizar a possibilidade de o patrimônio de um sócio ou administrador de uma pessoa jurídica sofrer os efeitos de uma decisão proferida em um processo (do qual ele não fazia parte inicialmente) com as normas fundamentais inseridas, sobretudo, nos arts. 7º, 9º e 10 do CPC, que consagram o princípio do contraditório.2 

Assim, considerando que o inciso VII do art. 790 do CPC estabelece que são sujeitos à execução os bens “do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica”, coerentemente, os arts. 133 a 137 da mesma lei conferem a disciplina processual mediante a qual o patrimônio do responsável se sujeitará à execução nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica previstas na lei material (art. 133, § 1º, do CPC).

Entretanto, antes de se analisar a disciplina processual dada pelos arts. 133 a 137 a essa nova espécie de intervenção de terceiros, é preciso ter uma noção do que se entende por “desconsideração da personalidade jurídica”. Isso porque, se for hipótese de desconsiderar a personalidade jurídica, o juiz deve obrigatoriamente se utilizar deste incidente (CPC, art. 795, § 4º), sob pena de o sócio ou administrador se valer dos embargos de terceiro para se defender, se a lei for desrespeitada (CPC, art. 674, § 2º, III). Por outro lado, se não for hipótese de desconsideração da personalidade jurídica e sim outro caso diverso em que o sócio também responde por uma obrigação que era originariamente da pessoa jurídica, não se utilizará o incidente.3  Portanto, antes de se 

1. Noção de desconsideração da personalidade jurídica

A pessoa jurídica tem patrimônio próprio que não se confunde com aquele que pertence aos seus integrantes (sócios ou administradores). Os direitos e deveres da pessoa jurídica propriamente dita e os dos seus membros também não se confundem. Isso pode ser depreendido do art. 45 do CC que dispõe: “começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo”.  Ou seja, a pessoa jurídica tem uma autonomia patrimonial e também de direitos e obrigações em relação aos seus membros.4 

Ocorre que, em determinadas situações, a lei permite que esta autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus integrantes seja ignorada para a finalidade de se estender os efeitos de determinadas obrigações para os seus membros. Isso significa afirmar que é permitido por lei que, preenchidos determinados pressupostos, se desconsidere a personalidade de determinada pessoa jurídica para alcançar o patrimônio de seus integrantes.

Em geral, a desconsideração da personalidade jurídica é utilizada para se coibir fraudes realizadas por meio da manipulação das regras que dão autonomia para as pessoas jurídicas.5 Os atos que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica são atos fraudulentos praticados pelos seus integrantes.6  Veja-se, a título ilustrativo, o exemplo do art. 50 do Código Civil, que menciona a hipótese de “abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.7  Nesses casos, o patrimônio do sócio ou administrador acaba respondendo por uma obrigação que originariamente era da pessoa jurídica.

Vale notar que não é apenas a prática de ato fraudulento que justifica a desconsideração da personalidade jurídica. Há dispositivos legais, como o § 5º do art. 28 do CDC, que permitem a desconsideração pelo simples fato de o consumidor não ter conseguido receber seu crédito da pessoa jurídica. É o que Fábio Ulhoa Coelho já chamou no passado de teoria menor da desconsideração, asseverando que “o seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta”.8  Aqui o pressuposto é unicamente a frustração do credor da sociedade e a teoria é chamada de menor em tom até pejorativo, pois não tem qualquer relação com a construção doutrinária que levou ao reconhecimento da possibilidade de se ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em hipóteses de fraude praticada pelos seus membros.9 

Assim, pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica, sempre que o juiz verificar que a pessoa foi utilizada para a prática de abuso de direito ou fraude, ele pode não aplicar as regras de separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus integrantes. Essa desconsideração da pessoa jurídica no caso concreto não significa a anulação ou a desconstituição do ato jurídico que a constituiu, mas apenas a declaração de sua ineficácia momentânea. Assim, somente naquele caso específico examinado pelo juiz é que a personalidade jurídica vai ser ignorada, não se aplicando as regras de separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus integrantes para que o abuso de direito ou fraude sejam coibidos.10 

Há, também, a desconsideração da personalidade jurídica em sentido inverso, expressamente prevista atualmente pelo § 2º do art. 133 do CPC. Nesse caso, há o afastamento do princípio da autonomia da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio. Ou, ainda, se traduz na possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica por uma obrigação de um integrante seu (seja ele sócio ou administrador).

Em razão do exposto até aqui, se for hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, nos moldes acima delineados, devem ser observadas as normas relativas ao incidente de desconsideração da personalidade encontradas nos arts. 133 a 137 do CPC, analisadas a seguir.


2. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica

A exposição de motivos do anteprojeto do CPC atual já anunciava que “(...) muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que preveem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera a pessoa jurídica, em sua versão tradicional ou ‘às avessas’”.11 

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica veio, portanto, para viabilizar a realização de um prévio ato processual que estenda a eficácia de um título executivo para o integrante da pessoa jurídica que será atingido pela aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.12  Assim, o interessado em pleitear a desconsideração da personalidade jurídica deve demonstrar ao juiz a configuração de uma das hipóteses que a autorizam, para que o juiz determine a citação daquele que sofrerá os efeitos da decisão para se defender, requerendo inclusive a produção de provas. Somente após observado tal procedimento o juiz estará autorizado a formar o seu convencimento e proferir decisão interlocutória acolhendo ou rejeitando o pedido de desconsideração.

A necessidade da criação de um incidente cognitivo nos moldes acima delineados para desconsiderar a personalidade jurídica já vinha sendo reclamada pela doutrina13 como sendo o modo mais adequado para viabilizar a aplicação da disregard doctrine aos processos em andamento, sem sacrificar o princípio do contraditório.
Trata-se, como se pode perceber, de uma espécie de intervenção de terceiros, “pois se provoca o ingresso de terceiro em juízo – para o qual se busca dirigir a responsabilidade patrimonial”.14  A disciplina processual da desconsideração da personalidade jurídica realizada pelos arts. 133 a 137 do CPC permite que o patrimônio de determinadas pessoas – à primeira vista estranhas ao processo – seja atingido, configuradas determinadas hipóteses autorizadas por lei com a observância do contraditório (CF, art. 5º, LV).

3. Instauração do incidente

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica não pode ser instaurado de ofício pelo juiz, devendo haver pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.15  Nesse sentido, é o disposto no caput no art. 133 do CPC (“o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo”), bem como o § 4º do art. 795 (“para desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código”), ambos do CPC.
Conforme disposto no § 4º do art. 134 do CPC, a instauração se dá mediante requerimento da parte interessada ou do Ministério Público, nos casos em que lhe couber intervir no processo. Tal requerimento deve demonstrar “o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica”.
Nesse ponto, cabe uma observação importante acerca do preenchimento dos pressupostos legais para desconsideração. Se fosse para interpretar esta exigência do § 4º do art. 134 do CPC como imposição de simples alegação de preenchimento dos pressupostos sem a devida comprovação, a lei poderia ter ficado apenas com o § 1º do art. 133 cujo teor é o seguinte: “o pedido de desconsideração observará os pressupostos previstos em lei”. Ocorre que o legislador foi além, impondo que deve haver a demonstração do preenchimento dos pressupostos de desconsideração.
Em outras palavras, deve haver, acompanhando o requerimento do art. 133 do CPC, pelo menos alguma prova pré-constituída do preenchimento dos pressupostos para desconsideração da personalidade jurídica. Por exemplo, se a hipótese for a do art. 50 do CC, deve ser demonstrada a existência de pelo menos alguma prova indiciária do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial.
Nesse sentido, Teresa Arruda Alvim Wambier, Maria Lúcia Lins Conceição, Leonardo Ferres da Silva Ribeiro e Rogério Licastro Torres de Melo observam que: 
“o parágrafo quarto [do art. 134] remete ao direito material a ser aplicado pelo juiz ao decidir sobre dever ou não ser desconsiderada a pessoa jurídica. No plano do direito civil, do direito do consumidor e de outros ramos do direito material é que são previstos requisitos específicos para incidência da teoria da desconsideração naquele ramo específico do direito. Deve o requerente indicar, desde logo, as provas que pretende produzir. Mas este dispositivo faz referência a uma dose mínima de ‘aparência do bom direito’, de plausibilidade da alegação, sem o que o incidente pode e deve ser indeferido (grifos nossos)”. 16 
Tal imperativo decorre de sólida construção doutrinária anterior à entrada em vigor do CPC atual. No intuito de compatibilizar a desconsideração da personalidade jurídica em processo pendente com o princípio do contraditório, Cândido Rangel Dinamarco sustentava que:
“a) em princípio, só quem estiver indicado no título executivo como devedor é legitimado passivo à execução (legitimidade ordinária primária); b) tal regra constitui projeção da exigência legal de título para executar, porque contra quem não está indicado neste, em princípio, inexiste título; c) existem casos em que, excepcionalmente, admite-se a legitimidade passiva de pessoas não incluídas no título (arts. 568 e 592) [do CPC de 1.973]; d) para submetê-las à execução é indispensável um prévio ato judicial que lhes estenda a eficácia do título executivo; e) esse pronunciamento judicial pode ter lugar na própria execução, incidentemente, quando existir prova documental inconcussa da situação legitimante; (...)”.17 
Assim, deve haver pelo menos prova que conduza à verossimilhança daquilo que está sendo alegado pelo requerente da desconsideração da personalidade jurídica, sob pena de ver indeferido o seu pedido.18 
Uma vez instaurado o incidente, tal fato deverá ser imediatamente comunicado ao distribuidor para as anotações devidas, nos termos do § 1º do art. 134 do CPC. Isso porque houve pedido de tutela jurisdicional contra o integrante da pessoa jurídica, seja ele sócio ou administrador.
Com a instauração do incidente, está formalizado o pedido de tutela jurisdicional contra o patrimônio do sócio ou administrador da pessoa jurídica. Portanto, aquele que potencialmente pode ser atingido por uma decisão de desconsideração da personalidade jurídica passa a ser parte do processo e o distribuidor deve saber o quanto antes dessa informação, para que responda corretamente aos pedidos de certidão do público em geral sobre os processos e as partes envolvidas sob os seus cuidados.
Tanto é verdade que o sócio ou administrador da pessoa jurídica passam a ser parte do processo em que é formulado o pedido de desconsideração que o art. 135 do CPC determina a sua citação. Este ato processual, como é cediço, “é o ato processual de comunicação pelo qual se convoca o réu (inclusive o executado) e interessado para integrar o processo (art. 238, CPC)”.19 
Logo, uma vez requerida a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e deferido o seu processamento pelo juiz, o distribuidor deve ser comunicado de tal fato e deve ser expedido mandado de citação para o membro da pessoa jurídica. 
Por fim, cumpre observar que, no caso de instauração do incidente e comunicação do ato ao cartório distribuidor, o processo principal deverá ser suspenso enquanto tramita o incidente (CPC, art. 134, § 3º). 

4. Dispensa da instauração do incidente

Cumpre notar que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica pode ser formulado no início do processo. Nesse caso não há que se cogitar da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica porque tal requerimento é formulado desde logo na petição inicial, conforme autorizado pelo § 2º do art. 134 do CPC. Tanto a pessoa jurídica como o seu integrante (sócio ou administrador) deverão ser citados para a demanda e devem se defender por meio de contestação.
Assim, na hipótese de o pedido de desconsideração da personalidade jurídica ser formulado na petição inicial, haverá um litisconsórcio facultativo passivo inicial formado entre a pessoa jurídica (sócio ou administrador) e o seu integrante, sem a necessidade de suspensão do processo (CPC, art. 134, § 3º).20 
É importante ter uma certa cautela com a aplicação do § 2º do art. 134, pois uma interpretação literal poderia conduzir à falsa impressão de que estaria autorizado ao exequente, em processo de execução fundada em título extrajudicial, incluir o sócio ou administrador da sociedade no polo passivo da demanda executiva logo na petição inicial. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já permitiu a aplicação combinada da parte final do caput do art. 134 com o seu § 2º em julgado assim ementado: 
“DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – Execução de título extrajudicial - R. despacho de não conhecimento – Pedido formulado na petição inicial – Possibilidade – Desnecessidade de suscitar a matéria por meio de incidente – Exegese do art. 134, § 2º do NCPC – Necessidade de observação do contraditório - Recurso provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 2051398-59.2017.8.26.0000, 38ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Achile Alesina, j. 19.04.2017).
Com o devido respeito, a inserção de um réu na petição inicial do polo passivo de um processo de conhecimento é diferente da inserção de um executado na exordial de uma execução fundada em título extrajudicial. Apenas para ilustrar o quão distintas são as situações de cada um, basta imaginar que o réu do processo de conhecimento é citado para comparecimento na audiência de conciliação ou mediação ou, se a demanda não versar sore direitos que permitam a autocomposição, para contestar (CPC, art. 334). Já o executado no processo de execução é citado para pagamento no prazo de 3 (três) dias, sob pena de penhora (CPC, art. 829). Ademais, o simples fato de a execução ter sido recebida pelo juiz já possibilita a expedição de certidões a serem averbadas no patrimônio do executado sujeito a registro (CPC, art. 828).
Assim, a dispensa da instauração do incidente se a desconsideração for pedida na petição inicial não vale para o processo de execução, pois o executado teria suprimido o seu direito ao exercício do contraditório para se defender das imputações sobre o preenchimento dos requisitos necessários para a desconsideração e já começaria o processo sendo citado para pagar em 3 (três) dias em vez de ser citado para se defender em 15 (quinze) dias como determina o art. 135 do CPC.
Portanto, se o propósito da criação desta nova figura de intervenção de terceiros era harmonizar o princípio do contraditório com a desconsideração da personalidade jurídica, não se pode aceitar a simples dispensa do incidente na execução para inclusão dos sócios ou administradores da pessoa jurídica no polo passivo logo na petição inicial da execução promovida originariamente contra a pessoa jurídica.

5. Cabimento do incidente em todas as fases do processo e na execução

Quanto ao momento processual de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, se o pedido de desconsideração não for formulado na petição inicial, é importante mencionar que ele é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial (CPC, art. 134, caput). Vale observar, inclusive, que por força do art. 1.062 do CPC, tal incidente também é cabível no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis disciplinados pela Lei 9.099/1995, sendo que não se aplica a vedação para intervenção de terceiros do art. 10 deste último diploma, tendo em vista que o CPC é uma lei posterior.
Desse modo, o pedido de desconsideração pode ser formulado em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença, na execução fundada em título extrajudicial e também na petição inicial (CPC, art. 134, caput). Em primeiro grau de jurisdição, a competência para apreciar o pedido será do juiz do processo em que o pedido é formulado e, na fase recursal, ela será inicialmente do relator, cuja decisão monocrática pode ser impugnada por meio de agravo interno (CPC, art. 136, parágrafo único).

6. Procedimento do incidente

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve ser instaurado mediante petição endereçada ao juiz do processo ou ao relator do recurso, requerendo a sua instauração e demonstrando o preenchimento de todos os pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica, conforme § 4º do art. 134 do CPC.
Além da demonstração do preenchimento dos pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica (CPC, art. 134, § 4º), deve também ser formulado pedido de citação (CPC, art. 135) daqueles que serão atingidos pela decisão que o acolher: sócios, administradores e até mesmo a pessoa jurídica (na hipótese de desconsideração em sentido inverso). Não basta, assim, a mera intimação daqueles que serão atingidos pela decisão que eventualmente acolher o pedido incidente.
Cumpre observar, portanto, que aqueles que são atingidos pela decisão de desconsideração da personalidade jurídica, mediante a instauração do respectivo incidente, deixam de ser terceiros em relação ao processo para se tornarem parte, pois foi formulado pedido de tutela jurisdicional em face deles. 
Por tal razão é que eles devem ser citados para manifestar-se e requerer as provas cabíveis dentro do prazo de 15 (quinze) dias, consoante o disposto no art. 135 do CPC. Logo, os meios processuais à disposição daquele que é atingido por uma decisão de desconsideração da personalidade jurídica são os mesmos franqueados às partes do processo, pois aquele que sofre a desconsideração da personalidade jurídico é parte e não terceiro.21 
Note-se que não estão descartados os embargos de terceiro pois o CPC, no art. 674, § 2º, III, estabelece que se considera terceiro, para ajuizamento dos embargos, “quem sofre constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte”. 
Assim, se não houver a instauração do incidente ou se a pessoa que tiver o seu patrimônio atingido por uma decisão de desconsideração da personalidade jurídica não fizer parte do incidente, ela deve opor os embargos de terceiro previstos nos arts. 674 e seguintes do CPC para desconstituir a constrição.22  
Como já asseverado, após instaurado o incidente e suspenso o processo principal (CPC, art. 134, § 3º), tal acontecimento deve ser imediatamente comunicado ao distribuidor para as devidas anotações (CPC, art. 134, § 1º), pois deve ser dada ampla publicidade ao fato de que o processo tem novos integrantes e novas partes. 
Assim, busca-se proteger os terceiros de boa-fé que até então desconheciam o fato de que o integrante da pessoa jurídica (sócio ou administrador) ou a própria pessoa jurídica (no caso da desconsideração em sentido inverso) são partes em um processo judicial em que se busca realizar uma constrição em seu patrimônio e a alienação de seus bens.
Após a citação daqueles que serão atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica, eles devem, no prazo de 15 (quinze) dias, se manifestar no processo apresentando a sua defesa e também requerendo a produção das provas que entenderem cabíveis. Tal manifestação tem a natureza de contestação ao pedido formulado no incidente. Depois de analisada tal manifestação e de produzidas todas as provas cabíveis, o incidente será resolvido por meio de decisão interlocutória.

7. Decisão e recurso da decisão proferida no incidente

A decisão que acolhe ou rejeita o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é interlocutória e deve ser impugnada mediante agravo de instrumento se for proferida em primeiro grau de jurisdição ou agravo se for prolatada monocraticamente no Tribunal.

Isto decorre do disposto no art. 136, caput, do CPC, que prevê que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será resolvido mediante decisão interlocutória. Assim, o recurso cabível dessa decisão é o agravo de instrumento (CPC, art. 1.015, IV) se for originária de órgão judicial de primeiro grau e, caso a decisão que seja proferida em fase recursal, pelo relator do recurso, caberá agravo interno, conforme prevê o parágrafo único do art. 136 e também o caput do art. 1.021, ambos do CPC.

Se, eventualmente, o juiz decidir o incidente por meio de sentença, caberá apelação para impugnar tal decisão, nos termos do art. 1.009 do CPC.

Cumpre notar que a pessoa jurídica não tem legitimidade para interpor recurso no interesse do sócio, ou seja, para impugnar a decisão que desconsiderou a personalidade jurídica, pois ela se beneficiou da referida decisão, ao ter os efeitos de uma obrigação que originariamente era sua direcionados para o sócio. Neste sentido há o Recurso Especial Repetitivo 1.347.627/SP, assim ementado: “PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DO DEVEDOR. A pessoa jurídica não tem legitimidade para interpor recurso no interesse do sócio. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime 543-C do CPC e da Resolução STJ 8/2008” (STJ, 1ª Seção, rel. Min. Ari Pargendler, j. 09.10.2013, DJe 21.10.2013).

Vale observar, ainda, que a decisão que rejeita o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve condenar o vencido ao pagamento de honorários advocatícios, apesar do silêncio da lei.

É fato que o art. 85, § 1º, do CPC estabelece hipóteses em que é cabível a condenação ao pagamento de honorários advocatícios e não menciona o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Tal dispositivo, após fixar que “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor” (CPC, art. 85, caput), menciona que “são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente” (CPC, art. 85, § 1º).

Todavia, isso não é o suficiente para afirmar que esse rol do § 1º do art. 85 do CPC seria taxativo, pois a própria lei processual estabelece em outras passagens a possibilidade de se condenar alguém ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais. 

Confira-se, a título de exemplo, a hipótese do parágrafo único do art. 129 do CPC, que trata da denunciação da lide: “se o denunciante for vencedor, a ação de denunciação não terá o seu pedido examinado, sem prejuízo da condenação do denunciante ao pagamento das verbas de sucumbência em favor do denunciado”. Nessa situação, fica claro que o sistema processual permite, em hipóteses nas quais ocorra o encerramento do processo por meio de decisões que decidam parcialmente o mérito, a condenação ao vencido de pagamento de honorários advocatícios ao advogado do vencedor.

Nesse sentido, Thiago Asfor Rocha Lima e Marcus Claudius Saboia Rattacaso observam que: 

“(...) ao que parece, o legislador nunca pretendeu tornar a fixação dos honorários parciais a regra do sistema, pois, se assim o fosse, poderia ter feito, quando menos, nas alterações processuais de 2005, ou dez anos depois, quando da promulgação do Novo CPC. Isso, todavia, não impede o magistrado, em situações específicas e justificadas, de estabelecer os honorários de sucumbências parciais e nas decisões parciais de mérito. Isso é possível de ocorrer não apenas nos casos de extinção do processo em relação a uma das partes, por ilegitimidade, exempli gratia – visto que nesse caso a parte excluída não participará da decisão final – mas também quando houver desistência, renúncia ou reconhecimento parcial do pedido (art. 90, caput e § 1º) e ainda nos casos de parcela do pedido se mostrar incontroverso ou em imediatas condições de julgamento (art. 356, inciso II), seja por desnecessidade de produção de provas novas, seja por se operarem os efeitos de revelia”.23 

Assim, nas hipóteses em que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é julgado improcedente, após a regular tramitação do incidente sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, fica claro que o sócio, que era considerado parte no processo por ter sido citado (CPC, art. 135), inclusive com comunicação do ocorrido ao distribuidor (CPC, art. 134, § 1º), será excluído do processo, que será extinto em relação a ele, pelo menos.24 

Tal pronunciamento, evidentemente, é uma decisão interlocutória de mérito aquela de decide o incidente de desconsideração da personalidade jurídica acolhendo ou rejeitando o pedido. Em razão do não acolhimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou administrador da pessoa jurídica que contratou advogados para se defender no prazo de 15 (quinze) dias e requereu a produção de provas (CPC, art. 135), inclusive periciais e testemunhais, será excluído da demanda originária, sem poder participar do processo principal até decisão final, após terminada a suspensão a que se refere o § 3º do art. 134.

Obviamente, não é justo que alguém (sócio ou administrador de pessoa jurídica, nos termos do art. 50 do CC), a quem foi imputado um fato grave de desvio de finalidade ou confusão patrimonial com intuito fraudulento, que teve que contratar advogados para se defender de um pedido de tutela jurisdicional formulado por um credor leviano que queria lhe estender os efeitos de uma obrigação de uma pessoa jurídica para lhe tomar o patrimônio particular, não tenha o direito de – pelo menos – receber honorários de sucumbência e ser reembolsado pelas despesas processuais que antecipou (CPC, art. 82, § 2º).

Aliás, o próprio § 1º do art. 322 do CPC, ao tratar do pedido de tutela jurisdicional, que é exatamente o que faz aquele que pede a instauração do incidente a que se referem os arts. 134 e seguintes do CPC ao imputar a alguém o fato de ter realizado uma das hipóteses autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica, alcançando-se o seu patrimônio particular, estabelece que compreendem-se no pedido principal os juros legais, a correção monetária e as verbas de sucumbência, inclusive os honorários advocatícios.

Em outras palavras, se o credor pede a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar os bens dos integrantes da pessoa jurídica que até então não eram partes do processo, ele deve estar preparado para todas as consequências de ter um pedido de tutela jurisdicional negado pelo juiz, sobretudo no sentido de indenizar pelos prejuízos que eventualmente causou aos inocentes que tiveram que vir a juízo se defender, inclusive pagando-lhes honorários advocatícios e reembolsando as despesas incorridas.

Conforme já tivemos oportunidade de sustentar em outra ocasião, “(...) caso se descubra depois que não era hipótese de se desconsiderar a personalidade jurídica, nascerá para o prejudicado um direito de pleitear indenização, e somente quem pediu e se beneficiou com essa medida excepcional é que estará legitimado a indenizar (...)”.25 

A indenização pelos prejuízos causados com um pedido de desconsideração julgado improcedente – certamente devida – pode até ter lugar em um outro processo, mas a fixação de honorários advocatícios em favor do vencedor no incidente ao qual se refere o art. 134 e seguintes do CPC deve ser fixado no momento em que o juiz proferir a decisão interlocutória do art. 136, caput, do CPC (“Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória”).

Nesse sentido é lição de Christian Garcia Vieira: 

“afinal, uma vez citado o réu, ele irá constituir advogado, ingressar no feito e, exemplificativamente, apresentar defesa para demonstrar a inexistência de atos de confusão patrimonial que justificariam a inaplicabilidade do instituto no caso concreto. Há uma decorrência lógica de que o autor, que propôs a demanda, caso derrotado, remunere as custas e os honorários advocatícios ao réu (e vice-versa)”.26 

Logo, como a atuação do advogado que defendeu o sócio ou o administrador da pessoa jurídica no incidente de desconsideração da personalidade desta última não acompanhará o processo até o final porque o seu cliente foi excluído do seu polo passivo, a fixação das verbas de sucumbência não pode ser deixada para depois, ao final da demanda originária. Ela deve ser feita ao final do incidente, quando ele for acolhido ou rejeitado.


8. Desconsideração da personalidade jurídica e fraude de execução

Conforme disposto no art. 137 do CPC, “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”.
Para bem aplicar tal dispositivo, é preciso saber a partir de que momento a alienação de bens por aquele que é atingido pela desconsideração da personalidade jurídica (sócio, administrador ou a pessoa jurídica – esta última nos casos de desconsideração inversa) deve ser considerada como sendo fraude de execução. 
É difícil estabelecer se o momento a partir do qual a alienação do bem capaz de reduzir o devedor à insolvência é considerada fraude à execução deve ser considerado o da primeira citação do réu para o processo originário ou o da citação daquele que será atingido pela desconsideração da personalidade jurídica para manifestação no incidente a que se referem os arts. 133 a 137 do CPC.
A dificuldade acima mencionada resulta da obscura redação do § 3º do art. 792 do CPC que estabelece que “nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar”.
Caso o artigo acima transcrito se referira à desconsideração em sentido inverso, a resposta para o problema que se apresenta é uma. Por outro lado, se for a hipótese da desconsideração sem ser no referido sentido a solução para o impasse será outra.
No caso da desconsideração da personalidade jurídica prevista pelo art. 50 do CC, em que os efeitos de certas obrigações da sociedade são estendidos para o sócio ou para o administrador, a fraude à execução deveria ser verificada, à luz do § 3º do art. 792 do CPC, a partir do momento em que a sociedade foi citada e não a partir do momento em que o sócio ou administrador forem citados para apresentar a manifestação e requerer a produção de provas no incidente. Isso porque é a sociedade a parte cuja personalidade se pretende desconsiderar à qual se refere o § 3º do art. 792.
A interpretação acima, contudo, não é a mais adequada, pois o terceiro que comprar um bem do sócio antes de instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não poderia sequer saber que o integrante da pessoa jurídica era parte de um processo capaz de reduzi-lo à insolvência, pois o distribuidor só deve ser comunicado da existência do referido incidente após a sua instauração (CPC, art. 134, § 1º). Assim, se esta interpretação for acolhida, os terceiros de boa-fé, que compraram bens dos sócios ou administradores antes da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica serão prejudicados, pois não tinham como saber que havia processos contra estas pessoas, uma vez que nada havia sido comunicado ao distribuidor antes da instauração do incidente.
Portanto, para proteger terceiros de boa-fé, o mais adequado seria considerar a ineficácia da alienação do bem somente seja reconhecida se ela for realizada a partir da citação do sócio, administrador ou pessoa jurídica para manifestar-se no incidente.27 

9. Tutela provisória da urgência e desconsideração da personalidade jurídica

Há situações em que não se pode aguardar a citação daqueles que devem ser atingidos pela decisão que acolhe o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, sob pena de se frustrar o resultado útil do processo. Em outras palavras, após a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o art. 135 do CPC determina que o integrante da pessoa jurídica deve ser citado para manifestação e requerimento de provas no prazo de 15 (quinze) dias, o que pode envolver o risco de haver desvio ou ocultação de bens por parte de sócios, administradores e pessoas jurídicas que podem ter seu patrimônio constrito.

Nessas hipóteses, deve ser formulado o pedido de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e, concomitantemente, o pedido de concessão de tutela provisória de urgência previsto pelos arts. 300 e seguintes do CPC. Isso permite que o incidente seja instaurado, a tutela provisória de urgência para assegurar o resultado útil do processo seja concedida e, depois, que seja realizada a citação das pessoas indicadas pelo autor do pedido incidente.

Nesse sentido é o magistério de Fredie Didier Jr., para quem “aplica-se ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica o regime da tutela provisória da urgência. Pode-se, então, pedir a antecipação dos efeitos da desconsideração, uma vez preenchidos os pressupostos gerais da tutela de urgência (arts. 300 e ss., CPC)”.28 

Evidentemente, melhor seria que o legislador já tivesse previsto esta hipótese de urgência ao disciplinar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Porém, a falta de sua previsão ao lado dos arts. 133 a 137 do CPC não prejudica uma interpretação sistemática e a combinação destes dispositivos com os dispositivos aplicáveis à tutela provisória de urgência (arts. 300 e seguintes do CPC), adotando-se a solução acima delineada para os casos em que há comprovado risco de comprometimento do resultado útil do processo com a simples citação a que se refere o art. 135 do CPC. É esta a interpretação que dá maior rendimento ao disposto no art. 5º, XXXV, da CF (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça à direito”).

Notas

1 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado, pp. 29-30.

2 Ao tratar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, Arruda Alvim afirma que: “[g]arante-se, por meio dele, em observância às garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/1988), que aquele cujo patrimônio pode vir a ser atingido tenha a oportunidade de discutir em juízo se estão presentes os requisitos que a lei coloca para que possa ocorrer a desconsideração” (Novo contencioso cível no CPC/2015, p. 110).

3 Conforme já tivemos oportunidade de sustentar, a desconsideração da personalidade jurídica difere de outros institutos jurídicos que importam no comprometimento do patrimônio pessoal do integrante da pessoa jurídica em razão de obrigações desta (SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 79-87). Assim, por exemplo, no caso de redirecionamento da execução fiscal por força da incidência do art. 135, III, do Código Tributário Nacional, que dispõe serem “pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos” os “diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”, não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, pois a lei já atribui responsabilidade direta ao diretor, ao gerente e ao representante da pessoa jurídica. Nesse sentido é o enunciado n. 53 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM): “[o] redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015”. Na mesma linha é o enunciado n. 6 do Fórum de Execuções Fiscais da Segunda Região (Forexec): “[a] responsabilidade tributária regulada no art. 135 do CTN não constitui hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, não se submetendo ao incidente previsto no art. 133 do CPC/2015”.  Não é diferente o entendimento esboçado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgado assim ementado: “EXECUÇÃO FISCAL. Indeferimento de pleito para redirecionamento da execução fiscal para o sócio. Cogitada a necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, nos termos dos arts. 133 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015. Descabimento. Possibilidade no caso de tratar-se de empresa executada não localizada no endereço onde deveria funcionar. Configurada a presumida dissolução irregular da empresa, possível o redirecionamento da execução para o sócio – Art. 135 do CTN e Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça. Desnecessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 do Novo Código de Processo Civil. Enunciados 53 da ENFAM e 6 do Fórum de Execuções Fiscais da 2ª Região (Forexec). Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Decisão reformada. Recurso provido” (Agravo de Instrumento 2002120-89.2017.8.26.0000, 15ª Câmara de Direito Público, rel. Des. Silva Russo, j. 06.04.2017). Ver também, especificamente sobre a aplicação do art. 135, III, do CTN e a sua diferença em relação ao art. 50 do CC: SOUZA, André Pagani de. A qualidade de parte do integrante da pessoa jurídica que é atingido pelo ‘redirecionamento’ da execução fiscal, p. 82.

4 Nesse sentido, Flávio Tartuce leciona que “diante da sua concepção como realidade técnica e orgânica, a pessoa jurídica é capaz de direitos e deveres na ordem civil, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem vínculo. Tal realidade pode ser retirada do art. 45 do Código Civil de 2002, ao dispor que começa a existência legal das pessoas jurídicas de Direito Privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Fala-se em autonomia da pessoa jurídica quanto aos seus membros, o que constava expressamente no art. 20 do Código Civil de 1916, dispositivo que não foi reproduzido pela atual codificação, sem que isso traga qualquer conclusão diferente” (TARTUCE, Flávio. O novo CPC e o direito civil: impactos, diálogos e interações, p. 65).

5 Olavo de Oliveira Neto ensina que “quando o sócio ou dirigente da pessoa jurídica pratica atos que ofendem a legalidade, agindo de modo a cometer fraude em prejuízo de outrem, essa autonomia pode ser desconsiderada e, por exceção, o patrimônio do sócio ou dirigente pode responder pelas dívidas da empresa” (Curso de direito processual civil, p. 427).

6 Segundo Fábio Ulhoa Coelho, “pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se respeitada a autonomia da sociedade. Note-se, a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não o invalida, nem importa sua dissolução. Trata, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato. Quer dizer, a constituição a pessoa jurídica não produz efeitos apenas no caso em julgamento, permanecendo válida e inteiramente eficaz para todos os fins” (Curso de direito comercial, p. 40).

7 Note-se que a confusão patrimonial não deixa de ser um ato fraudulento pois, se a pessoa jurídica foi criada justamente para ter autonomia de patrimônio em relação aos seus integrantes, não faz sentido o sócio ou administrador deixar de fazer esta distinção e utilizar o patrimônio da sociedade como se fosse próprio e vice-versa. Nesse aspecto, aquele que faz esta confusão patrimonial, está fraudando o objetivo da lei que era separar o patrimônio da pessoa jurídica daquele que pertence às pessoas que a integram.

8 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 46.

9 Segundo Flávio Tartuce, esta distinção entre a teoria maior e a menor da desconsideração da personalidade jurídica ainda se faz atual e necessária: “acreditamos que a aclamada divisão deve ser mantida na teoria e na prática do Direito Privado, especialmente pelo seu claro intuito didático e metodológico. Em complemento, a aplicação da teoria menor é a mais eficiente para a defesa dos interesses dos consumidores” (O novo CPC e o direito civil, p. 72).

10 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 78-79.

11 Brasil. Congresso Nacional. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração do Anteprojeto de Código de Processo Civil. Anteprojeto do código de processo civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, p. 15. 

12 Segundo Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, “o objetivo foi eliminar a extrema insegurança que vigia no sistema anterior em decorrência de desordenados redirecionamentos de execuções e arbitrárias extensões da responsabilidade executiva a sujeitos diferentes do obrigado. Pelo que dispõe o novo Código, extensões dessa ordem só serão admissíveis quando houver um prévio pronunciamento judicial a respeito” (Teoria geral do novo processo civil, p. 163).

13 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, p. 1198; SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 153-159; BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica, pp. 105-108.

14 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, p. 521.

15 Em sentido contrário, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sérgio Cruz Arenhart sustentam que “nada impede, porém, que o juiz dê início ao incidente também de ofício, sempre que o direito material não exigir iniciativa da parte para essa desconsideração” (Novo código de processo civil comentado, p. 208).  Na mesma linha, Flávio Tartuce entende que a desconsideração da personalidade jurídica ex officio seria possível em relações jurídicas envolvendo direito do consumidor e envolvendo direito ambiental e envolvendo a Lei 12.846/2013, ou seja, casos de corrupção. Nesses ramos do direito, como haveria um interesse público de importância superior ao das partes em conflito, o juiz estaria autorizado a aplicar de ofício a desconsideração da personalidade jurídica (TARTUCE Flávio. O novo CPC e o direito civil: impactos, diálogos e interações, pp. 77-78).  Com o devido respeito, entendemos que a desconsideração da personalidade jurídica envolve um novo pedido de tutela jurisdicional em face de alguém que não era parte do processo e passará a ser com a instauração do incidente, porque contra ela passou-se a requerer a atuação de uma vontade concreta da lei. Assim, não se pode admitir a desconsideração da personalidade jurídica realizada de ofício pelo juiz, pois isso violaria o princípio da inércia da jurisdição consagrado pelo art. 2º do CPC e a paridade de armas assegurada pelo art. 7º do CPC. Nesse sentido, Araken de Assis sustenta o seguinte: “Não é, pois, assunto confiado à iniciativa do órgão judiciário. A desconsideração escapa aos poderes de direção material do juiz. Em outras palavras, não é lícito ao órgão judicial, na hipótese do art. 790, VII, redirecionar a pretensão a executar contra o sócio ao seu talante. O incidente envolve, predominantemente, interesses patrimoniais. E quem tomar essa iniciativa assumirá os riscos financeiros perante as pessoas arroladas na petição. De resto, a desconsideração da pessoa jurídica provoca a formação de litisconsórcio facultativo passivo. Ao órgão judiciário é vedado, de ofício, a integrar terceiro à relação processual, o que significa violar o princípio da demanda. Essas razões se mostram superiores à que baseia no caráter excepcional da desconsideração o veto à atuação ex officio do juiz. É nula, por conseguinte, a integração de terceiro ao processo, determinada ex officio pelo juiz, a guisa de desconsideração da personalidade jurídica (Manual da execução, p. 307). No mesmo sentido: ALVIM, Arruda. Novo contencioso cível no CPC/2015, p. 25; BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado, p. 190.

16 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins Conceição; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; TORRES DE MELLO, Rogerio Licastro. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo, p. 254.

17 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, p. 1198, sem os destaques. No mesmo sentido, SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, p. 154. Em sentido contrário: NEVES, Daniel Amorin Assumpção. Novo CPC: inovações, alterações, supressões comentadas, pp. 143-144; ROQUE, André Vasconcelos. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015 (parte geral), p. 438.

18 Como, aliás, já teve oportunidade de decidir o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em julgado assim ementado: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. Indeferimento da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Ausência de demonstração dos pressupostos legais específicos para a desconsideração, conforme art. 134, §4º do Código de Processo Civil. Negativa correta. Recurso desprovido” (TJSP, Agravo de Instrumento 2258429-83.2016.8.26.0000, 38ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Flávio Cunha da Silva, j. 08.03.2017).

19 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, p. 615.

20 Para ver este e outros exemplos de pedido de desconsideração da personalidade jurídica formulado na petição inicial, ver SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 127-130. 

21 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 137-148.

22 Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery sustentam que “caso tenha ocorrido penhora de bem de sócio ou administrador, como se fosse bem da sociedade, o meio processual correto para a discussão da questão são os embargos de terceiro. Não cabe manifestação simples do prejudicado, como se estivesse inserido neste procedimento do CPC 133 a 137” (Comentários ao código de processo civil, p. 575).

23 LIMA, Thiago Asfor Rocha; RATTACASO, Marcus Claudius Saboia. Honorários advocatícios parciais: muito além da interpretação literal do art. 85 do Novo CPC, p. 347 (os destaques são da transcrição).

24 Já tivemos a oportunidade de demonstrar que aquele que é atingido por uma decisão de desconsideração da personalidade jurídica deve ser considerado parte no processo e não terceiro. (SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 118-148).

25 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, p. 188.

26 VIEIRA, Christian Garcia. Desconsideração da personalidade jurídica no Novo CPC: natureza, procedimentos e temas polêmicos, p. 183.

27 Nesse sentido é o comentário de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery sobre o art. 137 do CPC: “A intenção do dispositivo é punir a conduta do sócio ou administrador que aliena bens no curso do incidente de desconsideração. Todavia, parece mais correto considerar que a ineficácia da alienação ou oneração de bens ocorrida nessa situação incida apenas caso ocorram após a citação do sócio ou administrador para responder aos ternos do incidente, ou após algum fato que dê a entender que tais pessoas tinham ciência da instauração” (Comentários ao código de processo civil, p. 575). No mesmo sentido é a posição de José Miguel Garcia Medina, para quem “a citação referida no § 3º do art. 792 é aquela prevista no art. 135 do CPC/2015: citado o sócio ou a pessoa jurídica para manifestar-se sobre o pedido de desconsideração, o ato de alienação ou oneração de bens poderá ser considerado em fraude à execução, observadas as demais condições previstas no art. 792 do CPC/2015” (Novo código de processo civil comentado, p. 1.122-1.123). Gilberto Gomes Bruschi, Rita Dias Nolasco e Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo entendem que o momento a ser adotado como marco inicial para se considerar a alienação ou oneração de bens como fraude à execução seria o da anotação do nome do sócio no cartório distribuidor (Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no código de processo civil de 2015, p. 178, sem os destaques).

28 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, p. 528.

Referências

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Citação

SOUZA, André Pagani. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/184/edicao-1/incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica

Edições

Tomo Processo Civil, Edição 1, Junho de 2018

Última publicação, Tomo Processo Civil, Edição 2, Julho de 2021