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Incidente de desconsideração da personalidade jurídica
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André Pagani de Souza
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Tomo Processo Civil, Edição 1, Junho de 2018
Este verbete tem como objetivo apresentar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica disciplinado pelos arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015).
Trata-se de uma modalidade de intervenção de terceiros que permite, incidentalmente ao processo, desconsiderar a personalidade jurídica e, desse modo, conseguir responsabilizar pessoalmente o integrante da pessoa jurídica (sócio ou administrador) nos casos em que a lei material o autoriza. É uma novidade trazida pela codificação atual e que não era encontrada no diploma anterior (a Lei 5.869/1976).
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve ser pensado da perspectiva traçada pelo art. 1º do Código de Processo Civil (CPC): “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.1
Ao que tudo indica, o objetivo buscado pelos arts. 133 a 137 do CPC foi o de harmonizar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica prevista na lei material com o princípio do contraditório (Constituição Federal, art. 5º, LV). Por exemplo, é preciso que seja observado o princípio do contraditório para se aplicar o art. 50 do Código Civil (Lei 10.406/2002); o art. 28, caput e § 5º, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990); o art. 34, da Lei Antitruste (Lei 12.529/2011); o art. 4º da Lei do Meio Ambiente (Lei 9.605/1998); o art. 14, da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013). Em todas estas hipóteses a lei material confere a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, mas não prevê a forma pela qual, mediante o processo, isto deve ser feito.
Em outras palavras, a preocupação maior do legislador foi compatibilizar a possibilidade de o patrimônio de um sócio ou administrador de uma pessoa jurídica sofrer os efeitos de uma decisão proferida em um processo (do qual ele não fazia parte inicialmente) com as normas fundamentais inseridas, sobretudo, nos arts. 7º, 9º e 10 do CPC, que consagram o princípio do contraditório.2
Assim, considerando que o inciso VII do art. 790 do CPC estabelece que são sujeitos à execução os bens “do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica”, coerentemente, os arts. 133 a 137 da mesma lei conferem a disciplina processual mediante a qual o patrimônio do responsável se sujeitará à execução nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica previstas na lei material (art. 133, § 1º, do CPC).
Entretanto, antes de se analisar a disciplina processual dada pelos arts. 133 a 137 a essa nova espécie de intervenção de terceiros, é preciso ter uma noção do que se entende por “desconsideração da personalidade jurídica”. Isso porque, se for hipótese de desconsiderar a personalidade jurídica, o juiz deve obrigatoriamente se utilizar deste incidente (CPC, art. 795, § 4º), sob pena de o sócio ou administrador se valer dos embargos de terceiro para se defender, se a lei for desrespeitada (CPC, art. 674, § 2º, III). Por outro lado, se não for hipótese de desconsideração da personalidade jurídica e sim outro caso diverso em que o sócio também responde por uma obrigação que era originariamente da pessoa jurídica, não se utilizará o incidente.3 Portanto, antes de se
1. Noção de desconsideração da personalidade jurídica
A pessoa jurídica tem patrimônio próprio que não se confunde com aquele que pertence aos seus integrantes (sócios ou administradores). Os direitos e deveres da pessoa jurídica propriamente dita e os dos seus membros também não se confundem. Isso pode ser depreendido do art. 45 do CC que dispõe: “começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo”. Ou seja, a pessoa jurídica tem uma autonomia patrimonial e também de direitos e obrigações em relação aos seus membros.4
Ocorre que, em determinadas situações, a lei permite que esta autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus integrantes seja ignorada para a finalidade de se estender os efeitos de determinadas obrigações para os seus membros. Isso significa afirmar que é permitido por lei que, preenchidos determinados pressupostos, se desconsidere a personalidade de determinada pessoa jurídica para alcançar o patrimônio de seus integrantes.
Em geral, a desconsideração da personalidade jurídica é utilizada para se coibir fraudes realizadas por meio da manipulação das regras que dão autonomia para as pessoas jurídicas.5 Os atos que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica são atos fraudulentos praticados pelos seus integrantes.6 Veja-se, a título ilustrativo, o exemplo do art. 50 do Código Civil, que menciona a hipótese de “abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.7 Nesses casos, o patrimônio do sócio ou administrador acaba respondendo por uma obrigação que originariamente era da pessoa jurídica.
Vale notar que não é apenas a prática de ato fraudulento que justifica a desconsideração da personalidade jurídica. Há dispositivos legais, como o § 5º do art. 28 do CDC, que permitem a desconsideração pelo simples fato de o consumidor não ter conseguido receber seu crédito da pessoa jurídica. É o que Fábio Ulhoa Coelho já chamou no passado de teoria menor da desconsideração, asseverando que “o seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta”.8 Aqui o pressuposto é unicamente a frustração do credor da sociedade e a teoria é chamada de menor em tom até pejorativo, pois não tem qualquer relação com a construção doutrinária que levou ao reconhecimento da possibilidade de se ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em hipóteses de fraude praticada pelos seus membros.9
Assim, pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica, sempre que o juiz verificar que a pessoa foi utilizada para a prática de abuso de direito ou fraude, ele pode não aplicar as regras de separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus integrantes. Essa desconsideração da pessoa jurídica no caso concreto não significa a anulação ou a desconstituição do ato jurídico que a constituiu, mas apenas a declaração de sua ineficácia momentânea. Assim, somente naquele caso específico examinado pelo juiz é que a personalidade jurídica vai ser ignorada, não se aplicando as regras de separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus integrantes para que o abuso de direito ou fraude sejam coibidos.10
Há, também, a desconsideração da personalidade jurídica em sentido inverso, expressamente prevista atualmente pelo § 2º do art. 133 do CPC. Nesse caso, há o afastamento do princípio da autonomia da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio. Ou, ainda, se traduz na possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica por uma obrigação de um integrante seu (seja ele sócio ou administrador).
Em razão do exposto até aqui, se for hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, nos moldes acima delineados, devem ser observadas as normas relativas ao incidente de desconsideração da personalidade encontradas nos arts. 133 a 137 do CPC, analisadas a seguir.
2. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica
A exposição de motivos do anteprojeto do CPC atual já anunciava que “(...) muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que preveem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera a pessoa jurídica, em sua versão tradicional ou ‘às avessas’”.11
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica veio, portanto, para viabilizar a realização de um prévio ato processual que estenda a eficácia de um título executivo para o integrante da pessoa jurídica que será atingido pela aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.12 Assim, o interessado em pleitear a desconsideração da personalidade jurídica deve demonstrar ao juiz a configuração de uma das hipóteses que a autorizam, para que o juiz determine a citação daquele que sofrerá os efeitos da decisão para se defender, requerendo inclusive a produção de provas. Somente após observado tal procedimento o juiz estará autorizado a formar o seu convencimento e proferir decisão interlocutória acolhendo ou rejeitando o pedido de desconsideração.
3. Instauração do incidente
4. Dispensa da instauração do incidente
5. Cabimento do incidente em todas as fases do processo e na execução
6. Procedimento do incidente
7. Decisão e recurso da decisão proferida no incidente
A decisão que acolhe ou rejeita o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é interlocutória e deve ser impugnada mediante agravo de instrumento se for proferida em primeiro grau de jurisdição ou agravo se for prolatada monocraticamente no Tribunal.
Isto decorre do disposto no art. 136, caput, do CPC, que prevê que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será resolvido mediante decisão interlocutória. Assim, o recurso cabível dessa decisão é o agravo de instrumento (CPC, art. 1.015, IV) se for originária de órgão judicial de primeiro grau e, caso a decisão que seja proferida em fase recursal, pelo relator do recurso, caberá agravo interno, conforme prevê o parágrafo único do art. 136 e também o caput do art. 1.021, ambos do CPC.
Se, eventualmente, o juiz decidir o incidente por meio de sentença, caberá apelação para impugnar tal decisão, nos termos do art. 1.009 do CPC.
Cumpre notar que a pessoa jurídica não tem legitimidade para interpor recurso no interesse do sócio, ou seja, para impugnar a decisão que desconsiderou a personalidade jurídica, pois ela se beneficiou da referida decisão, ao ter os efeitos de uma obrigação que originariamente era sua direcionados para o sócio. Neste sentido há o Recurso Especial Repetitivo 1.347.627/SP, assim ementado: “PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DO DEVEDOR. A pessoa jurídica não tem legitimidade para interpor recurso no interesse do sócio. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime 543-C do CPC e da Resolução STJ 8/2008” (STJ, 1ª Seção, rel. Min. Ari Pargendler, j. 09.10.2013, DJe 21.10.2013).
Vale observar, ainda, que a decisão que rejeita o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve condenar o vencido ao pagamento de honorários advocatícios, apesar do silêncio da lei.
É fato que o art. 85, § 1º, do CPC estabelece hipóteses em que é cabível a condenação ao pagamento de honorários advocatícios e não menciona o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Tal dispositivo, após fixar que “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor” (CPC, art. 85, caput), menciona que “são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente” (CPC, art. 85, § 1º).
Todavia, isso não é o suficiente para afirmar que esse rol do § 1º do art. 85 do CPC seria taxativo, pois a própria lei processual estabelece em outras passagens a possibilidade de se condenar alguém ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais.
Confira-se, a título de exemplo, a hipótese do parágrafo único do art. 129 do CPC, que trata da denunciação da lide: “se o denunciante for vencedor, a ação de denunciação não terá o seu pedido examinado, sem prejuízo da condenação do denunciante ao pagamento das verbas de sucumbência em favor do denunciado”. Nessa situação, fica claro que o sistema processual permite, em hipóteses nas quais ocorra o encerramento do processo por meio de decisões que decidam parcialmente o mérito, a condenação ao vencido de pagamento de honorários advocatícios ao advogado do vencedor.
Nesse sentido, Thiago Asfor Rocha Lima e Marcus Claudius Saboia Rattacaso observam que:
“(...) ao que parece, o legislador nunca pretendeu tornar a fixação dos honorários parciais a regra do sistema, pois, se assim o fosse, poderia ter feito, quando menos, nas alterações processuais de 2005, ou dez anos depois, quando da promulgação do Novo CPC. Isso, todavia, não impede o magistrado, em situações específicas e justificadas, de estabelecer os honorários de sucumbências parciais e nas decisões parciais de mérito. Isso é possível de ocorrer não apenas nos casos de extinção do processo em relação a uma das partes, por ilegitimidade, exempli gratia – visto que nesse caso a parte excluída não participará da decisão final – mas também quando houver desistência, renúncia ou reconhecimento parcial do pedido (art. 90, caput e § 1º) e ainda nos casos de parcela do pedido se mostrar incontroverso ou em imediatas condições de julgamento (art. 356, inciso II), seja por desnecessidade de produção de provas novas, seja por se operarem os efeitos de revelia”.23
Assim, nas hipóteses em que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é julgado improcedente, após a regular tramitação do incidente sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, fica claro que o sócio, que era considerado parte no processo por ter sido citado (CPC, art. 135), inclusive com comunicação do ocorrido ao distribuidor (CPC, art. 134, § 1º), será excluído do processo, que será extinto em relação a ele, pelo menos.24
Tal pronunciamento, evidentemente, é uma decisão interlocutória de mérito aquela de decide o incidente de desconsideração da personalidade jurídica acolhendo ou rejeitando o pedido. Em razão do não acolhimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou administrador da pessoa jurídica que contratou advogados para se defender no prazo de 15 (quinze) dias e requereu a produção de provas (CPC, art. 135), inclusive periciais e testemunhais, será excluído da demanda originária, sem poder participar do processo principal até decisão final, após terminada a suspensão a que se refere o § 3º do art. 134.
Obviamente, não é justo que alguém (sócio ou administrador de pessoa jurídica, nos termos do art. 50 do CC), a quem foi imputado um fato grave de desvio de finalidade ou confusão patrimonial com intuito fraudulento, que teve que contratar advogados para se defender de um pedido de tutela jurisdicional formulado por um credor leviano que queria lhe estender os efeitos de uma obrigação de uma pessoa jurídica para lhe tomar o patrimônio particular, não tenha o direito de – pelo menos – receber honorários de sucumbência e ser reembolsado pelas despesas processuais que antecipou (CPC, art. 82, § 2º).
Aliás, o próprio § 1º do art. 322 do CPC, ao tratar do pedido de tutela jurisdicional, que é exatamente o que faz aquele que pede a instauração do incidente a que se referem os arts. 134 e seguintes do CPC ao imputar a alguém o fato de ter realizado uma das hipóteses autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica, alcançando-se o seu patrimônio particular, estabelece que compreendem-se no pedido principal os juros legais, a correção monetária e as verbas de sucumbência, inclusive os honorários advocatícios.
Em outras palavras, se o credor pede a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar os bens dos integrantes da pessoa jurídica que até então não eram partes do processo, ele deve estar preparado para todas as consequências de ter um pedido de tutela jurisdicional negado pelo juiz, sobretudo no sentido de indenizar pelos prejuízos que eventualmente causou aos inocentes que tiveram que vir a juízo se defender, inclusive pagando-lhes honorários advocatícios e reembolsando as despesas incorridas.
Conforme já tivemos oportunidade de sustentar em outra ocasião, “(...) caso se descubra depois que não era hipótese de se desconsiderar a personalidade jurídica, nascerá para o prejudicado um direito de pleitear indenização, e somente quem pediu e se beneficiou com essa medida excepcional é que estará legitimado a indenizar (...)”.25
A indenização pelos prejuízos causados com um pedido de desconsideração julgado improcedente – certamente devida – pode até ter lugar em um outro processo, mas a fixação de honorários advocatícios em favor do vencedor no incidente ao qual se refere o art. 134 e seguintes do CPC deve ser fixado no momento em que o juiz proferir a decisão interlocutória do art. 136, caput, do CPC (“Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória”).
Nesse sentido é lição de Christian Garcia Vieira:
“afinal, uma vez citado o réu, ele irá constituir advogado, ingressar no feito e, exemplificativamente, apresentar defesa para demonstrar a inexistência de atos de confusão patrimonial que justificariam a inaplicabilidade do instituto no caso concreto. Há uma decorrência lógica de que o autor, que propôs a demanda, caso derrotado, remunere as custas e os honorários advocatícios ao réu (e vice-versa)”.26
Logo, como a atuação do advogado que defendeu o sócio ou o administrador da pessoa jurídica no incidente de desconsideração da personalidade desta última não acompanhará o processo até o final porque o seu cliente foi excluído do seu polo passivo, a fixação das verbas de sucumbência não pode ser deixada para depois, ao final da demanda originária. Ela deve ser feita ao final do incidente, quando ele for acolhido ou rejeitado.
8. Desconsideração da personalidade jurídica e fraude de execução
9. Tutela provisória da urgência e desconsideração da personalidade jurídica
Há situações em que não se pode aguardar a citação daqueles que devem ser atingidos pela decisão que acolhe o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, sob pena de se frustrar o resultado útil do processo. Em outras palavras, após a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o art. 135 do CPC determina que o integrante da pessoa jurídica deve ser citado para manifestação e requerimento de provas no prazo de 15 (quinze) dias, o que pode envolver o risco de haver desvio ou ocultação de bens por parte de sócios, administradores e pessoas jurídicas que podem ter seu patrimônio constrito.
Nessas hipóteses, deve ser formulado o pedido de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e, concomitantemente, o pedido de concessão de tutela provisória de urgência previsto pelos arts. 300 e seguintes do CPC. Isso permite que o incidente seja instaurado, a tutela provisória de urgência para assegurar o resultado útil do processo seja concedida e, depois, que seja realizada a citação das pessoas indicadas pelo autor do pedido incidente.
Nesse sentido é o magistério de Fredie Didier Jr., para quem “aplica-se ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica o regime da tutela provisória da urgência. Pode-se, então, pedir a antecipação dos efeitos da desconsideração, uma vez preenchidos os pressupostos gerais da tutela de urgência (arts. 300 e ss., CPC)”.28
Evidentemente, melhor seria que o legislador já tivesse previsto esta hipótese de urgência ao disciplinar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Porém, a falta de sua previsão ao lado dos arts. 133 a 137 do CPC não prejudica uma interpretação sistemática e a combinação destes dispositivos com os dispositivos aplicáveis à tutela provisória de urgência (arts. 300 e seguintes do CPC), adotando-se a solução acima delineada para os casos em que há comprovado risco de comprometimento do resultado útil do processo com a simples citação a que se refere o art. 135 do CPC. É esta a interpretação que dá maior rendimento ao disposto no art. 5º, XXXV, da CF (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça à direito”).
Notas
1 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado, pp. 29-30.
2 Ao tratar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, Arruda Alvim afirma que: “[g]arante-se, por meio dele, em observância às garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/1988), que aquele cujo patrimônio pode vir a ser atingido tenha a oportunidade de discutir em juízo se estão presentes os requisitos que a lei coloca para que possa ocorrer a desconsideração” (Novo contencioso cível no CPC/2015, p. 110).
3 Conforme já tivemos oportunidade de sustentar, a desconsideração da personalidade jurídica difere de outros institutos jurídicos que importam no comprometimento do patrimônio pessoal do integrante da pessoa jurídica em razão de obrigações desta (SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 79-87). Assim, por exemplo, no caso de redirecionamento da execução fiscal por força da incidência do art. 135, III, do Código Tributário Nacional, que dispõe serem “pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos” os “diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”, não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, pois a lei já atribui responsabilidade direta ao diretor, ao gerente e ao representante da pessoa jurídica. Nesse sentido é o enunciado n. 53 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM): “[o] redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015”. Na mesma linha é o enunciado n. 6 do Fórum de Execuções Fiscais da Segunda Região (Forexec): “[a] responsabilidade tributária regulada no art. 135 do CTN não constitui hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, não se submetendo ao incidente previsto no art. 133 do CPC/2015”. Não é diferente o entendimento esboçado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgado assim ementado: “EXECUÇÃO FISCAL. Indeferimento de pleito para redirecionamento da execução fiscal para o sócio. Cogitada a necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, nos termos dos arts. 133 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015. Descabimento. Possibilidade no caso de tratar-se de empresa executada não localizada no endereço onde deveria funcionar. Configurada a presumida dissolução irregular da empresa, possível o redirecionamento da execução para o sócio – Art. 135 do CTN e Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça. Desnecessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 do Novo Código de Processo Civil. Enunciados 53 da ENFAM e 6 do Fórum de Execuções Fiscais da 2ª Região (Forexec). Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Decisão reformada. Recurso provido” (Agravo de Instrumento 2002120-89.2017.8.26.0000, 15ª Câmara de Direito Público, rel. Des. Silva Russo, j. 06.04.2017). Ver também, especificamente sobre a aplicação do art. 135, III, do CTN e a sua diferença em relação ao art. 50 do CC: SOUZA, André Pagani de. A qualidade de parte do integrante da pessoa jurídica que é atingido pelo ‘redirecionamento’ da execução fiscal, p. 82.
4 Nesse sentido, Flávio Tartuce leciona que “diante da sua concepção como realidade técnica e orgânica, a pessoa jurídica é capaz de direitos e deveres na ordem civil, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem vínculo. Tal realidade pode ser retirada do art. 45 do Código Civil de 2002, ao dispor que começa a existência legal das pessoas jurídicas de Direito Privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Fala-se em autonomia da pessoa jurídica quanto aos seus membros, o que constava expressamente no art. 20 do Código Civil de 1916, dispositivo que não foi reproduzido pela atual codificação, sem que isso traga qualquer conclusão diferente” (TARTUCE, Flávio. O novo CPC e o direito civil: impactos, diálogos e interações, p. 65).
5 Olavo de Oliveira Neto ensina que “quando o sócio ou dirigente da pessoa jurídica pratica atos que ofendem a legalidade, agindo de modo a cometer fraude em prejuízo de outrem, essa autonomia pode ser desconsiderada e, por exceção, o patrimônio do sócio ou dirigente pode responder pelas dívidas da empresa” (Curso de direito processual civil, p. 427).
6 Segundo Fábio Ulhoa Coelho, “pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se respeitada a autonomia da sociedade. Note-se, a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não o invalida, nem importa sua dissolução. Trata, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato. Quer dizer, a constituição a pessoa jurídica não produz efeitos apenas no caso em julgamento, permanecendo válida e inteiramente eficaz para todos os fins” (Curso de direito comercial, p. 40).
7 Note-se que a confusão patrimonial não deixa de ser um ato fraudulento pois, se a pessoa jurídica foi criada justamente para ter autonomia de patrimônio em relação aos seus integrantes, não faz sentido o sócio ou administrador deixar de fazer esta distinção e utilizar o patrimônio da sociedade como se fosse próprio e vice-versa. Nesse aspecto, aquele que faz esta confusão patrimonial, está fraudando o objetivo da lei que era separar o patrimônio da pessoa jurídica daquele que pertence às pessoas que a integram.
8 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 46.
9 Segundo Flávio Tartuce, esta distinção entre a teoria maior e a menor da desconsideração da personalidade jurídica ainda se faz atual e necessária: “acreditamos que a aclamada divisão deve ser mantida na teoria e na prática do Direito Privado, especialmente pelo seu claro intuito didático e metodológico. Em complemento, a aplicação da teoria menor é a mais eficiente para a defesa dos interesses dos consumidores” (O novo CPC e o direito civil, p. 72).
10 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 78-79.
11 Brasil. Congresso Nacional. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração do Anteprojeto de Código de Processo Civil. Anteprojeto do código de processo civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, p. 15.
12 Segundo Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, “o objetivo foi eliminar a extrema insegurança que vigia no sistema anterior em decorrência de desordenados redirecionamentos de execuções e arbitrárias extensões da responsabilidade executiva a sujeitos diferentes do obrigado. Pelo que dispõe o novo Código, extensões dessa ordem só serão admissíveis quando houver um prévio pronunciamento judicial a respeito” (Teoria geral do novo processo civil, p. 163).
13 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, p. 1198; SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 153-159; BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica, pp. 105-108.
14 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, p. 521.
15 Em sentido contrário, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sérgio Cruz Arenhart sustentam que “nada impede, porém, que o juiz dê início ao incidente também de ofício, sempre que o direito material não exigir iniciativa da parte para essa desconsideração” (Novo código de processo civil comentado, p. 208). Na mesma linha, Flávio Tartuce entende que a desconsideração da personalidade jurídica ex officio seria possível em relações jurídicas envolvendo direito do consumidor e envolvendo direito ambiental e envolvendo a Lei 12.846/2013, ou seja, casos de corrupção. Nesses ramos do direito, como haveria um interesse público de importância superior ao das partes em conflito, o juiz estaria autorizado a aplicar de ofício a desconsideração da personalidade jurídica (TARTUCE Flávio. O novo CPC e o direito civil: impactos, diálogos e interações, pp. 77-78). Com o devido respeito, entendemos que a desconsideração da personalidade jurídica envolve um novo pedido de tutela jurisdicional em face de alguém que não era parte do processo e passará a ser com a instauração do incidente, porque contra ela passou-se a requerer a atuação de uma vontade concreta da lei. Assim, não se pode admitir a desconsideração da personalidade jurídica realizada de ofício pelo juiz, pois isso violaria o princípio da inércia da jurisdição consagrado pelo art. 2º do CPC e a paridade de armas assegurada pelo art. 7º do CPC. Nesse sentido, Araken de Assis sustenta o seguinte: “Não é, pois, assunto confiado à iniciativa do órgão judiciário. A desconsideração escapa aos poderes de direção material do juiz. Em outras palavras, não é lícito ao órgão judicial, na hipótese do art. 790, VII, redirecionar a pretensão a executar contra o sócio ao seu talante. O incidente envolve, predominantemente, interesses patrimoniais. E quem tomar essa iniciativa assumirá os riscos financeiros perante as pessoas arroladas na petição. De resto, a desconsideração da pessoa jurídica provoca a formação de litisconsórcio facultativo passivo. Ao órgão judiciário é vedado, de ofício, a integrar terceiro à relação processual, o que significa violar o princípio da demanda. Essas razões se mostram superiores à que baseia no caráter excepcional da desconsideração o veto à atuação ex officio do juiz. É nula, por conseguinte, a integração de terceiro ao processo, determinada ex officio pelo juiz, a guisa de desconsideração da personalidade jurídica (Manual da execução, p. 307). No mesmo sentido: ALVIM, Arruda. Novo contencioso cível no CPC/2015, p. 25; BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado, p. 190.
16 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins Conceição; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; TORRES DE MELLO, Rogerio Licastro. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo, p. 254.
17 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, p. 1198, sem os destaques. No mesmo sentido, SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, p. 154. Em sentido contrário: NEVES, Daniel Amorin Assumpção. Novo CPC: inovações, alterações, supressões comentadas, pp. 143-144; ROQUE, André Vasconcelos. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015 (parte geral), p. 438.
18 Como, aliás, já teve oportunidade de decidir o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em julgado assim ementado: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. Indeferimento da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Ausência de demonstração dos pressupostos legais específicos para a desconsideração, conforme art. 134, §4º do Código de Processo Civil. Negativa correta. Recurso desprovido” (TJSP, Agravo de Instrumento 2258429-83.2016.8.26.0000, 38ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Flávio Cunha da Silva, j. 08.03.2017).
19 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, p. 615.
20 Para ver este e outros exemplos de pedido de desconsideração da personalidade jurídica formulado na petição inicial, ver SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 127-130.
21 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 137-148.
22 Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery sustentam que “caso tenha ocorrido penhora de bem de sócio ou administrador, como se fosse bem da sociedade, o meio processual correto para a discussão da questão são os embargos de terceiro. Não cabe manifestação simples do prejudicado, como se estivesse inserido neste procedimento do CPC 133 a 137” (Comentários ao código de processo civil, p. 575).
23 LIMA, Thiago Asfor Rocha; RATTACASO, Marcus Claudius Saboia. Honorários advocatícios parciais: muito além da interpretação literal do art. 85 do Novo CPC, p. 347 (os destaques são da transcrição).
24 Já tivemos a oportunidade de demonstrar que aquele que é atingido por uma decisão de desconsideração da personalidade jurídica deve ser considerado parte no processo e não terceiro. (SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, pp. 118-148).
25 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais, p. 188.
26 VIEIRA, Christian Garcia. Desconsideração da personalidade jurídica no Novo CPC: natureza, procedimentos e temas polêmicos, p. 183.
27 Nesse sentido é o comentário de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery sobre o art. 137 do CPC: “A intenção do dispositivo é punir a conduta do sócio ou administrador que aliena bens no curso do incidente de desconsideração. Todavia, parece mais correto considerar que a ineficácia da alienação ou oneração de bens ocorrida nessa situação incida apenas caso ocorram após a citação do sócio ou administrador para responder aos ternos do incidente, ou após algum fato que dê a entender que tais pessoas tinham ciência da instauração” (Comentários ao código de processo civil, p. 575). No mesmo sentido é a posição de José Miguel Garcia Medina, para quem “a citação referida no § 3º do art. 792 é aquela prevista no art. 135 do CPC/2015: citado o sócio ou a pessoa jurídica para manifestar-se sobre o pedido de desconsideração, o ato de alienação ou oneração de bens poderá ser considerado em fraude à execução, observadas as demais condições previstas no art. 792 do CPC/2015” (Novo código de processo civil comentado, p. 1.122-1.123). Gilberto Gomes Bruschi, Rita Dias Nolasco e Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo entendem que o momento a ser adotado como marco inicial para se considerar a alienação ou oneração de bens como fraude à execução seria o da anotação do nome do sócio no cartório distribuidor (Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no código de processo civil de 2015, p. 178, sem os destaques).
28 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, p. 528.
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Citação
SOUZA, André Pagani. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/184/edicao-1/incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica
Edições
Tomo Processo Civil, Edição 1,
Junho de 2018
Última publicação, Tomo Processo Civil, Edição 2,
Julho de 2021