Segurança jurídica é uma expressão que comporta vários sentidos. Seja, porém, qual for o sentido que se possa dar à expressão segurança jurídica, a garantia que ela sugere é a de que, ainda que a vida seja essencialmente mutável, será sempre necessário – no que diz com a ordem jurídica ou com os direitos individuais – que tanto quanto possível, uma parte do hoje seja igual ao ontem ou uma fração do amanhã seja igual ao hoje, de tal sorte que a cadeia do tempo se constitua sempre com esse quid de permanência do velho no novo. A noção de segurança jurídica é conatural e, pois, indissociável da própria noção de direito, só existindo direito onde existe segurança jurídica. O tema deste Verbete é o princípio da segurança jurídica no direito administrativo.
1. Princípio da segurança jurídica no direito brasileiro
Segurança jurídica é uma expressão que comporta vários sentidos. O adjetivo, entretanto, delimita o campo do substantivo, mostrando que a segurança de que se fala está relacionada com o direito, tomada esta palavra quer na acepção de direito objetivo, como conjunto de normas editadas ou reconhecidas pelo Estado para ordenar a vida em sociedade, quer como direito subjetivo, ou seja, como vantagem de que os indivíduos são titulares e que resultaram da ocorrência de fato jurídico, na compreensão mais ampla dessa locução, abrangendo, portanto também os atos jurídicos.
Seja, porém, qual for o sentido que se possa dar à expressão segurança jurídica,1 a garantia que ela sugere é a de que, ainda que a vida seja essencialmente mutável, será sempre necessário – no que diz com a ordem jurídica ou com os direitos individuais – que tanto quanto possível, uma parte do hoje seja igual ao ontem ou uma fração do amanhã seja igual ao hoje, de tal sorte que a cadeia do tempo se constitua sempre com esse quid de permanência do velho no novo. É isto que empresta coerência, previsibilidade, calculabilidade e autoridade ao conjunto de normas jurídicas, ao mesmo tempo que infunde tranquilidade aos indivíduos, quer com relação aos compromissos e vínculos jurídicos que estabeleceram no passado e que esperam sejam mantidos, quer no tocante aos planos que elaborarão, no futuro, na condução de suas vidas.
Bem se percebe, por estas resumidas observações, como é justificado o pensamento de tantos autores notáveis, desde os antigos até os contemporâneos – a ponto de se poder falar em uma opinião comum – quando asseveram que a noção de segurança jurídica é conatural e, pois, indissociável da própria noção de direito, só existindo direito onde existe segurança jurídica.
Será importante registrar, entretanto, que se analisarmos diferentes conjuntos normativos ou diferentes ordens jurídicas, vamos verificar que a preocupação com a segurança jurídica é maior ou mais forte em umas do que em outras. Aliás, também dentro de uma mesma ordem jurídica por vezes a segurança jurídica sobressai em determinadas áreas e em outras é muito apagada ou quase inexistente.
Assim, no direito que havia ao tempo do Estado Absolutista, onde a vontade do monarca se impunha incontrastavelmente sobre quase todos os setores da sociedade e onde eram praticamente mínimas as possibilidades de oposição dos indivíduos aos atos dos governantes quando no exercício das funções típicas da persona potentior que dirigiam, por certo a segurança jurídica ficava também reduzida, se não a zero, pelo menos a níveis muito baixos. Pode-se dizer que ela só subsistia em áreas cobertas pelo prestígio das normas de direito privado, prestígio e respeito advindos de suas raízes romanas.
Nos modernos regimes autoritários, como na Alemanha nazista ou na Rússia de Stalin, para ficar apenas em dois exemplos emblemáticos, encontramos algo semelhante ao que ocorria no Estado Absolutista. Nesses países e em outros que copiaram ou que ainda copiam seus modelos (China, Cuba etc.) por certo que em um oceano de “não direito” podemos encontrar ilhas ou até mesmo continentes de “direito”, mas quase que exclusivamente nos domínios do direito privado, ou seja, nas relações entre os indivíduos. Nesse âmbito mais restrito será admissível falar em segurança jurídica, a qual, entretanto, é praticamente inexistente nas relações entre as pessoas e o Estado.
É do conhecimento geral que a grande contribuição do direito romano na civilização ocidental, ao lado da filosofia grega e do cristianismo, consistiu, no direito privado, cujos conceitos e instituições sobreviveram largamente ao fim do império romano, tanto do ocidente como do oriente. Tais conceitos e instituições impuseram-se, pois, à cultura de outros povos não mais ratione imperii, mas sim imperio rationis, deixando marcas extensas e profundas em todas as codificações modernas de direito privado.
Foi no âmbito do direito privado que sobretudo se consolidou a noção romana de fides, adquirindo especial relevo no processo civil romano, com as actiones bonae fidei. Nessa espécie de ações era o iudex autorizado a examinar o comportamento das partes, umas com relações às outras, no que concerne ao modo como procederam quanto ao respeito à palavra empenhada, à correção e à lisura da conduta, modelo inspirador da regra geral sobre boa-fé estampada nos §§ 242 e 157 do Código Civil alemão e hoje também acolhida, à semelhança de tantos outros códigos do século XX, no novo Código Civil brasileiro, arts. 113 e 422.
Atualmente a assim chamada boa-fé objetiva é princípio jurídico que não apenas tem extraordinária expressão no direito das obrigações, especialmente pelos “deveres anexos” (Nebenplichte) a que dá causa, antes, durante e depois de formado o vínculo contratual, contexto em que assume peculiar importância no desenho conceitual da culpa in contrahendo e desempenha papel de relevo no Direito do Consumidor, como também não será exagero afirmar que permeia todo o direito privado. Mas não só. É evidente, também, sua importância no direito público, designadamente nos contratos administrativos e na responsabilidade extracontratual do Estado.2
Na História do Direito, por outro lado, é muito antiga a preocupação com o conflito das leis (ou talvez fosse melhor dizer, o conflito do direito) no tempo. Nas próprias discussões religiosas sobre episódios bíblicos tais questões afloravam, como na justificação do adultério de Abraão com a escrava Agar pelo argumento jurídico, usado por Santo Ambrósio, de que, à época em que o fato ocorrera, não eram ainda conhecidas as regras do decálogo trazidas por Moisés do Monte Sinai, como também eram desconhecidos os evangelhos.3
Muito se escreveu, no curso dos séculos, sobre o problema do direito adquirido e sua intangibilidade pela lei subsequente, bem como sobre a imutabilidade de situações jurídicas consolidadas pela coisa julgada ou decorrentes de ato jurídico perfeito. Na tradição do direito constitucional brasileiro protege-se na Lei Fundamental o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito contra alterações legislativas, como está reiterado no art. 5º, inciso XXXVI, da atual Constituição Federal. Em outros sistemas jurídicos a solução desses conflitos não se dá pela incidência de regra constitucional expressa, como sucede no Brasil, mas resulta de preceito consignado na legislação ordinária, como ocorre na França, onde a matéria é regulada pelo art. 2º do Código Civil ao determinar que “a lei só dispõe para o futuro; ela não tem efeito retroativo”. Na Alemanha a Lei Fundamental é silente quanto aos limites à retroatividade da lei. Tratando-se, porém, de retroatividade própria ou autêntica, hipótese que se caracteriza quando a norma legal modifica situação constituída no passado, nos termos da lei antiga revogada pela nova lei, tal alteração, na generalidade dos casos, é vedada, pois colide com o princípio da segurança jurídica, qualificado pela jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional como subprincípio do princípio superior do Estado de Direito. Excepcionalmente, porém, razões de interesse público podem preponderar sobre o princípio da segurança jurídica, sendo admitida a atribuição de efeitos retroativos à lei. Quanto à retroatividade imprópria ou não autêntica, que de algum modo se confunde com o que Roubier chama de “eficácia imediata da lei”, é ela, via de regra, permitida.
A esse quadro de normas e instituições que defendem os interesses dos indivíduos contra os atos do Estado, agregou-se, mais recentemente, o reconhecimento da proteção da confiança como princípio constitucional, em processo de lenta elaboração, tanto no direito europeu quanto no direito brasileiro.
No que se refere ao direito europeu, as primeiras manifestações no sentido da possibilidade de manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos por ilegais encontram-se em obras de autores de expressão alemã, nas primeiras décadas do século XX, como Walter Jellinek e Fritz Fleiner. Esses doutrinadores afirmavam que a autoridade administrativa tinha a faculdade de anular o ato ilegal, caracterizando-se, portanto, o ato de anulação como de exercício de poder discricionário e não como de cumprimento de um dever jurídico. De qualquer modo, aqueles insignes juristas pronunciavam-se favoravelmente à renúncia, pela autoridade administrativa, ao poder de anular o ato “que havia deixado subsistir por muitos anos” (Fleiner), “pois agiria contra a boa-fé se quisesse valer-se da irregularidade longamente tolerada” (Jellinek).4
Pouco após à primeira grande guerra, em 1922, na França, o Conselho de Estado, no affaire Dame Cachet, assumiu posição pioneira, ao decidir que era de dois meses o prazo que tinha a administração pública para invalidar seus atos administrativos ilegais se os destinatários estivessem de boa-fé, sendo este o mesmo prazo fixado aos interessados para a interposição de recurso por excesso de poder. Tal entendimento, no que concerne ao prazo, foi modificado, sendo ampliado para quatro meses, no arrêt Ternon, de 26.10.2001. É essa a orientação que vigora atualmente, salvo quando se tratar de ato administrativo materialmente ou juridicamente inexistente,5 como fixado pelo Conselho de Estado no caso Rosan Girard, de 1957.
Foi a Alemanha, porém, que teve a primazia de reconhecer a segurança jurídica como princípio constitucional, sendo fator determinante desse reconhecimento o leading case decidido pelo Superior Tribunal Administrativo de Berlim, de 14 de novembro de 1956, em sentença depois confirmada, em 28 de outubro de 1959, pela Corte Administrativa Federal. Questionava-se a anulação de pensão concedida à viúva de servidor público, vantagem que lhe fora prometida caso se transferisse da Alemanha Oriental para Berlim Ocidental, o que ela fez. Após um ano da percepção da pensão esta lhe foi retirada, ao argumento de que o ato que a concedera era ilegal, por vício de competência, como na verdade ocorrera. O Tribunal, porém, manteve o benefício, invocando a proteção da confiança. A esta decisão sucedeu uma longa sequência de pronunciamentos judiciais, inclusive do Tribunal Federal Constitucional, a partir de 1961, chamada de a “marcha triunfal” (Siegeszug) do princípio da proteção da confiança. Mas tal princípio só se torna efetivamente um princípio central nos anos 70 do século XX, assim considerado tanto na doutrina, como na jurisprudência e na legislação, como observa Sylvia Calmes.6
No concernente à legislação, a Lei de Processo Administrativo de 1976 deu-lhe extenso tratamento, notadamente quanto à anulação e a revogação dos atos administrativos. Com referência à jurisprudência, basta dizer que o Tribunal Federal Constitucional vê no princípio uma “norma de estatura constitucional, do mesmo nível e do mesmo valor que o princípio da legalidade, geralmente vinculado ao art. 20 da Lei Fundamental”, como proclamou em decisões de 8 de julho de 1971 e de 2 de fevereiro de 1978. E, referentemente à doutrina, é impressionante o volume da contribuição dos juristas germânicos, nesse período, sobre o tema da proteção da confiança.7
Atualmente, na Alemanha, como afirmou reiteradas vezes o Tribunal Federal Constitucional, “para o cidadão segurança jurídica significa, em primeiro lugar, proteção da confiança” (für den Burger bedeutet Rechtssicherheit in erster Linie Vertrauesschutz).8
Sucesso semelhante teve o princípio da proteção à confiança no direito da Comunidade (hoje União) Europeia, cuja Corte de Justiça acolheu-o como “regra superior de Direito” e “princípio fundamental do direito comunitário”,9 abrangendo vasta gama de situações, pertinentes (i) à invalidação de atos administrativos ilegais, (ii) à mudança de regime jurídico sem prévia adoção de medidas transitórias, (iii) à responsabilidade extracontratual do Estado, no campo do direito administrativo econômico, pela ruptura de promessas firmes e compromissos assumidos, como, por exemplo, na concessão de subvenções públicas, bem como (iv) à função pública comunitária, especialmente nos casos de anulação de atos administrativos geradores de benefícios para seus destinatários de boa-fé.10
No Brasil, só muito recentemente, no final do século XX e na primeira década deste século, é que ocorreu o reconhecimento do princípio da proteção à confiança como princípio constitucional, na legislação federal e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. São de 1999 as três leis da União relacionadas com a segurança jurídica, especialmente sob o aspecto da proteção da confiança: a Lei 9.784, de 29 de janeiro/99, que dispôs sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal (arts. 2º e 54), a Lei 9.868, de 10 de novembro, que estabeleceu normas sobre a ação declaratória de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade (art. 27) e a Lei 9.882, de 03 de dezembro, que instituiu a arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 11).
Na Lei do Processo Administrativo, a segurança jurídica é arrolada entre os princípios a que se submete a Administração Pública, numa versão ampliada do elenco consignado no art. 37 da Constituição Federal. Logo adiante, no inciso IV do parágrafo único, ordena-se a observância, nos processos administrativos, do critério da “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”, em conexão com o princípio da moralidade administrativa. No inciso XIII, também desse parágrafo único, veda-se a aplicação a fatos pretéritos de nova interpretação da norma jurídica. No art. 54, criou-se o prazo preclusivo ou decadencial do direito da Administração Pública invalidar seus atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, fixado em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. No caso de efeitos patrimoniais contínuos, esclarece o § 1º que o “prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento”.
Nos arts. 27 e 11, respectivamente das Leis 9.868/1999 e 9.882/1999, foi concedida a faculdade ao Supremo Tribunal Federal, pela maioria de 2/3 de seus componentes, “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social [...] restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir do seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
A acreditar-se na validade dessas disposições legislativas frente à Lei Fundamental,11 torna-se evidente que a segurança jurídica, vista aqui pelo ângulo da proteção da confiança, é um princípio constitucional suscetível de ser cotejado, num balancing test – por certo não com o dogma da supremacia da constituição, porque este, como dogma, não comporta flexibilizações – mas com o princípio, com ele umbilicalmente vinculado, da eficácia ex tunc da decisão declaratória de inconstitucionalidade.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, embora, no passado, haja decisões do STF mantendo atos administrativos ilegais, cujos beneficiários estavam de boa-fé, a fundamentação jurídica dessas decisões era geralmente pouco convincente. Os casos mais numerosos e notórios a que se referiam essas decisões diziam respeito a alunos de instituições de ensino superior cujos registros dos diplomas nos órgãos oficiais competentes foram anulados, quando já se encontravam há muito no pleno exercício da atividade profissional para a qual tinham sido habilitados. A anulação era motivada pela verificação de irregularidades curriculares, como a de não terem cursado determinadas disciplinas, ou por não terem obtido, em provas realizadas, o grau mínimo de aprovação. A ratio decidendi invocada nos acórdãos era a de que os registros ilegais haviam dado causa a uma situação de fato que, aliada à boa-fé dos interessados e ao tempo transcorrido, gerara direitos que impediam o tardio desfazimento dos atos administrativos de registro.12 Argumentação semelhante – mas enriquecida com a experiência do direito francês, desde o affaire Dame Cachet, e as preciosas contribuições de Miguel Reale, no seu clássico Revogação e Anulamento do Ato Administrativo (1968) – utilizou o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 85.179/RJ, de que foi relator o Ministro Bilac Pinto, ao concluir pela impossibilidade de tardio desfazimento do ato administrativo “já criada situação de fato e de direito que o tempo consolidou”.13
Somente nos anos de 2003 e 2004 é que, em três decisões pioneiras, proferidas em casos relatados pelo Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o princípio da segurança jurídica, na espécie de proteção à confiança, como princípio constitucional (MC 2.900/RS, 2ª Turma; MS 24.268/MG e MS 22.35714). Depois disso houve número considerável de decisões do STF no mesmo sentido, muitas da quais apreciando a questão das chamadas ascensões funcionais, ou provimentos derivados de empregos públicos, na ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos –, medidas que em outras situações, por hostilizarem a regra do concurso público, o STF considerara inconstitucionais, em orientação consolidada no julgamento da ADI 837/DF, de que foi relator o Min. Moreira Alves.15
O reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da proteção à confiança como princípio constitucional rompeu com os paradigmas estabelecidos nas Súmulas 473 e 346 da Corte Suprema, que proclamavam a possibilidade que tinha a Administração Pública de, a qualquer tempo, anular seus atos administrativos eivados de ilegalidade.
A ausência de prazo para esse efeito fazia com que os atos de controle dos Tribunais de Contas pudessem, também, ser realizados a qualquer tempo. Não raramente tais atos só são praticados volvidos 10, 15, 20 ou mais anos da data em que os atos objeto do controle foram exarados. Há situações, que não são poucas – são muitas! – em que esses atos ficam retidos no âmbito do órgão ou da entidade no qual foram exarados, sem qualquer manifestação do Tribunal de Contas, apesar das inspeções periódicas que realiza. Não é incomum que servidores beneficiados permaneçam no gozo de todas as vantagens até sua morte, sem que nunca os atos administrativos a eles pertinentes tenham sido examinados pelo Tribunal de Contas. Saliente-se, nesse contexto, que o exercício da função de controle fica desde logo facilitada pela publicação daqueles atos administrativos no Diário Oficial, sem o que eles não produzem qualquer efeito. Tudo isso torna estranha – para dizer o menos – a caracterização desses atos como “atos administrativos complexos”, segundo se extrai do enunciado da Súmula 6 do STF, isto é, de atos administrativos que só passam a existir quando o último elemento necessário a sua composição integra-se aos demais fatos previstos na norma,16 concepção a que a Corte Suprema tem se mantido fiel.17
Na hipótese que estamos considerando, os atos que integram os pressupostos de fato do ato complexo são o “ato controlado” e o “ato de controle” do Tribunal de Contas. Assim, na linha dessa compreensão, e tomando como exemplo o ato de aposentadoria de servidor público, fica difícil de entender como é possível que o servidor aposentado passe desde logo a perceber os proventos de sua aposentação, como é prática corrente, mesmo antes da aprovação do ato de sua aposentadoria pelo Tribunal de Contas, mediante o respectivo ato de controle. Uma vez que a aposentadoria, como ato complexo, na visão do Supremo Tribunal Federal, só se tornaria perfeita com o ato de controle que a considerasse legal, a consequência lógica seria a de que, sem esse ato de controle, inexistiria aposentadoria. Logo, proventos não poderiam ser legalmente pagos.
Para contornar essa dificuldade lê-se, em alguns acórdãos, que o ato administrativo de aposentadoria, como ato complexo, estaria sujeito a condição resolutiva.18 Há, porém, nesse raciocínio, no meu modo de ver, contradição nos seus próprios termos. Condição, no sentido técnico-jurídico que essa palavra tem, desde o direito romano, é o acontecimento futuro e incerto de cuja ocorrência depende a eficácia do ato jurídico. Se a eficácia só nasce com a verificação do acontecimento, diz-se que a condição é suspensiva; se a eficácia cessa ou se extingue quando o acontecimento previsto passa a existir, diz-se que a condição é resolutiva. Tais conceitos estão nos manuais de direito e encontram-se, transformados em normas, nos códigos civis.19 Sendo assim, na situação que configuramos, se o ato jurídico de aposentadoria, mesmo sem o registro, produz desde logo todos seus efeitos, esta é a demonstração eloquente que não se trata de ato administrativo complexo, pois o ato administrativo que ainda não se aperfeiçoou, que está ainda em formação e que, portanto, não existe ainda como ato administrativo não poderia jamais gerar qualquer efeito jurídico, pois do nada não se tira nada.
O que há, isto sim, são dois atos administrativos perfeitamente distintos, (1) o ato administrativo de aposentadoria exarado pela autoridade administrativa20 e (2) o ato administrativo de controle, pelo Tribunal de Contas, da legalidade do ato de aposentadoria. Se o Tribunal de Contas, nesse ato administrativo de controle, pronunciar-se pela ilegalidade do ato de aposentadoria, via de regra tal manifestação implicará a extinção de efeitos do ato de aposentadoria, inclusive da própria aposentadoria, que deverá ser anulada. Mas não necessariamente. O princípio constitucional da proteção da confiança ou regra da legislação ordinária nela espelhada poderá determinar a subsistência do ato ilegal e de seus efeitos.
Nesse contexto é que tem de ser analisada a aplicação do art. 54 da Lei de Processo Administrativo da União nos atos de exercício das competências constitucionais de controle dos atos administrativos atribuídas aos Tribunais de Contas, notadamente no tocante à legalidade dos atos de admissão de pessoal e de concessão de aposentadorias, reformas e pensões, “ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório” (CF, art. 71, III). Quanto a isto, a primeira indagação a ser feita é se o art. 54 seria efetivamente aplicável ao Tribunal de Contas da União e, se afirmativa a resposta, caberia ainda perguntar qual seria o termo inicial do prazo ali fixado? A resposta que o STF deu a essas questões foi, primeiro, pela sujeição do Tribunal de Contas da União à Lei 9.784/1999, como não poderia ser diferente, em face dos termos do art. 1º, § 1º daquele ato normativo,21 e, segundo, que só após a manifestação do Tribunal de Contas, pronunciando-se pela legalidade do ato e efetuando o seu registro, é que se tornaria perfeito o ato administrativo complexo, contando-se, portanto, a partir daí, o prazo decadencial. Antes dessa manifestação do Tribunal de Contas não seriam exigíveis as garantias do contraditório e da ampla defesa, como está consignado no enunciado da Súmula Vinculante 3.22 Referentemente ao contraditório e à ampla defesa nada haveria a objetar.
Atualmente, entretanto, militam fortes razões no sentido de rejeitar, como já se deixou perceber, a compreensão da aposentadoria (e, a fortiori, também dos demais atos administrativos mencionados no art. 71, inciso III, da CF) como ato complexo, apesar das poderosas, respeitáveis e autorizadas vozes que se ergueram, na história do Supremo Tribunal Federal, em favor dessa tese e dessa orientação jurisprudencial. É importante que se ressalte, porém, que tal entendimento tradicional e ainda hoje dominante na Corte Suprema, como anteriormente já destacamos, consolidou-se quando se tinha como verdade indiscutível que a Administração Pública podia rever a qualquer tempo, no exercício da autotutela, seus atos administrativos eivados de ilegalidade, como asseveram as Súmulas 473 e 346 do Supremo Tribunal Federal. Podendo a anulação do ato ser realizada a qualquer tempo, também a qualquer tempo poderia o Tribunal de Contas proceder ao controle de legalidade do ato administrativo. Com a vigência do art. 54 da Lei 9.784/1999, que exprime, no plano da legislação ordinária o princípio constitucional da proteção da confiança é que as dúvidas jurídicas a propósito do prazo decadencial instituído por aquela disposição cresceram de ponto e de importância. No esforço para dissipar essas dúvidas parece-me que a investigação deverá iniciar com a consideração que o foco do problema está na confiança a ser protegida: que atos geraram, alimentaram e fortaleceram essa confiança e qual o tempo necessário para que tal confiança seja digna de proteção. Se os atos administrativos a que alude o art. 71, III, da CF só passassem a ter efeitos com seu registro no Tribunal de Contas, por certo que só a partir do registro ou da produção desses efeitos é que poderia nascer, no espírito dos destinatários daqueles atos, a confiança na sua regularidade e na sua conformidade com a lei e com o ordenamento jurídico. Nessa hipótese, (que não é o que sucede na prática), seria incensurável que se contasse o prazo decadencial do ato de controle realizado pelo Tribunal de Contas. Já vimos, no entanto que a noção de ato administrativo complexo, adotada pelo Supremo Tribunal incorre em contradições e ilogismos, pois admite que o ato administrativo exarado pela autoridade administrativa, nos casos referidos no art. 71, I, da Constituição da República, produza de imediato efeitos jurídicos, sem necessidade de aguardar, para tanto, o ato de controle do Tribunal de Contas. Note-se que, de regra, têm aqueles atos reflexos patrimoniais na esfera dos destinatários, pois ordinariamente envolvem vencimentos, proventos, pensões – benefícios, como se vê, de caráter alimentar –, percebidos periodicamente ao longo dos anos, a robustecer, gradativamente, a confiança dos destinatários na sua legalidade e, igualmente, a expectativa legítima de que, depois de certo lapso de tempo, essas vantagens não lhes seriam retiradas.
De resto, o art. 54 da Lei de Processo Administrativo da União, esclarece, limpidamente, qual é o termo inicial do prazo de decadência do direito da Administração Pública de anular os atos administrativos ilegais por ela praticados e de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, ao estatuir que tal prazo é contado “da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. Tal regra creio que nada tem de incompatível com a competência constitucional de controle prevista na Constituição Federal. O Tribunal de Contas da União dispõe de meios e instrumentos para viabilizar o controle de legalidade antes que se consume a decadência do direito à anulação. Cabe-lhe comportar-se de forma mais ativa, atenta e diligente, de modo a propiciar pronto acesso aos atos administrativos sujeitos a seu exame e dos quais tem conhecimento pela publicação, levando sempre em conta que, a partir da vigência da Lei 9.784/1999, a Administração Pública tem o prazo de cinco anos para exercer o direito à anulação de seus atos administrativos ilegais.
A esta altura é importante destacar o que preceitua o § 2º do art. 54: “Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato”. Autoridade, a seu turno, vem definida no art. 1º, § 2º, III, da Lei 9.784/1999 como sendo “o servidor ou agente público dotado de poder de decisão”. No caso do Tribunal de Contas da União a autoridade será, portanto, o órgão do Tribunal que tenha a competência para apreciar e decidir, para fins de registro, quanto à legalidade dos atos administrativos a que alude o art. 71, III, da Constituição Federal.
As considerações aqui sinteticamente alinhadas são suficientes para que se trate de conciliar, de forma mais adequada, o princípio constitucional da proteção da confiança com a competência para manifestar-se sobre a legalidade de atos administrativos conferida pela Constituição ao Tribunal de Contas. O que não pode acontecer é que se leve 10 ou 15 anos, ou mais, para examinar, na Corte de Contas, a legalidade de um ato de aposentadoria ou de uma pensão, cujas vantagens pecuniárias foram percebidas, em boa-fé, durante todo esse largo período por seus destinatários, para se concluir, depois, que tais atos eram ilegais, devendo ser suprimidos com todas as suas consequências. Tendo presente que inexistiria prazo para o Tribunal de Contas exercer o controle de legalidade que lhe compete, no lugar de 10 ou 15 anos que figuramos, poderíamos colocar 20, 30 ou 50, pois a solução jurídica dada pelo Supremo Tribunal não se alteraria. Há muitos casos, como aqui já se observou, em que tais atos nunca foram examinados pelo Tribunal de Contas, vindo os beneficiados a falecerem sem que os atos de controle da Corte de Contas tenham sido realizados. Mesmo assim não estaria ainda assegurada a intangibilidade daqueles atos administrativos, o que leva à triste conclusão de que o nosso sistema jurídico seria, neste particular, falho e deficiente, porquanto não garantiria aos indivíduos, nas palavras de Montesquieu, “cette tranquilité d´esprit qui provient de l´opinion que chacun a de sa sureté”.23
Ultimamente tem sido sustentado, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça e em decisões do Supremo Tribunal Federal, que o art. 54 da Lei 9.784/1999 não tem aplicação quando os atos administrativos questionados afrontarem diretamente à Constituição. Ou seja, em tais hipóteses não haveria decadência do direito à invalidação.
No CNJ, o parágrafo único do art. 91 do Regimento Interno do CNJ, na sua parte final, acrescentada com a nova redação que lhe foi atribuída, permite o controle, por aquele órgão, de atos administrativos exarados há mais de cinco anos, quando impliquem ofensa direta à Constituição. Em caso em que se discutia a regularidade de delegação de serventia extrajudicial sem concurso público, realizada em 11 de janeiro de 1994, por Presidente de Tribunal de Justiça, já na vigência da atual Constituição, porquanto a vaga ocorrera sob a égide da Constituição anterior, entendeu o CNJ que, contendo a Carta de 1988 disposição expressa, no seu art. 236, § 3º, determinando que o ingresso na atividade notarial e de registro deveria ser precedido por concurso público, impunha-se a aplicação do parágrafo único do art. 91 do RI/CNJ. Foi, assim, afastada a decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/1999. Impetrado, perante o Supremo Tribunal, mandado de segurança contra essa decisão do CNJ (MS 28.279/DF, de que foi relatora a Ministra Ellen Gracie), a Corte Suprema, por maioria (contra os votos dos Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso), ratificou a posição do CNJ, denegando a segurança.
No tocante à ilegalidade ou a inconstitucionalidade do ato administrativo, cabe realçar, invocando exemplos do direito comparado, que nos países que adotam prazo decadencial para a anulação, pela Administração Pública, de seus atos administrativos que geram benefícios para os destinatários de boa-fé, não se distingue entre atos inválidos por ilegalidade ou inválidos por inconstitucionalidade. Os atos administrativos que escapam da estabilização pelo decurso do tempo, associado à boa-fé e à inação do Poder Público, são exclusivamente aqueles que se situam nos campos mais fundos da patologia jurídica e que ostentam vícios gravíssimos, manifestos, grosseiros, flagrantes e evidentes, que lhes retiram totalmente a aparência de conformidade com a ordem jurídica. São aqueles atos administrativos que o direito francês, ressuscitando antigo conceito do direito civil, denomina de atos administrativos juridicamente inexistentes, ou que o direito alemão qualifica como nichtig (nulos) – invalidade que não tem nenhuma semelhança com a nulidade na teoria tradicional do direito administrativo brasileiro.
Exemplos desses atos são os praticados pela Administração Pública no exercício de atribuições de um outro Poder do Estado (ato da justiça eleitoral praticado por prefeito municipal; anulação de sentença judicial por ato administrativo de Secretário de Estado), ou que foram exarados por órgão que não se constituiu legalmente (sanção aplicada por conselho administrativo de entidade pública não previsto em nenhum texto legal), ou cujo objeto seja impossível (aposentadoria como servidor público de pessoa que nunca exerceu função pública) ou constitua ilícito penal (ordem de autoridade policial a subalterno para torturar preso; licença de funcionamento de casa de prostituição infantil) ou ainda que estão maculados por falhas formais gravíssimas (demissão de servidor público feita oralmente; nomeação de servidor público em carta a este endereçada).
Esses mesmos conceitos e soluções deitaram raízes na Comunidade (hoje União) Europeia, como se verifica de algumas decisões de seu Tribunal de Justiça, especialmente da proferida em 27.02.1992, em caso em que eram interessados BASF AG e Outros:
“O juiz comunitário, inspirando-se em princípios estabelecidos pelos ordenamentos jurídicos nacionais declara inexistentes os atos afetados por vícios particularmente graves e evidentes (sobre a noção de inexistência jurídica dos atos comunitários vejam-se as sentenças de 10 de dezembro de 1957, Societé des Usines à Tubes de La Salle/Haute Autorité, 1/57 e 14/57, R.P. 201; 21 de fevereiro de 1974, Koster e.a./Conseil 5/73, Rec. P.177; 26 de fevereiro de 1987, Consorzio Cooperative d’Abruzzo/ Comission 15/85, Rec. P. 1005; 30 de junho de 1988, Comission Republique Hélénique 226/87; e 27 de junho de 1991; Valverde Mordt/Cour de Justice 156/1989, não publicada no Recueil). É matéria de ordem pública e como tal pode ser incondicionalmente invocada pelas partes e deve ser pronunciada de ofício pelo juiz”.24
É também muito elucidativo trecho da Informação do Advogado-Geral, Jean Mischo:
“Deduz-se de um estudo comparativo que a maioria dos Direitos dos Estados-membros conhecem hipóteses nas quais o ato irregular, pelo fato da gravidade do vício de que padece, considera-se que não surte nenhum efeito jurídico, nem mesmo provisional, de maneira que nem seu destinatário nem seu autor devem respeitá-lo, inclusive sem que seja necessária uma intervenção prévia do juiz. Para determinados Direitos semelhantes atos são inexistentes, para outros são nulos de pleno direito. Todos esses Direitos reservaram a hipótese pura e simples de um ato semelhante aos casos excepcionais de uma irregularidade tão grosseira e evidente de que os vícios de que padecem saltam imediatamente à vista. Semelhante irregularidade flagrante parece que se dá em casos extremos, como a usurpação de função, a ausência de qualquer assinatura, o caráter irreal, incerto ou ilício do objeto do ato, que supera em muito a irregularidade formal procedente de uma avaliação dos fatos ou de uma ignorância da lei”.25
A questão da inconstitucionalidade, por si só, nesse quadro, não é relevante.
Neste particular, tomando-se exemplo do direito alemão, quando se trata de elucidar, no tocante à definição do ato administrativo nulo, consignada na alínea 1ª do § 44 da Lei do Processo Administrativo de 1976, o que se deverá entender por “vício grave” – expressão análoga a “irregularidade flagrante”, explicitada no texto acima transcrito, tem-se afirmado que será o vício formal ou substancial absolutamente inconciliável com a ordem jurídica. Mas, já se disse, a gravidade, per se, não é suficiente para conduzir à nulidade. Deverá estar associada à evidência. Assim, o ato contrário à Constituição ou violador de direito fundamental não é, só por estas razões, nulo. Neste sentido é que se manifestam os reputados comentaristas da Lei de Processo Administrativo Stellens, Bonk e Sachs26 ao sustentarem, com apoio na jurisprudência, que, por si só, a hostilidade a um importante preceito jurídico, até mesmo a uma norma constitucional de magna importância, como ao art. 20, § 3º, da Lei Fundamental,27 ou a um direito fundamental, não leva à nulidade. A contrariedade deve ir além da equivocada interpretação e ser insuportável para o ordenamento jurídico, ferido no mais alto grau, a tal ponto que ninguém seria capaz de reconhecer força vinculativa ao ato administrativo assim exarado.
Idêntica solução há de ser adotada no direito brasileiro, até porque são numerosos os casos de aplicação, pelo Supremo Tribunal Federal, do princípio da segurança jurídica ou do art. 54 da Lei 9.784/1999 à admissão de servidores sem concurso público, como foi o caso da INFRAERO (MS 22.357/DF) e das ascensões funcionais da ECT.
Coerente com essa linha de compreensão pode-se afirmar que, no MS 28.279/DF, a decisão do Supremo Tribunal Federal incorreu em sério equívoco, ao afirmar que (i) “situações flagrantemente inconstitucionais como o provimento de serventia extrajudicial sem a devida submissão a concurso público não podem e não devem ser superadas pela simples incidência do que dispõe o art. 54 da Lei 9.784/1999, sob pena de subversão das determinações insertas na Constituição Federal”; ou que, (ii) “Como juízes da mais alta Corte de Justiça deste País, não podemos e não devemos transformar a Constituição em refém de leis e de interpretações contrárias ao espírito da própria Lei Maior”; ou ainda que (iii) “A tese defendida pelo impetrante faz letra morta do art. 236, § 3º, da Constituição Federal, que estabelece a exigência de prévia aprovação em concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro, razão por que não deve ser acolhida pela Corte. O que se busca no presente writ é, em verdade, o reconhecimento de uma espécie de usucapião da função pública de notário ou registrador, pretensão inadmissível”.
O ponto de partida para a análise crítica dessas três afirmações está na peculiaridade absolutamente induvidosa de que o art. 54 da Lei 9.784/1999 é regra jurídica que tem atrás de si, a dar-lhe sustentação constitucional, o princípio da segurança jurídica, sob o aspecto da proteção da confiança.
Quando inexistia o art. 54, o Supremo Tribunal Federal invocava diretamente o princípio constitucional da proteção da confiança, como decorrência do princípio maior do Estado Democrático de Direito. Assim procedeu, por exemplo, no caso dos servidores da INFRAERO, admitidos sem concurso público, e na estabilização das situações criadas pelas ascensões funcionais realizadas na ECT, após a Constituição de 1988.
Todavia, na ausência do art. 54, diante do caso concreto era indispensável fazer um balancing test com outros princípios constitucionais, como, por exemplo, o da legalidade, para verificar qual teria mais adequação ou “maior peso” para ser aplicado à situação em exame.
Com o advento do art. 54, esse trabalho de ponderação já foi realizado pelo legislador, que elegeu o princípio da proteção da confiança para prevalecer sobre qualquer outro, desde que cumpridos e observados os pressupostos da decadência claramente enunciados no preceito.
Assim, visto por esse ângulo, no caso decidido pelo Supremo não se tratava, em rigor, de conflito, de um lado, entre uma regra da legislação ordinária sem qualquer base constitucional, e, de outro, normas e princípios constitucionais. Cuidava-se na verdade de uma afirmação da prevalência do princípio constitucional da proteção da confiança, traduzido em regra da legislação ordinária editada após a ponderação feita pelo Poder Legislativo com outros princípios constitucionais.
É de intuitiva evidência que regra jurídica com esses qualificativos não pode ser afastada por simples regra regimental, como é o caso do parágrafo único do art. 91 do Regimento Interno do CNJ, na sua parte final.
Por igual razão, não se sustenta a assertiva de que “a Constituição não pode ficar refém de leis e de interpretações contrárias ao espírito da própria Lei Maior”.
Como seria isso possível, se a regra da legislação ordinária espelha com perfeição o princípio da proteção à confiança, uma das faces do princípio da segurança jurídica, por sua vez princípio integrador do princípio maior do Estado Democrático de Direito, como reconhecido reiteradas vezes pelo STF?
O art. 54 da Lei 9.784/1999 só pode estar, por consequência, inteiramente afinado com o espírito da Lei Maior, na correta interpretação que lhe vem sendo dada pelos que reconhecem a intangibilidade de atos administrativos inconstitucionais pela decadência do direito da Administração Pública de invalidá-los.
No tocante ao argumento de que, no caso, se fez letra morta do art. 236, § 3º, da Constituição Federal e o que se pretende com o mandado de segurança é, “em verdade, o reconhecimento de uma espécie de usucapião da função pública de notário ou registrador, pretensão inadmissível”, também ele é inconsistente. Note-se que o ato administrativo que teria agravado o art. 236, § 3º, da Constituição Federal foi o Decreto Judiciário 3, de 11 de janeiro de 1994, subscrito pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, há mais de quinze anos, como salientou o Min. Marco Aurélio em seu voto. Diante do tempo transcorrido sem qualquer impugnação e da boa-fé do destinatário não havia como concluir que aquele ato administrativo não se estabilizara, quer pela incidência direta do princípio constitucional da proteção da confiança, quer pela aplicação do art. 54 da Lei 9.784/1999. No passado, é certo, chegou a entender-se que o tempo transcorrido acabava por constituir situação de fato geradora de direitos, concepção criticada pelo Min. Moreira Alves, que a chamava de “teoria do fato consumado” (AgRg 120.893). A fundamentação era, sem dúvida, deficiente. Mas, à época, não tinha havido, ainda o reconhecimento da segurança jurídica (proteção da confiança), como princípio constitucional, e nesses casos, era sempre lembrado o acórdão da Suprema Corte de que foi relator o Min. Bilac Pinto (RE 85.179, RTJ 83/931 – DJ 01.12.77). Na verdade, a fundamentação adequada para esses casos era o princípio da proteção da confiança.
Aliás, é relevante ressaltar, neste ponto, que o prazo decadencial do art. 54 da Lei 9.784/1999 é dos mais longos que se conhece. Na França, como se viu, tal prazo, era de apenas dois meses (CE, affaire Dame Cachet, 1922) e agora é de quatro meses (CE, arrêt Ternon, de 2001); na Alemanha, de um ano (§ 48, alínea 4 da Lei de Processo Administrativo de 1976); em Portugal também de um ano (art. 141, alínea 2, do Código de Procedimento Administrativo28).
Sendo assim, não tem nenhum sentido que, em nosso país, volvidos cinco, dez ou quinze ou mais anos a Administração Pública, aí compreendido o Tribunal de Contas, entenda, de anular ato administrativo em cuja manutenção os destinatários confiaram, porque revestido da presunção de legalidade que têm os atos do Poder Público. Isso representa lamentável retrocesso no caminho já percorrido na direção do aprimoramento do Estado Democrático de Direito que é o Brasil, tanto mais que, o Direito Administrativo nacional, em parte substancial, foi, por assim dizer, “constitucionalizado”, como ocorre, por exemplo, com as normas pertinentes à função pública.
Desse modo, os eventuais conflitos entre essas normas, situadas no plano dos princípios, resolvem-se, nas situações concretas, pela ponderação deles, uma vez que – do mesmo modo como sucede no direito germânico, como chegou a cogitar Otto Bachof – não se admite entre nós normas constitucionais inconstitucionais ou uma hierarquia entre as normas da Lei Fundamental. É nesse quadro de valores que, no MS 28.279/DF, a Suprema Corte deveria ter analisado o art. 236, § 3°, da Constituição Federal, quando em confronto com o princípio, do mesmo nível, da proteção à confiança, bem como com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, todos com sede no art. 1° da Lei Maior, como integrantes do princípio do Estado de Direito.
Autoridade do Estado e liberdade dos indivíduos é o núcleo da tragédia de Antígona. Pois é em torno desse antiquíssimo binômio, autoridade e liberdade – que existirá enquanto existir o Estado – que gira o direito público. Segurança jurídica evidentemente não elimina a autoridade do Estado, mas a limita e torna por certo mais justas as relações que ele estabelece com os indivíduos, os quais passam a viver mais tranquilos no seu espaço de liberdade.
Notas
1 Sobre a multiplicidade de sentidos de “segurança jurídica” veja-se, por último e por todos: ÁVILA, Humberto Ávila. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário, passim, mas especialmente p. 100 e seguintes.
2 Confira-se, sobre esses temas: COUTO E SILVA, Almiro do. Princípios da legalidade da administração publica e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista de direito público, nº 84; Responsabilidade précontratual e culpa in contrahendo no direito administrativo brasileiro. Revista de direito administrativo, v. 217; Responsabilidade do Estado e problemas jurídicos do planejamento. Revista de direito público, nº 63; Problemas jurídicos do planejamento. Revista de direito administrativo, v. 170; O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos. O prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei n° 9.784/99). Revista brasileira de direito público, vol. 6, e Studia juridica: boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Ars Iudicandi: estudos em homenagem ao Prof. Dr. Antônio Castanheira Neves, nº 92, vol. III, pp. 537-593.
3 Veja-se, no esplêndido ensaio de Gerardo Broggini sobre La retroativitá della lege nella prospectiva romanistica, em Coniectania, p. 343 e ss., a justificação de Santo Ambrosio: “Abraham ante legem Moysi e ante evangelium fuit. Nondum interditum adulterium videbatur. Poena criminis ex tempore legis est quod crimen inhibuit nec ante legem nulla rei damnatio est sed ex lege”.
4 Vejam-se, sobre isto: COUTO E SILVA, Almiro do. Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de direito público, nº 84; e O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União. Revista brasileira de direito público, nº 6, e Revista de direito administrativo, vol. 237.
5 Cf. CALMES–BRUNET, Sylvia. Quelles consecration du principe de securite juridique en droit administratif français? Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no direito administrativo, p. 101.
6 CALMES, Sylvia. Du príncipe de la protection de la confiance légitime em droit allemand, communautaire et français, p. 11 e nota 49, e pp. 14-16
7 Ibidem.
8 Cf. LUENGO, Javier Garcia. El principio de protección de la confianza em el derecho adiministrativo, p. 194, com extensa lista de decisões do BVerfGE, na nota 189.
9 CALMES, Sylvia. Op. cit., p. 24 e ss.
10 Ibidem. Também: COUTO E SILVA, Almiro do. Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de direito público, nº 84, item 7, nota 17.
11 Essa crença está hoje reforçada pelo fato de os aludidos preceitos terem sido editados há quase duas décadas sem que, nesse já tão longo período de tempo, sua inconstitucionalidade tenha sido declarada.
12 São exemplos: RTJ 33/280; 37/249; 41/252; 45/593; 95/475; 104/1284; 119/829.
13 DJ 01.12. 77, RTJ 83/931.
14 Sobre essas decisões e seu significado veja-se Almiro do Couto e Silva: O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União. Revista brasileira de direito público, nº 6, e Revista de direito administrativo, vol. 237. Confiram-se também, na obra coletiva A jurisprudência do STF nos 20 anos da Constituição, organizada por Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco e André Rufino do Vale, São Paulo, Saraiva, 2010, p.22 e ss., os Comentários ao acórdão proferido no MS 24.268/MG.
15 MS 26.353 – DF e 26.363 – DF, de que foi relator o Min. Marco Aurélio e os MS 26.405-DF; 26.560-DF; 26.565-DF; 26.628-DF; 26.660-DF; 26.679-DF; 26.680-DF; 26.727-DF; 26.746-DF; 26.747-DF; 26.748-DF; 26.751-DF; 26.781-DF; 26.782-DF; 26.804-DF; 26.815-DF; 26.886-DF; 26.892-DF; 26.893-DF; 26.913-DF; 26.924-DF; 26.928-DF; 26.940-DF, da relatoria do Min. Cezar Peluso.
16 Confira-se: ROSAS, Roberto. Direito sumular, p. 26 e ss.
17 MS 25.697/DF, relatora a Min. Cármen Lúcia, com copiosa jurisprudência da Corte Suprema referida no voto da relatora. Quanto a esse entendimento veja-se a consistente e muito bem fundamentada crítica de Rafael Maffini em Princípio da proteção substancial da confiança, p. 158 e ss.
18 Por exemplo, MS 25.072/DF, relator o Min. Marco Aurélio e redator para o acórdão o Min. Eros Grau, como está dito na ementa: “O ato de aposentadoria consubstancia ato administrativo complexo, aperfeiçoando-se somente com o registro perante o Tribunal de Contas. Submetido a condição resolutiva, não se operam os efeitos da decadência antes da vontade final da Administração.”
19 Código Civil brasileiro, especialmente arts.121 e 125 a 127. As condições em sentido próprio são as que derivam exclusivamente da vontade das partes (art. 121). As que decorrem da lei ou são da natureza do instituto a que se ligam, como, p. ex., a morte do testador para que o negócio jurídico do testamento tenha eficácia, são condiciones iuris.
20 Tanto isto é certo que o servidor que entender que o ato de aposentadoria não está correto, ferindo direito subjetivo de que seja titular, poderá atacar o ato de aposentadoria pela via judicial, impetrando mandado de segurança, sem necessidade de aguardar o pronunciamento do Tribunal de Contas.
21 Art. 1º, § 1º “Os preceitos desta Lei também se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa”.
22 Súmula Vinculante 3: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.” Além dos debates que precederam a aprovação da Súmula Vinculante 3, vejam-se também especialmente os acórdãos do Supremo Tribunal Federal no MS 26.117/DF, relator Min. Eros Grau e MS 25.697/DF, relatora a Min. Cármen Lúcia.
23 MONTESQUIEU, Charle Louis de Secondat et Barón de La Brède et de. L’esprit des lois, 1.XI, c. 6.
24 Alejandro Nieto, no Prefácio que escreveu ao livro de Margarita Beladiez Rojo, Validez y eficacia de los actos administrativos, p.14.
25 NIETO, Alejandro. Prefácio. Validez y eficacia de los actos administrativos, p.14.
26 Verwaltungsverfahrengesetz – Kommentar, München, C.H.Beck, 1993, p.980 : “Der Verstoss gegen eine wichtige Rechtsbesstimmung allein, selbst eine Verfassungsbestimmung wie art. 20 Abs. 3 GG (BVerwG NJW1985, 2658,2659) oder Grundrechte [...] führt nicht zu Nichtigkeit (BVerwG MDR 1978,79,80). Der Verstoss muss über die unrichtige Anwendug hinausgehen und schlechthin unerträgliche für die Rechtsorsdung sein. Nach einer die Anforderungen Generalklausel insgesamt erfassennde Formel müssen die an eine ordnungsgemässe Verwaltung zu stellende Anforderungen in einen so hohen Masse verletz sein, dass von niemand erwartet werden kann, den VA als verbindlich anzuerkennen [...]”.
27 Art. 20, § 3°, da Lei Fundamental: “O Legislativo está vinculado à ordem constitucional e o Poder Executivo e o Judiciário estão vinculados à lei e ao direito.”
28 V. sobre isto os comentários e observações de MONTALVO, Antonio M. Rebordão Montalvo. Código de procedimento administrativo, p. 227.