• Gioele Solari e o idealismo social e jurídico

  • Cláudio De Cicco

  • Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Maio de 2017

O contato com a obra de um Solari proporciona, ainda na severa crítica que move ao individualismo, a oportunidade de rever antigas e consolidadas posições sobre a dogmática jurídica. Seu otimismo sobre uma missão reformadora do Direito, no contexto das pressões sociais, rejuvenesce a esperança dos que acreditam em uma evolução da sociedade para situações de maior justiça e igualdade para todos, sobretudo no que diz respeito às necessidades básicas da população. E, no entanto, Solari sabe ver todo o lado positivo de um Kant, de um Comte, de um Hegel, sem abandonar seus postulados que estão densamente situados em Marx.

1. Os primeiros estudos


1.1. O estudante em Turim


Gioele Solari nasce aos 25 de abril de 1872, em Albino, província de Bergamo, norte da Itália. Começa seus estudos jurídicos em Turim, e se forma no Laboratório de Economia Política de Salvatore Cognetti de Martiis, para depois escolher a filosofia do direito sob a orientação de Giuseppe Carle. Obteve em 1895 o grau de doutor com o tema “O salário e os preços na Itália, Estados Unidos e Inglaterra de 1860 a 1894 como índice das condições econômicas e socias”. Além disso obtém a Licenciatura em Filosofia e Letras. Foi membro, desde 1946, da célebre Accademia Nazionale dei Lincei, academia romana fundada em 1603, à qual pertenceu Galileu Galilei, para reunir os “olhos de lince” da cultura peninsular.


1.2. O professor universitário


Lecionou Filosofia do Direito em Turim desde 1917, quando sucedeu a Giuseppe Carle, até 1948, quando foi substituído por Norberto Bobbio. Teve como alunos o próprio Bobbio, e também o grande sociólogo do direito Renato Treves, além dos juristas Uberto Scarpelli, Piero Gobetti, Alessandro Passerin d’Entrèves, Luigi Pareyson, Luigi Firpo, Giorgio Colli, Bruno Leoni, Mario Einaudi e Cesare Goretti, todos de grande projeção na vida jurídica e cultural da Europa e da América Latina, sobretudo na Argentina e mais recentemente no Brasil.


2. A história crítica da filosofia do direito moderno


2.1. A secularização do Direito Natural na obra de Hugo Grócio


O direito moderno foi identificado por Gioele Solari, entre outros autores, como Villey e Reale, como Individualismo, por ser a consolidação das Revoluções Liberais, Inglesa, Americana e Francesa.

Gioele Solari nos descreve a gênese de tal individualismo a partir da Reforma Protestante e, no campo filosófico, a partir da secularização da idea de Direito Natural com Hugo Grócio.

Compreendendo o profundo significado do pensamento de Grócio para a laicização do direito, como solução desesperada perante o conflito das guerras entre católicos e huguenotes, Gioele Solari a ele dedicou um dos seus ensaios mais eruditos, “De ius circa sacra nell’Età di Ugone Grozio”, não sem situar as circunstâncias de tal laicização com a ruptura do orbis christianus. Hugo Grócio representa o neo-estoicismo.

Um dos princípios fundamentais do estoicismo romano, como salientava Giuseppe Carle, era a identificação do ius naturale de Aristóteles (a diké ou justiça na polis) com o ius civile atuado, in acto, dando um encaminhamento próprio, como notará Solari, ao problema do direito natural racional. Ora, segundo Gioele Solari, em sua obra Studi di filosofia del diritto, é este o estoicismo de um Suárez, de um Justo Lípsio e de um Grócio.1

Tal ius naturale, como encarnação do Logos divino, conduziu diretamente ao Racionalismo cartesiano, por um lado, e à ordem liberal, por outro lado. Solari, valorizando Grócio, já faz sua a opção neo-estoica, que, admitindo embora um evolucionismo fundamental, pela ideia de “razão divina”=fogo artista e criador, supera as limitações do mecanicismo, marcha para outro rumo e se alinha entre os defensores do valor da contribuição pessoal no processo coletivo do progresso. 

O que o impedirá de, sendo um admirador de Grócio, como se vê neste ensaio, não cair em um individualismo liberal? 

Sua formação no positivismo psicológico de Wundt, por obra e graça de seu mestre, Giuseppe Carle, que dá, como já descrevemos, ao ius naturale estoico a interpretação de Gaio – direito que se atualiza no direito positivo à medida que o aperfeiçoa – e não a de um Zenon ou de um Sófocles (lei dos deuses, colocada como ideal no coração humano, inatingível e parâmetro quase perfeito da Justiça) –, que lhe dá do direito uma visão com base na vida (La vita del diritto, na epígrafe de seu mestre Giuseppe Carle), equidistante tanto do coletivismo absoluto de Marx, via Demócrito, como do liberalismo individualista de um Adam Smith, via Protágoras, para aceitar um Idealismo (que parte do indivíduo, como Platão, Agostinho e Rosmini) que é também Social (que reconhece que a pessoa se realiza no grupo, como Aristóteles, Santo Tomás e Carle).

Mas, antes de passarmos à análise da influência do racionalismo sobre o pensamento individualista, detenhamo-nos na análise do importante ensaio de Gioele Solari sobre “Il ius circa sacra nell’Età di Ugone Grozio”.

O mestre torinês se coloca como observador sagaz das circunstâncias históricas  que precedem a obra do sábio holandês sobre o poder do monarca (chefe de Estado), sobre questões religiosas (sacra) – donde o título De imperio summarum potestarum circa sacra –, quais sejam, as Guerras de Religião que se seguiram à Reforma luterana e calvinista e a doutrina geralmente aceita do cujus regio ejus religio, com que se pretendia resolver o problema da confissão religiosa das nações europeias: os súditos só poderiam praticar livremente a religião que fosse compartilhada por seu soberano.

Assim, na Alemanha prussiana deveria ser admitido apenas o Luteranismo; na República teocrática de Genebra só o Calvinismo; na Inglaterra só o Anglicanismo; na Espanha só o Catolicismo. Considerava Grócio uma intromissão indevida, reminiscência justiniano-bizantina do poder temporal na esfera do espiritual recuperada pela nova tendência das Igrejas nacionais (Galicanismo ou Catolicismo francês, Arminismo ou Calvinismo holandês, Presbiterianismo na Igreja da Escócia), bem como uma inclusão na esfera política de questões sagradas, vale dizer, religiosas (sacras). O que Grócio discute é exatamente se o monarca pode ter poder (imperium) sobre questões de consciência individual (circa sacra), e, embora permanecendo no campo jurídico-constitucional (até onde vai o poder do chefe do Governo ou do Estado, já que tal distinção inexiste na monarquia absoluta de então), levanta questões filosóficas fundamentais: como fazer para que respeitada fosse a “esfera interior da consciência” do cidadão, sem desobediência ao ordenamento jurídico do Estado, que subordinava ao princípio acima lembrado do cujus regio ejus religio, verdadeira solução de compromisso para uma trégua nas Guerras de Religião – no fundo quase todas mascarando Guerras de Sucessão, como ficou patente no caso do huguenote Henri de  Navarra pleiteando o trono vacante da França. 

A solução vai Grócio encontrar na tese da racionalidade comum a todos os seres humanos, separados que fossem por sua convicção religiosa.

Se o ordenamento jurídico, por influência luterana, se alicerça no direito divino, fica na estaca zero. Grócio foi buscar, acima do sistema nacional normativo e positivo, um “direito de razão” aceitável para todos, porque fundado na natureza, “ainda que, por impossível, Deus não existisse” (sic): o “direito natural racional”. 

Solari valoriza o momento e a discussão jurídica do alcance do Imperium principi para explicar por que Grócio lança a ideia da racionalidade, como alternativa da intolerância: “[n]a razão natural Grócio procura o fundamento do ius circa sacra, contra os teóricos do absolutismo que se inclinavam para conceber a soberania como expressão da vontade imperativa e mesmo arbitrária do soberano, sentindo a necessidade de racionalizar o direito do soberano, analisando-o na sua natureza, nos elementos constitutivos, imutáveis”. 

O conceito de que o Estado é desejado por Deus como princípio de ordem, de organização humana, é sempre o pressuposto de Grócio. Só depois ele faria do Estado uma instituição humana resultante de direito natural mas “voluntariamente formado e consentido”.

Do fato de que o poder soberano seja único não deduz o sábio holandês que se deva exercer também sobre a esfera sacral e religiosa: “[n]ão é necessário nem mesmo útil que o soberano exercite funções régias sacras pois, apesar dos exemplos da Escritura, é mais apropriado que tais funções sejam desempenhadas por uma classe – no caso o Clero – ainda que submetido ao poder supremo do monarca”. E isto “por lei divina positiva mosaica como cristã criando a classe sacerdotal”. 

Entretanto, Solari chama a atenção para o fato de que o fundamento da responsabilidade do rei pelas questões sacras – pois é inadmissível em Grócio um Estado despreocupado pelos valores espirituais – não é a fonte bíblica, à maneira dos jacobitas ingleses (teoria do direito divino), mas a natural correlação entre o divino e o humano nas questões do Estado, com separação de campos e convergência de objetivos como próprio da natureza do poder real (“summarum potestatum cura praecipus est ut divina recte ordinentur”). Mas é lógico que o modus operandi ficava com os detentores do poder espiritual, de acordo com a natural ordenação das coisas (teoria do direito natural, ainda quando verse sobre questões espirituais). Grócio retira de “temporal” o rótulo de “material” ou “laico” e de “espiritual” a etiqueta de “abstrato” ou “teológico”, pretendendo que um e outro compõem a vida humana (natureza).

Assim, Solari explica que há dois momentos no pensamento de Hugo Grócio: do Grócio do Imperium circa sacra, que busca na natureza humana o fundamento do poder do rei sobre as questões religiosas que interessam ao Estado (à maneira de Bossuet), do autor do De iure belli ac pacis, já “completamente laicizado e naturalístico”, em que não se concebe como função real “zelar também pelo bem espiritual de seus súditos” (à maneira de Voltaire). Como as pessoas – inclusive Grócio – pensavam antes como Bossuet e depois como Voltaire é assunto que Solari não aprofunda, mas acena para a doutrina de Grócio que deve ser relacionada com a crise (palavra textualmente usada: crisi della coscienza religiosa e politica – muito antes do clássico de Paul Hazard –, o que revela em Solari os incríveis dotes de historiador), que então vive a Europa antes da Guerra dos Trinta Anos.

Essa mise au point de Gioele Solari revela um aspecto inédito do criador do direito internacional moderno, e, por inferência, uma faceta do Idealismo Social e Jurídico. “Como para a concepção do Estado, também Grócio se contrapunha ao mundo protestante no modo de entender a Igreja, que participa da lei divina mas também se apresenta na forma visível, política e social”.2


2.2. Racionalismo, empirismo e contratualismo liberal


Como as Revoluções Inglesa e Americana contemporaneamente se põem como modelos de “Revolução Liberal”, e a Francesa como “modelo de Revolução Autoritária”, vale a pena ver o pensamento fundante das duas primeiras e a crítica que lhe faz Solari.

J. Locke foi, com a ideia de “Direitos Naturais do Homem”, o fundador da Escola Liberal do Direito Público Inglês e Americano. Tem-se insistido muito na contribuição de Locke no que diz respeito à ideia de contrato social e de divisão de Poderes, influenciando depois Rousseau e o anglófilo Montesquieu. 

Mas Guido Fassò lembra, em sua Storia della filosofia del diritto que tal ideia contratualista, presente no pensamento de Hobbes, como também no de Suárez, é uma trouvaille do século XVII para se opor ao absolutismo monárquico, de modo que algo de original ali não se vislumbraria. Onde está a contribuição maior de Locke é na ideia de “estado de natureza”, oposta à de todos os pensadores políticos desde Aristóteles. Solari lembra em sua La formazione storica e filosofica dello Stato moderno que para Aristóteles 

“(...) o estado natural do homem é a vida na polis onde o ser humano se realiza plenamente, o mesmo sucedendo com a ideia de Estado em Platão. Os que dizem que Rousseau foi o mestre e inspirador da Revolução em todas as suas fases, distinguem a teoria da prática e admitem que seu pensamento foi modificado pela pressão da realidade e deformado por elementos derivados de Locke e Montesquieu.

Na nossa opinião é difícil perceber nas diversas fases da Revolução o que se deve a Rousseau e o que a outros, não só pela sucessão vertiginosa dos acontecimentos como pelos interesses e paixões que prevaleceram ora uns ora outras”.3 

Nas antípodas de tal raciocínio hobbesiano, mas com ele confluente na tentativa de identificar “estado de natureza” com uma “situação” e não como “ordem natural das coisas” de Aristóteles, Locke, libertado do pessimismo luterano-calvinista pelas obras de Hooker – um humanista tomista  perdido na Inglaterra dos Stuarts –, passa a considerar tal “estado de natureza” não de guerra total, mas de paz e felicidade na liberdade e na igualdade, transitando aos poucos de um Tratado de direito natural, de 1660, em que a situação natural deriva da vontade de Deus, que “criou o homem bom e feliz”, para a visão de 1680, em que o “estado natural” é bom não porque Deus o criou como tal, mas porque racionalmente se explica como bom viver em liberdade total e em perfeita igualdade.

Passou-se com Locke o que se deu com Grócio, como já vimos, no Segundo tratado do governo, escrito para defender a Revolução Burguesa que expulsava os Stuarts e inaugurava o predomínio dos Comuns (a “Gloriosa de 88”), Locke dá um passo além e vê no Estado uma força capaz de garantir os direitos naturais. Ora, diz-nos Solari, “tais direitos no fundo são a propriedade, a herança, são instituições de Direito Privado”, de modo que clara e manifesta era a intenção do jurista inglês de criar a base doutrinária do sistema individualista, sendo impossível mudar o direito positivo em matéria que não são reguláveis pelo homem, pois pertencem à órbita do direito natural. Quer dizer, o que na “fase teológica” medieval era desempenhado pela fé passa agora, na “fase metafísica” (na expressão de Comte), a ser atributo da razão, pois os direitos racionais são naturais porque racionais.

Mostra Gioele Solari que: 

“(...) a racionalidade constitui a nota comum de todas as concepções contratualistas, mesmo aquelas que derivam da corrente empírica. A aparente contradição se explica pensando que não se buscava o fundamento da sociedade na natureza das coisas mas sim que tal estado de vida social.

Parecia obra de reflexão, e por conseguinte racional e voluntária, do homem”.

Expliquemos: parece que o racionalismo cartesiano, interessado mais no sujeito cognoscente e na ordem racional do conhecimento, não devesse conduzir ao mesmo resultado que o empirismo de Locke, interessado mais na experiência sensível e na natureza experimental do conhecimento.

Aparentemente, o cartesianismo deveria conduzir a uma racionalização da ordem política e jurídica, e que conduziu de fato ao máximo de racionalização, isto é, admitir a própria sociedade como criação racional do homem e não como dado da natureza, como o faz Rousseau no Contrato.

Entretanto, a verdade é que existe em dois momentos na obra clássica do filósofo genebrino: num primeiro momento, quando parte do pressuposto do “estado de natureza”, ele confere com Locke (natureza = liberdade = igualdade = felicidade), mas num segundo momento do mesmo livro, quando trata da passagem voluntária (voluntarismo) para o estado “civil”, subordinado a leis, Rousseau, através do mecanismo da volonté générale, subordina totalmente o indivíduo ao Estado, não admitindo nenhuma  “sociedade parcial” entre indivíduos e Estado. 

O racionalismo conduziu do liberalismo de Danton e da Gironde ao despotismo de Robespierre e do “Comitê de Salvação Pública”, avant-première do Bonapartismo.

Em sentido contrário, o empirismo deveria ter conduzido a formas orgânicas e naturais de relação social de que era rica e fecunda a vida política inglesa, desde a Magna Charta, mas tal não sucedeu, pois com Locke tivemos a construção racional de um contratualismo anti-estatal, ou de um futuro Estado não atuante socialmente, gendarme, que virá a se concretizar na época do “laissez faire” ou do capitalismo selvagem do século XIX. Constata-o Gioele Solari em seu monumental livro “Individualismo e diritto privato”.


2.3. Leitura crítica do pensamento de Kant


Por intermédio de Leibniz e sobretudo do jusnaturalista Wolff, Immanuel Kant era, pode-se dizer, até os 50 anos, um filósofo racionalista, quando a leitura de David Hume, que o “despertou do sono dogmático”. Como se sabe, Hume radicalizou as teses sensistas e empiristas de Locke e Berkeley, não mais admitindo nenhuma ideia universal, caindo num rígido nominalismo que punha em perigo as conclusões da ciência experimental, pois concluía que conhecemos apenas dados isolados, sendo impossível uma generalização, que necessariamente seria uma conclusão racional, sem base. 

Compelido a defender as potencialidades da razão, para salvar do ceticismo absoluto de Hume a própria ciência experimental, Kant, como lembra Solari no ensaio “Scienza e metafísica del diritto in Kant”, constrói a partir dos a priori tempo e espaço toda uma teoria do conhecimento, pois, “excluída a possibilidade de um saber constituído em todas as suas partes de princípios racionais, universalmente válido e apoditicamente certo, permanece a necessidade de questionar se, ao lado das ciências sintéticas da experiência, não sejam possíveis ciências sintéticas racionais, ou seja, ciências nas quais o sentido de racionalidade não seja da antiga metafísica, por dedução analítica desde conceitos fundados no princípio de contradição (Aristóteles, Descartes), mas no sentido de conhecimentos construídos sinteticamente sobre o fundamento da unidade da percepção, tais que, sem derivar da experiência, formulam as condições necessárias de uma qualquer experiência possível.

Numa segunda instância, Kant coloca as categorias de quantidade, qualidade e relação e os juízos que temos como possíveis quanto à quantidade: unidade, pluralidade, totalidade; distribuindo-se os juízos em afirmativos e junegativos, quanto à qualidade dos seres, e em juízos categóricos, hipotéticos e disjuntivos, quanto à relação.  Afirmado ficava o relativismo, pois a experiência de cada um é diversa  de uma outra, de outrem, embora os a priori e as categorias sejam  próprias de todo ser humano dotado de razão. Salvou, assim, Kant a utilidade da razão, sem deixar de valorizar a experiência, conciliando as duas correntes, racionalista francesa e empirista inglesa, no seu idealismo transcendental.

É evidente que até aí se limitava a possibilidade do conhecimento, deixando Deus, a alma e o universo como o incognoscível. Daí Kant fundamentar a moral na ideia de dever, o famoso imperativo categórico, já que: 

“(...) o homem não está em condições de conhecer a causalidade do inteligível sobre o sensível, mas não há dúvida sobre a existência de leis morais que à sua consciência empírica se revelam como dado racional, ao qual deve conformar a conduta. Ora, na consciência do dever está implícita a consciência de liberdade: todo ser sabe que não pode agir de outro modo senão sob a idéia da liberdade, e por isso do ponto de vista prático é realmente livre”. 

Conclui Solari que Kant é o grande teórico do Liberalismo: “ele foi o doutrinário da Revolução (não à maneira de Voltaire ou Rousseau, seus precursores mais ou menos seguidos), nem, como dizia Marx, quem escreveu a teoria da Revolução, mas quem teve vivência dela e da ordem nova que por meio dela maturava”. Entretanto, não aprovaria o despotismo de Robespierre, pois: 

“(...) ninguém pode colocar em dúvida sua aversão por toda forma de despotismo, fosse o de um príncipe, fosse o de uma nação, legítimo ou violento. Em qualquer forma de despotismo via Kant o predomínio do arbítrio da vontade particular de um só ou de um grupo, associado no seu particularismo e no seu subjetivismo. Particularmente severo se mostra contra o despotismo na forma ética, iluminista, de sua pátria, como na forma racional, democrática de Rousseau. Por isto, Kant não aceitou a formulação da exigência igualitária implícita na doutrina de Rousseau, mas a sua posição não se pode chamar liberal no significado em que o liberalismo é entendido por Locke, por Montesquieu, que se tinha traduzido nas ‘Declarações de Direitos’ e Constituições anglo-americana e francesa. (…) Admirou neles e em Rousseau o entusiasmo ético, o sentido profundo de Humanidade, mas não os seguiu no seu radicalismo e moralismo político. (…) O Estado kantiano é liberal no sentido de que ele surge do consenso para garantir a cada homem as condições exteriores de explicação da atividade econômica e moral. Com isto ele exprimia a exigência do liberalismo lockeano, mas ao mesmo tempo a superava pois não abandonava ao jogo das forças naturais as relações humanas, mas as queria subordinadas ao limite legal, elevado a dever da razão comum. Qualquer possibilidade de despotismo é eliminada na fórmula kantiana, pois o Estado surge com a finalidade de garantir exteriormente a possibilidade da liberdade interna”.

Por isso, Rousseau não admite os corpos intermediários, como seriam todas as formas de organização política, enquanto Kant os considera exigências do pluralismo das ideias: “[o] dissentimento profundo com Rousseau está em que para este o sistema representativo é incompatível com o Estado ideal republicano, enquanto que para Kant constitui sua própria essência”.4 

Conclui Solari pelo caráter jurídico do Estado kantiano, como o será depois em Jellinek e em Kelsen: “às duas grandes leis que enchiam sua alma de entusiasmo (alusão à sua frase [de Kant] ‘No alto o céu estrelado, no meu interior a minha consciência’) a lei do céu acima de nós e a lei moral em nós, deve-se juntar uma terceira, a lei do Direito fora de nós”.

Em outro ensaio, Solari analisa “Il concetto di società in Kant”, opondo-o ao conceito de sociedade em Rousseau, em Locke e no Iluminismo: “Kant recebeu da tradição filosófica o tríplice conceito de sociedade: natural, político e ético. A ideia de uma ordem social natural, Kant tirou de Newton, mais do que de Locke ou de Montesquieu, pois acolheu sua explicação mecânica e causal do universo em sua obra Naturgeschichte (1755)”.5 Quer dizer, na opinião de Gioele Solari, Kant não foi apenas um empírico à maneira de Locke, mas não prescindiu da experiência de um Newton, ao construir uma teoria da natureza e da sociedade. De modo que a experiência lhe deu uma informação tão palpável como a lei da gravidade: o homem vive em sociedade. Daí, apesar dos inegáveis pontos de contato, Kant se destacar de Rousseau. 

“Não se pode dizer que Kant seja menos pessimista do que Rousseau, ao entender a História em relação com a felicidade e o aperfeiçoamento moral do indivíduo. A passagem da tutela materna da natureza para o estado de liberdade (civil) significa também para Kant a passagem de um estado de inocência para um estado de corrupção: A História da natureza, obra de Deus, se move para o bem; a História da liberdade, obra humana, se move para o mal”. 

Neste ponto, Kant se encontra com Rousseau, para não dizer com Fénelon, com La Fontaine e todos os que, desde o século de Luís XIV, exaltando a vida em contato com a natureza, fizeram pesadas críticas ao mundo europeu civilizado: era um rico filão que vinha de Montaigne. Mas, ao lado dessa corrente, Kant foi contemporâneo do Iluminismo, e dele foi também uma das principais figuras, ao lado de Voltaire, Diderot, Condorcet e demais Enciclopedistas: 

“Kant assumiu a função de árbitro entre as duas posições de pensamento político. Não renegou o Iluminismo, expressão histórica do desenvolvimento da sociedade, cujo escopo era levar o ser humano ao livre e pleno domínio de si mesmo, na afirmação de sua individualidade em todo o campo de atividade, ao respeito da mesma exigência de felicidade e aperfeiçoamento para os outros, consubstanciando-se no progresso econômico, numa idade de de difuso e operoso humanitarismo.

De outro lado, como ele mesmo reconhece, Kant foi tirado por Rousseau da fé   cega no progresso do saber, para o reconhecimento dos valores morais”.6  

Quer dizer: Kant  recebia, ao mesmo tempo, o influxo do Iluminismo e do Pré-Romantismo. Talvez pela análise de Solari se encontre uma resposta para o famoso enigma: a quem serviu a Revolução Francesa?

Já se processava com os fisiocratas, com grande aceitação por parte da nobreza e dos governos, uma revisão do sistema econômico do mercantilismo, da estrutura patrimonialista do poder e da educação clássica, com as propostas de Pombal em Portugal, de Aranda na Espanha, de Tanucci em Nápoles, de Choiseul na França, de Bentham na Inglaterra, que produziam uma Reforma das instituições. Se vingasse, seria o triunfo do Iluminismo.

De outro lado, Rousseau, adversário dos Iluministas, sonhando com uma sociedade civil em que os direitos dos indivíduos dessem lugar à vontade da maioria. Sem dúvida, o radicalismo com que Rousseau renega qualquer forma de representação que não seja a democracia direta plebiscitária faz dele um inimigo do Reformismo e o propulsor de uma Revolução. Democrata, mas não um liberal.

Kant, ao detestar qualquer forma de despotismo, como já se viu, seria, para Solari, um companheiro de jornada de Rousseau, até o ponto em que a volonté générale não seja ela mesma expressão de um despotismo da maioria, pois a vontade geral não é senão a da maioria. Onde ficam as minorias?

Ora, além de expressar uma reconciliação, no nível da gnoseologia, do empirismo com o racionalismo, o que representaria Kant na ordem política? Se o Iluminismo representaria a consagração dos déspotas iluminados, do aristocratismo anticlerical, liberal, antidemocrático (“Tudo para o povo, nada pelo povo” (Pombal), e se o pensamento de Rousseau representava o poder para o povo-massa, da pequena burguesia e dos artífices-camponeses (hoje diríamos proletariado), o de Kant representaria a aliança entre a alta burguesia liberal e a aristocracia “esclarecida”. 

Portanto, a Revolução, se foi a derrocada do projeto iluminista dos aristocratas, por não se tornar uma Revolução popular, consagrou uma aliança entre o ouro do capital e o dourado dos brasões. Com ela lucrou a alta burguesia, de que Kant poder-se-ia chamar o fiel intérprete: “[c]omo os revolucionários franceses, que declaravam que todos os homens eram iguais e livres, mas excluíam do direito de voto os ‘serviteurs à gages’, a inferioridade política da classe trabalhadora surgia necessariamente da concepção política do Rechsstaat (Estado de Direito) e foi Kant lógico ao afirmá-la”.7

É por tal motivo que Solari classifica Kant entre os fundadores do Estado Liberal, que nada têm que ver com o conceito de liberdade e de democracia na Antiguidade, na Idade Média, no Empirismo inglês, ou em Rousseau, com o qual mais se parece, mas não coincide na essência de seu pensamento. Vejamos o que nosso Autor nos diz na sua obra Formazione storica e filosofica dello Stato moderno

“Jurídico, pois, é o Estado e o liberalismo kantiano, não econômico, nem ético. Ele aparece para concretizar a ideia de Direito, ou como Kant se exprime, a justiça distributiva, que é a liberdade externa igualmente distribuída. Não a sociedade, mas os indivíduos são para Kant o pressuposto lógico do Estado. Por isso justa é aquela constituição ‘que a cada um garante a sua liberdade mediante a lei’ (Ditado comum, pág. 37 da trad.). No domínio puramente ético o indivíduo atua a liberdade em si, libertando-se da servidão do sentido; no domínio econômico a atua negativamente reconhecendo os obstáculos que se opõem à satisfação de suas necessidades; no domínio jurídico ele atua a liberdade limitando-se com relação aos outros. Se não se quer renunciar à ideia mesma de Direito o indivíduo deve sair do estado de liberdade natural sem freios, sem regras, para unir-se com todos os outros com os quais não pode evitar de se encontrar em relação recíproca, submetendo-se a uma constrição externa publicamente legal. Isto significa entrar em um Estado de Direito, em que o ‘suum’ de cada um esteja legalmente determinado por um poder externo e superior ao indivíduo”. 

Disso tudo Solari conclui: 

“O Estado jurídico, ou seja, liberal no sentido kantiano, deve se constituir de modo a garantir a cada um de seus membros a liberdade como homem, a igualdade como súdito, a independência como cidadão. O Estado deve em primeiro lugar impedir que o homem sirva a outro homem, se torne, também só exteriormente, instrumento para fins de outrem. A escravidão, ainda em sua forma econômica, era por Kant implicitamente condenada. Isso não impedia que alguém se obrigasse com outrem, submetendo-se ao seu desejo, mas as obrigações deveriam ser livres, recíprocas e jamais lesivas à personalidade moral”.8

Nada tem isso que ver, conclui Solari, com outras concepções de democracia. Na Antiguidade houve democracia? “Não no sentido moderno de Estado em que todos os cidadãos são soberanos e são chamados a legiferar em razão de sua igualdade natural, mas democrático no sentido de que todos são chamados ao governo da coisa pública por uma lei de justiça superior ao Estado, na razão de sua capacidade”. E, quanto à liberdade:

“Todos são livres, mas sua liberdade tem por limite os direitos do Estado, os deveres da disciplina cívica. A vida da ‘polis’ exige respeito e renúncia, a obediência às leis, também das não escritas, que emanam da justiça imanente na natureza e na consciência universal. (…) O Estado antigo entendia a liberdade e a igualdade em sentido relativo, não desconhecia as desigualdades naturais e pessoais, nem se propunha a equiparação das condições sociais e econômicas de modo a não se poder confundir com o Estado liberal moderno, fundado sobre a liberdade e sobre a igualdade, como atributos do homem, tendo valor por si mesmos, não pelo Estado”.9

Teria então surgido a ideia liberal com as democracias medievais? Responde Solari: “Não se podem confundir os Estados democráticos medievais com as formas liberais e democráticas modernas, as quais surgem de um ato de rebelião contra a lei natural e divina, e subordinam o Estado à vontade do indivíduo e à lei que os indivíduos com seus entendimentos criam”. E mais: 

“A ideia democrática que na idade sucessiva do individualismo político e jurídico pode reviver nas doutrinas dos monarcômacos e dos jesuítas, teve que sofrer primeiro uma detenção e depois uma profunda transformação diante da formação da consciência política liberal. (…) Quando com Locke o indivíduo afirmou a sua razão de fim e criou o Estado para defender a sua liberdade, a doutrina liberal pôde se dizer teoricamente constituída”.10 

Mas aqui está a contribuição de Rousseau e Descartes: 

“Enquanto o empirismo filosófico fundando-se sobre a experiência era, malgrado o seu abstracionismo (sic) levado a dar uma solução liberal ao problema político, o racionalismo cartesiano na aplicação feita dele por Rousseau no Contrato Social favoreceu a formação da doutrina da mística democrática. (…) Não se sabe quanto a tradição calvinista influiu sobre a formação da doutrina democrática de Rousseau, nem é o caso de indagar (sic). Certo é que esta poderia fundar-se sobre o racionalismo e no pressuposto cartesiano de que a razão é o oráculo infalível de todas as regras do bem ou do mal e que só a igualdade natural de que se pode falar é a da razão: ‘Le bom sens ou la raison est naturellement égale en tous les hommes…’ Foi preciso o gênio de Rousseau para tirar do racionalismo cartesiano uma doutrina verdadeiramente democrática que realizasse o princípio da igualdade entre indivíduos dominados pelo egoísmo. Ele intuiu que o problema do Estado não era conciliar os interesses e egoísmos naturalmente inconciliáveis, mas antes tirar o homem da servidão da natureza e do sentido para elevá-lo à dignidade de cidadão, ou seja, de membro de uma associação em que domina soberana a lei”.11

De modo que “a democracia de Rousseau é toda penetrada de exigências morais e se desenvolve a partir da fé profunda na perfectibilidade do homem”.12 

Sente-se em cada palavra a determinada admiração de Gioele Solari por Rousseau, sua pouca simpatia por Locke e sua quase nenhuma por Kant, pois vê no Estado de Direito deste último apenas uma fórmula jurídica, não um imperativo moral, ao contrário do que percebe em Rousseau:

“A igualdade para Kant é entendida apenas como igualdade civil e jurídica, igualdade perante a lei. Como tal não implica nem em igualdade política, nem em igualdade econômica ou social. O Estado não pode nem impedir nem desconhecer as desigualdades de fato, não hereditárias, fundadas sobre a livre, vária explicação da individualidade. A igualdade dos indivíduos em um Estado pode se conciliar com a máxima desigualdade física, moral, econômica, social”.13 

É a partir da constatação da irredutibilidade do Estado de Direito do Liberalismo ao Estado de Igualdade e Justiça Social que Gioele Solari move sua dura crítica ao sistema liberal, sobretudo quando as teorias até aqui enunciadas se convertem em realidades normativas das Codificações, reforçando as desigualdades econômicas e legitimando a existência de classes sociais, com base na posse, na propriedade, na herança, embora não mais admitindo a transmissão hereditária de cargos públicos e abrindo “a carreira aos talentos”, como jamais aconteceu no Ancien Régime pela venalité des charges

Gioele Solari é um adversário confesso do Liberalismo clássico, eis por que o “Idealismo Social”, como se verá, tentará uma reabilitação de Hegel e até mesmo de Comte, distanciando-se sempre dos autores liberais: Locke, Kant, quanto aos filósofos do Estado de Direito; Spencer, como filósofo da “sobrevivência dos mais aptos”.

A posição de Solari é de eticismo quase absoluto, que vai de sua admiração  a Rousseau ao seu culto por Hegel: é dentro dessa perspectiva ética que se deve procurar compreender sua posição com relação aos vários códigos do Diritto Privato que ele vai estudar, sob o prisma do Individualismo que os inspirou. Daí seu sugestivo título: Individualismo e diritto privato para uma das suas melhores análises críticas da dogmática jurídica.


3. A apologia do historicismo de Savigny a Hegel e a Marx


3.1. O elogio da Escola Histórica do Direito


Após a análise crítica da construção doutrinária da ordem jurídica liberal, no nível dos princípios básicos e de sua aplicação nas várias codificações, tendo Gioele Solari se mostrado agudo analista das principais teses liberais de Locke a Kant,  nosso autor, no segundo volume de sua Filosofia del Diritto  Privato, Storicismo e Diritto Privato  passa em revista todos os que reagem ao individualismo, desde os teóricos da contrarrevolução no Piemonte aos históricos alemães, de Schelling a Hegel.14 

O primeiro capítulo de Storicismo e Diritto Privato se dedica a analisar a reação “espiritualista e teocrática de Joseph De Maistre e Louis de Bonald, retorno ao pensamento medieval ou de Rosmini, harmonizando o espiritualismo com o racionalismo moderno”, muito acertadamente, Solari vê duas sortes de reações: uma no sentido da oposição, outra no sentido da complementação. Joseph De Maistre, desde as Lettres d’un royaliste savoisien até as Soirées de Saint-Pétersbourg, Louis de Bonald, da Théorie du pouvoir politique et réligieux aos Essais sur l’éducation, opõem-se radicalmente ao racionalismo inaugurado por Descartes, e que dera como resultado último o contratualismo de Rousseau e de Kant. 

Já Antonio Rosmini Serbatti, no La Società ed il suo Fine, procura dizer que, antes de serem racionais, as teses democráticas são cristãs: “[t]raduzindo-se no movimento de ideias que se chamaria ‘socialismo cristão’ e que se reduziria, na realidade, na acentuação e no desenvolvimento dos elementos morais e sociais que estão na essência do pensamento teológico, em suas aplicações ao Direito e ao Estado”.15

Ao passar à análise da Escola Histórica do Direito e do Estado, Solari nos adverte que o Historicismo teve valor duplamente, como novo método do estudo do direito e como nova filosofia dos valores e da cultura: 

“Com o nome de Historicismo se designa especialmente a revolução metodológica que se processou nas ciências morais no princípio do século XIX, e em virtude da qual estas ciências, depois de abandonar o método dogmático cartesiano buscaram seu fundamento em postulados da realidade histórica criticamente verificada, tal como a análoga revolução iniciada por Galileu e Bacon, no domínio das ciências naturais e com a consequente transformação destas ciências experimentais e positivas. Mas o Historicismo, além de ser uma direção metodológica, serviu para assinalar na primeira fase de seu desenvolvimento uma especial direção de pensamento cujos caracteres essenciais foram o critério histórico elevado a critério de verdade, a realidade histórica considerada como a única verdadeira realidade, como o objetivo próprio das ciências morais, e o processo de formação histórica das instituições jurídicas invocado como justificação das mesmas”.16

Eis por que a Escola Histórica se coloca contra os postulados da Escola Clássica do Direito Natural do século XVIII, pois, enquanto esta considera que o parâmetro da justeza e da justiça só pode ser a racionalidade das normas jurídicas, para a Escola de Savigny esse critério deve ser buscado na história das instituições, a qual varia de povo para povo, e por isso mesmo não pode ser a mesma para todos os países, no que Savigny se choca com o pensamento iluminista, que é cosmopolita e universalista.

Ao “Espírito das Leis” Savigny responderá com o “Espírito do Povo” (Volksgeist), embora não seja ele propriamente um filósofo e sim um jurista, obrigado a tratar de questões que naquele tempo tocavam de perto a filosofia, e hoje talvez mais a antropologia ou a sociologia. Solari mostra que sua formação foi kantiana, mas por ela não se deixou influenciar muito, como também depois não se deixaria cativar por Hegel. De qualquer forma, “Savigny tirou de Kant a ideia de autonomia da realidade empírica e o dogma do relativismo do saber fenomênico. Em tais postulados kantianos, o empirismo em geral e o historicismo em particular, não tanto como método mas como sistema, acham sua razão de ser”.17

Mas, pergunta Solari, lembrando-se de seu compatriota Giambattista Vico, para quem verum factum convertuntur, por que na Alemanha foi surgir a Escola Histórica? “A pátria do Historicismo é a Alemanha porque, ainda que em todas as partes o engendraram as mesmas causas, só na Alemanha se deram, por diversas circunstâncias, condições favoráveis para o desenvolvimento de seu método na esfera do Direito Privado”.18

De modo que, na própria França, como na Itália ou na Inglaterra, surgiram reações contra o universalismo e o cosmopolitismo da Escola Clássica, mas só na Alemanha essa reação levou a elaborar uma “teoria geral do direito e do Estado”, como novo conteúdo e nova proposta.

Savigny em 1814, na obra Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência, já acreditava que o direito é criação da comunidade.19 Por isso  procurava descobrir o Volksgeist, o espírito do povo, como pano de fundo da criação coletiva, através dos usos e costumes, das instituições jurídicas. Agora a abordagem era outra. Sem deixar de ser historiador exímio, Savigny já era também um teórico do direito, um historicista, no sentido que assinalamos, ao distinguir a atividade do analista da especulação do filósofo do direito. 

A explicação para a passagem de uma postura como a de Hugo (ou seja, Kant) para um posicionamento que chegara ao desenvolvimento final com Hegel se encontraria  no momento, na Alemanha de então, da transição do Iluminismo da Aufklärung para o Romantismo da Sturm und Drang, do “no princípio era a razão” de Descartes para o “no princípio era a ação” de Goethe e Schiller.

E quem operou tal passagem foi, antes de todos, Schelling, ao resolver o dilema fichteano entre “o eu e o não eu” na “ideia de universalidade”, em que se realiza a individualidade. É o que explica Solari: “[a] nova consciência filosófica se revela claramente em Schelling, o filósofo do Romantismo, que, integrando e continuando a obra de Fichte, deu vida e desenvolvimento a essa direção idealista que em Hegel encontraria sua sistematização definitiva”.20 Superada ficava a dicotomia kantiana, “ser-dever ser”, “eu-não eu”, “particular-universal”, para se resolver no monismo espiritualista de Schelling: “[a] consciência individual tem um processo inconsciente anterior a ela, dela independente, e aparece como princípio absoluto, pelo qual tudo o que é, compreendido pelo homem, é manifestação da alma ou da consciência universal, no absoluto de Schelling há identidade entre o subjetivo e o objetivo”.21 Reabilitou-se, então, tudo o que o rigorismo cartesiano descartara: a intuição do absoluto, intelectivamente “superior” ao pensamento lógico. De Kant, Schelling tomou a ideia de autonomia da vontade como base não só da atividade regulada pela razão prática (moral, direito), mas de toda a atividade em geral, abarcada pela filosofia. Era a natureza, o universo e o homem concebido como “ação”, como querer, o que origina desde a ordem universal (num sentido próximo ao estoicismo) até a ordem pública e privada. Ora, tal vontade se manifesta na reiteração de práticas pela nação, sem sistemática racionalizadora, como emanação do “querer coletivo”. Savigny tinha encontrado o filósofo historicista. Schelling, alguém que transportaria suas ideias para a “teoria geral do direito”. Seria impossível Savigny sem a base que foi Schelling. Sem Savigny, Schelling não teria encontrado aplicação na ciência do direito, o Romantismo não teria gerado a Escola Histórica, um importante setor da atividade humana, o jurídico, ficaria imune ao Historicismo, amarrado ao Iluminismo e ao Cartesianismo racionalista. Conclui Solari: 

“Só com Schelling temos uma superação do individualismo tanto nas premissas metafísicas como nas aplicações práticas, pois (…) para ele, dizer Direito equivalia a dizer possibilidade de fazer, limitada pela possibilidade igual de outrem, equivalia a dizer ao mesmo tempo garantia e condição da liberdade, só então se realizando o “Reino de Seres Livres e Iguais”.22  

Com seu sentido de exposição, Solari foi ao requinte de Solari nos aponta: “uma característica do Romantismo, não nos devendo iludir os reclamos para a ideia de nação, de comunidade, de família e corporação, pois tudo isto passava pelo crivo do subjetivismo, de que partia Fichte, para exaltar a individualidade”.


3.2. Gottlieb Fichte


Segundo Solari, Fichte renovou as teses mercantilistas de um Estado autossuficiente, independente dos demais, que garantia a liberdade e o bem-estar de seus cidadãos na medida em que não se deixava influenciar pela voga das ideias cosmopolitas e das empresas que hoje chamaríamos multinacionais. Quer dizer, o “nacionalismo” de Fichte era econômico, com ser também político, mas nunca se poderia chamar de xenofobia ou nacionalismo culturalista, pois a ideia iluminista de liberdade herdada dos ingleses e franceses se mesclou com o “Estado de Direito” de Kant. Por isso, nos diz Solari, converteu-se às ideias de um Capitalismo de Estado na concepção de um Estado de Direito, governado por leis e não pelo poder tirânico de alguns. Isso bastou, pondera Solari, para dele não fazer um precursor ou legitimador de Estados modernos negadores da liberdade dos cidadãos em regimes bonapartistas e policialescos, pois nunca para Fichte o Estado era um absoluto. O “absoluto” era a “comunidade nacional” a que de fato o indivíduo se devia dobrar, mas nação como conjunto de valores éticos, e nisso está a diferença entre Fichte e Hegel, na opinião de Gioele Solari.

Isso, porém, não significa que Solari não visse em Hegel senão o teórico do Estado Absoluto. Descobriu em um ensaio de 193123 um aspecto pouco observado da filosofia hegeliana, muito importante inclusive por ter servido de base à posição de Karl Marx sobre a sociedade capitalista.

Trata-se do conceito hegeliano de sociedade civil, como aparece em seu Ensaio sobre o Direito Natural e em sua Filosofia do Direito. Hegel, neste ponto, representou uma reação contra o amoralismo do Iluminismo.


3.3. Hegel


Conclui Solari: “Hegel viveu e sentiu intensamente o drama do mundo moderno. Era o drama do indivíduo que, depois de ter destruído o ‘ethos’, do qual o mundo antigo retirava sua força, sua estabilidade e sua vida harmoniosa, lutava para reconstruí-la com suas forças, sem conseguir superar a si mesmo, satisfazer a aspiração à universalidade e à unidade do real”.

Chama, então, Gioele Solari nossa atenção para a importância do conceito de sociedade civil em Hegel, pois com o sucesso da visão positivista de Augusto Comte, o fato social passasse a ser desvinculado da filosofia, como algo de particular a cada ramo da sociologia, limitando seu estudo à análise da realidade social, sem recorrer à inserção do problema da sociedade em uma concepção metafísica da realidade. 

“A sociologia tornou-se uma ciência particular e foi destacada do tronco vital da filosofia. Retornar a Hegel hoje neste campo, depois dos desvios positivistas, significa não renegar os resultados da pesquisa científica, mas revalorizá-los à luz de uma mais alta e concreta realidade, à qual se ligam novas posições e novas soluções do problema jurídico e político”.

Vemos aqui um aproveitamento do idealismo hegeliano, como superação do individualismo, sem cair nos extremos do Estado absoluto: delineia-se o perfil do “Idealismo Social” de Gioele Solari.

Renato Cirell Czerna, em sua tese O direito e o Estado no idealismo germânico, elogia essa análise de Solari24 como demonstradora da importância da sociedade civil em Hegel, em geral menoscabada, como intermediação entre a família e o Estado. No mesmo estudo o Prof. Cirell Czerna faz sobressair a posição organicista do último Schelling, valorizador do que hoje se chamam os “corpos intermediários” entre o indivíduo e o Estado.

Apesar de que ele deixa bem claro que os dois filósofos alemães são distintos – pois Schelling é mais o filósofo do Romantismo –, a importância da intermediação dos grupos sociais profissionais, universitários, culturais, religiosos e esportivos não escapou a Hegel, se bem que para ele tais grupos alcancem sua plena realização no Estado, que não os mata ou absorve a não ser enquanto os normativiza e concretiza em instituições por ele garantidas e reunidas num fim superior de perfeição absoluta, de que a força do Estado seria, como pondera Czerna, a realização terrena como espírito objetivo. De forma que o “espírito do povo” em Hegel não tem o sentido sentimental-irracionalista da Escola Histórica, mas um sentido de concreção cuja última etapa é a criação do sistema de normas jurídicas, onde se vê por que Hegel não apoiou Savigny, foi até favorável à codificação e mesmo à criação do Estado prussiano, que, se não era o “Estado ideal” da polis, era um momento na história como afirmação do espírito objetivo (Volksgeist) em sistema de direito positivo.

Dando a palavra ao próprio Solari: 

“A categoria do devir, antes de elevar-se com Hegel à categoria de ordem lógica, e ainda com Darwin à categoria do mundo físico e orgânico, foi entendida pelos românticos como categoria de ordem psicológica. A experiência interior despertou a primeira ideia de um devir contínuo, e tal ideia passou das ciências do espírito a outras ordens de conhecimento até chegar à lei universal de realidade. A vida do espírito, desligada dos mecanismos das faculdades e da associação, pareceu à comovida fantasia romântica como uma atividade que se desenrola e se renova perenemente em formas variadas e múltiplas. A psicologia tradicional tinha trabalhado para simplificar e tornar rígida a vida do espírito, desligando-a do tempo e do espaço, imobilizando-a em conceitos e faculdades abstratas, carentes de conteúdo real. O romantismo representa a reabilitação do variável, do inconsciente, do contínuo psíquico. (…) E por tal capacidade de captar o indefinido, o inconsciente psíquico, os românticos chegaram a compreender a vida psíquica da coletividade, cujas manifestações se apresentam precisamente com as características de inconsciência e espontaneidade, e formam parte dessa vida inferior do espírito que a psicologia tradicional ignorava e descuidava”. 

De modo que Solari, distinguindo os vários momentos do Idealismo, e não confundindo a contribuição de um Savigny com a de um Hegel, não deixa de apontar o mérito especial dos românticos, sem os quais não teria sido possível a Hegel chegar ao desenvolvimento completo e racionalizado de sua teoria do devir permanente, dando agora ao Volksgeist um sentido mais exato, dentro de um sistema mais elaborado. Mas o ponto de partida foi sem dúvida o Romantismo.

Gioele Solari traçou um paralelo entre Kant e Hegel, no último tomo da notável trilogia: 

“Kant o filósofo da liberdade não poderia ser o filósofo da Restauração, isto é, da época em que se buscava restaurar o princípio da autoridade, afirmar perante o indivíduo os direitos do Estado.

O filósofo da nova época, que encontrou as simpatias dos governantes e o favor do público foi Hegel, cujas doutrinas foram frequentemente invocadas para justificar a nova ordem de coisas. 

A Filosofia do Direito e do Estado de Hegel se contrapõe à de Kant e à da Revolução Francesa, aos economistas ortodoxos e aos juristas do Código Napoleão. Estes, sob a ascendência de Kant entendiam a liberdade como o poder de tudo fazer nos limites da lei: em manter-se dentro de tais limites consistia a justiça. Tarefa do Estado era delimitar o que se pode ou se não pode fazer. Tal conceito da liberdade, da justiça e do Estado pareceu a Hegel medíocre e negativo. A liberdade no sentido de Kant, dos economistas e dos juristas (liberais) não existe senão para os que possuem, enquanto que é formal e vã para os outros. 

Para Hegel, a liberdade se atualiza só por meio do Estado. O problema do   Direito, segundo Hegel, é o de traduzir nos fatos a liberdade, a qual outra coisa não é senão o espírito tendo consciência de si mesmo como da realidade última.

A liberdade se confunde no sistema hegeliano com a verdade a qual é a conformidade do pensamento com o ser (ou seja, com a realidade), conformidade que pressupõe a sua identidade”.

Em outras palavras:

“As funções do Estado não se reduzem a um papel negativo, como sustentava a Escola de Kant (na França, a Escola de Exegese, por exemplo). Também o Estado tem uma personalidade, tem uma vida própria independente da dos indivíduos, tem um pensamento, uma vontade, um seu fim próprio. (…) A separação entre a Escola Histórica e o Hegelianismo foi a consequência da transformação da Escola Histórica em Escola de ‘Erudição Histórica’. Os seguidores de Savigny se tornaram historiadores e cronistas do passado, não intérpretes de um ideal de justiça: para eles a erudição se tornou um fim não um meio para penetrar no sentido dos testemunhos e dos textos. Esta tendência antifilosófica lhes foi apontada pelos juristas que formaram a Escola de Hegel, sobretudo Gans e Lassalle. Com efeito, a fórmula de Hegel ‘o que é real é também racional’ impedia que a história se contrapusesse à ideia: aquela não é senão a atuação progressiva desta. Na fórmula de Hegel havia como conciliar a Escola Histórica e a Hegeliana, mas os sequazes da Escola Histórica não se preocuparam em traduzir os fatos históricos na linguagem hegeliana e trabalharam independentemente do hegelianismo e fora dele, sem pensar que o hegelianismo poderia ser o complemento filosófico do historicismo. Apesar de tudo, hegelianismo e historicismo se desenvolveram a partir das mesmas necessidades, ambos trabalharam na transformação do Direito no sentido social, retirando o dualismo entre Direito Público e Direito Privado. Hegel queria, eliminando o contingente, o individual, atuar o racional na vida e na sociedade, queria despir a realidade histórica dos elementos variáveis e individuais e, com um processo abstrativo, pôr em evidência a ideia universal. A evolução histórica do Direito e do Estado se torna em Hegel evolução ideal, a socialização do Direito de histórica se tornava racional, pois para Hegel socializar significa racionalizar. (…) Hegel e Savigny, ainda que trabalhando em campos distintos, tinham mantido algum contato ideológico, mas este se rompe quando, morto Hegel e menoscabada por volta dos anos 1840 a influência de Savigny, prevaleceram nas ciências jurídicas de um lado os hegelianos puros, de outro os historiadores eruditos. O ideal e o real, ao contrário de manter-se conjugados, e idênticos, como queria Hegel, se separaram e originaram o contraste entre Direito filosófico e Direito histórico”.

Percebemos, no balanço final que faz da fracassada integração Hegel-Savigny, a simpatia de Solari por ambos os sistemas, enquanto lamenta a dicotomia produzida pela má compreensão do hegelianismo por parte dos savinistas. Sem dúvida, a herança de Hegel será o historicismo materialista, ressalvada a inexpressiva tendência liberal-cristã, ficará com o Marxismo, que no entanto é divergente da Escola Histórica. A desejada conciliação estaria talvez no Idealismo historicista, ou no Historicismo idealista, que, no fundo, nos parece ser exatamente, como logo veremos, o Idealismo sociale e giuridico na obra L’idea sociale do próprio Mestre torinês.


3.4. O marxismo na obra Socialismo e diritto privato


Um dos países mais maltratados em consequência das guerras europeias desde a Revolução francesa foi a Itália. Nela os efeitos do liberalismo, capitalismo e industrialização foram sentidos significantemente, tornando seus intelectuais abertos à grande crítica marxista, porém com ressalvas a seu determinismo. Como todos os pensadores italianos de sua geração, por exemplo, Gioele Solari foi poderosamente influenciado por Antonio Labriola e sua interpretação do Marxismo. Discípulo de Giuseppe Carle, ele nunca poderia, compondo-se a trajetória intelectual do mestre torinês, abraçar totalmente o materialismo, pois o positivismo de Carle já é um positivismo mitigado, longe de Icilio Vanni e de Comte, prenunciando o psicologismo de Wundt, senão de Gabriel Tarde. Mas cedo Solari se empolga pelo ressurgir do idealismo na Itália. Este nunca estivera ausente da península, se lembrarmos sua recuperação in sede cattolica por obra de um Rosmini, mas agora o retorno a G. W. F. Hegel se fazia com maior lucidez e precisão, através dos trabalhos de Gentile e Croce. Mas Solari não é um croceano nem um gentiliano, pois, embora aceite muito de Hegel, seu Idealismo social tem muito mais de Fichte, como ele mesmo o confessou. Nunca puramente idealista, também nunca puramente socialista, mas um pensador original que procura conciliar, como se vê no seu Socialismo e diritto privato, a preocupação com o social com o cuidado quase rosminiano pelo individual. Entretanto, o que mais o distancia de Marx é, sem dúvida, o materialismo de que este se impregnou, pagando tributo ao sistema capitalista que do outro lado combatia, pelo seu cientificismo, cuja praça sempre Marx e Engels fizeram, chegando até o anticristianismo e até o antissemitismo, pois para o Marxismo religião = alienação é uma equação indiscutível. V.g., A sagrada família, cartilha de uma geração materialista.

Solari, com ser idealista, é também espiritualista; não o atrai a visão materialista, pois não vê vantagens na “materialização da vida senão para as classes dominantes”.25 Não estava errado o nosso Solari. O sistema capitalista é a quintessência não do espiritualismo, mas sim do materialismo, e só se tornou possível quando se transitou de uma sociedade ainda dominada por cânones morais cristãos para a dita sociedade liberal, em que, como já se demonstrou, foi substituída a soberania da teologia pela da razão, ainda nos moldes pseudoempiristas (na realidade sistêmicos e intelectualistas) de um John Locke. Weber veria inclusive na reformareligiosa que libertou o homem ocidental do “moralismo” um sólido apoio do que chamou o “espírito do capitalismo”.

Na concepção cristã de mundo no tempo linear cronológico está a base do historicismo, como já dissemos, imprescindível para ter lugar a visão marxista. Assim sendo, o mais temível adversário do Marxismo, em nossa opinião, não é a filosofia cristã. O maior adversário do marxismo é sem dúvida o irracionalismo de Nietzcshe, a partir da ideia pré-cristã de tempo cíclico e de “eterno retorno”, que torna impossível a visão de história e de historicismo, exigidos pelo materialismo histórico e dialético de Marx.

E foi em grande parte graças a Marx que a história buscou a exatidão, o método rigoroso, a possível neutralidade, enquanto que a visão que Savigny tinha do direito invadiu a sociologia, a psicologia, a antropologia, mesmo quando sua orientação não é romântica. V. g., a sociologia de Weber, a antropologia de Franz Boas etc., e, no campo jurídico, o Idealismo Social de Gioele Solari. São seus prosseguimentos. Diz, realmente, nosso autor: 

“Savigny reabilita o passado e nele procura os germens do presente.

As normas e as instituições jurídicas readquirem valor em proporção de sua antiguidade. (…) Única e verdadeira geradora do Direito é a alma coletiva que se afirma nas instituições jurídicas, se perpetua nas tradições, se desenvolve e se encontra nos legisladores e nos juristas como seus fiéis e autorizados intérpretes”.26

E sobre o Marxismo reconhece: 

“O caráter científico do socialismo marxista não lhe advém de sua dependência das ciências físicas e naturais. O marxismo tem origem filosófica, não científica, e suas lutas são de fato independentes do movimento materialista que se desenvolvia contemporaneamente na Alemanha, sob a influência dos estudos físicos e biológicos. O mundo físico e natural estava fora da especulação marxista como ele estava fora da especulação de Hegel (sic)”. 

E mais: “Marx estuda, materialisticamente a história e, com isto, Marx entende encontrar a base nova e positiva do movimento socialista”. Mas “Marx não pretende considerar a história prolongamento da natureza e de suas leis, antes admite como vimos o voluntarismo nos fatos históricos e com isto exclui o determinismo físico materialista”. E explica melhor ainda:

“Compreender a história significava compreender a ‘fatalidade histórica’ do socialismo, a necessidade própria das coisas, a necessidade imanente na história mas sem o caráter de determinismo e fatalismo. É preciso não esquecer que para Marx são os homens mesmos que fazem a História”.

O que Solari nos quer dizer é que Marx foi muito mais hegeliano do que comumente se pensa: “[n]ão esqueçamos que Marx mais do que na  escola dos fatos tinha se formado intelectualmente na escola de Hegel: ele procura na História a prova renovada da lei dialética hegeliana”.27 

Todo o mérito de Solari está, a nosso ver, em ter reconhecido o idealismo que serve de base ao materialismo histórico, pois Marx nunca rompeu com a visão historicista nem com a dialeticidade do hegelianismo.

Apenas, e isto não é pouco, mas não é tudo, mostrou que as relações de produção estavam na base das transformações sociais, políticas, que todas seriam sua superestrutura, a ponto de assim definir o Estado e o direito, que por fim viriam a desaparecer…

A expressão “Marx inverteu Hegel” tornou-se algo de tão consagrado que muitos historiadores do Marxismo se esquecem da dívida eterna contraída com o Hegelianismo, de onde parte o achado magnífico que revolucionou não só a filosofia como a história e terá influência sobre a sociologia: a ideia de dialética, com o novo sentido que lhe emprestou Hegel, como processo normal do pensamento e da vida no universo.

Sendo materialista, na linha de um “Demócrito moderno”, e cientificista, Marx não chega, como Feuerbach, a negar o valor da dialética em nome do materialismo, mas, pelo contrário, utiliza a dialética para explicar a História em termos materialistas, disjuntando o hegelianismo enquanto idealismo do hegelianismo enquanto dialética. 

Exatamente porque consegue, em sua obra, conciliar o inconciliável aparente (idealismo = dialética, materialismo = perenidade) é que Marx provoca a Revolução, primeiro no campo das ideias, depois no campo dos fatos, sendo o grande inspirador da Revolução de Lenin em 1917.

Feita essa ressalva, não se pode negar que Marx investe contra o idealismo alemão, pós-hegeliano de seus contemporâneos, como uma construção típica da mentalidade burguesa, que fingia não ver a realidade à sua volta, para construir um mundo ideal, subjetivo, em que se vê claramente um “espiritualismo gnóstico” escondido, que Marx viu muito bem ao notar a “sacralização da história” operada por Hegel, como realização do espírito objetivo. Aliás, a própria ideia de “espírito não subjetivo” já marca caracteristicamente a obra sobre Hegel. Daí procedem os ataques violentos a Stirner, tanto quanto ao materialista Feuerbach ainda não liberto da metafísica kantiana e hegeliana.

Foi, no entanto, um contemporâneo de Savigny, e como tal bebeu no mesmo rico caudal do Historicismo, o que não se pode esquecer… E, de fato, é o que mais salienta Solari na obra L’idea sociale, ao dizer: 

“Labriola insiste sobre a visão profunda de Vico, repetida por Marx, ou seja, que a História é feitura humana e desdenha qualquer  aliança com a ciência das transformações animais inconscientes e fatais de toda natureza animal inferior. O homem não se move na natureza mas num mundo que ele mesmo criou, modificando a estrutura externa e fazendo-a servir a seus fins”.28

A discordância de Solari não se encontra, pois, no nível do Hegelianismo, que, para Solari, é indispensável para a compreensão de Marx. O que lhe repugna é o materialismo, que, não sem razão, vê aproximar o marxismo do Positivismo filosófico:

“A parte da doutrina marxista que mais oferecia o flanco às exagerações dos neófitos do socialismo era a teoria do materialismo histórico, ainda que se tratando de simples teoria e não de um simples cânone de interpretação da História, como gostaria Croce. Era esta a parte da doutrina de Marx mais fácil de ser subentendida. Por obra sobretudo de Loria, a doutrina do materialismo histórico assume um aguçado caráter materialista, não mais no sentido histórico, mas no sentido naturalista, caráter que não estava na mente do autor. (…) O próprio trabalho, que é conceito fundamental na economia marxista é um fato espiritual, é sempre um produto do homem. O problema da História em si é pois um problema psicológico no marxismo. Isto se entende se se recorda que o marxismo alemão se desenvolvia sob a dúplice influência da corrente hegeliana e histórica”.29 


4. O idealismo social e jurídico de Gioele Solari


4.1. O idealismo italiano no século XX


Poucos autores do século findo poderiam rivalizar com o italiano de Bergamo, Gioele Solari, por seu amplo domínio da História da Filosofia e da Política nos Tempos Modernos. Suas importantes obras “Individualismo e diritto privato”, “Storicismo e diritto privato”, “L’idea sociale”, “La formazione storica e filosofica dello Stato moderno”,“Studi storici di filosofia del diritto” demonstram cabalmente sua erudição, seu profundo conhecimento da essência das propostas dos grandes autores da Teoria do Estado e da Filosofia do Direito, aliados a notável senso crítico para desvelar consequências implícitas em autores consagrados.

Integrando o Idealismo de Hegel com o Positivismo de Auguste Comte retirou Solari as bases do seu “Idealismo Social e Jurídico”. Parece-nos que sua filosofia é eclética, reunindo contribuições hegelianas  com o amor pela história que lhe legou seu mestre Giuseppe Carle, autor, como vimos, de La Vita del Diritto.

Mas nem por isso nos parece escapar às categorias do Idealismo italiano de Croce e Gentile: ênfase sobre o ideal = ideia na composição do “mundo da cultura”, em que se inclui o direito, em tensão dialética com a sociedade. Mas, enquanto Croce e Gentile concluem pela inexistência de uma filosofia do direito (pois Croce reduz o direito à economia e Gentile o reduz à moral em ato), Solari lhe reconhece um campo específico: por isso o seu idealismo é também “jurídico”.

Mais ainda: poderíamos classificá-lo entre os jusfilósofos que empreendem uma análise crítica da dogmática. Ora, como se sabe, o próprio Positivismo filosófico implicava uma crítica da Escola de Exegese, em nome das leis do “empirismo organizador”, considerando-a uma fase ultrapassada e metafísica do direito. O comteano Léon Duguit chega a negar a existência de um “direito subjetivo”, como se sabe.

Qual a originalidade do Idealismo de Solari? Com ser crítico não cairia numa forma de Positivismo Comteano ou de Jusnaturalismo Escolástico?

A resposta é que Solari faz a crítica do Liberalismo, que identifica com o Individualismo, mas não rejeitando, e sim sublinhando os pressupostos do Liberalismo: liberdade e igualdade. Busca sua concreção na dialética entre sociedade e Estado, moral e direito, justiça e lei. É uma crítica interna corporis, uma “autocrítica” a partir dos princípios do Idealismo, que já estão explícitos desde Kant e chegam ao máximo desenvolvimento com, Fichte, Schelling e Hegel.


4.2. O idealismo social e jurídico e a dialética de oposição 


Como apontamos em nosso trabalho “Crítica idealista ao legalismo: a filosofia do direito de Gioele Solari” um traço incisivo do pensamento solariano é a ideia de oposição dialética entre norma jurídica e sociedade, no processo histórico. Ele não percebe uma dialética de implicação, como, por exemplo, Miguel Reale em sua teoria tridimensional do direito (cfr. verbete “Miguel Reale”), entre fato, valor e norma, mas uma dialética de oposição entre norma e fato, em cada mudança que se processa na história. 

Descreve de maneira detalhada a oposição social entre o os aristocratas e a burguesia, que culminou na Revolução Francesa de 1789-1799, para explicar a passagem do direito das ordenações do Antigo Regime para as constituições e os códigos do Liberalismo individualista do século XIX. 

Neste ponto, é um dialético bem hegeliano, mas frisando a importância do grupo social à maneira de Comte, Durkheim e Duguit de cuja “consciência coletiva” emergiriam novas leis. Daí o idealismo ser social e jurídico.

Quanto ao valor, sublinhado por Reale, Solari o reduz ao valor justiça, como valor supremo, quase um arquétipo platônico, mas submetido aos “corsi e ricorsi” da história, bem à maneira de Giambattista Vico, clássico recorrente na obra de Giuseppa Carle.

Como aconteceu com Platão cujas idéias foram difundidas por seu discípulo Aristóteles, como obra sua, também muitas intuições de Gioele Solari foram divulgadas por seu aluno em Turim, Norberto Bobbio,como este reconhece na obra “Italia Civile” (=Itália civilizada ), que escreveu para se contrapor ao livro de 1925 Itália Barbara do jornalista Curzio Malaparte, o qual insinuava que o fascismo era o único regime apropriado para os italianos.

A vida e a obra de Solari e de seus discípulos era um desmentido eloquente a esta afirmação.

Notas

1 SOLARI, Gioele. Studi di filosofia del diritto, pp. 25-71.

2 SOLARI, Gioele. Studi di filosofia del diritto, pp. 68.

3 SOLARI, Gioele. La formazione storica e filosofica dello Stato moderno, pp. 86-87.

4 SOLARI, Gioele. Scienza e metafísica del diritto in Kant, pp. 232, 233 e 239.

5 Cf. SOLARI, Gioele. Studi di filosofia del diritto, p. 255.

6 SOLARI, Gioele. Studi di filosofia del diritto, p. 261.

7 Cf. SOLARI, Gioele. Filosofia del diritto privato, v. 1 (individualismo e diritto privato), p. 377.

8 SOLARI, Gioele. La formazione storica e filosofica dello Stato moderno, pp. 141-142.

9 SOLARI, Gioele. La formazione storica e filosofica dello Stato moderno, pp. 115-116.

10 Idem, pp. 116-117.

11 SOLARI, Gioele. La formazione storica e filosofica dello Stato moderno, pp. 126-128.

12 Idem, p. 127.

13 Idem, pp. 142-143.

14 SOLARI, Gioele. Storicismo e diritto privato, pp. 3-4.

15 Idem, p. 4.

16 SOLARI, Gioele. Storicismo e diritto privato, p. 11.

17 Idem, p. 114.

18 SOLARI, Gioele. Storicismo e diritto privato, p. 12.

19 Idem, p. 36. Ver também: SAVIGNY, Friedrich Carl von. De la vocation de notre temps pour la legislation et la jurisprudence, p. 53.

20 SOLARI, Gioele. Op. cit., p. 115.

21 SOLARI, Gioele. Storicismo e diritto privato, p. 117.

22 Idem, p. 130.

23 SOLARI, Gioele. Studi storici, pp. 343-381.

24 CZERNA, Renato Cirell. Justiça e história, p. 426.

25 SOLARI, Gioele. Socialismo e diritto privato, p. 55.

26 SOLARI, Gioele. Socialismo e diritto privato, p. 154.

27 SOLARI, Gioele. Storicismo e diritto privato, p. 159.

28 SOLARI, Gioele. Socialismo e diritto privato, p. 179.

29 Idem, pp. 173-174.

Referências

BOBBIO, Norberto. Italia civile. Florença: Passigli Editore, 1986.

CARLE, Giuseppe. La Vita del Diritto. Turim: Fratelli Bocca, 1890.

CZERNA, Renato Cirell. Justiça e história. São Paulo: Editora Convívio: Editora da USP, 1987.

DE CICCO, Cláudio. Uma crítica idealista ao legalismo: a filosofia do direito de Gioele Solari. São Paulo: Editora Ícone, 1995.

__________________. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2014.

FASSÒ,Guido. Storia della filosofia del diritto. Bolonha: Editora Il Mulino, 1970. 3 Volumes.

SOLARI, Gioele. Studi storici di filosofia del diritto. Turim: Giapichelli, 1949.

__________________. La formazione storica e filosofica dello Stato Moderno. Turim: Giappichelli, 1962. 

__________________. Filosofia del diritto privato. Individualismo e diritto privato. Storicismo e  diritto privato. 2. ed. Turim: Giappichelli, 1959. 2 Volumes. 

__________________. Socialismo e diritto privato. Milão: Giuffrè, 1980. [Publicação póstuma.]


Citação

DE CICCO, Cláudio. Gioele Solari e o idealismo social e jurídico . Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/154/edicao-1/gioele-solari-e-o-idealismo-social-e-juridico-

Edições

Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Maio de 2017

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