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O conceito de direito em Hart
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Katya Kozicki
,William Pugliese
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Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Maio de 2017
Herbert Lionel Adolphus Hart (Harrogate, 18 de julho de 1907 – Oxford, 19 de dezembro de 1992), referido como H. L. A. Hart foi professor de Teoria do Direito (Jurisprudence) da Universidade de Oxford, de 1952 a 1968. Sua obra O Conceito de Direito é um marco do pensamento jurídico do século XX. Hart foi um dos responsáveis pela aproximação da filosofia da linguagem com o Direito, sendo também um dos principais nomes vinculados ao positivismo jurídico. Tamanha foi a contribuição e a relevância de sua obra que grande parte da produção científica da Teoria do Direito, após a publicação da primeira edição do Conceito de Direito, acolhia ou rejeitava suas premissas, sem deixar de considerá-las. Assim, Hart influenciou toda uma geração de juristas, tais como Ronald Dworkin, Joseph Raz e Neil MacCormick. Seu trabalho ainda é discutido em escolas de Direito de todo o mundo.
1. H. L. A. Hart: vida e observações iniciais sobre O Conceito de Direito
Herbert Lionel Adolphus Hart – H. L. A. Hart – é uma das provas de que a relação entre a teoria e a prática do Direito é inextricável.1 Nascido em 1907, em Harrogate, no Reino Unido, estudou história e filosofia na New College, da Universidade de Oxford.2 Em seguida, decidiu dedicar-se ao estudo do Direito, tendo sido aprovado nas provas do “Bar” e admitido como advogado em 1932. Por oito anos, Hart exerceu a advocacia nas cortes de Chancery do Reino Unido. Suas áreas de atuação eram, principalmente, responsabilidade civil, família, sucessões e tributos. Neste período, foi convocado para assumir uma cadeira na New College, mas recusou, pois tinha ambições na advocacia.
O rumo da vida de Hart mudou, assim como o rumo da imensa maioria dos ingleses, com a guerra. Neste período, Hart assumiu um posto do funcionalismo público na inteligência militar britânica. Curiosamente, seu interesse pela filosofia foi reacendido por dois colegas que também trabalhavam na inteligência durante a guerra. Os dois eram filósofos de Oxford3 e, nos intervalos, suas conversas costumavam se voltar para a filosofia.
Passados os anos de conflito, a New College renovou o convite a Hart para assumir uma de suas cadeiras de filosofia. Hart aceitou o desafio de, após dezesseis anos de vida prática como advogado e servidor público, desenvolver um trabalho intelectual e acadêmico. A cadeira, repita-se, era de filosofia, de modo que Hart não cogitava desenvolver relações entre este tema e questões jurídicas. No entanto, sua experiência profissional se mostrou relevante para discussões da época na filosofia: a manipulação da linguagem que Hart praticava como advogado vinha sendo estudada academicamente pelos filósofos. Assim, os temas começaram a se aproximar.
Em 1952, Arthur Goodhart afastou-se da cadeira de Teoria do Direito, de Oxford. Apesar das poucas publicações, a combinação de conhecimento filosófico aliado ao prático-jurídico fizeram com que Hart, ao invés de outros candidatos, fosse apontado como sucessor da cadeira. Esta decisão, tomada em Oxford, certamente mudou os rumos do Direito.
Sua primeira conferência como professor de Teoria do Direito já provocou controvérsias ao defender que os juristas deveriam analisar o uso da linguagem no Direito. No entanto, os efeitos das propostas hartianas de relacionar a filosofia da linguagem com o Direito só atingiram uma audiência maior com a publicação de suas primeiras obras. Em 1959, Causation in the Law, escrito em coautoria com Tony Honoré,4 já se utilizava de recursos linguísticos para compreender o significado e o conceito de causa no Direito.
A obra seminal de Hart, porém, foi publicada em 1961. O Conceito de Direito,5 em sua primeira edição, é considerado, mesmo por seus maiores críticos, uma das obras primas da Teoria do Direito do século XX. Por hora, vale dizer que grande parte da Teoria do Direito contemporânea passa pela discussão se adota ou refuta as premissas de Hart. Mais sobre O Conceito de Direito, porém, será desenvolvido adiante.
Após a publicação do Conceito de Direito, Hart seguiu na cadeira de Teoria do Direito até 1968. Neste período, publicou Law, Liberty and Morality (1963), The Morality of the Criminal Law (1965) e Punishment and Responsibility (1967). Além disso, envolveu-se em muitos trabalhos editoriais, dirigindo revisões de clássicos como John Austin e Jeremy Bentham. Justamente por essas atividades, Hart renunciou sua cadeira em Oxford para dedicar-se à pesquisa e a cargos administrativos (foi, por exemplo, diretor da Brasenose College, também da Universidade de Oxford). De todo modo, até sua morte, em 1992, Hart procurou responder seus críticos, o que fez de modo substancial em um pós-escrito ao Conceito de Direito, o qual foi publicado apenas em 1994.6
Como exposto, a Teoria do Direito de Hart é resultado da combinação de sua experiência prática e de suas incursões na filosofia. Isto fez com que O Conceito de Direito marcasse não apenas uma nova etapa no pensamento jurídico, mas também uma nova metodologia calcada na filosofia da linguagem7 – até então desconhecida dos juristas.
Ao iniciar propriamente a análise do pensamento hartiano, as preocupações iniciais tratam de compreender o problema da obrigação jurídica e a estrutura do sistema jurídico, tal como Hart os concebe.
Nesta perspectiva, o item 28 busca responder aos seguintes problemas: o do caráter obrigatório do Direito e o da forma pela qual ele atua na vida dos sujeitos participantes do sistema. Para tanto, analisam-se alguns jogos linguísticos que podem expressar a imposição de condutas e a forma pela qual os participantes do jogo “leem” o Direito. Outrossim, é possível conceber o Direito como um jogo de linguagem, tomando os diversos enunciados jurídicos como possibilidades de jogos linguísticos – o que demanda a compreensão do caráter normativo destes enunciados. Nesta concepção hermenêutica reside a importância do intérprete enquanto sujeito do conhecimento. Isso remete à outra órbita da questão, qual seja, o problema da aplicação do Direito.
O item 3 apresenta uma análise da estrutura do sistema jurídico, enquanto união de normas primárias e secundárias. O problema da validade jurídica está, em Hart, indissociavelmente ligado à regra de reconhecimento, motivo pelo qual esta merece especial atenção. O item também trata da textura aberta do Direito e dos problemas que dela advêm.
2. O conceito de obrigação em Hart
Há uma convergência entre as várias correntes que buscam a compreensão do Direito – especialmente no assim chamado positivismo jurídico9 – no sentido de atribuir importância à noção de obrigação jurídica. De certa forma, poder-se-ia dizer que é a explicitação de certos comportamentos como obrigatórios – ou não – que permite a apreensão do significado do fenômeno jurídico. Ou seja, compreender o Direito seria, antes de mais nada, a compreensão do “conteúdo obrigatório” de suas normas.
Isto é tão mais verdadeiro quando se busca a posição de Hart frente ao Direito. Se é certo – como de resto em toda sua obra – que este autor não nos fornece um “conceito” ou “definição” do termo obrigação, preferindo, ao invés, explicar o termo dentro do seu contexto de utilização, também é certo que este serve praticamente como um “fio condutor” no sentido de explicitar o fenômeno jurídico. Assim, para Hart “onde há direito, aí a conduta humana torna-se em certo sentido não facultativa, obrigatória”.10
Ao mesmo tempo em que Hart destaca a importância de caracterizar o que é uma obrigação (vale dizer, em que contexto as condutas são ou não obrigatórias), ele vincula diretamente a obrigação à existência de uma regra. Com isto se quer dizer que, em certo sentido, onde existe uma obrigação haverá, por certo, uma regra a estabelecê-la, uma pauta objetiva para atuar (ainda que, ao contrário, nem toda regra prescreva, necessariamente, uma obrigação). Hart afirma que “existe um mundo inteiro de questões onde a obrigação e o dever estão verdadeiramente em casa: este mundo é o direito, já que ambas as expressões resultam quase sempre apropriadas para toda proibição em virtude das normas de um sistema jurídico em vigor”.11
Dentro da tradição hermenêutica em que se insere a sua obra, Hart analisa o Direito, antes de mais nada, como um fato institucional.12 Nesta perspectiva, ele supera a noção imperativista de obrigação de John Austin,13 bem como a noção preditiva da obrigação jurídica,14 cara ao realismo jurídico. Ao conceber o problema da obrigatoriedade jurídica como um fato social, ou seja, relacionada à “prática efetiva do participante do grupo social”,15 Hart evidencia a importância de uma abordagem hermenêutica do Direito. Com isso, quer-se dizer que não basta a análise do Direito como comportamento governado por regras ou a consideração de que o Direito é uma antecipação do que os tribunais farão. É necessário, nesta ótica, a compreensão do “ponto de vista” do participante do sistema. Isto só é possível a partir da elucidação da forma com os membros da coletividade atuam no sistema e recebem suas prescrições.
Este item procura situar a tematização hartiana da noção de obrigação. Com este intento, o primeiro objetivo será compreender de que forma as regras sociais se diferenciam dos meros hábitos de comportamento. A partir da compreensão do ponto de vista interno e do ponto de vista externo do participante do sistema, é também possível compreender a diferença fundamental existente nos jogos de linguagem “ter uma obrigação“ e “ser obrigado a“. Da mesma forma, é a partir do ponto de vista interno das regras que se pode tematizar a questão de ser ou não possível um conhecimento do Direito sem aceitação, o que nos levará ao problema da aplicação do Direito. Por último, evidencia-se de que forma a obrigação jurídica se contrapõe à obrigação moral.
2.1. As diferenças das regras sociais e dos hábitos de comportamento
A caracterização acerca das regras sociais surge em Hart quando este toma como evidente que o Direito não pode ser entendido apenas como um conjunto de hábitos sociais. Ainda que estes dois grupos – regras e hábitos – tenham em comum a generalidade (ou seja, dirigem-se e normalmente são aceitos pela maioria das pessoas), possuem nítidos traços que os diferenciam e devem ser ressaltados. Aliás, Hart estrutura grande parte de seu pensamento em dicotomias (no caso presente, regras x hábitos), explicitando o significado dos termos a partir de sua oposição a outros que, se não lhe são antagônicos, deles se diferenciam muito.
Afora a semelhança acima ressaltada – a generalidade de que se revestem regras e hábitos – eles se diferenciam basicamente em três aspectos, de que passaremos a tratar.
Primeiramente, a mera convergência de comportamento de um grupo basta para configurar que ele tem um hábito. O hábito se caracteriza independentemente de se o desvio a ele é ou não objeto de crítica. Ao contrário, a mera convergência de atitudes – padrão dos membros do grupo não basta para caracterizar a existência de uma regra. Para que seja correto falar em regras – no sentido de uma pauta objetiva de atuação – é necessário que o desvio a elas seja não somente objeto de crítica mas também que haja uma pressão social no sentido de atuar conforme a regra.16
Em segundo lugar, quando se está frente a uma regra, o desvio ao padrão de comportamento por ela imposto não só determina a realização de críticas mas também determina que elas sejam encaradas como legítimas ou justificadas.17 Ou seja, em ocorrendo desvio na conduta recomendada pela regra, serão formuladas críticas a esses desvios. Porém, mais importante, é que tanto aqueles que fazem estas críticas quanto – em sua maior parte – aqueles a quem elas são dirigidas, aceitam-nas como justificadas ou justificáveis. Afinal, o participante, a par da identidade e generalidade de comportamentos que levaram ao estabelecimento da regra, “interiorizou“ a pauta de atuação nela contida. Isto leva à mais importante distinção entre regras e hábitos.
As regras sociais – ao contrário dos simples hábitos – possuem um aspecto interno e um aspecto externo. O aspecto interno diz respeito ao participante do grupo, aquele que aceita a regra como norma de comportamento, mas que a tem também como um padrão geral de comportamento a ser aceito pelo grupo como um todo. Em contraposição, o aspecto externo da norma diz respeito àquele observador externo ao sistema, que não aceita a conduta imposta pela norma (ou a ela é indiferente) – ainda que possa atuar segundo seu comando -, limitando-se à verificação daquele comportamento físico e regular, perceptível a qualquer um. Esse aspecto externo é possuído pelas regras sociais e também pelos hábitos.
Em que medida estas distinções entre regras e hábitos permite esclarecer melhor a noção de obrigação?
Segundo Nelson Reyes Soto,18 isto se dá por dois motivos: “1) porque a existência de tais regras é o fundo normal ou contexto próprio, ainda que não expresso, de tal enunciado (obrigação), e 2) porque a função distintiva deste último é aplicar tal regra a uma pessoa particular, destacando o fato de que seu caso está compreendido por ela”.
Hart considera que, em havendo Direito, haverá a imposição de condutas, no sentido de estabelecer-se comportamentos obrigatórios, não-facultativos. Também já se destacou que “(a) afirmação de que alguém tem ou está sujeito a uma obrigação traz na verdade implícita a existência de uma regra; todavia, nem sempre se verifica o caso de, quando existem regras, o padrão de comportamento exigido por elas ser concebido em termos de obrigação”.19 Com frisa-se que: a) o Direito se caracteriza por estabelecer obrigações; b) é através das regras que estas obrigações são estabelecidas e c) embora as regras imponham obrigações (ou melhor, que as obrigações estejam enunciadas nas regras), nem toda regra contém necessariamente uma obrigação.
Da oposição entre regras e hábitos sociais, é possível identificar três traços que caracterizam as regras como obrigatórias.
Em primeiro lugar, a constatação de que a procura de conformidade às regras é acentuada, havendo uma forte pressão social no sentido de que elas sejam respeitadas. Em segundo lugar, estas regras são tidas – pela maioria dos membros do grupo – como “boas” ou, no mínimo, convenientes. E, por fim, Hart sustenta que “(...) é geralmente reconhecido que a conduta exigida por estas regras pode, enquanto beneficia outros, estar em conflito com o que a pessoa que está vinculada pelo dever pode desejar fazer”.20 Ou seja, a conduta imposta pela norma pode ir de encontro ou ir contra aquilo que a pessoa poderia pretender fazer naquele momento.
Na realidade, o caráter obrigatório da regra deriva em grande parte da pressão social que é exercida no sentido de vê-la respeitada e isto independe de estar o seu destinatário em acordo ou desacordo a ela. Embora também seja verdadeiro que é a “aceitação” da regra como conveniente ou não pelo grupo que leva a sua inclusão no sistema (aceitação, neste sentido, não envolve aprovação valorativa21). Em última análise, esta “aceitação” terá sempre um conteúdo ideológico, norteador dos ideais do grupo.
É precisamente neste último ponto que reside a importância do que vem a ser o “aspecto interno e o aspecto externo“ das regras, inclusive no sentido de superar a teoria da obrigação jurídica de John Austin.
2.2. O ponto de vista hermenêutico
2.2.1. Pontos de vista interno e externo das normas
Conforme acentua José Lamego,22 é a partir da correta análise do que vem a ser o ponto de vista interno das regras que se pode não só superar a teoria preditiva clássica (marcadamente de John AUSTIN), como também estabelecer a diferença fundamental existente entre os jogos de linguagem “ter uma obrigação“ e “ser obrigado a“. Também é a partir dessa análise que será permitido delimitar em que medida é possível um conhecimento do Direito sem aceitação. Por fim, é a partir desta análise que será possível avançar nas teorias jusnaturalistas, as quais não esclarecem suficientemente as especificidades da obrigação moral e da obrigação jurídica preferindo, ao invés, identificar sempre um caráter “moral” das regras jurídicas.
Na esteira da Filosofia da Linguagem Ordinária de Wittgenstein e J. L. Austin,23 Hart assume a noção de que a linguagem não se presta à função de mediador entre o sujeito e a realidade (mediação sujeito-objeto) mas reconhece nela um fator fundamental de mediação na relação sujeito-sujeito. Da linguagem como representação da realidade através de signos e símbolos próprios (característica de Wittgenstein na sua chamada primeira fase, a do Tractatus Logico-Philosophicus), parte-se para uma concepção dos fenômenos sociais na qual se destaca a mediação intersubjetiva realizada por ela. Ou seja, ressalta-se a instrumentalidade da linguagem não mais como representativa de objetos ou referente à realidade e sim como instrumento de mediação dentro de uma situação comunicacional.
Com isso opera-se um deslocamento do aspecto semântico da linguagem (aquele que se relaciona aos objetos por ela designados), que nos permite estabelecer condições de verdade para os enunciados linguísticos, para o âmbito pragmático da linguagem. Ou seja, entende-se esta enquanto uso, enquanto modo de significar. Uma análise pragmática da linguagem importa uma verificação do contexto em que se realiza o processo de comunicação. É essa mediação sujeito/sujeito, realizada pela linguagem, que interessa ao conhecimento interpretativo ou hermenêutico.
Verdadeiramente, é esta teoria do significado a partir de uma base pragmática que vai permitir a “atuação (applicatio) do sistema no ato discursivo concreto“.24 É dentro desta perspectiva – acentuadamente hermenêutica – em que o ponto de vista determinante é o do intérprete, que a concepção de Hart acerca do fenômeno da obrigatoriedade jurídica é construída.
2.2.2. O intérprete
Em Hart, compreender o Direito passa a ser, necessariamente, compreender o seu caráter institucional, o que demanda um ponto de vista “interno“ na compreensão do seu sentido.
O que se chama ponto de vista interno ou “aspecto interno das regras” é pressuposto da compreensão das regras que compõem a prática institucional. A explicitação de noções como a de regra ou obrigação jurídica só pode ser feita a partir do conhecimento das “regras constitutivas” do sistema, da gramática do jogo de linguagem em questão. Existe, dessa forma, uma circularidade na compreensão dos significados. É também neste sentido que se afirma ter Hart estabelecido uma noção social de obrigação.
Explicitando o que vem a ser o aspecto interno e externo, Hart aponta:
“(...) [q]uando um grupo social tem certas regras de conduta, este fato confere uma oportunidade a muitos tipos de asserção intimamente relacionados, embora diferentes, porque é possível estar preocupado com as regras, quer apenas como um observador, que não as aceita ele próprio, quer como membro de um grupo que as aceita e usa como guias de conduta”.25
O primeiro representa o ponto de vista externo do intérprete e o segundo o ponto de vista interno.
O ponto de vista externo – ou do observador do sistema – pode assumir diferentes formas. Neste aspecto, o observador pode referir-se à forma sob a qual os membros do grupo comportam-se de acordo com as regras, destacando o ponto de vista interno que estes adotam. Mas ele pode também contentar-se com a mera observação de padrões regulares de conduta em conformidade com as regras, observando também que às atitudes em desconformidade a estas se seguirão reações hostis por parte dos membros do grupo. Neste último sentido, é possível ao observador externo “predizer” a sanção ou castigo que será imputado àquele que violar a regra.
Nesta linha de raciocínio, Hart sustenta que este observador jamais poderá se referir àquela regularidade de comportamentos como vinculada a regras, ou a noções que lhes são vinculadas, como obrigação e dever. “Em vez disso, será feita em termos de regularidades observáveis de conduta, de predições, de probabilidades e de sinais”.26 Este ponto de vista pode reproduzir de forma aproximada a maneira como as regras funcionam. Não lhe será possível, porém, a compreensão de como as pessoas que aceitam tais regras e que pautam suas condutas em conformidade a elas o fazem. Também não lhe será possível a compreensão da aceitação que aquelas pessoas têm do sistema.
Ao contrário, tem-se que em Hart, para entender o aspecto interno do Direito, é necessária “(...) uma atitude crítico-reflexiva em relação a certos tipos de comportamento enquanto padrões comuns e que ela própria se manifeste crítica – incluindo autocrítica – em exigências de conformidade e no reconhecimento de que tais críticas e exigências são justificadas”.27
O ponto de vista interno exige, assim, um elemento cognitivo (atitude reflexiva) e um elemento volitivo (atitude crítica). O elemento cognitivo manifesta-se na descoberta da correlação entre certos atos (e suas consequências) e o conteúdo da regra de conduta. Esta correlação dá origem a padrões de conduta em consonância com a norma. Já o elemento volitivo refere-se ao desejo ou preferência que este padrão se mantenha, para o sujeito que formula o enunciado e para os outros.
O ponto de vista interno é um reflexo da maneira pela qual o grupo encara o seu comportamento de acordo com as normas, utilizando-se delas como base para a sua conduta social. Ao mesmo tempo, deste ponto de vista, justifica-se a hostilidade para com aqueles que violam as normas do grupo. O formulador deste raciocínio age de acordo com as regras e as aceita como tal, esperando que os outros ajam da mesma forma.
É este ponto de vista interno que posiciona o participante frente ao sistema jurídico, permitindo-lhe a exata compreensão da dimensão do seu significado. Esta apreensão do significado jamais será possível ao observador externo. Para Lamego “(a) rejeição de um paradigma puramente observacional ou ‘externo’ na análise dos fenômenos da interação humana é comum quer à tradição hermenêutica quer a algumas orientações no âmbito da filosofia analítica e da ação”.28 Ainda, segundo este autor, “(o) comportamento significativo é um comportamento governado por regras – a explicitação do seu sentido implica a apreensão de tais regras – e não uma mera regularidade de conduta ou convergência de hábitos de comportamento”.29
É deste aspecto interno que Hart ressalta a noção de obrigação, explicitando-a na oposição “ser obrigado a” e “ter uma obrigação”. Essa distinção será examinada no item a seguir.
2.2.3. “Ser obrigado a” e “ter uma obrigação”
Para Hart, a afirmação “ser obrigado a” (ou, na sua forma pretérita “foi obrigado a“) é, frequentemente, uma afirmação respeitante às crenças e motivos que levam o sujeito a comportar-se de tal ou qual forma. Geralmente estes “motivos de obediência“ estão vinculados à convicção do sujeito de que um mal lhe seria infringido caso não se comportasse de acordo com o comando.
Analisando o enunciado “ser obrigado a”, verifica-se que se trata de um enunciado constatativo, no sentido de que demonstra (declara) a convicção do sujeito de estar vinculado ao cometimento da ação. É, de início, um ato ilocutório, visando à produção de um efeito pelo receptor. Isto significa que o locutor utiliza a sentença com o intuito de obter a realização da conduta pelo destinatário dela, influenciando-o na sua esfera de decisão. Num segundo momento, aquele ato ilocutório inicial pode servir de veículo para a realização do ato perlocutório (se o locutor logra êxito com a ordem proferida, isto é, se o destinatário a executa).
É precisamente por esta possibilidade do ato assumir distintamente a configuração de locutório, ilocutório e perlocutório que se pode começar a compreender as diferenças entre ambas as expressões. Para Hart, a expressão “foi obrigado a” representa nitidamente a implicação de que o sujeito destinatário do ato ilocucional realizou a ação pretendida. Ou seja, proferido o enunciado (no caso um comando ou ordem), seu destinatário seguiu o comando e produziu o efeito pretendido.
Ao contrário, o enunciado “ter uma obrigação” não conduz à implicação de que a pessoa efetivamente se comporta como pretendido. Assim, a expressão “foi obrigado a” deve-se ao proferimento performativo “ser obrigado a”, sendo este um ato perlocutório, significando que a ação do locutor conseguiu (atingiu) o resultado por ele pretendido. Já o enunciado “ter uma obrigação” pode alcançar ou não o “estágio perlocucionário“, conforme aquela conduta entendida como obrigatória seja ou não realizada.
Prosseguindo no estabelecimento das distinções que Hart ressalta, vê-se que o enunciado de que alguém “tinha a obrigação de” é um enunciado que independe de quaisquer motivações psicológicas por parte do sujeito que o recebe. Assim, o sujeito pode ter a obrigação de comportar-se de determinada forma, ainda que em seu íntimo não se sinta “obrigado a fazê-lo”. Esta enunciação é, assim, geralmente um ato constatativo (ou locucional), no sentido de que declara a obrigação (descreve-a), sem que se vincule a sua realização e, também, no sentido de que não acarreta a implicação da realização da conduta.
Em síntese, o enunciado “ser obrigado a” é uma ilocução, a qual visa à produção de um efeito no receptor, assumindo então um caráter performativo. Inversamente, o enunciado “ter uma obrigação” declara uma situação referida, cujo objetivo pode ou não se realizar. A primeira expressão dá conta da relação de causalidade entre o resultado e suas motivações, mas não explicita nenhum caráter normativo do enunciado. Somente a expressão “ter uma obrigação” pode dar conta deste segundo aspecto.
Com estas constatações Hart supera o conceito imperativista ou preditivo da obrigação de John Austin. A teoria preditiva da obrigação, de John Austin, trabalha o conceito de obrigação ou dever a partir da ideia de previsão ou probabilidade de um castigo quando do seu inadimplemento.30 Hart contesta esta teoria com base nos aspectos que se passa a enunciar.
A objeção mais simples que Hart levanta a esta teoria é a de que nem sempre há coincidência entre o enunciado de que alguém tinha uma obrigação e o enunciado de previsão da probabilidade de um castigo em caso de descumprimento da obrigação. Ou seja, o sujeito pode furtar-se ao cumprimento da obrigação e mesmo assim não sofrer nenhuma sanção.31
Por outro lado, a análise da afirmação da obrigação como cálculo das probabilidades da imputação de sanção encobre o fato de que, ainda que os desvios de comportamento sofram reações hostis, o uso ou função característico do termo obrigação não consiste em predizer a sanção e sim “dizer que o caso de uma pessoa cai sobre tal regra”.32
Porém, a objeção fundamental que Hart faz a esta teoria deriva do fato de que, quando da existência de regras sociais, o seu descumprimento não é um fundamento para que se preveja a imputação da sanção. O desvio da regra representa, na realidade, a “razão ou justificação” para o castigo.33
Hart supera, com a distinção levantada entre os dois enunciados, não só a teoria de John Austin, como também a corrente que pretende ver por trás do conceito de obrigação somente sentimentos de compulsão ou pressão social.
2.3. O problema da “aplicação” no direito
Este item volta-se à compreensão da aplicação do Direito, bem como o fato de o problema do aspecto interno e externo das regras remeter à questão de saber se é possível (e em que medida) um “conhecimento sem aceitação“ do Direito.
Mesmo se o conhecimento derivar do ponto de vista interno, da “apreensão” das regras constitutivas do sistema, ainda assim existe a possibilidade de um conhecimento sem aceitação (ou seja, compreensivo mas sem aceitação das regras e instituições). No Direito, a interpretação correta das regras ou das práticas judiciais (de um ponto de vista interno) não implica, necessariamente, a adoção de tais regras ou práticas. Neste sentido, Hart não dá conta de que a correta compreensão dos enunciados não os torna vinculativos.
Isto nos interessa no sentido de situar a questão da aplicação do Direito, ou a maneira como os “funcionários do sistema” atuam com os instrumentos jurídicos. Do ponto de vista, por exemplo, do estudante de Direito, basta que ele assuma um ponto de vista interno para a compreensão do fenômeno jurídico. Porém, no tocante ao aplicador da lei, aquele que a vai pôr em prática, tal ponto de vista não é suficiente. A interpretação operativa (exercida pelos juízes) requer mais do que isso: a aceitação das regras do sistema.34
Do juiz, espera-se que, além de compreender as normas, possua um grau de comprometimento com o sistema, uma vez que a atividade decisória não se esgota com o “compreender”. O comprometimento significa um conhecimento com aceitação. O juiz, a par de compreender as normas e de estar apto a adequar os fatos às hipóteses normativas, deve possuir a convicção de tomar os enunciados em questão como enunciados vinculativos. Entendemos então, por aplicação (applicatio), aquela linguagem normativa utilizada pelo juiz: a atuação do Direito nesse caso.
A aplicação revela, então, a problemática existente entre conhecimento e ação; no Direito, a questão de como se relacionam o seu conhecimento e a sua aplicação. Para Lamego, é esta possibilidade de conhecimento sem aceitação que vai permitir um conhecimento “analítico-formal” do Direito sem resvalar para uma abordagem crítico-valorativa.35 Ao mesmo tempo, esta possibilidade de “saber descomprometido” também afirma a possibilidade de um analista da prática social compreender perfeitamente o seu funcionamento (sob um ponto de vista interno) sem a ele se vincular (por exemplo: o professor de Direito anarquista que compreende o sistema jurídico, mas não o aceita).
2.4. Obrigação moral e obrigação jurídica
O próximo passo para a compreensão de Hart é esclarecer de que forma a obrigação jurídica se diferencia da obrigação moral.
Para Hart, existem dois grandes setores nos quais a moral se divide e que importam distintas considerações: o setor da moral individual e o setor da moral coletiva.36 O campo da moral individual diz respeito àquelas pautas de regulação da conduta que se reportam ao indivíduo em especial, mas que não são partilhadas por um número especial ou relevante de pessoas. Ao contrário, a moral coletiva se reporta àquelas pautas de conduta que são aceitas e compartilhadas por um grupo social.
A chamada moral coletiva possui alguns traços que, para Hart, marcam a sua oposição àquela moral individual. O primeiro destes traços é que a moral coletiva se assenta sobre determinadas regras – pautas de conduta – compartilhadas pelo grupo e que se diferenciam das demais regras, quer pela pressão social séria que as sustentam, quer pelo “considerável sacrifício” dos interesses ou inclinações individuais em que o seu cumprimento implica. Em segundo lugar, esta moral engloba também determinados ideais do grupo social. E, por último, esses princípios e ideais referidos pelo grupo servem também como um instrumento de crítica no momento da violação da regra moral.37
Hart reconhece a semelhança existente entre regras de obrigação jurídica e regras de obrigação moral, considerando que “(e)m qualquer comunidade há uma sobreposição parcial de conteúdo entre a obrigação moral e a obrigação jurídica”.38 O autor apresenta os seguintes traços de semelhança entre os tipos de obrigações:
“(...) são semelhantes na medida em que são concebidas como vinculativas, independentemente do consentimento do indivíduo e são sustentadas por uma pressão social séria para a sua observância; o cumprimento das obrigações, quer jurídicas, quer morais, é encarado não como motivo de elogio, mas como um contributo mínimo para a vida social que é tomado como coisa corrente”.39
A noção de obrigação de Hart possui um caráter nitidamente social. Quer isso dizer que é impossível precisar esse conceito fora de um espaço institucional, no qual a interação dos sujeitos funda-se em determinados acordos e convenções. Também a moral se situa neste contexto, sendo primordialmente social. Assim é que “[e]sta consiste en reglas sociales de conducta que en gran medida (por lo menos si consideramos a las reglas en que se formulan deberes como el nucleo de la moralidad) se preocupan de asegurar las condiciones necesarias que se requieren para mantener la vida social”.40 Hart também nega que exista, necessariamente, uma autoridade moral intrínseca ao Direito e propõe como base de sustentação do sistema jurídico uma certa colaboração dos sujeitos, os quais se “comprometem” e vinculam-se às regras por ele estabelecidas.
Em Hart, a noção de obrigação está vinculada a uma pauta de avaliação dos compromissos e resultados. Ou seja, aceitar uma obrigação é aceitar se submeter a uma pauta de avaliação a ela referente. Em outras palavras, é submeter-se a uma crítica (que pode ser produzida tanto em padrões legais quanto em padrões morais). A crítica de um comportamento pode ser baseada em apenas um ou em ambos estes padrões. Assim como a moral, Hart também evidencia a obrigação moral como nitidamente convencional, com “implicações normativas gerais da obrigação moral”.41 Na realidade, a obrigação jurídica e a obrigação moral são espécies distintas de um mesmo gênero. É preciso, em seguida, diferenciá-las.
Na visão hartiana, as distinções podem ser estabelecidas a partir de quatro pontos fundamentais: a) importância; b) imunidade à alteração deliberada; c) caráter voluntário dos delitos morais; d) a forma de pressão moral.42
Quanto à importância, temos que as regras morais são mantidas e respeitadas ainda quando vão de encontro aos interesses e emoções individuais, exigindo uma grande dose de sacríficio do indivíduo. Também nesta ótica, existe uma pressão social bastante séria, não só para que as regras que impõem obrigações morais sejam respeitadas, mas também para que elas continuem a ser disseminadas no interior do espaço público.
Porém, Hart rejeita uma abordagem utilitarista das regras morais, argumentando que em muitos setores da vida em comunidade as regras morais não trazem nenhuma contribuição à consecução do bem comum e mesmo assim são mantidas. De acordo com uma abordagem utilitarista, uma regra moral só obriga e só tem razão de existir enquanto forma de propiciar alguma parcela de bem-estar para a população. Caso não possa servir a esta finalidade, não haveria razão para que continuasse a existir enquanto pauta de conduta que deve ser respeitada pelos sujeitos da coletividade. Hart rejeita esta abordagem justamente por verificar que isto não ocorre. Para tanto, traz à baila a questão da moral sexual, cujos desvios são repudiados não por serem socialmente prejudiciais, mas por considerações de outras ordens, como vergonha, pudor e intolerância.43
Ao contrário, as regras jurídicas podem – em um dado momento – já não se revestirem de importância alguma, mas continuarem a valer como regras porque o sistema jurídico ainda não se encarregou de extingui-las.
A imunidade à alteração deliberada é um dos aspectos nos quais a distinção se apresenta de forma mais nítida. Uma das características mais evidentes das regras jurídicas é o fato de estarem elas sempre aptas a criação, modificação ou extinção por um ato legislativo convencional. Em oposição a elas, as regras morais não podem ser criadas, alteradas ou extintas por este modo (intencional), podendo, porém, ser alteradas por outras formas. A evolução natural da sociedade pode determinar que um certo fato, antes considerado imoral, deixe de sê-lo. Bem assim, a aceitação no sistema jurídico de uma conduta antes imoral pode ocasionar a mesma alteração. Ocorre é que as regras morais não podem ser alteradas por atos intencionais.44
No tocante ao caráter voluntário dos delitos morais, temos que nele está compreendido o problema da responsabilidade moral e jurídica. No plano moral, uma conduta pode ser desculpada ou justificada, demonstrando-se que a pessoa não poderia prever o resultado produzido (culpa) ou, ainda, que não “queria” produzi-lo (dolo). Ao contrário, o Direito pode estabelecer pautas de responsabilidade objetiva, a sancionarem o autor da conduta, ainda que este tenha atuado sem dolo ou culpa.
Por último, quanto à forma da pressão moral, temos que esta é dirigida fundamentalmente no sentido de destacar a “importância das regras em si mesmas”, apelando-se para a consciência do indivíduo e reportando-se, apenas de forma secundária, ao “castigo” que poderá sobrevir ao descumprimento da regra. Já as condutas exigidas juridicamente vinculam-se de modo muito mais imediato à ameaça de sanção em caso de descumprimento.
Em suma, para Hart são estas as principais diferenças entre a obrigação moral e a obrigação jurídica. Por outro lado, esta exposição deixou de enfrentar diretamente o problema das regras jurídicas, que será examinado no próximo item. Ao fazer a caracterização das regras jurídicas, porém, destaca-se ainda mais sua contraposição às regras morais.
3. O conceito de direito de H. L. A. Hart: estrutura do sistema jurídico e textura aberta
É a partir da crítica sistemática ao pensamento de John Austin, para quem o Direito é um modelo “simples” de ordens coercitivas, que Hart busca compreender a estrutura e o funcionamento do sistema jurídico. Para tanto, ele identifica três “defeitos” ou “falhas” na teoria de John Austin.45 Em primeiro lugar, o modelo do Direito como ordens baseadas em ameaças não dá conta do caráter auto-vinculante da legislação, uma vez que as leis também se aplicam àqueles que as criam. Em segundo lugar, aquela parte do Direito na qual são constituídos poderes públicos ou privados não se adaptaria de forma alguma à noção de ordens baseadas em ameaças. Por fim, tal modelo também é incapaz de explicar a continuidade da autoria legislativa existente nos sistemas jurídicos modernos.
Avançando na análise desta teoria, Hart substitui esse modelo “simples” do Direito por um modelo complexo, no qual este é encarado como a união de normas primárias e secundárias. Desta forma, é a partir do aspecto interno e externo das regras e desta reunião de diferentes ordens de normas que Hart dá conta do caráter institucionalizado do Direito.
Neste sentido, sendo o Direito um fato social complexo, entender seus elementos componentes permite compreender sua complexidade e, principalmente, o seu mecanismo de funcionamento. Em Hart, a compreensão do que venham a ser as regras primárias e as regras secundárias, bem como a sua interação recíproca, ocupa um lugar central no estudo jurídico. Estas duas ordens de regras constituem os elementos centrais do Direito.
As regras primárias são, antes de tudo, regras de conduta, ou regras que impõem obrigações. Ao contrário, as regras secundárias não impõem obrigações: seu conteúdo se destina a criar poderes, públicos ou privados. Para Hart, o que caracteriza a passagem do mundo pré-jurídico ao mundo jurídico é precisamente a inclusão das regras secundárias no sistema.
Na realidade, ocorre que aquele, assim chamado, mundo pré-jurídico, conteria determinados “defeitos”, inerentes a um ordenamento integrado apenas por normas de obrigação. É para sanar estes defeitos que o ordenamento se serviria de determinados “remédios” – as normas secundárias. A sua inserção no sistema determina que este assuma um caráter complexo, típico de um sistema jurídico desenvolvido.
O subitem 3.1 apresentará os referidos “defeitos” de um sistema jurídico assentado somente em regras primárias, bem como aquelas regras secundárias que, uma vez presentes, encarregar-se-ão de dirimir tais problemas. Estabelecidas e caracterizadas estas duas ordens normativas, o subitem 3.2 apresenta a noção de validade jurídica em Hart a partir da análise da chamada “regra de reconhecimento”. O último tópico deste item é a textura aberta do Direito, bem como a forma pela qual o Direito a operacionaliza.
3.1. Regras primárias e secundárias
Hart identifica na estrutura do sistema jurídico duas classes de normas, as quais denomina normas primárias e secundárias. Nesta abordagem, a união dessas duas classes normativas representa a chave para a elucidação do conceito de Direito.
Entretanto, Hart somente identifica a existência de normas secundárias em um sistema jurídico desenvolvido. Nos sistemas primitivos não existiriam tais normas e estas estruturas sociais estariam integradas por regras primárias de obrigação.46 Nestas estruturas não haveria legislativo, tribunais nem funcionários de qualquer espécie.
Por sua vez, a distinção entre normas primárias e secundárias revela outro traço característico da concepção do Direito em Hart, qual seja, o problema da obrigatoriedade jurídica. Hart vincula a existência do Direito à existência de condutas obrigatórias, não facultativas.
As regras primárias podem ser chamadas “regras de obrigação”, uma vez que impõem condutas ou a abstenção de certos atos, independentemente da vontade do sujeito a quem se destinam. Estas regras envolvem ações que dizem respeito a movimentos ou mudanças no mundo físico.47
No entanto, uma sociedade desenvolvida e complexa não pode regular a existência do todo social somente por meio destas normas, pois elas contêm “defeitos”, os quais lhes são inerentes. Devido a estes defeitos, a sociedade cria normas secundárias, as quais atuarão como corretivos dos defeitos intrínsecos das normas primárias e, juntamente com estas, constituem o sistema jurídico. No momento em que se dá a colocação no sistema jurídico das normas secundárias ocorre, segundo Hart, a passagem do mundo pré-jurídico ao mundo jurídico.
O primeiro defeito na estrutura social simples das regras primárias é a incerteza. O grupo, nesta situação, somente tem regras de obrigação. Daí que, quando ocorrem dúvidas acerca de qual a regra a ser aplicada ao caso concreto, ou quanto ao âmbito de uma regra, não exista um processo para dirimir estas dúvidas.
Um segundo defeito é o caráter estático das regras primárias. O único processo de alteração das regras primárias em uma sociedade é o seu próprio desenvolvimento, o qual é lento e impreciso. Não existem aqui autoridades capazes de alterar, extinguir ou acrescentar novas regras primárias ao sistema.
Por último, temos a ineficácia da pressão social difusa pela qual se mantêm as regras. Os castigos pela violação de uma regra não são aplicados por uma instância especial, mas são deixados ao ofendido ou ao grupo social.48
Visando sanar estas deficiências do sistema, são introduzidas as normas secundárias. Estas regras “asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as antigas, determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. Estas regras impõem poderes, públicos ou privados, tornam possíveis atos que conduzem não só a movimentos ou mudanças físicas, mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações”.49
As regras secundárias situam-se num plano diferente das normas primárias; aquelas sempre dizem respeito a estas. Elas especificam os modos pelos quais as regras primárias podem ser determinadas de forma concludente, ou ser criadas, eliminadas ou alteradas, bem como a possibilidade de que a respectiva violação seja determinada de forma inequívoca.
As regras secundárias são de três espécies: regras de reconhecimento (rule of recognition), de alteração (rules of change) e de julgamento (rules of adjudication).
A regra de reconhecimento estabelece um critério ou critérios segundo os quais uma norma é identificada. A existência da regra de reconhecimento é uma questão de fato, empírica; na maior parte das vezes sua existência não é enunciada. Esta regra é distinta das outras regras do sistema e sua natureza vai depender do ponto de vista com o qual se encara o Direito (interno ou externo). A regra de reconhecimento está diretamente relacionada à validade das outras regras do sistema, uma vez que ela estabelece os critérios de validade destas normas. Neste sentido, ela seria a regra última do sistema.
Ao mesmo tempo, a existência de uma única regra de reconhecimento caracteriza a existência de um ordenamento jurídico. Ela é concebida como sendo o fundamento deste.
Já as regras de alteração conferem poderes a pessoas ou órgãos para que modifiquem, retirem ou acrescentem novas regras ao sistema jurídico. As regras de alteração têm estreita conexão com a regra de reconhecimento, uma vez que esta as identifica e valida.
Em terceiro lugar tem-se as regras de julgamento, que são “regras secundárias que dão o poder aos indivíduos para proferir determinações dotadas de autoridade respeitantes à questão sobre se, numa ocasião concreta, foi violada uma norma primária. Além de identificar os indivíduos que devem julgar, tais regras definirão também o processo a seguir”.50
3.2. O problema da validade jurídica
A validade do sistema jurídico está diretamente relacionada à existência e à configuração da regra de reconhecimento. Ao mesmo tempo em que fornece critérios de identificação das regras do sistema jurídico, a regra de reconhecimento reafirma a perspectiva institucional deste, uma vez que sua natureza depende do ponto de vista (interno ou externo) do participante. Por isso, o passo seguinte para a compreensão do Direito em Hart é, justamente, o de reconhecer quais condutas são juridicamente exigidas.
O enfrentamento do tema da validade jurídica remete a duas ordens distintas de problemas: primeiro, a determinação da origem do fenômeno coercitivo do Direito, a qual Hart responde com uma teoria do reconhecimento; e o segundo, a determinação da própria regra de reconhecimento como instrumento conferidor de validade às regras jurídicas.
Dentro da leitura hermenêutica que realiza do Direito, Hart assenta sua fundamentação em uma teoria do reconhecimento, baseada na concordância interior51 dos sujeitos participantes (elemento psicológico de definição) e aliada à existência de uma regra de reconhecimento, fornecedora de critérios empíricos e/ou contextuais. Ao sustentar a obrigação jurídica na concordância do participante (o chamado ponto de vista interno, a adoção da norma jurídica como padrão de comportamento), Hart identifica um livre querer do sujeito jurídico. Nesta ótica, apenas uma parte dos participantes (aqueles que adotam um ponto de vista externo frente ao sistema) seria constrangida à aceitação da regra por temor à sanção que adviria do seu descumprimento.
Se uma teoria de Direito permite – na perspectiva hartiana de Direito – dar conta do caráter obrigatório deste, é a existência da chamada regra de reconhecimento que possibilita a identificação do Direito válido. Em outras palavras, a validade das regras jurídicas se vincula ao fato delas se adequarem (conformarem-se) aos critérios estabelecidos na regra de reconhecimento. Por outro lado, a noção de validade jurídica é sucedânea da adoção de um ponto de vista interno, e não se confunde com a noção de eficácia, a qual pode se reportar a assunção de um ponto de vista eminentemente externo.
Num sistema jurídico complexo, são várias as fontes do Direito, desde o Direito consuetudinário até decisões judiciais. O que confere o estatuto de Direito ao produto destas diversas fontes é justamente a regra de reconhecimento. Para Hart, quotidianamente, o sistema jurídico convive com dita regra, ainda que somente em raras circunstâncias o Direito atribua de forma expressa a uma regra a condição de ser ela a indicativa de critérios de validade.
Conforme mencionamos acima, a regra de reconhecimento pode ser utilizada tanto pelos funcionários do sistema quanto pelos particulares. A postura de uns e de outros frente ao sistema jurídico pode assumir diferentes configurações. Quando os funcionários do sistema (juízes, promotores, procuradores, dentre outros) identificam as regras deste de acordo com aquela regra de reconhecimento, eles estão nitidamente assumindo um ponto de vista interno. Mais do que isso: revelam a aceitação dos critérios de reconhecimento que o sistema lhes fornece, bem como a aceitação das próprias regras identificadas de acordo com estes critérios. Em outras palavras, eles revelam seu grau de comprometimento com o sistema. Ao operacionalizar o uso dos instrumentos jurídicos disponíveis, realizam eles a chamada interpretação operativa, a qual não pode existir de forma neutra ou descompromissada. Ao contrário, os particulares, ao identificarem uma regra de Direito em face dos critérios propugnados pela regra de reconhecimento, podem fazê-lo assumindo um ponto de vista puramente observacional ou externo.
Em Hart, a validade jurídica é consequência da conformidade da regra à regra de reconhecimento. Mais: é esta conformidade que outorga à regra a condição de regra jurídica, retirando-a daquele vasto campo de meros hábitos de comportamento ou regras sociais e conferindo à conduta que ela impõe o “status” de obrigação jurídica (ou, por outro lado, de poder ou competência juridicamente reconhecidos). Assim é que “dizer que uma dada regra é válida é reconhecê-la como tendo passado por todos os testes facultados pela regra de reconhecimento e, portanto, como uma regra do sistema”.52
Ao mesmo tempo, não existe uma vinculação necessária entre os conceitos de validade e eficácia (entendida esta como a obediência ao comportamento prescrito pela regra). Tal vinculação só se manifestará se a eficácia for um dos critérios de validade expressos pela regra de reconhecimento, o que pode ou não ocorrer.53
Por fim, cumpre esclarecer em que sentido Hart considera a regra de reconhecimento como regra última ou critério supremo do sistema.54
Hart afirma, reiteradamente, que a existência da regra de reconhecimento é uma questão de fato, no sentido de que a sua existência se verifica na sua aplicação fática, no momento em que a prática complexa dos membros do sistema jurídico a utiliza para identificar o Direito por certos critérios. Depreende-se daqui que a validade da regra de reconhecimento não pode ser questionada, ou que em relação a ela a questão seja colocada da mesma forma em que se coloca para as demais regras.55 Em relação a ela, não se afirma a sua validade, mas sim a sua utilização para o fim a que se destina.
Nesta esteira de raciocínio tem-se que, ao excluir a própria regra de reconhecimento de testes de validade, ela se afirma como o critério supremo de validade das demais regras.56 Diz-se critério supremo porque, uma vez que uma regra do sistema esteja adequada às suas exigências, ela terá reconhecido seu estatuto de Direito, ainda que não esteja de acordo com outros critérios de juridicidade. Havendo conflito entre regras do sistema jurídico identificadas pela regra de reconhecimento e regras identificadas de acordo com outros critérios, prevalecem aquelas.
Ao mesmo tempo, a regra de reconhecimento se afirma como regra última de validade, evitando, na cadeia normativa, um regresso ad infinitum.
3.3. A textura aberta do direito
A preocupação de Hart com o significado das expressões que povoam o universo dos juristas põe em relevo o papel central que ele atribui à linguagem do Direito.
Reconhecendo uma textura aberta da linguagem, Hart fundamenta a existência de uma textura aberta do Direito. Isto, no conjunto de O Conceito de Direito, determina que se compreenda o Direito como sistema aberto e auto-referente. Os limites naturais da linguagem impedem que o Direito se expresse sempre através de enunciados unívocos, gerando a necessidade do intérprete buscar – dentro desse mesmo sistema – a complementação de significado dos termos não claros.
Neste aspecto, “em todos os campos da experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à natureza da linguagem, quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer”.57 É precisamente este limite da linguagem que constitui a sua chamada textura aberta.58 De acordo com esta teoria, existe uma indeterminação de sentido na linguagem que não pode jamais ser eliminada. Podem ser tomadas inúmeras determinações acerca do sentido de um termo, mas sempre existirão possibilidades em que o conceito ainda não foi delimitado. As principais imprecisões que podem atingir um termo são a vagueza e a ambiguidade.
Esta impossibilidade da comunicação ser sempre precisa resulta, em última análise, de que o significado de uma expressão só é obtido em função do seu uso dentro de um determinado contexto. E a multiplicidade dos usos e funções dos diversos jogos linguísticos obsta a uma comunicação sem entraves.
O Direito, enquanto instrumento de controle social, cumpre com sua função através do estabelecimento de regras e padrões gerais de conduta. Para Hart, é essa possibilidade do Direito de comunicar padrões gerais de condutas a categorias de pessoas que torna possível sua atuação. Tal não ocorreria se os destinatários das regras jurídicas não pudessem compreender o conteúdo das mesmas e, consequentemente, pautar sua conduta em consonância a elas.
Na órbita do Direito anglo-saxão, referencial de Hart, os padrões gerais de conduta são comunicados através dos precedentes e da legislação. O fazem, respectivamente, com um uso máximo e um uso mínimo de palavras.59 O precedente constitui-se, por assim dizer, em exemplos dotados de autoridade. Essa comunicação de padrões de conduta através do precedente traz consigo uma grande zona de imprecisão, no tocante aos sujeitos atingidos e quanto às condutas pretendidas. Ao contrário, aparentemente, a regra de conduta comunicada através da lei (usando formas explícitas de linguagem) seria, nas palavras de Hart, “clara, certa e segura”.60 No entanto, a evolução do pensamento jurídico tem possibilitado a compreensão de que em ambos os casos as regras de conduta não nos são comunicadas de forma absolutamente segura ou clara. Neste momento, uma conclusão mais apressada poderia fazer crer que a “interpretação” da lei e dos precedentes bastaria para aclarar seu conteúdo. Hart refuta tal possibilidade, uma vez que a própria maneira de os interpretar está submetida aos limites gerais da linguagem (ou seja, em certos casos, até mesmo as regras de interpretação poderiam necessitar ser interpretadas).
Ainda dentro do pensamento hartiano, o que determinaria esta deficiência na comunicação dos padrões gerais de conduta seria a combinação de duas desvantagens: “[a] primeira desvantagem é a nossa relativa ignorância de fato; a segunda, a nossa relativa indeterminação de finalidade”.61 Isto decorre de ser impossível prever-se antecipadamente todas as situações que podem ocorrer e a maneira de as regular.
Em consequência, o Direito deve ser capaz de estabelecer situações inequívocas, em relação às quais a incidência do padrão de conduta contido na regra não deixe dúvidas, bem como solucionar, de acordo com mecanismos próprios, as questões que só podem ser resolvidas quando surgem no caso concreto.
Hart responde ao problema da textura aberta do Direito reconhecendo um poder discricionário aos juízes: “[a] textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso”.62 O autor afirma a existência deste poder discricionário,63 porém reconhece que a regulamentação de condutas pelo Direito exercita-se, em larga medida, através do estabelecimento de regras determinadas, as quais não exigem uma apreciação nova de caso para caso. O que importa reconhecer é que Hart, expressamente, admite que os tribunais exerçam uma função criadora do Direito. Ao mesmo tempo, adverte que esta função criadora muitas vezes é menosprezada, através da afirmação de que o que os tribunais fazem é, na realidade, buscar a intenção do legislador e o Direito que já existe.
Em decorrência de possuir o Direito uma zona de textura aberta, onde o conteúdo prescritivo das regras jurídicas não pode ser determinado de forma conclusiva, Hart postula que duas posturas podem ser adotadas quanto a estas regras: uma, formal; outra, cética.
O formalismo sobre as regras procura minimizar a existência desta área de imprecisão das normas jurídicas. De acordo com esta teoria, as regras gerais, uma vez editadas, seriam suficientes, por si sós, para comunicarem o padrão de conduta exigido. A maneira de se conseguir isto, segundo Hart,64 seria fixando precisamente os termos das regras gerais, de forma que o seu significado fosse o mesmo para cada caso que caísse na sua órbita de aplicação.
O risco que se corre, com tal postura dogmática, é o de, em prol de uma segurança e certeza inquestionáveis, colocar sob o domínio de uma regra fixa casos que ainda não ocorreram e, assim sendo, acerca dos quais não conhecemos detalhes ou a sua própria configuração. Ao precisar em demasia o significado da norma, restringe-se a mobilidade que deve ser concedida àquele que vai aplicá-la.
A esta postura Hart chama “paraíso de conceito dos juristas”,65 a qual encobre a realidade dinâmica da ordem normativa sob a máscara de um sistema jurídico fechado e completo.
Uma postura oposta a esta é a de negar a existência das regras do sistema ou, em uma versão menos radical da teoria, afirmar que o Direito se constitui em predições generalizadas acerca do que os tribunais farão. A afirmação de que a regra jurídica funciona como previsão de decisões futuras dos tribunais não se coaduna com o fato de que os membros de uma comunidade submetida a um determinado ordenamento jurídico não encaram a conduta que lhes é imposta pela regra como mera previsão da atividade judicial, e sim como padrões de conduta que aceitam como devida. Em outras palavras, o Direito funciona na vida deles impondo condutas que os mesmos reconhecem como institucionalmente necessárias. Esta postura é característica de um ponto de vista interno. Os membros do grupo interiorizam a conduta exigida como socialmente devida, tomando-a como pauta de regulação de suas atividades. O agente não pensa a regra jurídica tendo em vista a sua aplicação futura em um tribunal; “os enunciados normativos internos são usados em um contexto normal de aceitação geral das regras e eficácia do sistema”.
Em relação à textura aberta do Direito e às teorias acima mencionadas, Hart chega à conclusão de que, em qualquer sistema jurídico desenvolvido, tem-se um compromisso entre necessidades aparentemente distintas: por um lado, a de outorgar segurança ao sistema, através de regras precisas de comportamento; por outro lado, garantir que cada caso será apreciado pelos tribunais de acordo com suas particularidades, sem pré-julgamentos. Em alguns períodos da história prepondera uma postura mais formalista, em outros uma postura judicial mais livre, aumentando o poder discricionário dos tribunais.
Notas
1 “Professor H. L. A. Hart - Herbert Hart - provides an object lesson in the inextricable mutual involvement of the theoretical and the practical in jurisprudence”. MacCORMICK, Neal. H. L. A. Hart: jurists profiles in legal theory, p. 2.
2 As informações históricas aqui relatadas têm como fontes primordiais LACEY, Nicola. A life of H. L. A. Hart: the nightmare and the noble dream; e MacCORMICK, Neal. Op. cit.
3 Gilbert Ryle e Stuart Hampshire.
4 HART, H. L. A.; HONORÉ, Tony. Causation in the law, 1959.
5 HART, H. L. A. The concept of law, 1961.
6 HART, H. L. A. The concept of law, 1994.
7 Para uma análise aprofundada da relação de HART com a filosofia da linguagem, ver KOZICKI, Katya. Herbert Hart e o positivismo jurídico. Textura aberta do direito e discricionariedade judicial.
8 O conteúdo dos itens 2 e 3 desse texto constituem uma síntese do que já se encontra publicado em KOZICKI, Katya. Levando a justiça a sério. Interpretação do direito e responsabilidade judicial e KOZICKI, Katya. Herbert Hart e o positivismo jurídico. Textura aberta do direito e discricionariedade judicial.
9 Aqui se faz necessário explicitar o conceito de positivismo jurídico, nos termos em que este aparece na obra de Hart. O positivismo hartiano pode ser chamado de positivismo institucionalista, dentro da concepção de que, em Hart, o direito é tomado como um fato institucional. Hart satisfaz a condição positivista da adoção de um conceito descritivo do direito (no sentido de ser possível determinar a existência e o conteúdo de um sistema jurídico sem recorrer a considerações de ordem valorativa). Também não se pode esquecer a influência que a obra de Bentham teve na obra de Hart e, de forma geral, em toda teoria jurídica anglo-americana. Jeremy Bentham oferece ao estudo do direito uma teoria geral, que se divide em duas partes distintas: uma normativa (preocupada com aspectos normativos do direito) e outra conceitual (preocupada com questões filosóficas). Isto implicou que alguns autores tratem a teoria jurídica hartiana como uma versão sofisticada da parte conceitual da teoria geral do direito de Bentham (como, por exemplo, Ronald Dworkin. Taking rights seriously, p. ix.). Também não se pode deixar de observar que o chamado positivismo institucionalista de Hart se distancia do positivismo descritivo de Kelsen, quer quanto às matrizes filosóficas presentes em uma e outra obra (em Hart a Filosofia da Linguagem Ordinária, em Kelsen o neopositivismo lógico), quer quanto ao problema da ontologia das regras, que em Hart pressupõe uma compreensão mais alargada, possibilitando que ele dê conta do caráter fortemente institucionalizado do direito. Ainda assim, Hart permanece fiel à tradição positivista, considerando que a legitimação do sistema se dá pela referência à legalidade do procedimento de normatização – a procedência da norma. Neste sentido: “The legitimation of the legal order as a whole shifts do its origin, that is, to a basic norm or rule of recognition that legitimates everything without itself being capable or rational justification; as a part of a historical form of life, it must be factually accepted as settled custom”. HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms. Contributions to a discourse theory of law and democracy, p. 203.
10 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 92.
11 HART, H.L.A. Obbligazione morale e obbligazione giuridica. Contributi all'analise del diritto, p. 171. Tradução livre.
12 A noção do Direito como fato institucional e, em geral, a Teoria do Direito de Hart foi e ainda é o ponto de partida de uma série de teóricos do Direito dos séculos XX e XXI. Como exemplo, ver MacCORMICK, Neil; WEINBERGER, Ota. An institutional theory of law: new approaches to legal positivism.
13 AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined; and, the uses of the study of jurisprudence. A edição original é de 1832.
14 A este respeito conferir LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, p. 242.
15 HART, H.L.A. Obbligazione morale e obbligazione giuridica. Op. cit., p.176.
16 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 64.
17 Idem, p. 65.
18 SOTO, Nelson Reyes. La teoria de la obligacion en el concepto de derecho de H. L. A. HART. H. L. A. Hart y el concepto de derecho. Revista de ciencias sociales, nº 28, p. 253. Tradução livre.
19 HART, H.L.A. O conceito de direito, 95-96.
20 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 97.
21 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea, p. 124.
22 LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, p. 243.
23 Ver, em especial, WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas; WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico; AUSTIN, John Langshaw. Outras mentes. Os pensadores; AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Palavras e ações.
24 LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, p. 136.
25 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 99.
26 Idem, p. 99.
27 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 66.
28 LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, p. 145.
29 Idem, p. 145.
30 Sobre a relação entre Direito e sanção na obra de John Austin: “(d)essa forma, Austin, na elucidação do conceito de lei, chega ao seguinte resultado: o conceito de lei envolve o conceito de comando. O conceito de comando, por sua vez, envolve o conceito de sanção, e o conceito de sanção envolve o conceito de dever (ou obrigação). (...) Cada um desses termos – comando, sanção, e dever – denota, segundo Austin, uma parte de uma mesma noção, a saber: a noção de lei” (ARAUJO, Marcelo de. Austin, John. Dicionário de filosofia do direito, p. 74).
31 Hart cita o exemplo do sujeito que tinha a obrigação de apresentar-se ao serviço militar mas que, ou por ter escapado à jurisdição, ou por ter corrompido com sucesso o funcionário ou o tribunal, não tinha a menor possibilidade de vir a sofrer a sanção prevista. HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 94.
32 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 98.
33 Idem, p. 94.
34 LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, p. 164.
35 Idem, p. 161.
36 A este respeito conferir o Cap. VIII da obra O conceito de direito.
37 SOTO, Nelson Reyes. La teoria de la obligacion en el concepto de derecho de H. L. A. HART. H. L. A. Hart y el concepto de derecho. Revista de ciencias sociales, nº 28, p. 256.
38 HART, H.L.A. O conceito de direito, p.185.
39 Idem, p. 187.
40 RAZ, Joseph. H. L. A. HART. H. L. A. Hart y el concepto de derecho. Revista de ciencias sociales, nº 28, p. 23. “Esta consiste em regras sociais de conduta que em grande medida (ao menos se considerarmos as regras em que se formulam deveres como o núcleo da moralidade) se preocupam em assegurar as condições necessárias que se requerem para manter a vida social”. Tradução livre. Na realidade, a maior preocupação de Hart não é a de separar a moral social de outras regras sociais. Sua nítida intenção foi sempre a de estabelecer as distinções entre regras jurídicas e outras regras sociais.
41 LYONS, David. As regras morais e a ética, p. 76
42 Conferir O conceito de direito, cap. VIII.
43 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 189.
44 A este respeito. Hart oferece o seguinte exemplo (O conceito de direito, p. 190): “(...) revela um perfeito bom senso fazer afirmações tais como ‘A partir de 1 de janeiro de 1960 será um fato criminoso fazer isto ou aquilo’ ou ‘A partir de 1 de janeiro de 1960 já não será ilícito fazer isto ou aquilo’ e apoiar tais afirmações a regras jurídicas que foram aprovadas ou revogadas. Em confronto com isso, afirmações tais como ‘A partir de amanhã já não será normal fazer isto ou aquilo’ ou ‘Em 1 de janeiro último tornou-se imoral fazer isto ou aquilo’ e tentativas para apoiar por referência a atos legislativos intencionais constituiriam paradoxos surpreendentes, se não mesmo desprovidos de sentido”.
45 HART, H.L.A. O conceito de direito, pp. 89-90.
46 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 101.
47 Idem, p. 91.
48 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 103.
49 Idem, p. 91.
50 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 106.
51 O que não significa aprovação moral. Ver MACEDO JR., Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia. Dworkin e a teoria do direito contemporânea, p. 125.
52 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 114.
53 Idem, p. 115.
54 A proposta de análise, portanto, é da obra do próprio Hart. Por conta disso, não integram a presente exposição textos mais recentes sobre a regra de reconhecimento, uma vez que cada autor que escreve sobre o tema acrescenta e desenvolve posições pessoais sobre o tema. De todo modo, merecem menção as seguintes obras coletivas: ADLER, Matthew D.; HIMMA, Kenneth Einar (orgs). The rule of recognition and the U.S. Constitution; D'ALMEIDA, Luís Duarte; EDWARDS, James; DOLCETTI, Andrea (orgs). Reading HLA Hart's “The Concept of Law”; COLEMAN, Jules (ed.). Hart's postscript.
55 A este respeito: “Uma tal questão não pode ser posta quanto à validade da própria regra de reconhecimento que faculta os critérios, esta não pode ser válida ou inválida, mas é simplesmente aceita como apropriada para tal utilização”. HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 120.
56 Hart chama atenção ao fato de que não devemos confundir critério supremo com poder legislativo, juridicamente ilimitado. O poder legislativo, quando aparentemente possui a autoridade última de ditar ou regras normas, a possui porque a própria regra de reconhecimento lhe faculta tal autonomia. Ou seja, a regra de reconhecimento é o critério supremo a facultar que o poder legislativo atue de tal ou qual forma.
58 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 139.
59 WAISSMANN, Friedrich. Verifiability. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary volumes, v. 19, p. 134.
60 HART, H.L.A. Op. cit., p. 138.
61 HART, H.L.A. O conceito de direito, p. 141.
62 Idem, p. 148.
63 Assim: “Assumindo a impossibilidade de completude do ordenamento jurídico e esta textura aberta do direito, este autor conclui que, mesmo através da interpretação, estes problemas não podem ser superados de forma segura. Isto porque as próprias regras de interpretação são construídas numa linguagem que também pode levar a incertezas. Desta forma, existirão sempre casos juridicamente não regulados ou regulados de forma não conclusiva”. KOZICKI, Katya. Levando a justiça a sério. Interpretação do direito e responsabilidade judicial, p. 19.
64 HART, H.L.A. O conceito de direito, pp. 142-143.
65 Idem, pp. 143.
66 LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, p. 230.
Referências
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Citação
KOZICKI, Katya, PUGLIESE, William. O conceito de direito em Hart. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/137/edicao-1/o-conceito-de-direito-em-hart
Edições
Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1,
Maio de 2017
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