• Controle do ato administrativo

  • Phillip Gil França

  • Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

Pensar em controle do ato administrativo é compreender que o Estado republicano precisa funcionar dos simples mecanismos do agir administrativo até os mais complexos sistemas regulatórios estatais. Nessa perspectiva, é importante estabelecer de forma clara e objetiva o que são, como funcionam e quais os caminhos possíveis de desenvolvimento do ato administrativo voltado a concretizar os valores constitucionais da Boa Administração Pública.
Assim exposto, o presente verbete do projeto “Enciclopédia Jurídica da PUC-SP” será desenvolvido sob a seguinte perspectiva: controle do ato administrativo é instrumento de viabilização do desenvolvimento intersubjetivo dos partícipes do Estado, fundado nos vetores da proporcionalidade e sustentabilidade administrativa estatal, a partir do eixo da proteção e promoção da dignidade da pessoa humana para a realização do concreto (ou concretizável) interesse público.
Desse modo estabelecido, primeiramente será destacada as noções iniciais e conceituais sobre ato administrativo. Após, o tema do controle do ato administrativo será abordado conforme a premissa aqui indicada. Ainda, cabe para nesta primeira edição do verbete uma primeira problematização, ao destacar o “controle judicial do ato administrativo” e algumas “perspectivas jurisprudenciais sobre o controle da discricionariedade administrativa”.


1. Ato administrativo


1.1. Um possível conceito inicial


Ato administrativo é a menor expressão estatal indicativa de contextualizações, determinações e realizações públicas. Nesse cenário, trata-se da atuação jurídica (comissiva ou omissa), unilateral e concreta, exteriorizada pela Administração Pública, ou por aqueles legalmente legitimados para tanto, advinda do seu exercício de função administrativa do Estado. 

Representa a manifestação do maquinário público para que se façam valer, para que se justifiquem, para que se sustentem a escolha e a confiança da sociedade, como um todo, e de cada cidadão, singular ou coletivamente, em um regime estabelecido com vistas a melhorar suas vidas, incessantemente. 

Pode ser compreendido, também, como o núcleo da expressão estatal viabilizadora dos valores concebidos no art. 3º da Constituição. Nesse viés, apresenta-se, ainda, como promotor fundamental dos objetivos da República, consubstanciados na ideia de desenvolvimento e de bem comum. 

Isto é, ato administrativo invoca o Estado como ente legitimamente escolhido para proporcionar, permanentemente, um amanhã melhor para os titulares do poder originário que o criou. 

Ato administrativo designa o elemento nuclear e nevrálgico de realização estatal do interesse público, voltado à concretização dos anseios públicos primordiais para a viabilização de vida digna aos que criaram o Estado como ente promotor de políticas, procedimentos e processos públicos destinados à promoção de cada interesse público que clama pelo ato administrativo adequada para sua materialização.1 

Isso é, a partir de uma lógica complexa, não necessariamente linear, ato administrativo constrói, sustenta e gera perspectivas de um Estado ideal aos que aqui estão, bem como, aos que chegarão e continuarão a investir no esperado desenvolvimento estatal para, consequentemente, realizar o esperado desenvolvimento intersubjetivo dos partícipes do Estado.


1.2. Posições doutrinárias 


Para uma atual análise da concepção do ato administrativo, torna-se imperativo verificar o instituto mediante uma construção da manifestação administrativa estatal do procedimento que o conforma sinergicamente com os valores do sistema público instituído. 

Isto é, analisa-se o ato administrativo a partir das causas, da organização, do desenvolvimento e das consequências de determinada atividade administrativa do Estado voltada à concretização de um estabelecido interesse público.

Como bem lembra Vasco Pereira da Silva,2 construir uma teoria do ato administrativo adequada às realidades da Administração prestadora e conformadora ou infraestrutural do Estado pós-social não é tarefa fácil, apesar da imperiosa necessidade de sua realização.

As razões são variadas, destaca o autor, considerando o fato da noção clássica do ato administrativo ter sido elaborada em função de um modelo de Administração (meramente) agressiva, consequente do Estado liberal não mais existente, bem como dos reflexos negativos decorrentes de sua natureza autoritária, já desatualizada. 

No mesmo trilho, como sublinha o autor, uma nova leitura do ato administrativo se evidencia cogente em função da perda do seu papel de protagonista exclusivo nas tarefas que envolvem as relações entre os cidadãos e a Administração, para assumir a necessidade de partilha de seu mister com outras formas de viabilização do ônus público, que se tornam cada vez mais rotineiras (v.g. regulamentos, contratos).

Igualmente, destaca-se a necessidade desse conceito “ser integrado e entendido no quadro mais amplo de figuras como a relação jurídica administrativa ou o procedimento, sob pena de não conseguir explicar a integralidade dos vínculos jurídicos que atualmente se estabelecem entre os indivíduos e as autoridades administrativas”.3 

Nesse cenário, não se pode permitir retrocessos e aberturas para sombras no exercício jurisdicional de controle da atividade administrativa do Estado. Diante disso, pretende-se apresentar e analisar a estrutura do ato administrativo para utilizá-la como base da compreensão do seu papel no Estado e a necessidade de pleno controle da atividade pública, conforme os itens a seguir.

Em primeiro lugar, por mais lógico que pareça, é de extrema relevância registrar que ato administrativo decorre do exercício da Função Administrativa do Estado.4 Para João Caupers, “Função Administrativa é aquela que, no respeito pelo quadro legal e sob a direção dos representantes da coletividade, desenvolve as atividades necessárias à satisfação das necessidades coletivas”.5 

Conforme lições de Ramón Parada,6 da mesma maneira que a Função Legislativa se manifesta e se concretiza na elaboração de normas gerais, bem como a Função Judicial se exterioriza nas suas decisões (sentenças e acórdãos), a Administração formaliza sua função gestora a partir da repercussão direta ou indireta nos interesses, direitos e liberdades dos cidadãos por meio dos atos administrativos. Precisamente, porque é o ato administrativo que concretiza e estabelece o alcance da sua incidência. É importante estabelecer tal conceito para se delimitar o objeto e viabilizar o pleno controle judicial da atividade administrativa.7 

O ato administrativo ora tratado deriva de uma atuação da Administração Pública, como expressão administrativa estatal. Para explicar o que vem a ser a atuação da Administração Pública, nesta perspectiva, busca-se arrimo nas lições de Harmut Maurer.8 

Conforme o autor, 

(i) da atuação da Administração Pública decorrem dois tipos de ação: jurídico-privada e jurídico-pública. 

(ii) Desta última, verificam-se dois tipos de atos da Administração: atos jurídicos e atos de fato. 

(iii) Dos atos jurídicos, têm-se os atos voltados à relação interna e à relação externa da Administração. 

(iv) Da relação interna e da atuação concreta da Administração, decorre a atuação geral-abstrata da Administração que se desenrola na manifestação administrativa que, por sua vez, forma a instrução administrativa (específica para determinada situação). 

(v) Da relação externa, tem-se a atuação geral-abstrata da Administração, donde transcorrem os regulamentos jurídicos e estatutos da Administração. 

(vi) Em paralelo, há a atuação em concreto da Administração, donde emana a atuação bilateral da Administração, mediante contratos administrativos e, na mesma dimensão, os atos unilaterais, expressados pelos atos administrativos e demais declarações de vontade juridicamente relevantes.

(vii) Nesse contexto, admite-se como ato administrativo a atuação jurídica (comissiva ou omissiva), unilateral e concreta, exteriorizada pela Administração Pública, ou por aqueles legalmente legitimados para tanto, advinda do seu exercício de Função Administrativa do Estado. 

Diogo Freitas do Amaral compreende ato administrativo como “ato jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”.9 

Em caminhos equivalentes, tem-se a lição de Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernándes,10  pois exprimem que o ato administrativo é a declaração unilateral de vontade, de juízo, de conhecimento ou de desejo realizada pela Administração no exercício de uma autoridade administrativa diferente da autoridade regulamentadora. A declaração administrativa em que consiste o ato, neste sentido, apresenta-se como um exercício do poder administrativo.

Para os autores, tal conceito de ato administrativo, por um lado, exclui atos que expressam a capacidade e a titularidade de direitos comuns das Administrações, na condição apartada de seu regime jurídico administrativo peculiar.11 Por outro, esta ideia baseia-se na relevância jurídica dos atos administrativos: como expressão de um poder, ou seja, produzem efeitos jurídicos próprios deste poder. Finalmente, é importante sublinhar, que a natureza do ato administrativo como uma expressão necessária do poder é o que liga o ato à legalidade e o funcionaliza de forma peculiar com o consenso dela. 

Segundo os autores, sabe-se que não há poder sem norma prévia que o estabeleça e que todas as atribuições administrativas são avaliadas e especificadas na sua criação, pois não existem atribuições indeterminadas. Como o ato de expressar uma dessas atribuições é previamente especificado pelo ordenamento, pode concluir-se facilmente que não há ato sem norma específica que o autorize e o preveja. 

Destarte, o ato administrativo, por diferença substancial com o negócio jurídico privado, é essencialmente típico, desde o ponto de vista legal, nominado, não obediente a nenhum princípio genérico da autonomia da vontade, sem, exclusivamente, a previsão da Lei. 

Para Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernándes, todas essas afirmações não precisam de uma explicação especial; derivam facilmente do quanto se sabe sobre a natureza das atribuições administrativas como uma técnica que expressa o princípio da legalidade da Administração, que é contrário ao princípio da autonomia da vontade, e ao fato de que ato administrativo é o exercício particularizado dessas atribuições legais.12 

Nessa mesma esteira, Manoel de Oliveira Franco Sobrinho13 assenta que as posições, com respeito aos atos administrativos, inclusive no que se referem aos atos discricionários, considerando a função, a finalidade pública e os interesses afetados, só podem ter fundamento em normas jurídicas. Assim, enunciam-se os princípios, dando substância aos atos administrativos, no geral, e aos atos discricionários em particular, dessa forma condicionados: 

a) Toda atividade desenvolvida pela Administração deve encontrar sempre sustentação em normas jurídicas, qualquer que seja a fonte, constitucional, legislativa ou administrativa;

b) As normas jurídicas regem tanto a atividade interna como externa da Administração por serem inerentes ao princípio da juridicidade; 

c) Na hierarquia normativa, nenhuma norma ou ato emanado de órgão inferior poderá deixar sem efeito o disposto por outra de nível superior diante da unidade dos sistemas e da ordem jurídica; 

d) Nenhum ato administrativo específico deixará sem efeito o disposto por norma geral, atendendo ao tratamento igualitário que caracteriza toda atividade administrativa; 

e) Todo ato administrativo específico deve estar de acordo com a norma geral, embora provenha de órgão de hierarquia normativa inferior, inclusive na descentralização; 

f) Toda norma administrativa, geral ou específica, deve ser produto jurídico de processo racional, resultar de preceitos legais, fatos, condutas e circunstâncias geradoras (o que se sublinha, neste estudo, como uma das perspectivas do nexo causal entre a produção do ato administrativo e o concreto interesse público a ser promovido); 

g) o poder de criar ou de aplicar normas pela Administração nada vale se não encontrar sua causa em fatos ou normas que justifiquem a decisão que declara resultar de preceitos legais, fatos, condutas e circunstâncias geradoras (o que se sublinha, neste estudo, como uma das perspectivas do nexo causal entre a produção do ato administrativo e o concreto interesse público a ser promovido); 

h) para o Direito Administrativo, todos os atos gerais e específicos devem ter uma causa, razões motivantes, porque seus atos não podem existir sem a devida causa; 

i) todos os atos administrativos podem ser controlados jurisdicionalmente, isto porque o Direito é razão e justiça dentro da norma.

Quanto à legalidade administrativa, Oliveira Franco Sobrinho14 repudia os atos que não executam a lei, aqueles atos discricionários falhos de conteúdo jurídico, carentes de causas ou motivos provados, editados na função, porém fora das regras de adequada conduta legal. 

Segundo Carlos Garcia Oviedo,15 ato administrativo é um produto do Estado de Direito, no sentido geral, e da aplicação da doutrina da divisão dos poderes, no aspecto particular. Ramón Parada leciona que ato administrativo é definido como resolução de um poder público no exercício de poderes e funções administrativas e mediante o que impõe a sua vontade sobre os direitos, liberdades ou interesses de outros sujeitos públicos ou privados, sob o controle (jurisdicional).16 

Como visto, a premissa aqui adotada de ato administrativo é indivorciável da ampla capacidade de seu controle pelo Estado-juiz. Não se admite, nesta concepção, ato administrativo blindado da tutela jurisdicional. Se assim pretender ser, dissocia-se de sua característica de ato administrativo e torna-se manifestação da Administração Pública frontalmente contrária aos valores do sistema jurídico constitucional estabelecido hoje no Estado nacional.

Esta é uma das mais importantes conclusões parciais deste estudo, pois é da assunção da impossibilidade de existência de atos administrativos não sindicáveis jurisdicionalmente que se passa a compreender que, na dificuldade concreta (prática) de se promover o pleno controle dos atos administrativos – inclusive, os discricionários –, torna-se necessário desenvolver o sistema jurídico para que essa demanda seja adequadamente atendida. Ou seja, é imprescindível que o sistema se desenvolva, no sentido de viabilizar o dever do Estado de promover o desenvolvimento e a proteção do cidadão, por meio de uma gestão de tudo o que é público, jurídico e socialmente legítimo, a partir de um regime de responsabilidades e responsabilização integral da atuação estatal.

Em suma, ato administrativo é manifestação estatal, sob sua dimensão executiva, promotora dos valores constitucionais, consubstanciados na noção de desenvolvimento e bem geral dos administrados. Isto é, ato administrativo invoca o Estado como ente legitimamente escolhido para proporcionar, permanentemente, um amanhã melhor para os titulares do poder originário que o criou. 

Reinaldo Couto17 explica que o ato administrativo representa o ponto de encontro de três princípios fundamentais historicamente ligados à ideia de Estado de Direito, são eles: o de separação das funções estatais, o da legalidade administrativa e o do controle jurisdicional. “O ato administrativo aparece, atualmente, circundado de direitos e garantias em benefício do cidadão, nos quais se incluem a garantia da participação do administrado na sua formação, o direito à informação e o direito de submetê-lo, em caso de ilegalidade, irrazoabilidade e desproporcionalidade, ao controle judicial”.18 

Ato administrativo é, nesse contexto, a manifestação do maquinário público para que se façam valer, para que se justifiquem, para que se sustentem a escolha e a confiança da sociedade em um regime estabelecido com vistas ao constante aprimoramento de sua vida. O que ser quer do Estado, por si, é a obtenção de uma vida melhor, diariamente. E ao mergulhar nesse universo, ao tutelar as expectativas de uma vida melhor – de todos e de cada um – não se pode permitir retrocessos e aberturas de sombras no exercício jurisdicional de controle do ato administrativo pelo Estado. Do contrário, em um regime insustentável de controle judicial limitado dos atos administrativos, as exceções à tutela jurisdicional,19 hoje assim estabelecidas, tornar-se-ão a regra, legitimando a ingerência totalitarista de um Estado desproporcionalmente formal e legalista que não mais se fundamenta. 

Oportuno é o destaque de Maria Sylvia Zanella Di Pietro,20 ao sublinhar as tendências atuais do direito administrativo, conforme as defendidas neste livro, tais como: a ampliação do controle judicial sobre os atos administrativos, com a legítima delimitação da discricionariedade administrativa – e a indicação conceitual de mérito – como estrutura determinante do aspecto discricionário do ato administrativo. 

A partir dessas premissas, ousa-se afirmar que, na verdade, faz-se necessário estabelecer limites objetivos dos institutos de discricionariedade e de mérito administrativo, em um maior grau possível de determinação, aceitando tal necessidade como imprescindível para a viabilização de uma adequada gestão pública, bem como, fundamental para que a objetivação da atuação administrativa torne possível a previsão de como e quando a Administração Pública poderá atuar em prol do cidadão. Assim, então, ampliando e operacionalizando o seu efetivo e permanente controle.

O empenho, nessa perspectiva, é de promover o afastamento das zonas de sombra, tal como a inocorrência de controle do mérito do ato administrativo discricionário, para que o sistema continue evoluindo no caminho do melhor atendimento possível dos anseios do povo, da sociedade e do cidadão que estão sob a responsabilidade do gestor público. 


2. Controle do ato administrativo


2.1. Um possível conceito inicial



Depreende-se de controle, sob a perspectiva da atuação administrativa do Estado, a atividade de revisão decorrente da relação entre sujeitos expostos a uma relação vinculada ao poder de chancela, correção, substituição, anulação ou determinação de providências sobre atos estatais passíveis de alteração ou confirmação, conforme o respectivo grau de vinculação à legalidade que embasa sua produção, validade e eficácia. 

Controle da atividade do Estado nacional demanda prestar contas a alguém e cobrar contas de alguém sobre o que se faz, como se faz e as consequências do que foi feito no ambiente do exercício do constitucional ônus público estatal. Ou seja, além da capacidade de limitar a atuação de outrem, e da submissão dessa limitação por alguém, faz-se necessário estabelecer o elemento confiança entre quem controla para com aquele que recebe a conta do controle exercido. Dessa forma, a atividade de controle do Estado ideal poderá, efetivamente, trazer o esperado desenvolvimento intersubjetivo propugnado pelo art. 3º da CF/88.

Entretanto, a lógica do atual controle do ato administrativo, aparentemente, segue o caminho da desconfiança, tendo em vista a erupção continua de atos de corrupção, escancarados e debatidos pela realidade de multi-informação vivida nos dias de hoje.

Vale lembrar que controle do ato administrativo é, de forma geral, exercício de poder decorrente do dever de proteção do cidadão, na condição de titular do poder originário que viabiliza a existência e a manutenção do Estado.

Logo, controle do ato administrativo é uma forma de se estabelecer a viabilidade sustentável da atividade estatal em prol do cidadão, sem a qual perderia sentido conceder-lhe poder para realização das tarefas públicas.

Nesse mesmo trilho, o controle do ato administrativo precisa ser exercido mediante um determinando objetivo de verificação de adequação entre os meios empregados e os fins esperados, com a conclusão de concretização de um determinado interesse público. Nesse sentido, controla-se o Estado em nome do cidadão, inclusive, para promoção do interesse público.

Como visto, a premissa aqui adotada de ato administrativo é indivorciável da ampla capacidade de seu controle pelo Estado-juiz. Não se admite, nesta concepção, ato administrativo blindado da tutela jurisdicional. 

Se assim pretender ser, dissocia-se de sua característica de ato administrativo e torna-se manifestação da Administração Pública frontalmente contrária aos valores do sistema jurídico constitucional estabelecido hoje no Estado brasileiro.

Considera-se como uma das mais importantes conclusões parciais deste estudo, pois é da assunção da impossibilidade de existência de atos administrativos não sindicáveis jurisdicionalmente que se passa a compreender que, na dificuldade concreta (prática) de se promover o pleno controle dos atos administrativos – inclusive, os discricionários –, faz-se necessário desenvolver o sistema jurídico para que essa demanda seja adequadamente atendida. 

Ou seja, é imprescindível que o sistema se adapte às atuais demandas da sociedade no sentido de viabilizar o dever do Estado de promover o desenvolvimento e a proteção do cidadão, por meio de uma jurídica e socialmente legítima gestão de tudo o que é público, a partir de um regime de responsabilidades e responsabilização integral da atuação estatal.

No entanto, em um ambiente de desconfiança da atividade estatal, pode-se imaginar o interesse público sempre presente nos planos dos governantes? Será que é possível visualizar nessa realidade as lições de Rui Barbosa: “nas almas dominadas pelo senso de responsabilidade, a consciência de um poder pesa como um fardo, e atua como freio”?


2.2. Posições doutrinárias 

É possível compreender controle do ato administrativo, por meio das lições de Roberto Dromi, como a atividade que tem por objetivo verificar a legitimidade (razão jurídica) e oportunidade (razão política) da forma (procedimento) e o fim (causa final) da atuação pública, como modo de constatar a correspondência entre “antecedente e consequente”, entre “forma prevista e fim proposto” com “forma executada e finalidade realizada”.21 

A capacidade de controle do ato administrativo é um dever, considerando a obrigatoriedade que implica seu exercício e sua natureza integradora a uma função estatal, de conteúdo jurídico. É, ao mesmo tempo, um poder-dever estruturado sobre a ideia de tutela, cuidado e salvaguarda da ordem jurídica, que adquire uma importância fundamental dentro do Estado delineado pelo constitucionalismo moderno.22 

Aquele que administra tem o dever jurídico de dar conta de sua administração e de responder por seus atos, conforme essa noção de controle. Significa, então, pedir conta (controlar) por uma parte e responder (ser controlado) por outra. Estes princípios, fundadores de todo ordenamento jurídico, são aplicáveis ao administrar a coisa pública e constituem o princípio da juridicidade da atuação da Administração.23 

A máquina estatal, por determinação constitucional, está sujeita a um efetivo controle externo do Poder Legislativo – com auxílio do Tribunal de Contas –, do Ministério Público, da sociedade e do Judiciário, além do mister essencial de zelar pela excelência de sua própria atuação, conforme o obrigatório exercício do autocontrole. 

Vale destacar que o desenvolvimento do presente estudo fundamenta-se na concepção de que a Administração Pública deve funcionar de forma diáfana, para tanto, é essencial a existência de órgãos de controle legitimamente constituídos que atuem harmonicamente de maneira a vigiar, guiar e corrigir suas condutas.24 

Fundamentalmente, todos os entes administrativos estão adstritos a regras estreitamente dirigidas e, para seu estrito cumprimento, encontra-se imprescindível o estabelecimento de meios procedimentais viáveis de verificação de sua atuação. Portanto, faz-se necessária a manutenção do convívio regular entre os poderes do Estado, conforme reza o art. 2.º da CF de 1988, bem como a criteriosa proteção da finalidade do bem comum dos atos provenientes do Poder Executivo.

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “a finalidade do controle é a de assegurar que a Administração atue em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade pública, publicidade, motivação, impessoalidade; em determinadas circunstâncias, abrange também o controle chamado de mérito e que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa”.25  

Para a autora, “o controle constitui poder-dever dos órgãos a que a lei atribui essa função, precisamente pela sua finalidade corretiva; ele não pode ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilidade de quem se omitiu”.26 

Nesta seara, novamente cita-se as lições de Caio Tácito como introito à apresentação dos meios de controle da atividade da Administração Pública: “O controle da legalidade da administração não é, afinal, monopólio ou privilégio de ninguém. Dele compartilham os vários poderes do Estado. Dele se utiliza qualquer do povo quando ferido em direito seu ou em interesse legítimo. A defesa da ordem jurídica é, sobretudo, um dever de cidadania: a mística da lei e a fidelidade ao interesse público são a essência mesma da sociedade livre e moralizada. O culto à liberdade não se coaduna com a tolerância do arbítrio ou aceno à violência. A legalidade não é uma simples criação de juristas, dosada em fórmulas técnicas e símbolos latinos. É o próprio instinto de conservação da comunidade. A todos incumbe, assim, o dever elementar de vigilância, a paz social traduzida na lei e no direito”.27 


2.3. Controle judicial do ato administrativo


O poder de apreciação da legalidade de qualquer ato da Administração Pública pelo Judiciário, como já tratado, é determinação constitucional, logo, não se questiona a possibilidade de controle de tais atos, mas sim a operacionalização e a materialização dessa fundamental atividade estatal.

Lúcia Valle Figueiredo afirma que “o controle jurisdicional [da Administração] é princípio estruturante do Estado de Direito. A possibilidade de controle jurisdicional, como hoje se conhece, com influência da Constituição americana, sobretudo de Marshall, do judicial review, aparece na Constituição da República, 1891, e sobrevive até agora. A possibilidade de controle judicial é a mola propulsora do Estado do Direito”.28 

Nessa linha, Celso Antônio Bandeira de Mello assenta que “é ao Poder Judiciário e só a ele que cabe resolver definitivamente sobre quaisquer litígios de direito. Detém, pois, a universalidade da jurisdição, quer no que respeita à legalidade ou à consonância das condutas públicas com atos normativos infralegais, quer no que atina à constitucionalidade delas. Nesse mister, tanto anulará atos inválidos, como imporá à Administração os comportamentos a que esteja de direito obrigada, como proferirá e imporá as condenações pecuniárias cabíveis”.29 

Miguel Seabra Fagundes lembra que “o controle jurisdicional dá oportunidade à análise contraditória, não só dos atos e fatos administrativos, mas também à das suas origens”. Isto é, o autor destaca o papel de controle de legalidade exercido pelo Judiciário, pois este “pode remontar do exame do ato material ao do ato administrativo que lhe serve de base, do exame do ato administrativo ao da lei que o autoriza, indo até a Constituição, para verificar se o legislador ordinário se conteve nos limites constitucionais”.30 

Conforme expressado, ao Judiciário, quando provocado, cabe a verificação da consonância do ato administrativo com a respectiva disposição legal que o embasa, ou seja, é de sua competência a análise de critérios objetivos do ato administrativo. Este Poder do Estado, em princípio, conforme a estrita observação do princípio constitucional da tripartição dos Poderes (art. 2.º da CF/88), não poderia interferir na análise de critérios subjetivos (mérito: critérios de conveniência e oportunidade31) do ato emanado por entes do Poder Executivo, apenas tendo a capacidade de revisão dos aspectos legais – objetivos.32 Isto pois, seria vedada a revisão do mérito motivador do ato administrativo regulatório pelo Judiciário, excetuando a ocorrência de comprovação de que o respectivo critério de formação do ato está disforme aos ditames da moralidade, razoabilidade e proporcionalidade. Frisa-se que este raciocínio está de acordo com o prisma “executivo” – fato que não coaduna com a presente proposta, visto a cediça conclusão que cabe ao Judiciário, sempre, a última palavra no sistema nacional.33 

Os valores que conformam, justificam e se apresentam como incubadoras das expressões normativas positivistas de igual forma são passíveis de verificação de regularidade de sua aplicação pela Administração, quando do exercício do controle pelo Judiciário. O princípio da legalidade está, então, determinando que não apenas a Administração Pública atue conforme a expressão legal, mas sim, em especial, conforme os valores de direito, fundamento e alicerce da ordem jurídica nacional quando da sua concretização prática. Logo, busca-se a realização do princípio da legalidade substancial e não apenas formal.

No entanto, por exemplo, quando do trato do ato administrativo regulatório, crê ainda a Administração – principalmente, as agências reguladoras independentes –, de forma totalmente disforme aos valores constitucionalmente protegidos, que sua atuação possui uma dupla blindagem em face do controle judicial. Isso, pois, acredita que o Judiciário não possui capacidade técnica, tal como ela própria – máquina sofisticada que é a Administração reguladora – para questionar os critérios ou rumos escolhidos pelo Executivo. 

Isto é, tem-se por intermédio desta equivocada conclusão, que o mérito administrativo é inatingível não só pela virtual convivência harmônica entre os Poderes, bem como pela alegada incapacidade técnica do Judiciário de atestar a correção, ou não, de determinados atos administrativos com peculiar sofisticação. Ainda, como uma eventual segunda camada de blindagem, a Administração refuta a lentidão do Judiciário em face da agilidade na tomada de decisões ou apontamento de alternativas eficientes para o progresso e bem da nação, porque, além de outros percalços, tal lentidão encarece todo o sistema jurídico.

Como visto, nada mais falacioso do que tal raciocínio apresentado. O Judiciário possui prerrogativas (sem que para tanto ofenda o princípio da tripartição dos poderes, pois é o operador da prestação da tutela jurisdicional do Estado) e ferramentas plenamente hábeis para o questionamento de qualquer questão técnica que esteja sob a responsabilidade da Administração Pública – pois esta é a legal função dos peritos judiciais indicados quando necessários. Quanto ao lento processo judicial, fator contundente para o aumento de custos de transação de obrigações junto ao Estado, a sua mitigação, com fito de diminuição do risco obrigacional econômico é facilmente substituído com diminuição de outros fatores que igualmente aumentam tais custos, como, por exemplo: (a) a burocrática máquina administrativa; (b) segurança jurídica nas celebrações dos contratos públicos; (c) necessidade de indicações de membros de carreira (técnicos) para a diretoria da administração indireta, e não apenas indicações políticas as quais mudam junto com a alternância de governo; e (d) legislação que conceda maior segurança na aplicação de valores no País.

O Judiciário precisa firmar o seu papel na sociedade que protege, impondo o seu poder-dever de coibir atos que atentem ao direito, tendo em vista que este detém a prerrogativa da aplicabilidade coativa da lei aos litigantes, assumindo sua posição como órgão controlador das atividades normativas do Executivo e como peça central da manutenção da estabilidade social do Estado nacional. Além do ônus estampado no princípio fundamental protagonista do presente estudo.

Isso posto, conclui-se que a inafastável atuação do Judiciário na aplicação do direito no caso regulatório concreto é capital para a estrita observância da segurança jurídica dos atos da Administração Pública e proteção do cidadão, mesmo considerando as atuais limitações que este Poder encontra para a revisão da mecânica estatal regulatória administrativa.34 

No contexto desenhado, é vital que os operadores do Direito passem a se preocupar de que forma os atos administrativos regulatórios deverão ser tratados na prática contenciosa, uma vez que a máquina estatal reguladora existe para um determinado escopo (entre outros) de dinamizar a atuação do Estado. Destarte, o controle da Administração Pública exercido pelo Judiciário deve ser verificado com cautela para que seus efeitos, dentro de uma sistemática lenta e burocrática do Estado atual, não sejam usados com objetivos não tão nobres quanto é a segurança jurídica dos atos administrativos em prol do cidadão. Ou seja, é tarefa primordial do controle da Administração Pública estreitar e reprimir ao máximo os eventuais caminhos de corrupção.

Dentro desta necessária reflexão, sugere-se o estudo da doutrina de R. Alexy,35 com o fito de encontrar um resultado racional para o dilema da atuação da Administração Pública e o necessário controle do Poder Judiciário.

Alexy defende uma sistematização racional de ponderação de valores, com o fito de conceder instrumentos ao juiz para o alcance da melhor resposta – e de fato deveria ser observado dessa forma. A relação da doutrina de Alexy e a atuação do Judiciário sugerida apontam ao caminho do abandono da mera blindagem do aspecto discricionário do ato administrativo. Como já tratado, é insuficiente verificar a adequação de mérito técnico do ato administrativo, pois, também, seu núcleo essencial deve estar em conformidade com a ponderação racional e proporcional de legalidade – dita, repita-se, de forma final, pelo Judiciário.

Nessa esteira, o juiz efetivamente atua (ou deveria atuar) conforme a respectiva proposta, de acordo com uma ponderação racional dos valores postos, pois em um litígio difícil que esteja diante (v.g., estão em jogo dois princípios fundamentais – meio ambiente e moradia) de, pelo menos, duas eventuais respostas corretas – aquelas apresentadas pelas partes. Desse modo, deve buscar-se uma ponderação humanamente (não há como escapar da subjetividade) racional dos valores envolvidos, de igual forma, precisa-se estabelecer quais são os princípios aplicáveis para o alcance da resposta. Finalmente, deve-se buscar – de modo racional e utilizando o critério de proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade estrita) – dizer qual é a resposta melhor adequada para o caso posto (não há como se furtar da hierarquização, quando desta interpretação). Busca-se sempre, então, a superação da questão, não sua mera eliminação.

Assim, na solução de determinado caso concreto – em que se reconheça colisão de valores fundamentais – deve-se verificar, conforme o processo narrado, qual prepondera perante outro, sem que para isso resulte na eliminação deste. Objetiva-se, então, filtrar o que há de bom e alcançar a almejada melhor resposta.

Na prática, em questões difíceis que envolvem atos administrativos (notadamente aqueles preponderantemente técnicos, como os regulatórios), ainda não se observa tal iniciativa pelos juízes, isto porque – frisa-se – é vivo o imperialismo da discricionariedade do Executivo. Deste modo, vale ressaltar a importância de se utilizar os instrumentos jurídicos adequados para estancar esse dogma viciado de nosso ordenamento – tal como a objetiva verificação da adequação do ato administrativo ao princípio democrático. Isso porque, efetivamente, não se pode esquecer que o sistema brasileiro é verdadeiramente estruturado em princípios, notadamente àqueles materialmente fundamentais.  Destarte, tendo em vista o art. 5.º, XXXV, da CF/88, o nosso ordenamento adotou a ideia da última palavra expressada pelo Judiciário.

Celso Antônio Bandeira de Mello é enfático: 

“Em todo e qualquer caso de discricionariedade, por mais genéricas, vagas ou imprecisas que sejam as expressões legais qualificadoras dos motivos (pressupostos fáticos abstratamente previstos na lei) ou dos fins, o Judiciário poderá e deverá sindicar o ato, averiguando se a significação nuclear do conceito sintonizado na palavra foi, ou não, respeitada. Isto é, caber-lhe-á sempre aferir se os requisitos legais foram atendidos, o que desde logo é possível no concernente à significação mínima, central, que toda e qualquer palavra, que todo e qualquer conceito, possui”.36 

Outrossim, em consequência da presente parte deste estudo, tem-se que a relação sugerida entre a doutrina de Alexy e a atuação do Judiciário – perante os hard cases advindos de atos administrativos – deve servir como um caminho para a efetiva prestação jurisdicional pelo Estado. Como exposto, tal efetividade ocorrerá quando o Poder competente para definir a resposta no sistema jurídico nacional adotar a plena ideia de adequação do ordenamento legal ao primado dos princípios fundamentais.



2.4. Perspectivas jurisprudenciais


Há, pelo menos, cinco situações37 estabelecidas no STF e no STJ sobre o controle do ato administrativo (observe-se que um mesmo julgador se encontra em diversos posicionamentos sobre mérito administrativo): (a) não se aceita, simplesmente, a sindicabilidade do mérito administrativo; (b) utiliza-se do controle do mérito administrativo quando se trata de mero controle de legalidade; (c) faz-se um controle do mérito administrativo indireto, sem assumir frontalmente que o realiza, tentando preservar o máximo dos princípios constitucionais, por meio de um exercício de ponderação de valores envolvidos; (d) aceita-se o controle do mérito administrativo de forma regular e em casos excepcionais; (e) afasta-se o controle do mérito administrativo em razão de inadequação de meio processual utilizado no exercício da pretensão jurisdicional.

a) Situação 1: casos que o Judiciário nega o controle do mérito administrativo:

“(...) 3. A concessão de isenção é ato discricionário, por meio do qual o Poder Executivo, fundado em juízo de conveniência e oportunidade, implementa suas políticas fiscais e econômicas e, portanto, a análise de seu mérito escapa ao controle do Poder Judiciário. Precedentes: RE 149.659 e AI 138.344-AgR. 4. Não é possível ao Poder Judiciário estender isenção a contribuintes não contemplados pela lei, a título de isonomia (RE 159.026). 5. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 344.331/PR, rel. Min. Ellen Gracie, j. 11.02.2003) (grifos nossos).

“(...) 3. A concessão do benefício da isenção fiscal é ato discricionário, fundado em juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo, cujo controle é vedado ao Judiciário. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento” (STF, AgR no RE 480.107/PR, rel. Min. Eros Grau, j. 03.03.2009) (grifos nossos).

“1. Este Superior Tribunal de Justiça tem entendimento pacificado no sentido de que, nos casos de licenciamento ex officio de militar não estável, a bem da disciplina, não é necessária a instauração de processo administrativo, bastando a cientificação do militar para que exerça o seu direito defesa. 2. É inviável a incursão pelo Poder Judiciário sobre o mérito administrativo. 3. Recurso ordinário improvido” (STJ, RMS 16.946/PE 2003/0149.177-7, 6.ª T, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 28.04.2009, DJe 18.05.2009) (grifos nossos).

“1. A atuação do Poder Judiciário no controle dos atos administrativos limita-se aos aspectos da legalidade e moralidade, obstaculizado o adentrar do âmbito do mérito administrativo, da sua conveniência e oportunidade. 2. Se o Tribunal a quo, com base na análise do acervo probatório produzido nos autos, reconheceu que a remoção do servidor ocorreu como represália, com desvio de finalidade, infirmar tal entendimento ensejaria o reexame de provas, o que encontra óbice no verbete da Súmula 7 deste Tribunal. Recurso não conhecido” (STJ, REsp 616.771/CE 2003/0222.386-4, 5.ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. 19.05.2005) (grifos nossos).

“1. O ato de redistribuição de servidor público é instrumento de política de pessoal da Administração, que deve ser realizada no estrito interesse do serviço, levando em conta a conveniência e oportunidade da transferência do servidor para as novas atividades. 2. O controle judicial dos atos administrativos discricionários deve-se limitar ao exame de sua legalidade, eximindo-se o Judiciário de adentrar na análise de mérito do ato impugnado. Precedentes. Segurança denegada” (STJ, MS 12.629/DF 2007/0029.109-0, 3.ª Seção, rel. Ministro Felix Fischer, j. 22.08.2007) (grifos nossos).

b) Situação 2: utiliza-se do controle do mérito administrativo quando se trata de mero controle de legalidade:

“Expulsão. Estrangeiro condenado por tráfico de entorpecentes. Filha brasileira. Reconhecimento ulterior à expedição do Decreto de expulsão. Inexistência, ademais, dos requisitos simultâneos da guarda e da dependência econômica. Não ocorrência de causa impeditiva. HC denegado. Interpretação do art. 75, caput, II, b, e § 1.º, da Lei 6.815/80. A existência de filha brasileira só constitui causa impeditiva da expulsão de estrangeiro, quando sempre a teve sob sua guarda e dependência econômica, mas desde que a tenha reconhecido antes do fato que haja motivado a expedição do decreto expulsório. 2. Estrangeiro condenado por tráfico de entorpecentes. Decreto presidencial. Existência de causa legal. Conveniência e oportunidade. Ato discricionário do Presidente da República. Sujeição a controle jurisdicional exclusivo da legalidade e constitucionalidade. É discricionário do Presidente da República, que lhe avalia a conveniência e oportunidade, o ato de expulsão, o qual, devendo ter causa legal, só está sujeito a controle jurisdicional da legalidade e constitucionalidade” (STF, HC 82.893/SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 17.12.2004) (grifos nossos).

“1. Inexiste discricionariedade (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar, razão pela qual o controle jurisdicional, nesses casos, é amplo e não se limita a aspectos formais. 2. Na hipótese dos autos, a aplicação da pena de demissão ao recorrente não se revela desproporcional ou inadequada, porquanto aplicada após regular procedimento administrativo, em que restaram comprovadas irregularidades de natureza grave. Recurso ordinário desprovido” (STJ, Rec. em MS 21.259/SP 2006/0026.257-4, rel. Min. Felix Fischer) (grifos nossos).

“1. A jurisprudência do STJ admite, excepcionalmente, a concessão de efeito modificativo ao julgado em embargos de declaração. 2. É sabido que em tema de controle judicial dos atos administrativos, a razoabilidade, assim como a proporcionalidade, fundadas no devido processo legal, decorrem da legalidade, por isso que podem e devem ser analisadas pelo Poder Judiciário, quando provocado a fazê-lo. 3. A pena de demissão deve ser revista pelo Poder Judiciário, quando desarrazoada e desproporcional ao fato apurado no PAD, o que ocorreu nos presentes autos. Precedentes do STJ. 4. Embargos de declaração acolhidos com efeito modificativo para conceder a ordem de segurança” (STJ, EDcl no MS 9.526/DF 2004/0012.356-8, 3.ª Seção, rel. Min. Celso Limongi, j. 24.06.2009, DJe 03.08.2009) (grifos nossos).

“1. Tendo em vista o regime jurídico disciplinar, especialmente os princípios da dignidade da pessoa humana, culpabilidade e proporcionalidade, inexiste aspecto discricionário (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar. 2. Inexistindo discricionariedade no ato disciplinar, o controle jurisdicional é amplo e não se limita a aspectos formais. 3 e 4 (...) Ordem denegada, sem prejuízo das vias ordinárias” (STJ, MS 12.983/DF, 3.ª Seção, rel. Min. Felix Fischer, DJ 15.02.2008) (grifos nossos).

“1. Por força dos princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabilidade, aplicáveis ao regime jurídico disciplinar, não há juízo de discricionariedade no ato administrativo que impõe sanção a Servidor Público em razão do cometimento de infração disciplinar, de sorte que o controle jurisdicional é amplo, não se limitando, portanto, somente aos aspectos formais. Precedente” (STJ, MS 13.083/DF -2007/0217.736-7, 3.ª Seção, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 13.05.2009, DJe 04.06.2009) (grifos nossos).

“3. Os atos discricionários legitimam espaço de liberdade para o administrador, insindicável pelo Poder Judiciário, porquanto nessas hipóteses interditada a intervenção no mérito do ato administrativo. 4. É cediço na doutrina que: ‘(...) Já se tem reiteradamente observado, com inteira procedência, que não há ato propriamente discricionário, mas apenas discricionariedade por ocasião da prática de certos atos. Isto porque nenhum ato é totalmente discricionário, dado que, conforme afirma a doutrina prevalente, será sempre vinculado com relação ao fim e à competência, pelo menos. Com efeito, a lei sempre indica, de modo objetivo, quem é competente com relação à prática do ato – e aí haveria inevitavelmente vinculação. Do mesmo modo, a finalidade do ato é sempre e obrigatoriamente um interesse público, donde afirmarem os doutrinadores que existe vinculação também com respeito a este aspecto. (...) Em suma: discricionariedade é liberdade dentro da lei, nos limites da norma legal, e pode ser definida como: ‘A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal’. (...) Nada há de surpreendente , então, em que o controle judicial dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Nenhum empeço existe a tal proceder, pois é meio – e, de resto fundamental – pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito. (...) Assim como ao Judiciário compete fulminar todo o comportamento ilegítimo da Administração que apareça como frontal violação da ordem jurídica, compete-lhe, igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo que, a pretexto de exercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar as fronteiras dela, isto é, desbordar dos limites de liberdade que lhe assistiam, violando, por tal modo, os ditames normativos que assinalam os confins da liberdade discricionária’ (Celso A. B. de Mello, Curso de direito administrativo, 15. ed., Malheiros, p. 395-396 e 836-837). 5. Deveras, contexto fático encartado nos autos denota a ausência de direito líquido e certo da impetrante, ora recorrente, a uma: porque o juiz, ora impetrado, no exercício de competência discricionária, nenhuma ilegalidade praticou ao nomear interventor, imparcial para administração do cartório em comento, a fim de resguardar o bom andamento das investigações acerca do oficial titular; a duas: porque a impetrante, ora recorrente, é casada com o oficial titular, então afastado por supostas irregularidades cartorárias e seria difícil a mesma colaborar na devassa a ser realizada na serventia, em especial quando as provas apresentadas são contrárias ao seu esposo e filho, escrevente no referido cartório e acusado de falsidade no reconhecimento de firma. 6. In casu, o Tribunal a quo decidiu em consonância com o preceito legal (art. 36, § 1.º, da Lei 8.935/94), (...) o magistrado agiu com discricionariedade, entre várias possibilidades de solução, acolheu a que melhor correspondia, no caso concreto, ao desejo da lei (fls. 103/104). 7. Recurso ordinário desprovido” (STJ, RMS 20.271/GO 2005/0105.910-7, 1.ª T., rel. Min. Luiz Fux, j. 26.05.2009, DJ 06.08.2009) (grifos nossos).

c) Situação 3: faz-se um controle do mérito administrativo indireto, sem assumir que o faz, tentando preservar o máximo dos princípios constitucionais, por meio de um exercício de ponderação de valores envolvidos:

“A exclusão de policial militar, mesmo que não estável, não prescinde da instauração de procedimento administrativo em que lhe sejam asseguradas as garantias do contraditório e da ampla defesa. Não viola o princípio da separação dos Poderes a anulação de ato administrativo que fere as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Agravo desprovido” (STF, AI 509.213 no AgR/AL, rel. Min. Carlos Britto, j. 09.08.2005) (grifos nossos).

“A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (art. 211, § 2.º, da CF) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República [decisão anterior à EC 53/2006], e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (art. 208, IV, da CF) [decisão anterior à EC 53/2006], não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à ‘reserva do possível’” (STF, Ag no RE 410.715/SP, 2.ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 22.11.2005, DJ 03.02.2006) (grifos nossos).

“1. O art. 5.º, LV, da CF ampliou o direito de defesa dos litigantes, para assegurar, em processo judicial e administrativo, aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes. Precedentes. 2. Cumpre ao Poder Judiciário, sem que tenha de apreciar necessariamente o mérito administrativo e examinar fatos e provas, exercer o controle jurisdicional do cumprimento desses princípios. 3. Recurso provido” (STF, RMS 24.823/DF, 2.ª T., rel. Min. Ellen Gracie, j. 18.04.2006, DJ 19.05.2006) (grifos nossos).

d) Situação 4: aceita-se o controle do mérito administrativo como regular dever do judiciário ou em casos excepcionais:

“(...) 2. A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de ‘conceitos indeterminados’ estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração (...). Recurso ordinário provido” (STF, RMS 24.699/DF, rel. Min. Eros Grau, j. 30.11.2004).

“1. Cabe ao Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam. 2. Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local. 3. Agravo improvido” (STF, Ag no RE 365.368/SC, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22.05.2007) (grifos nossos).

“1. Nos termos do art. 5.º, XXXV, da Constituição Federal, ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. Assim, o controle judicial dos atos administrativos se mostra intimamente atrelado à existência do Estado Democrático de Direito, no qual, em regra, será possível aferir a legalidade e regularidade do ato administrativo. Precedente. 2. O Poder Judiciário deverá ser provocado pelo administrado para que exerça o controle judicial de eventual ato administrativo, sendo certo que essa provocação, em face do Princípio da Segurança Jurídica, pilar do Estado de Direito, deverá ocorrer dentro de um prazo prescricional legalmente previsto (...). 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido” (STJ, REsp 984.946/MG 2007/0212.477-1, 5.ª T., rel. Min. Laurita Vaz, j. 29.11.2007, DJ 17.12.2007, p. 343) (grifos nossos).

“1. Acarreta a nulidade do ato de exoneração a não observância do comando legal que impõe avaliações quadrimestrais mediante relatório circunstanciado. 2. Não atende a exigência de devida motivação imposta aos atos administrativos a indicação de conceitos jurídicos indeterminados, em relação aos quais a Administração limitou-se a conceituar o desempenho de servidor em estágio probatório como bom, regular ou ruim, sem, todavia, apresentar os elementos que conduziram a esse conceito. Recurso ordinário provido” (STJ, RMS 19.210/RS 2004/0161.210-5, 5.ª T., rel. Min. Felix Fischer, DJ 10.04.2006, p. 235).

“1. Na atualidade, a Administração Pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo. 2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-Ia. 3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade. 4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la. 5. Recurso especial provido” (STJ, REsp 429.570/GO, 2.ª T., rel. Min. Eliana Calmon, j. 11.11.2003, DJ 22.03.2004) (grifos nossos).

“Irregularidade do processo disciplinar. Mérito administrativo. Ocorrência de erro invencível. Possibilidade de intervenção do Judiciário. 1. No que diz respeito ao controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar, a jurisprudência do Superior Tribunal é firme no sentido de que compete ao Poder Judiciário apreciar, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, a regularidade do procedimento sem, contudo, adentrar o mérito administrativo. Havendo, porém, erro invencível, justifica-se a intervenção do Judiciário. 2. Na hipótese, cabia à administração proceder às diligências necessárias para a descoberta da verdade quanto à participação do impetrante na gerência da empresa, e não simplesmente colocar o ônus da prova sobre o servidor, que, por meio de sua curadora, tentou demonstrar a inatividade da empresa desde a fundação. Agindo assim, a administração esquivou-se das suas funções, lançando ao servidor a incumbência de comprovar a ausência de circunstância irregular. Ao final, não ficou nada provado no processo administrativo. A não intervenção se afigura estranho comportamento. Quero, por isso, entender comigo mesmo que, em certas situações e determinados assuntos, é lícita a intervenção judicial (é lícito ao juiz conhecer da provocação). 3. Segurança concedida em parte para se anular a demissão do impetrante, determinando-se, em consequência, a sua reintegração no cargo” (STJ, MS 10.906/DF 2005/0129.244-1, rel. Min. Nilson Naves) (grifos nossos).

e) Situação 5: afasta-se o controle do mérito administrativo em razão de inadequação de meio processual utilizado na pretensão jurisdicional encaminhada – caso de produção de provas em mandado de segurança:

“1. É legítima a verificação, pelo Poder Judiciário, de regularidade do ato discricionário quanto às suas causas, motivos e finalidade. 2. A hipótese dos autos impõe o reexame de fatos e provas. Inviabilidade do recurso extraordinário. Súmula 279 do STF. Agravos regimentais aos quais se nega provimento” (STF, Ag no RE 505.439/MA, rel. Min. Eros Grau, j. 12.08.2008) (grifos nossos).

“(...) 2. Em sede de mandado de segurança é vedado ao Judiciário promover dilação probatória ou incursão no mérito administrativo. Precedentes. 3. Segurança denegada” (STJ, MS 8.584/DF 2002/0105752-7, 3.ª Seção, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 24.08.2004, DJ 06.09.2004, p. 163).

Nesse contexto, algumas reflexões sobre uma melhor compreensão do mérito do ato administrativo para o seu efetivo controle do ato administrativo parecem ser necessárias.

O controle do ato administrativo é necessário quando o Estado atua de maneira furtiva aos valores que conformam o direito como um sistema harmônico e concatenado. No momento em que o ato agride a flexível pele que cobre o sistema jurídico a tal ponto de rompê-la, faz-se necessário o pronto curativo jurisdicional. Esta situação ocorre, principalmente, nos casos em que Administração adota critérios técnico-científicos desarrazoados e desnecessários à estrita produção do ato, bem como à fiel observância de sua finalidade inevitável de atender ao interesse público. Acontece muitas vezes nas hipóteses em que há determinada margem legal de atuação do agente administrativo (discricionariedade) e, nesta linha, existe um leque de opções de caminhos legais para prosseguir, o qual será escolhido de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, criando, assim, a problemática névoa para que o Judiciário atue de modo a controlar as ações do Executivo.

A mencionada névoa não é negativa em sua essência, porém, pode sim ser utilizada de uma forma irregular. Ocorre tal fato quando a Administração evita o controle jurisdicional em virtude da inexistente (mas incessantemente alegada) insindicabilidade do mérito do ato administrativo, assim como, pela incorreta crença de que o Judiciário não possui instrumentos hábeis para controlar e questionar o caráter técnico dos atos administrativos. Exemplo prático dessa atuação desenhada é observado na atuação regulatória das agências reguladoras federais, as quais, muitas vezes, sustentam que o lento e não técnico Judiciário não pode invadir a competência da Administração, sob o pretexto do preceito constitucional da convivência harmônica dos Poderes. Contudo, ao contrário dessa simplista afirmação do Executivo, existem sim meios eficazes de limitação do questionamento, junto ao Judiciário, do aspecto subjetivo do ato normativo – sem desprezar o papel do Judiciário no sistema – como já tratado em item anterior.

Efetivamente, apenas quando o aspecto subjetivo do mérito administrativo for atingido e reformulado pelo Judiciário, sem uma fundamentação suficientemente consistente para demonstrar objetivamente o desrespeito deste ato a valores do direito, estar-se-á diante da ofensa ao princípio da tripartição dos Poderes. Entretanto, este campo subjetivo torna-se muito estrito nos dias de hoje, em que instrumentos objetivadores do mérito do ato administrativo são plenamente conhecidos e já utilizados (mesmo que timidamente pelo Judiciário), tais como: critérios de razoabilidade; proporcionalidade; moralidade; finalidade; motivação consistente. Isso é, toda vez que o aspecto técnico ou o mérito (conveniência e oportunidade) não estiverem de acordo com os instrumentos objetivadores do caráter subjetivo do ato normativo, encontrar-se-á uma restrição axiologicamente inconstitucional do princípio fundamental processual da inafastabilidade da prestação da tutela jurisdicional pelo Estado.

Observa-se, de modo geral, que o controle do mérito do ato administrativo é visto como algo excepcional, fora da regra. Entretanto, o Judiciário deveria encarar tal fenômeno administrativo de forma contrária, isto é: a falta da revisão do ato deveria ser uma excepcionalidade fortemente justificada. Parece que existe um verdadeiro tabu ao falar em controle do mérito do ato administrativo, como se fosse o oitavo pecado capital. Então, alguns daqueles que compreendem que o Estado não pode se furtar do seu dever de responder à sociedade quando o mérito de atos administrativos for causador de prejuízo (ou quando ocorrer ameaça de prejuízo) procuram formas de falar o óbvio, mas de forma disfarçada (vide Situação 3). Compreensível tal vertente em respeito ao art. 2.º da CF/88 e à harmonização do sistema tripartido de Poderes constitucionalmente instituído no País. Entretanto, como bem determinado nos critérios de proporcionalidade: tanto a insuficiência quanto o exagero de zelo quando se trata da sindicabilidade do mérito dos atos administrativos são ações disformes à necessária adequação legal e ao direito – como todo ato do Estado deve ser, conforme esclarece o seguinte julgado:

“1. A margem de liberdade de escolha da conveniência e oportunidade, conferida à Administração Pública, na prática de atos discricionários, não a dispensa do dever de motivação. O ato administrativo que nega, limita ou afeta direitos ou interesses do administrado deve indicar, de forma explícita, clara e congruente, os motivos de fato e de direito em que está fundado (art. 50, I, e § 1.º da Lei 9.784/99). Não atende a tal requisito a simples invocação da cláusula do interesse público ou a indicação genérica da causa do ato. 2. (...) a autoridade impetrada não apresentou exposição detalhada dos fatos concretos e objetivos em que se embasou para chegar a essa conclusão. (...) De fato, em matéria de ato discricionário a doutrina administrativista brasileira se mostra unânime ao assentar que a liberdade de decisão do administrador não é absoluta, estando sujeita à satisfação do princípio da legalidade – a dizer que a escolha acerca da oportunidade e conveniência da prática do ato está subordinada aos limites impostos pela lei quanto ao mais, afastado qualquer conteúdo de subjetividade na escolha do momento adequado à prática de determinado ato (...). Na realidade, todo e qualquer ato discricionário praticado pela Administração estará necessariamente jungido à supremacia do interesse público – quando, então, e em razão do que a lei autoriza que o Administrador avalie os fundamentos atinentes à conveniência e oportunidade para a prática do ato em questão. De fato, mesmo em se tratando de atos discricionários, o administrador está obrigado não só a fundamentar as razões da prática do ato, mas também a explicitar a adequação de tal prática em face do interesse público – do que se pode concluir que a m

Notas

1 Tal como defendemos em: FRANÇA, Phillip Gil. Ato administrativo e interesse público.

SILVA, Vasco Pereira da. Em busca do ato administrativo perdido, p. 5.

SILVA, Vasco Pereira da. Em busca do ato administrativo perdido, p. 5.

Marçal Justen Filho entende Função Administrativa como “o conjunto de poderes jurídicos destinados a promover a satisfação de interesses essenciais, relacionados com a promoção de direitos fundamentais, cujo desempenho exige uma organização estável e permanente e que se faz sob regime jurídico infralegal e submetido ao controle jurisdicional” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, p. 39).

CAUPERS, João. Introdução ao direito administrativo, p. 36.

PARADA, Ramón. Derecho administrativo I: organización y empleo público, p. 97.

De acordo com João Caupers, entre a Função Administrativa e as outras Funções do Estado, pode estabelecer-se o seguinte quadro de relacionamento: (i) a Função Administrativa é instrumental da Função Política; (ii) a Função Administrativa encontra-se subordinada à Função Legislativa; (iii) a Função Administrativa é controlada pela Função Jurisdicional (CAUPERS, João. Introdução ao direito administrativo, p. 35).

MAURER, Hartmut. Direito administrativo geral, p. 204.

AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo, pp. 238-239.

10 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNÁNDEZ, Tomáz-Ramón. Curso de derecho administrativo, v. 1, pp. 541-548.

11 Como atos privados, processuais etc.; isto é, não basta que formalmente seja ditado um ato por um órgão da Administração sem que a matéria sobre a qual versa seu conteúdo seja administrativa, aquela que, embora relacionada aos atos da Administração Pública, precisa materialmente expressar conteúdo administrativo.

12 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNÁNDEZ, Tomáz-Ramón. Curso de derecho administrativo, pp. 541-548.

13 FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Atos administrativos, pp. 107-108.

14 Ibidem.

15 OVIEDO, Carlos Garcia. Derecho administrativo, p. 276. 

16 PARADA, Ramón. Derecho administrativo, p. 100.

17 Cf. COUTO, Reinaldo. Curso de direito administrativo segundo a jurisprudência do STJ e do STF, p. 137.

18 Ibidem.

19 Tais como questões de direito desportivo, o mérito do ato administrativo, dentre outras. Registre-se que a linha de raciocínio adotada no presente trabalho se coaduna com aquela que defenda a inexistência de situações não passiveis de revisão judicial.

20 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 28.

21 DROMI, Roberto. Derecho administrativo, p. 172.

22 Ibidem.

23 Ibidem.

24 Tal como tratamos na obra: FRANÇA, Phillip Gil. Controle do ato administrativo.

25 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, pp. 622-623.

26 Ibidem.

27 TÁCITO, Caio. Direito administrativo, p. 136.

28 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Controle jurisdicional da Administração Pública. Revista de direito administrativo e constitucional, p. 59.

29 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 108.

30 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, p. 133.

31 Em conformidade com linha de raciocínio expressada no presente estudo, apresenta-se a seguinte decisão: REsp 429.570/GO, DJ 22.03.2004; MS 6.166/DF, DJ 06.12.1999; MS 9.190/DF, DJ 15.12.2003; MS 4.269/PE, DJ 17.06.1996; e REsp 429.570/GO, DJ 22.03.2004; MS 9.944/DF, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 25.05.2005. 

32 Entretanto, novamente, vale o destaque das lições do mestre Caio Tácito: “Não se compõe a legalidade do ato administrativo unicamente de fatores externos relacionados com a competência, a forma ou o objeto. Ela se interioriza nos motivos e, sobretudo, nos fins prescritos à autoridade administrativa. O requisito da finalidade é a disciplina principal do ato em relação ao interesse público. Ela procede sempre almejando um objetivo prefixado na sua competência própria. A finalidade é um elemento de vinculação permanente da conduta administrativa: se pode haver discricionariedade no tocante à escolha dos motivos ou à determinação do objeto, em nenhuma hipótese ela ocorrerá em relação ao fim” (TÁCITO, Caio. Direito administrativo, p. 101).

33 Contudo, ainda não é a posição adotada pelo Poder Judiciário, como se depreende dos seguintes julgados: “1. A regulamentação do setor de telecomunicações, nos termos da Lei 9.472/97 e demais disposições correlatas, visa a favorecer o aprimoramento dos serviços de telefonia, em prol do conjunto da população brasileira. Para o atingimento desse objetivo, é imprescindível que se privilegie a ação das Agências Reguladoras, pautada em regras claras e objetivas, sem o que não se cria um ambiente favorável ao desenvolvimento do setor, sobretudo em face da notória e reconhecida incapacidade do Estado em arcar com os eventuais custos inerentes ao processo. 2. A delimitação da chamada ‘área local’ para fins de configuração do serviço local de telefonia e cobrança da tarifa respectiva leva em conta critérios de natureza predominantemente técnica, não necessariamente vinculados à divisão político-geográfica do município. Previamente estipulados, esses critérios têm o efeito de propiciar aos eventuais interessados na prestação do serviço a análise da relação custo-benefício que irá determinar as bases do contrato de concessão. 3. Ao adentrar no mérito das normas e procedimentos regulatórios que inspiraram a atual configuração das ‘áreas locais’ estará o Poder Judiciário invadindo seara alheia na qual não deve se imiscuir. (...)” (STJ, 2.ª T., REsp 572070/PR (2003/0128035-1), rel. Min. João Otávio de Noronha (1123), j. 16.03.2004, DJ 14.06.2004, p. 206). “1 – Nos termos da Lei 9.472/97, regulando o setor de telecomunicações, com vista ao aprimoramento do serviço de telefonia em favor da população, cabe privilegiar a atividade das agências reguladoras para o desenvolvimento do setor. 2 – Em princípio, o padrão de qualidade dos serviços de telecomunicação, implica custos e despesas decorrentes, cabendo ao Poder Judiciário a defesa do consumidor sem adentrar em áreas de conhecimento técnico de telefonia, sob pena de comprometer a eficiência, segurança e continuidade do serviço prestado. (...)” (TRF, 4.ª Reg., AC 2002.70.11.0005179/RS, DJU 25.05.2005) (grifos nossos).

34 Contudo, na linha oposta do raciocínio exposto, segue exemplo da atitude “conservadora demais” do Judiciário quando se trata de controlar os atos das agências reguladoras, com finalidade de proteger o cidadão perante a relação com a concessionária fornecedora de serviços públicos, tendo em vista sua posição hipossuficiente.

35 2.ª T., AgRg na MC 10915/RN (2005/0205323-0), rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 01.06.2006, DJ 14.08.2006, p. 258.

“2. É da exclusiva competência das agências reguladoras estabelecer as estruturas tarifárias que melhor se encaixassem aos serviços de telefonia oferecidos. Ao intervir na relação jurídica para alterar as regras fixadas pelos órgãos competentes, o Judiciário corre o risco de criar embaraços que podem não apenas comprometer a qualidade desses serviços, mas, até mesmo, inviabilizar a sua prestação.”

36 Notadamente: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales.

37 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Pareceres de direito administrativo, p. 59.

38 Logicamente, não se pretende estabelecer uma classificação final sobre o tema. Por certo, há outras possíveis, tendo a presente o estrito – e respeitoso – objetivo de indicar uma perspectiva de postura do STJ e STF acerca do assunto, com o devido alerta que se trata apenas de uma classificação indicativa – com a necessária consideração própria dos apontamentos científicos construtivos – da atual postura desses órgãos jurisdicionais superiores.

Referências

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Citação

FRANÇA, Phillip Gil. Controle do ato administrativo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/13/edicao-2/controle-do-ato-administrativo

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017

Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

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