• Miguel Reale

  • Cláudio De Cicco

  • Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Abril de 2017

A longa e fecunda existência de Miguel Reale começou em 6 de novembro de 1910, em São Bento do Sapucaí, pitoresca cidade no limite do Estado de São Paulo com Minas Gerais. Terminou com seu falecimento ocorrido em São Paulo, Capital, aos 14 de abril de 2006.

Isto significa que ele atravessou de ponta a ponta quase um século da vida nacional, de que participou ativamente, da banca de advogado à cátedra universitária; das fileiras dos moços revolucionários de 1932 aos debates políticos do segundo pós-guerra; dos anos de chumbo da ditadura militar ao processo da redemocratização com a elaboração do Código Civil de 2002, de cuja Comissão Redatora participou.

1.A formação


1.1. Os primeiros anos


Não é simples coincidência que a cidade de São Bento do Sapucaí foi o berço em que nasceram Plínio Salgado, Miguel Reale, Abade Pedrosa, Desembargador Affonso José de Carvalho, Eugênia Sereno, cada qual deixando sua marca na História do Brasil.

Plínio Salgado foi, além do idealizador do movimento integralista, personagem importante na inovadora Semana de Arte Moderna de 1922, reconhecido autor do primeiro romance modernista no Brasil, “O Estrangeiro”, a que se seguiram inúmeras obras literárias de importância como “O Esperado”, “O Cavaleiro de Itararé” e o clássico “Vida de Jesus”.

O Abade José Marcondes Pedrosa, que fora antes vigário da Igreja de Santa Cecília e cotado para suceder a Dom Duarte Leopoldo como Arcebispo de São Paulo, entrou para o Ordem Beneditina, que sempre teve laços com sua terra natal e lá foi eleito abade. Foi o diretor espiritual de muitas senhoras da alta sociedade paulistana e incentivador do canto gregoriano, que até hoje perdura no histórico mosteiro do largo de São Bento, na capital paulista.

Eugenia Sereno, pseudonimo de Benedita de Resende Graciotti, romancista que se consagrou com um único livro que se tornou um clássico, “O Pássaro da Escuridão”, também era filha desta bela cidade.

O desembargador Affonso José de Carvalho, ao lado de obras de doutrina e jurisprudência como “Inquirição Cível” e “Novas Decisões” ficou conhecido por suas sentenças em forma rimada, unindo a erudição jurídica ao senso artístico.

Foi o desembargador o autor da música e letra de um “Hino de São Bento do Sapucaí’. 

O progenitor de Miguel Reale, o Dr. Brás Reale, era um médico italiano oriundo de Lauria, na Basilicata, Itália meridional, especialista em doenças da pele, que vinha de uma verdadeira estirpe de médicos do antigo Reino de Nápoles e Duas Sicílias. 

Sua mãe foi Dona Felicidade Vieira da Rosa Gois Chiaradia Reale, filha de rico fazendeiro da região, o Major Miguel Chiaradia, também como ele imigrante italiano, e que tentou plantar no Vale do Paraíba as macieiras de sua terra.

Com o falecimento do Major Chiaradia, o Dr. Brás Reale, que clinicava em São Bento, resolveu se mudar, com a família, para o Rio de Janeiro.

Na então Capital Federal, o Dr. Reale instalou farmácia e consultório adjacente, como era comum naquele tempo. 

Mas não teve sorte, pois sua casa ficava perto do mar e certa noite, as ondas invadiram a farmácia, destruindo tudo o que ali havia. Brás Reale resolveu se transferir para a cidade mineira de Itajubá, então florescente centro cultural e agrícola, e onde havia uma Faculdade de Engenharia. 

Itajubá foi a cidade da infância de Miguel Reale, que ali viveu até 1921. 

Em 1922, Miguel Reale, que fizera os estudos primários em Itajubá, no Colégio Nossa Senhora da Glória, ingressou no Instituto Secundário Dante Alighieri, na Capital Paulista, de onde sairia, em 1929, para entrar na Faculdade de Direito de São Paulo, rompendo uma tradição dos Reale, não desejando seguir a medicina.

Na Academia, além de se estudar a Ciência Jurídica, se fazia muita política, com acalorados debates.


1.2. O combatente na Revolução de 1932


Em 1930, Reale apoiou, como boa parte dos estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo, o vitorioso movimento político-militar liderado por Getúlio Vargas, que depunha o presidente Washington Luiz, admirável pianista da alta sociedade, mas que considerava a crescente questão social “uma questão de polícia...”  O fato é que – como todos sabem –Vargas derrubou a Velha República da oligarquia “café com leite” e disto não gostaram as elites paulistas e mineiras...

Muitos de seus filhos estudavam na Academia de Direito. Foi ali um dos focos da Revolução contra Getúlio. Assim, em julho de 1932, quando eclodiu a Revolução Constitucionalista, Miguel Reale, como seus colegas, ingressou em um dos batalhões acadêmicos, o Batalhão Ibrahim Nobre, combatendo no sul do Estado de São Paulo, chegando ao posto de Sargento.

A 02 de outubro daquele ano, findou a Revolução Constitucionalista, com a derrota militar das forças paulistas.

Cinco dias mais tarde, foi lançado, em São Paulo, o chamado “Manifesto de Outubro”, documento inaugural do “Integralismo”, cuja mensagem logo se espalhou por todo o País e cujo autor era Plínio Salgado, já então célebre escritor, um dos participantes da Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo, romancista, poeta, jornalista e político, natural desta mesma cidade de São Bento.


2. Na Ação Integralista Brasileira


2.1. A motivação


Ainda no referido mês, Reale se encontrou, pela primeira vez, com Plínio Salgado, homem da geração anterior à sua, cujos artigos publicados no jornal “A Razão” havia lido e apreciado bastante. Foi então que este o fez sentir, como lembrava Reale “a possibilidade de uma experiência política que viesse realizar dois valores fundamentais: o socialismo e a problemática nacional”. Estas seriam, com efeito, ideias dominantes do espírito do futuro autor de “Teoria do Direito e do Estado”, em cuja obra sempre esteve presente “a tônica da composição do problema da liberdade, de um lado, com o problema da nacionalidade, do outro”.

Em meados de novembro de 1932, Miguel Reale ingressou na “Ação Integralista Brasileira”, que se constituiu no primeiro “movimento de massas” e no primeiro partido de âmbito nacional do País desde o fim do Império e que reuniu dezenas de intelectuais da mais alta distinção, que representavam, segundo o próprio Reale, “o que havia de mais fino na intelectualidade da época”.

É o próprio Reale que depõe em artigo de 2004:

“Nada mais errôneo do que ligar a ‘Ação Integralista Brasileira’ ao ‘Nacional-socialismo’ de Adolf Hitler, pois ela foi criada em outubro de 1932, quando a doutrina daquele líder alemão era praticamente desconhecida no Brasil, onde repercutira apenas o ‘Fascismo’ de Benito Mussolini, com as idéias centrais de ‘Estado forte’, com partido político único organizado com base em corporações econômicas.

Em contraste com o liberalismo, a idéia fascista do ‘Estado forte’, caracterizado pela planificação da economia – ponto este em que coincidia com o marxismo leninista – teve grande ressonância em nosso País, contando com o apoio de Alceu de Amoroso Lima, Fernando de Azevedo, Francisco Campos, Azevedo Amaral, Otávio de Faria, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia.

Plínio Salgado acolheu essa idéia, no contexto da doutrina social da Igreja, que era a sua diretriz dominante, procurando adequá-la às conjunturas político-econômicas brasileiras, sendo partidário de um ‘corporativismo integral’, não identificado com o Estado. A seu ver, o Fascismo devia ser interpretado como uma ‘terza–via’, terceira força, entre o liberalismo e o comunismo, tendo programa distinto em cada nação.

Foi essa colocação do problema que me atraiu – recorda Reale –, em 1933, passando a defender, no seio da ‘Ação Integralista’, uma posição própria, baseada no corporativismo democrático de um pensador romeno, Michail Manoilesco, em sua obra Le Siècle du Corporativisme, não aceitando a tese fascista da corporação como ‘órgão do Estado’, mas sim como estrutura democrática com organização social autônoma”. 

E acrescenta: 

“Quem quiser ter informação mais completa sobre meu pensamento na época deve ler o que escrevi, em 1934, em meu livro O Estado Moderno”.


2.2. A motivação


No ano de 1935, Reale entregou à publicidade outra obra intitulada “O Capitalismo Internacional”, em que o autor de “Formação da Política Burguesa” trata das origens do capitalismo e contesta a célebre tese de Vladimir Lênin segundo a qual o imperialismo constituiria a derradeira fase do capitalismo, observando que o sistema capitalista vinha assumindo uma nova posição, de caráter transnacional, ao lado e até acima do Estado, que convertia em seu instrumento. Era o Supercapitalismo, que engendraria um feudalismo de novo tipo, em que a hierarquia dos feudatários não era de caráter pessoal e nem resultante do poderio militar e da extensão dos domínios territoriais, como fora na Idade Média, provindo tão “somente da massa de capital e do crédito de que cada indivíduo ou sociedade pode dispor”.

A 11 de setembro de 1935, Miguel Reale, diplomado em Direito em agosto do ano anterior e já Secretário Nacional de Doutrina da “Ação Integralista Brasileira”, casou-se com Filomena Pucci, “Nuccia”, diminutivo italiano, abrasileirado para “Nuce”, que conhecera quando ainda era menino, no Instituto Secundário Dante Alighieri, onde ambos foram alunos na mesma classe, rivais nas melhores notas...


3. Fora do integralismo, o jornalismo de combate


3.1. O jornal “A Ação”


Em 1936, Reale, que, por motivos que jamais foram devidamente esclarecidos, fora afastado do cargo de Secretário Nacional de Doutrina da “Ação Integralista”, fundou, com Paulo de Ulhôa Cintra, Mário Mazzei Guimarães, Benedito Vaz e Eduardo Graziano, o jornal “A Ação”, em cujas páginas colaboraram, além de Reale, Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Luís da Câmara Cascudo, San Tiago Dantas, Goffredo Telles Junior, Lauro Escorel, A. B. Cotrim Neto e Ernani Silva Bruno, entre outros.

Para Reale, teórico do Estado Integral, a base da construção do Estado consistia na organização sindical, que culminaria na organização corporativa. O modelo de corporativismo de Reale é o de Benito Mussolini, pois “(...) via, naquela época, o corporativismo fascista como um meio de superamento da política monopolística, sem antever que o Estado fascista iria subordinar-se cada vez mais às injunções imperialistas”.1 Deve-se ressaltar que o Integralismo declarava-se “anticapitalista”. Em relação ao período e ao tema pertinente a esta pesquisa, pode-se afirmar que a concepção de Estado de Reale é uma contraposição ao liberalismo, que se expressa através da crítica ao Estado mínimo e à desintegração do indivíduo. O Estado seria o elemento de coalisão das particularidades sociais, pois representa o interesse geral.


3.2. A luta pelo petróleo


O diário “A Ação” se empenhou em todas as numerosas campanhas nacionalistas daquele tempo, incluindo aquela em favor da extração nacional do petróleo, apoiando entusiasticamente a luta de Monteiro Lobato. Este, em entrevista àquele jornal, em 15 de outubro de 1937, declarou que sua “única esperança”, naquele momento, estava nos integralistas.

Tendo sido a AIB dissolvida, juntamente com os demais partidos, a 03 de dezembro de 1937, pelo golpe do “Estado Novo” de Getúlio Vargas, Reale partiu para o exílio na Itália, onde teria contato com o movimento culturalista, que então se desenvolvia na Europa.


4. Militante na política partidária


4.1. A fundação do Partido Social Progressista


Nomeado para o Departamento Administrativo do Estado de São Paulo, Reale exerceu as funções de Conselheiro de Estado até 1945. Neste ano, que marcou o ocaso da ditadura estado-novista e o início da redemocratização do País, fundou ele, com Marrey Junior e outros, o “Partido Popular Sindicalista”, cujo manifesto redigiu. Em 1946, o supracitado partido se fundiu ao “Partido Republicano Progressista” de Adhemar de Barros e Café Filho e ao “Partido Agrário Nacional” de Mário Rolim Telles, assim surgindo o “Partido Social Progressista” (PSP), cujo estatuto e programa se basearam em projetos da autoria de Reale, visando “a socialização do progresso”.


4.2. A socialização do progresso


Em julho do mesmo ano, Reale foi delegado do Governo brasileiro junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, fazendo prevalecer, por meio de votação em plenário, o ponto de vista brasileiro a respeito do salário mínimo nas plantações.

No ano de 1963, o jusfilósofo patrício foi nomeado Secretário de Justiça do Estado de São Paulo por Adhemar Barros, ocupando tal cargo na formação do movimento cívico-político de oposição democrática a João Goulart, em 1962, de que participou ativamente, até que os militares desfecharam o golpe de 1964.


5. A vocação acadêmica e universitária


5.1. O concurso para a cátedra de Filosofia do Direito


Em 1940, ano da publicação de sua Teoria do Direito e do Estado, Reale, que voltara ao Brasil ainda em 1938, se inscreveu no concurso para Professor Catedrático de “Filosofia do Direito”, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, apresentando a tese Fundamentos do Direito. Aprovado, num clima de antagonismo social e ideológico em que se uniram contra sua posse comunistas e liberais, pois ele fora integralista, além de filhos da aristocracia paulista que não viam com bons olhos o ingresso de um filho de imigrante italiano na tradicional Academia. Depois de recurso ganho nos tribunais contra decisão da Congregação da Faculdade, foi empossado em 14 de maio de 1941. Os detalhes estão todos no empolgante primeiro volume de suas Memórias.

Secretário da Justiça e dos Negócios Interiores do Estado de São Paulo em 1947, organizou Reale diversos órgãos de fundamental importância, tais como o Departamento Jurídico do Estado e a Assessoria Técnico-Legislativa, a primeira constituída no Brasil.

Nomeado Reitor da Universidade de São Paulo em 1949, ocupou tal cargo até 1950, reestruturando vários de seus institutos e departamentos e traçando o primeiro plano de expansão universitária no interior do Estado, principiando pela fundação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, cuja pedra fundamental lançou.


5.2. A criação do Instituto Brasileiro de Filosofia


A 10 de outubro de 1949, Miguel Reale fundou, com a cooperação de Vicente Ferreira da Silva, Heraldo Barbuy, Renato Cirell Czerna e Luís Washington Vita, o ‘”Instituto Brasileiro de Filosofia” (IBF). Os objetivos capitais do Instituto Brasileiro de Filosofia, realizados com sucesso, foram a valorização dos principais textos dos filósofos nacionais e o estímulo a nossos pensadores, no sentido de elaboração de trabalhos que não constituíssem simples comentários de teorias estrangeiras, mas sim “representassem o ato de pensar em diálogo com autores do Brasil e do estrangeiro, sem subordinação dogmática a determinada linha de pensamento”, assim como a participação do País nos encontros internacionais de Filosofia e a promoção de congressos filosóficos nas diversas unidades da Federação .

Em 1951 foi criada, por Reale, a Revista Brasileira de Filosofia, que sem dúvida alguma constitui o maior e mais elevado veículo filosófico de quantos hajam surgido no Brasil e que tem recebido, desde sua fundação, a colaboração de grandes pensadores do Brasil e do exterior.

Entre outubro de 1969 e novembro de 1973, Reale ocupou pela segunda vez a Reitoria da Universidade de São Paulo, promovendo, por exemplo, no plano didático, a reforma universitária de que tal instituição ora carecia; no plano urbanístico e arquitetônico, a elaboração de projetos ou conclusão de edifícios destinados a abrigar os diversos institutos básicos recém-criados numa Cidade Universitária, e, no plano cultural, a definitiva institucionalização da Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP).

Tornou-se, com o passar dos anos, membro de várias instituições culturais de importância. Pertenceu à Academia Paulista de Letras, à Academia Paulista de Direito, à Academia Paulista de História e à Sociedade Interamericana de Filosofia, de que foi o primeiro presidente, bem como a outras instituições do Brasil e do exterior, e presidiu o Conselho Federal de Cultura por quinze anos, a partir de 1974. Também foi recebido na Academia Brasileira de Letras em 1975.


6. A obra jusfilosófica


6.1. A teoria tridimensional do direito


Na obra jurídica de Miguel Reale, destacamos a Teoria Tridimensional do Direito. Foi desenvolvida nas obras Filosofia do Direito, de 1953, e Teoria Tridimensional do Direito, de 1968, e é, sem dúvida, a maior contribuição de Reale para o pensamento jusfilosófico universal, constituindo “a maior reação contra o normativismo formalista nos anos 40”, como nós salientamos em livro sobre a História do Pensamento Jurídico.2 

Vem sendo largamente aceita em países como a Itália, a França, a Hungria, a Polônia, a Argentina, o México e, é claro, o Brasil.

Vários autores já reconheciam a importância dos fatos e dos valores para a elaboração da norma jurídica, mas só ele colocou fato, valor e norma como três polos em implicação dialética.

Além disso, Miguel Reale, ao expor sua Teoria Tridimensional do Direito, sublinhou seu aspecto histórico-cultural. Mostrava que as três dimensões do fenômeno jurídico, o fato, o valor e a norma, em contínua dialética de implicação e polaridade, só poderiam ser compreendidas se inseridas num contexto histórico. Uma visão estática prejudicaria todo o significado da teoria que, abstraindo do contexto histórico, seria uma explicação demasiado mecânica, longe da realidade. No entanto, não se nota um cuidado muito grande em acentuar este aspecto importante da tridimensionalidade, e os estudiosos do Direito lembram de “fato, valor e norma”, como se fossem dados imutáveis.

É a dialética de integração entre o mundo ideal, arquetípico e o mundo real, entre o Direito como ideal de justiça e o Direito como concreção na vida do dia a dia. Mas, pensados de modo original, em contínua integração, como a dizer, conhecer o ideal quando se projeta no real e o real quando se eleva ao ideal, onde se vê sua inspiração no grande filósofo napolitano, do século 18, Gianbattista Vico.3

O humanismo de Vico transparece também quando coloca a Pessoa Humana como valor-fonte de todos os demais valores, dentro de uma perspectiva de mutabilidade histórica. Parece impossível conciliar as duas propostas. Mas tudo se esclarece, quando se amplia o cenário, buscando uma visão de mútua implicação, sintetizada por Reale como “visão integral da história e do direito”.

Continuando seu labor de escritor, Reale reuniu, em 1956, vários estudos apresentados em inúmeros Congressos Internacionais de Filosofia na citada obra: Horizontes do Direito e da História, que teve grande aceitação no mundo universitário.

Leciona Reale, no mencionado livro: 

“As nações são formações históricas, e, sem compreensão da história, não pode haver verdadeiro estadista. Em verdade a política é uma ciência experimental que encontra na história o seu laboratório de experiência. Sòmente a história assegura ao político a capacidade de distinguir o que é universal do que é particular, específico e transitório nas instituições e nas leis; somente a história nos previne contra o engano das palavras que permanecem as mesmas enquanto que o seus significados se sucedem, às vezes da maneira mais contraditória e paradoxal; sòmente a história nos ensina a não julgar os fatos pela moldura das formas de governo, mas pelo que nelas se contenha de real e de vivo”.4  

E como se passa da História para o Direito? 

Responde-nos Reale, logo no prefácio a Horizontes do Direito e da História:

“Talvez sofra o homem da doença de ter idealizado em demasia o justo, atribuindo-lhe características imutáveis, eternas, míticas, mera hipóstase dos mais puros impulsos e sentimentos de solidariedade. (...) É mister que o ideal de justiça seja devolvido à consciência atuante do homem. (...) é possível que a meditação da história nos torne mais conscientes das razões concretas da atividade jurídica, de maneira que as necessárias estruturas e processos formais, não se convertam em rígidos entraves à atualização espontânea dos fins que compõem a constante ética do Direito”.5 

Sobre matéria especificamente jurídica, em 1968, Reale escreveu o livro O Direito como Experiência, que teve repercussão internacional, aplicando ao Direito a teoria dos modelos.


6.2. A tridimensionalidade do Estado


A concepção do Estado como simples ordenamento jurídico, como pretendera Kelsen, não encontra apoio na realidade, que se impõe por toda parte, como realidade cultural. 

A historicidade cultural originária, essencial à sociedade, não se harmoniza com o normativo como pura regra a ser cumprida, pois o dever-ser do Direito já é algo de inserido no social. 

Na história do liberalismo e do marxismo há convergências paradoxais; ambos pregaram, doutrinariamente, a diminuição progressiva dos poderes do Estado, o primeiro em prol de uma democracia absoluta, pela redução contínua de sua intervenção no mundo econômico; e o segundo devido ao coletivismo, de fundo anárquico. A doutrina do Estado evanescente prevalece, desse modo, nas linhas ideológicas mais opostas. 

Na realidade, no plano histórico, com o estalinismo, o que prevaleceu foi o estatismo; e com a democracia social, predominou a intervenção do Estado na economia. Embora com objetivos diversos, marxismo e liberalismo levaram a conclusões paralelas, mas sem abandonar no plano doutrinário suas teses preferenciais. 

Em 1963, lançava Miguel Reale, marcando bem sua posição anti-individualista e anti-totalitária, o grande livro Pluralismo e Liberdade, marco da doutrina político-filosófica democrática e social entre nós.

Com a globalização, sobretudo no mundo econômico-financeiro, o Estado Nacional perdeu forças, não há dúvida, surgindo governos de composição, com gabinetes com as mais estranhas alianças, liberais unidos a comunistas, com relativa diminuição do poder estatal. O certo é que não prevaleceu o liberalismo de Hayeck, nem tampouco a política soviética, que se esfacelou em 1989.    

De outro lado, no entanto, se continua a pregar o perecimento do Estado Nacional o que é, na opinião de Reale, o grande engano. Na situação atual da política mundial, está o Estado Nacional, com graus diversos de força, mas com sinais inegáveis de vitalidade. É que o Estado é uma realidade cultural e não mera criação doutrinária.


7. O Novo Código Civil brasileiro


7.1. Na Comissão Redatora do Projeto de Novo Código Civil


Foi durante o quadriênio de seu segundo reitorado na Universidade de São Paulo, que se deram os trabalhos de preparação de um novo Código Civil, cuja Comissão Revisora e Elaboradora era presidida pelo Professor Reale e que resultaram no Código Civil de 2002.

Sua vasta experiência como advogado e suas notáveis contribuições no campo do Direito público e privado o levaram a ser convidado para ser o Coordenador da Reforma do Código Civil brasileiro, e depois o Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil que, instalada em 1969, apresentou em 1975 o anteprojeto que, depois de amplamente analisado pelos juristas e pela sociedade como um todo, foi aprovado pelo Congresso Nacional e seria sancionado pelo Presidente da República, Professor Fernando Henrique Cardozo, pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 

Desde 1998, Reale proferiu conferências sobre o Projeto de Código Civil no Senado Federal, no Superior Tribunal de Justiça, na Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro e na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo. Depois de sancionado o diploma, as conferências se estenderam por dezenas de cidades do País, para explicar as inovações legais trazidas pelo novo Código, em resposta às mudanças sociais, tanto no campo dos fatos, como no dos valores.

Na Exposição de Motivos do Código Civil, Miguel Reale mostra que era necessário atualizar o Código antigo, datado de 1916, que refletia os valores de uma sociedade ainda da “belle-époque”, não sacudida pelo grande terremoto fático e axiológico que foi a Primeira Guerra Mundial.

Era preciso “dotá-lo de institutos novos, reclamados pela sociedade atual”. 

O clamor por uma nova Lei Civil adveio “das profundas alterações havidas no plano dos fatos e das idéias, tanto em razão do progresso tecnológico como em virtude da nova dimensão adquirida pelos valores da solidariedade social”.

Vem a nova Lei Civil “destituída de qualquer apego a meros valores formais e abstratos”, dotado de conceitos-chave integradores, como os de boa-fé, equidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência de prestações”. E ainda: “Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídicos que permitam chegar-se à ‘concreção jurídica’, conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa”. 

Ainda, Miguel Reale nos mostra que no novo Código Civil Brasileiro “os fins sociais se casam com o que há de intocável na liberdade da iniciativa individual, oferecendo modelos jurídicos abertos”, dando uma maior amplitude à ação dos juízes na aplicação da lei ao caso concreto. 

Miguel Reale lembra que a Comissão teve o cuidado de redatar as disposições com  clareza e  precisão, que não poderiam ser vagas ou imprecisas, pois eram verdadeiros “modelos e diretivas de ação”, impondo sanções punitivas ou premiais ao cidadão. 

O novo Código Civil consagrou os princípios da operabilidade, eticidade e sociabilidade.

O princípio da operabilidade possibilita a execução dos comandos legais superando-se divergências teóricas, permitindo a sua mais fácil realização. Exemplo é o novo tratamento dado à prescrição e decadência.

Já pelo princípio da eticidade nem tudo pode ser resolvido por meio de preceitos normativos expressos, abrindo-se o sistema à interferência de critérios éticos, como a equidade, a justa causa e a boa-fé objetiva. Exemplos: CC, art. 113, 187 e 422.

O princípio da função social do contrato, apenas a título de exemplo, insere-se no princípio da sociabilidade. Por este princípio procura-se retirar a lei civil do individualismo típico do modelo liberal do CC/16. Exemplo é o novo usucapião com prazo reduzido (art. 1238 – 15 anos), da usucapião especial (arts. 1239 e 1240) ou da proteção da posse trabalho (1228) e art. 421.

O princípio da sociabilidade e eticidade traz em seu bojo o que a doutrina costuma chamar de “conceito jurídico indeterminado” ou então “cláusula abertas”. Algumas vezes são tratadas como sinônimos, outras não, diferença esta de pouca relevância prática.

Os que as diferenciam conceitua “cláusula geral” como aquela que não define o significado de seu conteúdo e as consequências do significado adotado. Seu escopo é possibilitar ao aplicador da lei a definição da cláusula observando e respeitando os valores que imperam na sociedade de seu tempo.

Vemos, então, uma clara aplicação de sua concepção tridimensional do direito na elaboração dos artigos do Código, a nível de um pressuposto filosófico e metodológico. Passemos aos artigos mesmos.

Em matéria contratual, o art. 421 abre a legislação com a advertência clara de que a função social do contrato limita a liberdade de contratar. 

Acolheu-se o tempero da equidade nos arts. 478 e 479: 

“Nos contratos de execução continuada, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra (...) poderá o devedor solicitar a resolução do contrato (...)” a menos que a outra parte se ofereça a equitativamente modificar as condições do contrato”. 

Em matéria de Direito de Família, reconhecera já o Legislador uma nova realidade social, promulgando a Lei 8.971/1994, que disciplinou o direito dos companheiros, alimentos e sucessão dentro da união estável, posteriormente sucedida e alterada pela Lei 9.278/1996. Antes desta lei já era vedado indicar na certidão de nascimento o estado civil dos genitores e da natureza da filiação (Lei 8.560/92). Estas duas leis é que retiraram a união estável de dentro da disciplina do direito obrigacional e a trouxeram ao direito de família.

A alteração mais relevante foi a promovida pela Constituição Federal de 1988, cujo art. 226 trouxe três espécies de entidades familiar: a instituída por meio do casamento civil ou religioso (§§ 1º e 2º); a advinda por meio da união estável (§ 3º) e, por fim a monoparental, ou seja, a formada por qualquer dos pais e seus descendentes (§ 4º). No entanto, quando diz o texto constitucional que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento é porque manteve a distinção entre ambos os institutos.

Atualmente a união estável é vista como uma relação estável, duradoura e notória, deixando de ser exigido o requisito da convivência sob o mesmo teto. A fidelidade, assim como no casamento, permanece.

O Código Civil de 2002 não trouxe grandes alterações no instituto em análise além daquelas já estampadas na CF, nas leis supracitadas e na jurisprudência, o que não significa, no entanto, dizer que a a inserção de sua disciplina em seu texto pouco significou.

Ao definir a união estável em seu art. 1.723, o Código Civil de Miguel Reale praticamente seguiu o art. 1º da Lei 9.278/1996, mas inovou no sentido de coibir a união estável se presente alguns dos impedimentos do art. 1551.

Ao erigir a disciplina da união estável em norma geral, o novo Código Civil além de reconhecer esta nova realidade social, lhe imprimiu um maior grau de importância.  A novos valores, trazidos por novos fatos, a legislação civil respondeu com novas normas. E isto é a teoria tridimensional aplicada, em todo o percurso da legislação nacional, sobre a união estável, até sua consagração completa no art. 1723, do atual Código Civil.

Vemos, pois, ser quase que imperativo conhecer a gênese de tão importante pensamento jurídico.


8. Miguel Reale poeta e literato


8.1. Miguel Reale poeta 


Como nos relata o próprio Reale, ainda menino se dava a escrever poesias. Talvez antes de especular sobre a verdade filosófica, foi seduzido pela beleza poética e literária. Longe da imagem de um sisudo professor universitário encontramos o poeta nas peças que nos deixou: Poemas do amor e do tempo, 1965; Poemas da noite, 1980; Sonetos da verdade, 1984; Vida oculta, 1990.


8.2. Miguel Reale, o literato 


Ele também estudava os grandes autores da literatura nacional: A Filosofia na obra de Machado de Assis,1982; O belo e outros valores, 1990; A face oculta de Euclides da Cunha, 1993; Das Letras à Filosofia, 1998.

Há valor histórico de testemunho sobre momentos decisivos da nossa história política em suas Memórias, vol. I, Destinos cruzados, 1986; Memórias, vol. II, A balança e a espada, 1987

Por último reuniu seus artigos esparsos pela imprensa brasileira nos quatro volumes das suas Variações.


8.3. Membro da Academia Brasileira de Letras 


Seus trabalhos mereceram sua eleição para a Academia Brasileira de Letras. Foi o quarto ocupante da Cadeira nº 14, eleito em 16 de janeiro de 1975, na sucessão de Fernando de Azevedo e recebido em 21 de maio de 1975 pelo Acadêmico Cândido Mota Filho.

No seu discurso de posse na ABL ressaltou: 

“Tão imperceptíveis são os fios com que se entretecem os acontecimentos humanos que certos fatos nos deixam em suspenso, vacilantes entre as forças imanentes da causalidade e as interferências imprevistas do acaso. O recurso ao fortuito, para a compreensão de episódios que nos surpreendem, pode significar tanto renúncia à pesquisa, por considerar-se de antemão improvável qualquer resultado positivo, como a crença em poderes que transcendem o mundo das asserções verificáveis. Uma das virtudes dos homens de letras, a dos poetas em particular, é a percepção de linhas que só a fantasia vislumbra sob a crosta fria dos juízos tecidos pela razão, serva do rigoroso e do exato”. 

E acrescentou com emoção sincera: 

“Era natural, pois, que, logo após a vossa gentil escolha, ao preparar-me por merecê-la, um estranho sentimento de antecipada saudade desta noite começasse a se apossar de meu espírito. (...). Saudade do futuro, nostalgia precursora e receosa daquilo que pode, deve ou tem de acontecer. Saudade arraigada no senso de precaridade do que somos e fazemos.

Somos um ser que espera e desespera, na polaridade do lembrar e do esquecer. Triste é quando o que longamente se almeja descamba para o olvido, enquanto que a saudade é o escrínio no qual amorosamente guardamos os momentos preciosos de nossa existência.

No mais recôndito de meu espírito já se abriga a lembrança deste encontro, que quisestes tornar ainda mais emocionante pela palavra carinhosa e sábia de Cândido Motta Filho, grande amigo e companheiro de tantas horas alegres e amargas, e exemplo raro de homem de ciência e de letras”.

Pode-se concluir que Miguel Reale seguiu em toda a sua vida e obra, um princípio, que nos revela em suas Memórias: “TEORIZAR A VIDA E VIVER A TEORIA NA UNIDADE INDISSOLÚVEL DO PENSAMENTO E DA AÇÃO.’’


Notas

1 REALE, Miguel. Memórias, p. 92.

Cfr. DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico.

3 Cfr. estudo sobre “Giambatista Vico, a jurisprudência e a descoberta do mundo da cultura”, em REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história, p. 113 e ss.

4 REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história, p. 38.

5 REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história, p. XIX-XX.

Referências

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2014.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. 9. tir. São Paulo: Saraiva, 2011.

__________________.  O direito como experiência. 2. ed. 4. tir. São Paulo: Saraiva, 2010.

__________________.  Fundamentos do direito. 4. ed. São Paulo: Migalhas, 2014.

__________________.  Memórias. São Paulo: Saraiva, 1986.

__________________.  Horizontes do direito e da história. 3. ed. 3. tir. São Paulo: Saraiva, 2010.

__________________.  Teoria do direito e do Estado. 5. ed. 4. tir. São Paulo: Saraiva, 2010.

__________________.  Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

Citação

DE CICCO, Cláudio. Miguel Reale. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/128/edicao-1/miguel-reale

Edições

Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Abril de 2017

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