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Revogação
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Adrian Sgarbi
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Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Abril de 2017
Eliminar normas é mecanismo relacionado à dinâmica do direito e, particularmente, à propriedade de sua mudança através de operações reguladas pelo próprio ordenamento jurídico. De fato, as normas jurídicas permanecem no conjunto normativo até que determinação de autoridade normativa resulte em sua exclusão.
A este respeito, cumpre lembrar que a técnica de eliminar uma norma de um conjunto normativo pode assumir distintas formas. Isto porque, o “egresso” de normas de um conjunto normativo é ocorrência tão trivial em um sistema dinâmico como o “ingresso” de normas. Aliás, tanto o primeiro fenômeno normativo quanto o segundo decorrem de, ao menos, dois fatores convergentes e muito banais:
a) a necessidade de ajustes em relação às prescrições já editadas; e
b) a presença de certa categoria de normas cujo propósito é regular a atividade produtiva do direito.
Em termos mais específicos, o argumento único deste verbete refere-se à “eliminação de normas”. Entretanto, formas diversas existem de “eliminar normas”, razão pela qual importa dizer que apenas um mecanismo de eliminação jurídica será exposto aqui: a “revogação”.
À vista disso, o objetivo deste estudo é examinar a tipologia, as características e as funções da revogação. Para tanto, no item 1, se esclarecerá a abrangência semântica do vocábulo “revogação”; no itens 2, a tipologia da revogação encontrará seu devido tratamento; no item 3, confrontações necessárias entre as diversas ocorrências de revogação permitirão exacerbar seus contrastes favorecendo, com isso, a visibilidade de suas características; no item 4, os efeitos possíveis do ato revogador serão avaliados em triunfos e frustrações; finalmente, nos itens 5, 6 e 7, serão trazidos alguns temas correlatos que, espero, auxiliem o leitor a ter uma visão um pouco mais abrangente da análise tratada.
1. Usos da palavra “revogar”
O vocábulo “revogar” – fazendo-se vista grossa, neste momento, às peculiaridades que serão trazidas na devida oportunidade – significa, apenas, dar fim à vigência de uma norma. Sendo assim, o ato de revogar é ato que participa do caráter dinâmico do conjunto normativo porque quando se põe fim à vigência de uma norma, o conjunto normativo é modificado dali para frente.
O problema é que, como vocábulo, o termo “revogar” sofre de ambiguidade “processo-produto”. Porque se pode tanto utilizar o termo “revogar” em frases como “Revogo a lei X” (ato de revogar), como se pode constatar o seu uso em frases como “A lei X está revogada” (resultado do ato revogador). Além disso, não se pode confundir a competência para revogar retratada na frase “A autoridade normativa AN é competente para revogar normas” com a disposição revogadora “Revogam-se as leis X e Y”.1 Portanto:
a) “Ato de revogar”: atividade concreta de determinar a revogação de uma norma;
b) “Resultado do ato revogador”: consequência da atividade revogadora;
c) “Norma de competência para revogar”: espécie de norma de produção jurídica cuja tarefa é atribuir poder jurídico para revogar a alguém.2
d) “Disposição revogadora”: cláusula que traduz a determinação da revogação.3
Ademais, deve-se recordar que, atingindo a vigência da norma, a revogação altera o sistema jurídico, mas não a ordem jurídica. Esta a razão: enquanto a revogação é uma das formas de alterar o sistema jurídico, v.g, o microssistema civil, penal, empresarial, tributário etc., a ordem jurídica apenas é alterada ou, em última análise, rompida, a depender do respeito aos seus critérios de identidade constitucional. Neste sentido, uma norma revogada desaparece do sistema jurídico, mas não necessariamente do ordenamento jurídico. Consequência disso é que uma norma revogada pode se manter eficaz para certas situações jurídicas por determinação legal e continuar a ser aplicada pelos juízes. De todo modo, como veremos em breve, esta ocorrência encontra-se relacionada ao período em que algum dia esteve vigente.4
Em poucas palavras, uma norma N vigente no sistema SJ1 no tempo t, ainda que revogada no tempo t2, ela poderá, mesmo que já se esteja sob os auspícios do sistema SJ2, cujos fatos já não contam mais com sua regulação, reger as ocorrências havidas no sistema SJ1.
2. Tipologia da revogação
A partir das considerações feitas, podemos passar para o item tipos de revogação. A este respeito, a “revogação” ou bem é:
i) “expressa”; ou
ii) “tácita”; ou
iii) “por assimilação”.
A chave para este entendimento encontra fundamento na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (a LINDB), art. 2º, que assim dispõe: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Ou seja,
a) A revogação “expressa”, como está evidente, é enunciada na primeira parte do enunciado legal: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare”;
b) A revogação “tácita”, na segunda parte: “A lei posterior revoga a anterior quando (...) seja com ela incompatível”;
c) A revogação “por assimilação” (ou por inteira regulação da matéria), na terceira: “A lei posterior revoga a anterior quando (...) regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
Estes tipos se diferirem em características e efeitos, de modo que apresentam peculiaridades merecedoras de atenção.
2.1. Revogação expressa
Por “revogação expressa” é designada toda eliminação normativa levada a efeito por um ato válido e deliberado de uma autoridade normativa que incida em um documento normativo, sendo, pois, resultado de um ato “do legislador”. Desta afirmação, três aspectos devem ser referidos: 1) a hierarquia; 2) a extensão; e 3) o êxito.
(1) Hierarquia: para haver revogação pelo menos a disposição revogadora deve ostentar mesmo nível hierárquico que o material jurídico revogado;
(2) Extensão: a supressão realizada em um documento normativo pode tanto eliminá-lo por completo quanto eliminar apenas parte dele.5 Portanto:
(2.1) “Ab-rogação”: qualifica-se como “ab-rogação” a “revogação total” de um documento normativo. Por exemplo: o Código Civil de 2002 em relação ao Código Civil de 1916 realizou uma revogação por ab-rogação neste último (i.e., revogação total).
(2.2) “Derrogação”: qualifica-se como “derrogação” a “revogação parcial” realizada em um documento normativo. Por exemplo: o mesmo Código Civil de 2002 em relação ao Código Comercial de 1850 teve o efeito de revogá-lo por derrogação, pois apenas atingiu a sua primeira parte.
(3) Êxito: considerando ser a revogação expressa fenômeno relativo à alteração de documentos normativos (textos legais), dependendo do material jurídico implicado pode não ocorrer uma “real” eliminação normativa. Porque – conforme sabido – se texto normativo e norma não se confundem, é plenamente possível que haja a eliminação de disposição legal que esteja repetida em algum lugar da vasta legislação brasileira.
Sendo certo que a revogação expressa tem sempre por objeto textos jurídicos, condição relevante para que ocorra é que ele seja indicado claramente pelo legislador. É neste momento que entra em cena a “disposição revogadora”, pois é comum através de enunciados como “Revogam-se as leis X e Y” pretender-se eliminar os textos legais.
Acrescente-se, ainda, que a revogação expressa pode tanto ser 1) nominada quanto 2) inominada.
(1) “Revogação expressa nominada”: é aquela em que o objeto da revogação é identificado com precisão, ou seja, é uma revogação por “enunciação específica”. Os dizeres “Revogam-se as leis X e Y” compõem clássico enunciado deste tipo de revogação;
(2) “Revogação expressa inominada”: é aquela que tem lugar quando o enunciado é geral, sem especificações. Com frequência é assim formulada: “Revogam-se as disposições em contrário”.
Observe-se que a revogação expressa nominada não apenas se distingue da inominada pela determinação de eliminação precisa que a caracteriza, mas pelo fato de, na revogação nominada, não ocorrer qualquer contradição entre a disposição revogadora e a lei revogada em razão de inexistir regime jurídico alternativo por ela constituído. É dizer, quando se dispõe que “A lei X está revogada” isto não implica em contradição entre a disposição revogadora e a lei X; o que há é, apenas, a determinação do término da vigência da lei X.
Com respeito ao tema, a LC 95/1998, no art. 9º, assim estabelece: “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”.
2.2. Revogação tácita
Por “revogação tácita” designa-se a eliminação da vigência de uma norma por apresentar-se incompatível com outra norma em um determinado caso concreto. Portanto, para que haja revogação tácita é imprescindível:
(1) Que a autoridade normativa tenha editado materiais jurídicos que resultem em normas incompatíveis de, ao menos, mesmo nível hierárquico; e
(2) Que essa incompatibilidade seja identificada pelo órgão-aplicador cuja tarefa, no particular, é a de compatibilizar as normas conflitantes.
Note-se que diferentemente da revogação expressa cujo objeto são os “textos legais”, o objeto da revogação tácita é sempre uma “norma jurídica”. Como tal, a revogação tácita é espécie de revogação sem disposição revogadora, pois surge de “antinomia” ou “incompatibilidade entre normas”.
Relembrando o que fora estabelecido pela LINDB, art. 2º, segunda parte, tem-se que “A lei posterior revoga a anterior quando (...) seja com ela incompatível”.
Assim, a revogação tácita ocorre quando o aplicador constata que disposições contraditórias foram publicadas em momentos diferentes. Desse modo, esta revogação tem lugar quando normas sucessivas no tempo apresentam contradição uma em relação à outra. Para resolver o conflito, emprega-se o chamado critério “cronológico” (critério da lex posterior). Conforme dispõe a LINDB, art. 2º, deve-se entender que a “norma anterior” foi revogada pela posterior.
No entanto, não é isto o que ocorre com os casos chamados de “aplicação da lei especial em relação à lei geral”. Aqui, o emprego do critério da lex specialis resulta apenas no afastamento do uso da lei mais geral, e, não, em sua revogação, conforme a própria LINDB enuncia (art. 2º, § 2º: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”). Para ser mais preciso, o problema da lei especial não é propriamente de revogação, mas de aplicabilidade de normas.
Por sua vez, também não se deve confundir os casos em que o critério cronológico e o da especialidade são utilizados com os casos em que “lei inferior conflita com lei superior” (critério da lex superior). Disto deriva, ao menos em princípio, que é o fenômeno da “invalidade” que está aqui em jogo, não o fenômeno da “revogação”.6
Como se pode notar, de modo distinto da revogação expressa, a revogação tácita, por depender da avaliação do intérprete, não tem nem pode ter repercussão mais ampla que a decisão do caso: daí que, enquanto um juiz pode considerar ter havido revogação de uma norma, outro juiz pode considerá-la ainda vigente.
Em síntese, como a revogação tácita não afeta o documento legal, ela é origem de “indeterminações normativas”: um juiz-1 para o caso X pode considerar a norma N1 vigente (e aplicá-la) por não enxergar qualquer incompatibilidade dela com a norma N2, enquanto o juiz-2 pode considerar serem as normas N1 e N2, sucessivas no tempo, incompatíveis, aplicando, por isso, a norma N2 ao invés da N1. Tal ocorre porque saber se são ou não incompatíveis as normas N1 e N2 é uma questão de interpretação do juiz. E se o juiz-1, ao apreciar apenas o caso X, não tem como impor sua decisão aos outros juízes, esta sua decisão não terá caráter geral, apenas repercutirá entre as partes envolvidas no caso.
2.3. Revogação por assimilação ou por inteira regulação da matéria
A “revogação por assimilação” é caracterizada pelo fato de dar-se “inteira regulação a matéria”. Assim, quando o legislador publica material jurídico que disciplina inteiramente matéria já regulada anteriormente, diz-se que o material jurídico anterior foi revogado. Por não existir disposição revogadora, a revogação em apreço se processa com a mera constatação de ter-se publicado material jurídico nos termos da terceira parte do art. 2º da LINDB: “A lei posterior revoga a anterior (...) quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
Note-se que não se exige, neste caso, incompatibilidade ponto por ponto entre os documentos normativos envolvidos, apenas se requer que esteja claro que ambos tratam da mesma matéria. Como lecionou Oscar Tenório,
“Não se exige conflito entre todas as disposições das duas leis. Qualquer incompatibilidade verificada é suficiente para legitimar a revogação da lei anterior. Dispondo de maneira diferente, manifesta, implicitamente, o legislador o propósito de abolir todo o texto anterior, entendendo-se que, pelo simples fato de ter estabelecido compatibilidade entre algumas disposições, teve em mira dispor, de maneira formal, em texto único, sobre determinada matéria”.7
Um exemplo pode ajudar a ilustrar melhor o que se disse: supondo-se que o legislador publique um documento designando-o de Código Civil do ano 2002, não é o caso de estabelecer comparação entre o Código Civil de 1916 e o novo Código Civil de 2002 visto que a simples publicação deste Código Civil já estaria a indicar a substituição, ainda que não houvesse dispositivo expresso com os dizeres canônicos “Revoga-se a Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916”.
De todo modo, atendida a LC 95/1998 este trabalho de identificação da revogação por assimilação é em muito facilitado. Porque é esta a dicção de seu art. 7º:
“O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II – a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;
III – o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;
IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa”.
Deve-se atentar, de todo modo, que a revogação por assimilação não implica, sempre, em eliminação da regulação normativa da matéria anterior. Caso emblemático disso pode ser observado no campo do direito penal no que se costuma designar de “continuidade normativo-típica”. Tal ocorre quando a norma assimiladora continua a estatuir como incriminada a conduta, mas, agora, em disposição mais abrangente. Exemplo sempre lembrado da ocorrência da continuidade normativo-típica ocorreu com o antigo crime de “atentado violento ao pudor”, cuja conduta não deixou de ser considerada crime, mas apenas migrou para o tipo penal do crime de estupro, tipificado no art. 213 do Código Penal.
3. Revogação expressa, tácita e por assimilação frente a frente
Considerando, inicialmente, a revogação expressa e a revogação tácita, ao menos quatro observações podem ser feitas:
1) Em primeiro lugar, a “revogação expressa” incide sobre os próprios “textos jurídicos”; já a “revogação tácita” atua sobre “normas”. Portanto, a revogação tácita depende da interpretação dos operadores do direito sobre o que é incompatível e o que não é;
2) Em segundo lugar, a revogação expressa e a tácita diferem no fato de a “revogação tácita” produzir “forte indeterminação” com respeito à identificação do material revogado porque cabe, sobretudo, ao órgão-aplicador, reconhecer o que apresenta incompatibilidade; já na “revogação expressa” (nominada) isso não ocorre dado o fato da disposição ser “identificada com precisão”;
3) Em terceiro lugar, enquanto a “revogação expressa” refere-se à eliminação produzida pelo legislador, a “revogação tácita”, embora tenha origem, fundamentalmente, na produção de incompatibilidade normativa produzida por ato do legislador, ela é realizada, em termos concretos, pelo “órgão-aplicador”, pois cumpre a este identificá-la e enunciá-la;
4) Em quarto e último lugar, deve-se destacar a proximidade existente entre a revogação “tácita” e a revogação “expressa inominada” porque esta também deixa a cargo do órgão-aplicador a decisão sobre quais normas foram alcançadas pela incompatibilidade. Diferem, contudo, no aspecto da “revogação inominada” conter uma “referência escrita geral” de revogação do que lhe for contrário. De todo modo, esta disposição pode ser considerada uma disposição redundante quando comparada com a previsão da revogação por incompatibilidade. Porque dizer “revogam-se as disposições em contrário” é o mesmo que prever a eliminação das “disposições incompatíveis”.
No mais, as revogações expressas e tácitas podem ser confrontadas com as “revogações por assimilação”:
a) Relativamente à “revogação tácita” e “por assimilação”, pode-se diferenciá-las pelo fato de a revogação tácita ser uma revogação entre normas ao passo que a revogação por assimilação é, à semelhança da revogação expressa, uma revogação de textos (“A lei posterior revoga a anterior quando (...) regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”);
b) Ademais, a “revogação tácita” exige “incompatibilidade”, enquanto que a “revogação por assimilação” exige a “inteira regulação da matéria”, ainda que comparadas em suas respectivas dicções textuais se possa, entre elas, encontrar compatibilidades fracionárias;
c) Diferem as “revogações expressa” e “por assimilação” porque esta não possui nenhuma disposição revogadora. Ou seja, a “revogação por assimilação” supõe que se regule um setor normativo por completo, sem que expressamente se faça referência à normativa antes preponderante.
4. Repercussões malogradas e repercussões triunfantes da revogação
Já se sabe que caso se considere o sistema jurídico SJ1 um conjunto de normas, e se suas modificações forem avaliadas pela singularidade de seus elementos, ao se acrescentar uma norma ao sistema jurídico SJ1 da ordem jurídica OJ1, este muda para sistema jurídico SJ2, mas a ordem jurídica OJ1 continua a mesma graças às suas normas de identidade constitucionais. Por isso não surpreende que, mesmo tendo sido revogada, possa uma norma continuar a ser aplicável nas hipóteses em que o ordenamento assim dispuser como será visto brevemente mais adiante: deixar de pertencer a certo sistema do direito civil não significa deixar de existir no ordenamento jurídico.8
Contudo, cumpre recordar que o sistema SJ1 pode não apenas ter mudado em virtude da norma que lhe foi acrescentada, mas correlatamente por todas as outras normas que se puder deduzir do acréscimo realizado. Este é fenômeno normativo da “propagação” e, não raro, está presente no discurso dos juristas sob as vestes das normas implícitas.
Considerando que o nosso tema é a eliminação de normas, e, mais precisamente, da revogação, o objetivo é tratar da subtração de normas nos sistemas jurídicos sucessivos de SJ1. Neste particular, importa o fato de que aqui o sistema jurídico tanto pode mudar como ele pode em nada ser alterado apesar da tentativa de modificá-lo, demais da possibilidade de o ato revogador resultar em consequências imprevisíveis decorrentes do fenômeno de sua propagação revogadora
Portanto, após a realização do ato revogador, ao menos três hipóteses são pensáveis: 1) o êxito; 2) o malogro; e 3) a surpresa decorrente da propagação.9
Por “êxito do ato revogador” nos referimos, em termos elementares, ao fenômeno que ocorre quando uma norma é eliminada do conjunto normativo.
Por outras palavras, tendo em vista o conjunto normativo SJ1, o legislador em sua atividade legislativa logra êxito em seu objetivo de revogar a norma N3 deste conjunto quando ao determinar sua eliminação a norma N3 é eliminada originando o sistema jurídico SJ2 de OJ.
Neste caso, houve uma "real" revogação e, à vista disso, um ato triunfante da autoridade normativa.
Esta a sua representação:
Contudo, além do êxito do ato revogador, é possível que ocorra a frustração deste ato. Tal sucederá sempre que o sistema jurídico apresentar redundâncias. Isso porque, eliminada uma das normas repetidas, permanecerá, a partir de então, com plena força, a norma restante, esta, fruto da inadvertência legislativa.
A este respeito, e aproveitando o sistema S1 retratado acima, caso seja revogada a norma explícita N3 não se terá revogado a norma N3 implícita que decorre das normas N5 e N1. Portanto, a prescrição nela contida se mantém no sistema.
Nestes termos, por “malogro do ato revogador” designa-se a frustração na eliminação de normas do sistema dada a presença de outras normas no sistema que mantêm a previsão normativa.
Como se não bastasse, é possível, ainda, que a norma desejada tenha sua vigência atingida pelo ato revogador e que outras tantas também sejam alcançadas. Este fenômeno é devido ao fato de as normas jurídicas manterem relação entre si. Quer dizer, da mesma forma que as normas promulgadas podem propagar-se, o ato revogador pode causar efeito semelhante, embora contrário.
Imaginando-se agora um sistema SJ1 composto pelas normas N1, N5, N7 (todas explícitas) e N6 (implícita decorrente de N1 e N5), pode-se dizer que caso seja revogada a norma N1 (ou mesmo N5) por consequência se estará revogando N6. A este fenômeno designa-se de “propagação do ato revogador”. Assim, por “propagação do ato revogador” designa-se o fenômeno de ampliação do ato revogador por suas repercussões em outras normas do sistema jurídico.
Portanto, além da possibilidade de ter sido vitorioso o legislador em sua pretensão de revogar uma norma (caso 1), ou, mesmo, de ter sido frustrado nesta pretensão (caso 2), pode ocorrer que ele seja surpreendido pela propagação do ato revogador, o que evidencia a real impossibilidade de controle absoluto das repercussões da atividade que desempenha.10
5. Normas “auto-revogadoras”
Regra geral, um texto normativo é produzido para ser utilizado sine die. É dizer, ao elaborar um texto legal o legislador o produz de modo a reger as relações jurídicas a perder de vista. No entanto, o legislador pode estabelecer, desde a sua edição, limite a permanência do material que produz, seja submetendo-o a limites de tempo, seja a situações de fato. A estas peculiaridades do fenômeno normativo a doutrina costuma designar de “auto-revogação” e, as leis que assim dispõem, de “leis auto-revogadoras”.
Denomina-se “lei temporária” ou “lei de vigência temporária” a norma jurídica que tem sua vigência determinada pelo próprio texto legal que a expressa, de modo que ela permanecerá em vigor durante o tempo para ela especificado ou enquanto a situação excepcional, nela prevista, ocorrer.
Veja-se, assim, a esse respeito, a dicção do art. 3º do CP: “A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinam, aplica-se ao fato praticado durante a sua vigência”.
Em suma, as normas de vigência temporária apresentam a peculiaridade de serem aplicáveis aos casos ocorrentes durante o período em que estiveram vigentes mesmo depois de terminado o prazo por ela estabelecido ou situação de fato nela prevista.
Propriamente, o que ocorre com as leis temporárias é que elas participam do fenômeno “eficácia jurídica”. E esta eficácia é pensável porque, embora eliminadas do sistema jurídico que lhe corresponda, continuam a fazer parte do ordenamento jurídico.
6. Normas regulares, normas irregulares e revogação
Normas regulares devem ser revogadas; normas irregulares devem ser anuladas. Estas são regras de propósitos bastantes óbvios: uma norma regularmente produzida, quando revogada, não resulta na eliminação dos atos realizados enquanto esteve vigente; uma norma irregularmente produzida, por ser uma ofensa ao princípio da legalidade (e, com mais forte razão, da constitucionalidade, se este for o caso), quando decretada a sua nulidade a regra é que sejam desfeitos os atos produzidos sob a sua regência irregular. O problema é que, algumas vezes, uma norma irregularmente produzida, é dizer, uma norma inválida, é revogada.
Voltemos um pouco para entender melhor este ponto.
Na teoria das invalidações, tem-se a previsão de distintas técnicas de se eliminar um material jurídico irregularmente produzido; cada uma delas possui designação própria, o que facilita, sobremaneira, a sua identificação e a quê ela se refere. Daí falar-se em controle de “constitucionalidade” para a invalidação de norma que ofende a constituição, controle de “convencionalidade” quando a norma envolvida for uma “convenção internacional” incorporada, e “ilegalidade” quando a invalidade envolver ofensa que não seja à constituição nem trata de convenção internacional.
A este respeito, o que deve se ter claro é que estas técnicas de invalidação, por um lado, e a revogação, por outro, são ocorrências normativas bem distintas. A diferença elementar está no fato de que, quando se invalida uma norma (e pouco importa a invalidação que se esteja a tratar), o que se tem em apreciação é uma ofensa a regras de produção jurídica (e, portanto, a hierarquia normativa), ao passo que, quando se revoga, o que se pretende é eliminar uma norma que não ofendeu nenhuma norma de produção jurídica, mas que, no entanto, não se quer mais que reja as relações jurídicas vindouras. Disso deriva que separar um e outro fenômeno é muito importante, porquanto não resultam nos mesmos efeitos.
Note-se bem. Quando se emprega alguma técnica de invalidação o que se quer é atingir tudo aquilo que foi feito sob os auspícios da norma invalidada; quando se emprega a técnica da revogação, o que se pretende é alterar o regramento das relações jurídicas dali para a frente tendo em vista que os atos anteriores foram corretos, devendo, por isso, ser respeitados.
No entanto, e desafortunadamente, algumas vezes revoga-se o que deveria ter sido invalidado gerando o problema de manter-se as relações jurídicas produzidas sob o seu manto com todas as suas consequências. Tal ocorre porque, ao ser publicada, pesa a favor do material jurídico, a presunção de sua validade, presunção esta que apenas é desafiada quando empregada alguma das técnicas de invalidação anteriormente referidas. É dizer, por não ter sido posta em dúvida antes, uma norma que poderia ter sido anulada foi revogada, de maneira que, por ter sido revogada, apenas tem a sua vigência cessada a partir do ato revogador.
É exatamente por isso que não se pode descartar a possibilidade de se controlar a invalidade de uma norma já revogada, em que pese o fato disso soar, em um primeiro momento, contraintuitivo. O objetivo disso é, precisamente, atingir o que mantido pelo inadvertido ato revogador.
Estas considerações, por fim, nos conduzem a outra importante distinção: a distinção entre repristinação e efeitos repristinatórios.
7. Revogação, repristinação e efeito repristinatório
Por vezes, questiona-se o efeito que pode ter a revogação da norma revogadora em relação à norma que foi revogada. Esta a hipótese: supondo-se que a norma N2 revogou a norma N1, que ocorre se, em algum momento t posterior, a norma N2 é revogada por uma norma N3? Deve-se entender que a norma N1, no que não for incompatível com a norma N3, volta a ter vigência? A resposta, como regra, é negativa.
Vamos a isso.
Nomeia-se “repristinação” o fenômeno normativo de retomada da vigência de uma norma pela simples razão de sua norma revogadora ter sido revogada. Daí que repristinar significa restaurar. A matéria geralmente é tratada pelas ordens jurídicas, seja para admiti-las ou não. Na nossa tradição jurídica, admite-se apenas repristinação se houver referência expressa.
A LINDB, no art. 2º, § 3º, assim estabelece, inequivocamente: “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”. Portanto, o que o referido dispositivo exige é que necessariamente haja uma disposição repristinadora para que se recupere a vigência da norma primeira revogada. Este um exemplo elementar de disposição repristinatória: “Restaura-se a vigência da Lei X”.
De todo modo, não se pode confundir o fenômeno normativo da «repristinação» com o possível “efeito repristinatório” decorrente de decisão que declara inconstitucional norma que eliminou outra norma.11
Estas as razões:
a) “Previsão normativa”: repristinação é fenômeno que tem previsão na LINDB, art. 2º, § 3º, ao passo que o “efeito repristinatório” em ação de inconstitucionalidade está previsto no art. 11, § 2º, da Lei 9.868, de 1999”;
b) “Validade”: repristinação é fenômeno relativo a normas válidas, ao passo que “efeito repristinatório” em ação de inconstitucionalidade é tema relativo à teoria das invalidades por envolver eliminação de norma que desatendeu aos critérios de produção jurídica;
c) “Automatismo”: repristinação apenas ocorre caso haja determinação expressa para tanto, ao passo que o efeito repristinatório em ação de inconstitucionalidade é automático;
d) “Elementos envolvidos”: repristinação ocorre com três normas, de tal modo que a primeira (norma N1) pode voltar a ter vigor na situação de sua norma revogadora (norma N2) ser eliminada por uma terceira norma (norma N3) (demais de haver expressa determinação de restabelecimento de sua vigência; veja comentário da letra “c”); já o efeito repristinatório em ação de inconstitucionalidade envolve uma norma N1 eliminada, uma norma N2 inválida, e uma declaração de invalidade relativa à N2 emanada de órgão competente.
Finalmente, deve-se atentar que se uma norma tiver sido declarada inconstitucional e a sua antecessora for também inválida, esta última não poderá ser restaurada; assim, o órgão prolator da invalidade deverá cuidar de decretar, também, a expulsão desta última, evitando-se, com isso, que seja repristinada automaticamente.
8. Palavras finais
Das anotações feitas precedentemente, pode-se extrair as seguintes conclusões a respeito da revogação:
a) A revogação é instrumento de eliminação de materiais jurídicos que atinge a vigência normativa.
b) A revogação pode ser “expressa”; “tácita”; ou “por assimilação”.
c) A revogação dada a variação tipológica, deve ser examinada em suas peculiaridades, porquanto há características que as diferenciam.
d) A revogação por vezes atinge materiais jurídicos designados “textos normativos” e outras tantas vezes ela atinge materiais jurídicos designados de “normas”.
e) A revogação “expressa” pode ser analisada sob o aspecto da “hierarquia”, da “extensão” e do “êxito”.
f) As frustrações revogadoras (os malogros) decorrem basicamente da presença de materiais jurídicos redundantes não previstos pelo legislador.
g) A revogação tácita é origem de forte indeterminação no sistema jurídico.
h) Os efeitos da propagação atingem tanto a criação normativa quanto a eliminação de normas.
i) A revogação é técnica de eliminação de normas regularmente produzidas; as invalidações constituem técnica de eliminação de normas irregulares. Separar uma e outra é importante para alcançar-se a compreensão do problema da revogação de uma norma irregular.
j) Como regra, a eliminação de uma norma não restaura a norma que foi por ela revogada. Vale dizer, a regra é que não ocorra a repristinação.
k) Não se deve confundir repristinação com os efeitos repristinatórios de uma norma invalidada que eliminou norma anterior regularmente produzida. Neste caso, a revogação desta foi ilegal; como consequência, tem-se o seu restabelecimento automático.
Notas
1 GUASTINI, Ricardo. L´abrogazione delle leggi (Un dibattito analitico). Quaderni di filosofia analitica del diritto, pp. 239-264; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil, vol. I, pp. 78-81.
2 Esta norma, contudo, raramente é enunciada, pois normalmente quem tem o poder de criar normas tem, pela mesma razão, o poder de revogá-la. Trata-se da aplicação do “princípio da igualdade das formas” que, no particular, encontra-se consagrado na noção de correlatividade entre os atos de criar e eliminar normas.
3 Por exemplo: a já enunciada disposição “Revogam-se as leis X e Y”; ou a disposição revogadora parcial “Revoga-se o artigo X da lei Y”.
4 BULYGIN, Eugenio. Tiempo y validez. Análisis lógico y derecho, pp. 195-214.
5 Neste caso, é comum recordar-se a afirmação de Modestino segundo a qual “A lei pode ser derrogada ou ab-rogada: se derroga quando se suprime uma parte e se ab-roga quando se elimina toda ela”. Digesto, 50, 16, 102.
6 Embora o Supremo Tribunal Federal tenha decidido que se trata de revogação a situação que compreende Constituição posterior em relação à norma infraconstitucional anterior. STF, ADI n° 2, Tribunal Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, Data do Julgamento 06.02.1992.
7 TENÓRIO, Oscar. Lei de introdução ao código civil brasileiro, p. 82.
8 SAUCA, José María. Cuestiones lógicas en la derogación de las normas, pp. 15-76.
9 ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Sobre el concepto de orden juridico. Análisis logico y derecho, pp. 400-404; MENDONCA, Daniel. Exploraciones normativas, pp. 33-99.
10 O que pragmaticamente é claramente impossível.
11 ADI 2.132-RJ e ADI 2.242-DF, Rel. Min. Moreira Alves.
Referências
ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Sobre el concepto de orden juridico. Análisis logico y derecho. Madrid: CEC, 1991.
BULYGIN, Eugenio. Tiempo y validez. Análisis lógico y derecho. Madrid: CEC, 1991.
GUASTINI, Ricardo. L´abrogazione delle leggi (Un dibattito analitico). Quaderni di filosofia analitica del diritto. Milano: Giuffrè Editore, 1987.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. Volume I.
MENDONCA, Daniel. Exploraciones normativas. México: BÉFDP, n° 44, 1995.
SAUCA, José María. Cuestiones lógicas en la derogación de las normas. México: BÉFDP, nº 79, 2004.
TENÓRIO, Oscar. Lei de introdução ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955.
Citação
SGARBI, Adrian. Revogação. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/127/edicao-1/revogacao
Edições
Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1,
Abril de 2017