• Fiscalização das empresas estatais

  • Irene Patrícia Nohara

  • Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

Estatal é toda sociedade civil ou comercial da qual o Estado tenha controle acionário, sendo suas espécies a empresa pública, a sociedade de economia mista ou qualquer outra empresa controlada pelo Estado. A natureza jurídica das estatais é de pessoa jurídica de direito privado, tendo sido criadas tanto para atuar no domínio econômico, como para prestar serviços públicos. 

O objetivo do presente verbete é abordar a fiscalização das estatais com foco na contextualização dos parâmetros de governança corporativa da nova gestão pública, os quais foram incorporados paulatinamente no Brasil para equacionar o conflito de interesses entre investidores, consumidores dos serviços prestados, políticas públicas voltadas à promoção do desenvolvimento e dirigentes das estatais, sendo tal problema inerente às sociedades de economia mista, conforme clássica abordagem de Bilac Pinto. 

Haverá a análise da disciplina jurídica das estatais, abrangendo sua previsão constitucional e a regulamentação que foi feita pela Lei das Estatais (Lei 13.303). Esta contempla um diploma legislativo editado em 2016, que não pode ser dissociado do contexto das repercussões do caso Lava Jato, tendo por mérito a previsão de um sistema mais rigoroso de controle, por meio da introjeção de parâmetros legais de governança corporativa, bem como a preocupação com o estabelecimento de indicações mais criteriosas dos dirigentes, apesar do demérito de não ter dissociado o tratamento jurídico das estatais que prestam serviços públicos em relação às que atuam no domínio econômico, tendo sido, no entanto, estas últimas as visadas pela Emenda Constitucional 19/98, quando estabeleceu o conteúdo do parágrafo único do art. 173 da Constituição. 

O estudo busca, depois da contextualização e da exposição dos objetivos das estatais associados à promoção do desenvolvimento nacional, descrever os novos parâmetros de fiscalização previstos na Lei das Estatais, bem como apontar algumas lacunas na transparência, conforme regulamentação dissociada dos ditames da Lei de Acesso à Informação.



1. Fiscalização nas empresas estatais


Estatal é um termo que designa toda sociedade, civil ou comercial, da qual o Estado tenha controle acionário, sendo espécies do gênero: as empresas públicas, as sociedades de economia mista e qualquer outra empresa controlada pelo Estado. 

Enquanto a empresa pública é uma sociedade de patrimônio próprio e capital votante exclusivo, sendo o seu capital social constituído de recursos provenientes do setor público, podendo revestir-se de qualquer forma admitida em direito; a sociedade de economia mista, por sua vez, conta com a participação tanto do Poder Público como de particulares em seu capital e administração, sendo sempre organizada na forma de sociedade anônima. Já a subsidiária é a empresa controlada pelo Estado cuja maioria das ações com direito a voto pertença a empresa pública ou a sociedade de economia mista. 

As empresas estatais são pessoas jurídicas de direito privado, de fins econômicos, que são controladas direta ou indiretamente por entidade ou entidades do Estado e pela sociedade. Elas tanto podem ser criadas para atuar no domínio econômico, como também para prestar serviços públicos, sendo que, a depender da natureza da atividade prestada, o regime jurídico deve receber diferente tratamento, conforme expõe Celso Antônio Bandeira de Mello.1  

Quando as estatais exploram diretamente atividade econômica, isso se dá em virtude de imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, de acordo com o disposto no caput do art. 173 da Constituição. O parágrafo único do art. 173 da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional n◦ 19, determina que a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção e comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo, entre outros assuntos, em primeiro lugar: sobre sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade. 

Assim, é um imperativo da Constituição que haja regras para a fiscalização das estatais e esse controle tanto será viabilizado pela fiscalização feita pelo Estado, como por meio de controle social de suas atividades. Também se exige que haja a disciplina legal sobre a constituição e o funcionamento dos Conselhos de Administração e Fiscal, com a participação de acionistas minoritários. 

Fiscalização das estatais é uma atividade de controle das estatais. Do ponto de vista do Direito, envolve também a análise da disciplina jurídica que regula as exigências de controle das empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias. Trata-se de assunto previsto e legitimado pela Constituição, seja na determinação da existência de lei que discipline as formas de fiscalização interna e social das sociedades de economia mista, empresas públicas e suas subsidiárias, o que ocorreu a partir da edição da Lei das Estatais, seja por meio da atividade de controle externo da Administração Pública Indireta, da qual estatais fazem parte, o que se dá com o auxílio relevante atuação dos Tribunais de Contas. 

Na década de noventa houve, no Brasil, a intensificação do debate sobre a necessidade de delimitação de parâmetros mais rigorosos de governança corporativa para as empresas estatais. Tal discussão partiu da necessidade da previsão de um sistema de governança que intensificasse a transparência e o controle para minimizar as possíveis falhas de integridade na conduta da alta gestão dessas empresas. 

A presença de parâmetros mais rigorosos de controle das empresas, pautado na governança corporativa, foi assunto influenciado pelo debate norte-americano da década de oitenta. Houve, nos Estados Unidos, a intensificação do ativismo societário de fundos de pensão, com destaque para o Calters, sobretudo após um conflito que ocorreu entre a visão dos acionistas minoritários, que não concordaram com a decisão dos diretores da Texaco de não venderem a empresa para a Chevron, e os dirigentes. Os acionistas dos fundos de investimento da Califórnia ficaram insatisfeitos com a concentração decisória nos diretores-presidentes das companhias, que tinham acentuada influência nos Conselhos de Administração, e começaram então um movimento no sentido do reconhecimento de maior influência dos acionistas nas decisões estratégicas da empresa. 

O ativismo societário foi, portanto, no sentido de reivindicar mais poder aos acionistas minoritários. Posteriormente, em 1995, houve, nos Estados Unidos, um escândalo envolvendo fraudes identificadas na Euron, o que estimulou a criação da Lei Sarbanes-Oxley – SOX, diploma responsável pela intensificação dos bons padrões de governança corporativa no gerenciamento de risco das sociedades em geral. 

O debate americano teve influência no brasileiro, pois foi incorporado do sistema do Common Law, sobretudo a partir de sua visão da nova gestão pública (New Public Management), um novo vocabulário. 

Esse vocabulário de língua inglesa foi sendo paulatinamente transplantado para os Códigos Brasileiros de Melhores Práticas de Governança Corporativa, o que incluiu: 

a accountability ou prestação de contas; 

a disclosure ou transparência: para que os stakeholders (investidores) saibam da situação efetiva da empresa e tenham meios de mensurar os riscos dos investimentos que serão feitos; 

a equity ou equidade na composição de eventuais interesses divergentes entre acionistas, membros do Conselho de Administração e dirigentes das empresas; e 

a compliance, que se realiza a partir da edição e da prática dos Códigos de Ética e de Integridade organizacional. 

De acordo com o manual de governança do Tribunal de Contas da União, governança corporativa é definida como o sistema pelo qual as organizações são dirigidas e controladas, o que inclui mecanismos de convergência de interesses de atores direta e indiretamente impactados pelas atividades das organizações. Tais mecanismos protegem os investidores externos de expropriação pelos internos, sendo estes últimos os gestores e acionistas controladores.2  

Os conceitos da governança corporativa começaram então a povoar o Direito Administrativo brasileiro, que também continha definições similares, por exemplo: a transparência, que depois foi disciplinada pela Lei de Acesso à Informação, é associada ao princípio constitucional da publicidade; a compliance veicula, conforme dito, os denominados programas de integridade, sendo atualmente uma exigência feita também pela Lei Anticorrupção; e a accountability relaciona-se com a prestação de contas, fator relevante de controle organizacional. 

Também a accountability foi termo utilizado no movimento da Reforma Administrativa, que depois deu ensejo à positivação da Emenda Constitucional 19, sendo esta resultante da influência do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (1995). O mencionado plano era um documento oficial que esclarecia os objetivos da Reforma. Ele propunha, entre outras coisas, que houvesse a substituição da rule-based accountability pela performance-based accountability, isto é, do controle ou fiscalização baseado nas regras e procedimentos para um controle de resultados ou desempenho, conforme se intensificou no Brasil o discurso em favor da eficiência e a proposta controvertida de substituição do modelo de gestão burocrático pelo chamado modelo gerencial.3 

Do ponto de vista das atividades de produção de bens e serviços para o mercado, a ideia do plano era de intensificação da privatização, o que ocorreu de forma progressiva ao longo da década de noventa. 

Essas transformações, entretanto, não deixaram de ter suas complexidades. Primeiramente, porque a Constituição legitima a existência das estatais para as circunstâncias legais de imperativos da segurança nacional e o cumprimento de relevante interesse coletivo. Logo, há razões de importância estratégica e de interesse geral para que existam empresas estatais, pois, não obstante a força hegemônica do discurso em favor da desestatização, que é influenciada pelo pensamento neoliberal, também é sabido que as empresas estatais cumprem um significativo papel na dinamização da economia de um país, sendo frequentemente indutoras de desenvolvimento, a depender do tipo de atividade e da forma como é desempenhada, mesmo que atuem no domínio econômico. 

Outro fator a ser considerado no debate do controle ou fiscalização das estatais é o fato de que a importação dos referenciais da governança corporativa para a governança pública nem sempre é suficiente para dar conta de todas as complexidades analisadas do ponto de vista da realização da função social das estatais. 

No caso da sociedade de economia mista, por exemplo, além da necessidade, por meio da equity, da composição entre os interesses de acionistas privados, que são parcela de seus financiadores, e dos dirigentes, responsáveis pela gestão da estatal e por parte de suas decisões estratégicas, que terão impacto no valor das ações, a estatal foi criada também para realizar interesses coletivos, sendo orientada, segundo dicção do § 1º do art. 27 da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais), para o alcance: do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos, com vistas tanto à ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e serviços da estatal; como para o desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira de produção e oferta de produtos e serviços da estatal, sempre de maneira economicamente justificada. 

Por conseguinte, apesar de uma sociedade de economia mista precisar também ser orientada para o lucro, se desejar atrair mais acionistas privados para aumentar o seu capital, ainda assim seus objetivos precípuos, que legitimam sua criação, também se voltam para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. 

Assim, se há alguma estatal que produz energia elétrica, por exemplo, a tarifas mais módicas, ampliando o acesso ao serviço, tal atividade pode contribuir não apenas com os usuários do serviço, mas também com o incremento da industrialização do País, pois o funcionamento da indústria também depende, no geral, do valor pago pela energia elétrica, o que tem impacto na geração de empregos e, consequentemente, no desenvolvimento socioeconômico do País. 

Há, no entanto, um conflito de interesses latente nas sociedades de economia mista. Tal conflito de interesses inerente às atividades das sociedades de economia mista foi exposto há tempos por Bilac Pinto, no clássico artigo denominado O declínio das sociedades de economia mista e advento das modernas empresas públicas,4  em que relata a intensificação, na Europa do século XX, da associação entre capital público e privado e, depois, a insuficiência do modelo da sociedade de economia mista diante do conflito latente. 

A sociedade de economia mista foi engendrada como solução jurídica para as desvantagens que o modelo de concessões começou a oferecer durante um período da história, tendo em vista que as cláusulas de garantia de juros e a extensão dada à teoria da imprevisão (com o restabelecimento da cláusula rebus sic stantibus a partir de meados da Primeira Guerra Mundial), acabaram forçando o Estado a progressivamente participar das perdas da exploração do serviço público concedido. 

Se antes a concessão corria efetivamente por conta e risco do concessionário, o Estado posteriormente passou a arcar, na prática, com o risco dos negócios também. Diante dessa circunstância, a sociedade de economia mista passou a ser vista como uma forma de o Estado assumir o controle de um serviço, sem deixar de captar investimentos e recursos da iniciativa privada, dada possibilidade de abertura do capital. 

A sociedade de economia mista permite, portanto, uma associação entre o Poder Público, que detém o controle acionário da empresa, e os particulares, que investem em suas ações. A empresa é estatal, porque o controle é do Estado, não obstante a participação de investidores da iniciativa privada, mas à sociedade é reconhecida a natureza jurídica de direito privado, dotando-a de métodos de ação da iniciativa privada, o que, em tese, lhe garantiria maior eficiência. 

No entanto, desde cedo o modelo da sociedade de economia mista não se revelou perfeito, sendo o principal entrave apontado por Bilac Pinto justamente o conflito de interesses entre o Estado e os particulares investidores, pois, enquanto o particular objetiva lucro, sendo menos importante para ele se a empresa desempenha suas atividades com preços acessíveis ou tendo em vista a universalização do serviço pela modicidade da tarifa, o Estado, por sua vez, tem o dever de orientá-la para que cumpra sua função social de promoção dos objetivos de desenvolvimento, o que implica na ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e serviços da estatal. 

Daí porque se apontou que na década de 60 houve, na Europa, o declínio das sociedades de economia mista, que foram sendo aos poucos substituídas pelas empresas públicas, uma vez que estas últimas teriam um capital integralmente público, sendo então menos propensas a provocarem esse tipo de conflito.  

No Brasil das décadas de 60 e 70, por sua vez, houve a proliferação das empresas estatais, tendo em vista um movimento de estatização. Os anos dos governos militares foram marcados pela criação de diversas empresas estatais, que foram direcionadas para o desenvolvimento de setores da economia considerados de interesse nacional, tendo em vista um projeto de desenvolvimento e soberania econômica, bem como de segurança nacional, sendo esta última uma preocupação intrínseca aos governos militares da época. 

Não se considerava, na prática, nenhum “sacrilégio” a atuação direta do Estado no domínio econômico, que era, de fato, incentivada; apesar da ressalva formal da Constituição de 1967, no sentido de que: “somente para suplementar a iniciativa privada, o Estado organizará e explorará diretamente atividade econômica”, de acordo com o § 1º do art. 163.5 O governo acentuou, ainda, o papel empresário do Estado e investiu na indústria pesada, na siderurgia (foi criada a Siderbrás em 1973), petroquímica, construção naval e produção de energia elétrica, o que contribuiu para o crescimento econômico brasileiro da década de setenta. 

Apesar do discurso que vigorou no sentido da descentralização e da contratualização, os governos de então agiram no sentido oposto, isto é, da centralização e da estatização. A criação de estatais foi também uma estratégia utilizada para os apelidados cabides de emprego, pois houve a expansão da burocracia como forma de gerar nomeações, o que contribuía para que houvesse menos questionamentos à ilegitimidade dos governos de então pela classe média brasileira, dado que alguma parcela dela era cooptada pelos governos ilegítimos na base da troca de favores. 

Outro fator que contribuiu para a intensificação do conflito de interesses nas estatais na época da ditadura foi que elas foram direcionadas a fornecerem produtos e serviços abaixo do valor de mercado, tendo em vista que a equipe econômica praticou nelas uma política econômica de preços orientada para o controle inflacionário. 

Essa ingerência do Estado nas estatais foi descrita também por Pedro Paulo de Almeida Dutra, em estudo originado de tese defendida em Paris acerca do controle das estatais brasileiras,6 em que se aborda que o endividamento externo de muitas empresas estatais nem sempre teve relação com imperativos de sua gestão, mas foi antes o resultado da intervenção governamental com vistas à obtenção de recursos financeiros. Assim, era comum na década de oitenta também a utilização, pelo governo federal, das estatais como meio de captação de recursos para pagamento de suas dívidas financeiras, em um contexto de inflação elevada, o que resultou no progressivo endividamento das empresas estatais. 

O movimento de estatização foi revertido no Brasil principalmente a partir da década de 90, em que o pêndulo se inverteu  para a privatização, dentro de um projeto político de desestatização, apoiado pelos organismos financeiros internacionais da época. A Emenda Constitucional 19, proveniente do movimento de reforma da década de 90, determinou que a lei estabeleceria o estatuto jurídico da estatal. 

Ocorre que a lei que regulamentou tal determinação só foi criada cerca de dezoito anos depois da emenda. No entanto, apesar da demora na edição do diploma legal, não se pode deixar de enfatizar que ele tramitou, paradoxalmente, às pressas, pois o Presidente (à época interino), enfatizou que aguardaria a lei para realização de nomeações nas estatais, dado que o novo diploma normativo teria requisitos mais restritivos à nomeação de dirigentes nas estatais e o discurso, após inúmeros escândalos veiculados na imprensa, era de que as indicações de dirigentes seriam feitas a partir de critérios mais técnicos. 

A Lei das Estatais foi criada em meio às repercussões do polêmico caso Lava Jato, que envolveu denúncias de desvios de bilhões de reais dos cofres da Petrobrás, considerada a maior estatal do Brasil. Por conseguinte, qualquer explicação dos seus objetivos, sem que haja essa contextualização do cenário político brasileiro, seria insuficiente para a adequada compreensão de seu conteúdo. 

A partir do caso Lava Jato, houve a denúncia da ação de empreiteiras que se organizavam em cartel para pagar propina (corromper) para altos executivos da estatal, bem como para alguns agentes públicos em particular, em função de contratos superfaturados. O valor das propinas era distribuído por operadores financeiros do esquema, os quais tentavam disfarçar a origem do dinheiro a partir da simulação de contratos com empresas de fachada ou por meio de movimentações financeiras no exterior.

Agentes públicos da Petrobrás abriam contas em nome de empresas offshores, em vários países, para receber a propina advinda dos contratos superfaturados. Posteriormente, numa outra etapa, a operação evoluiu para a abertura de inquéritos criminais envolvendo agentes políticos com foro privilegiado que atuavam, em interesse de partidos políticos, para indicar e manter dirigentes da estatal. 

Ao que se constatou, os agentes políticos que muitas vezes foram eleitos por doação da campanha feita por essas mesmas empreiteiras depois indicavam dirigentes que acobertavam a existência do cartel que gerava superfaturamento nos contratos celebrados. O depósito da propina era feito, em muitos casos, em contas que favoreciam os dirigentes e os agentes políticos.  Independentemente da leitura que se faça da Lava Jato, que representa uma operação muito controvertida, as suas repercussões tiveram impacto significativo na criação e no conteúdo da Lei das Estatais. 

Por conseguinte, a Lei das Estatais surgiu em um cenário político conturbado, tendo sido influenciada pelas ocorrências da Operação Lava Jato, tanto que, por exemplo, além dos objetivos de assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, houve, no art. 31 da lei, a previsão de um objetivo licitatório de evitar operações em que se caracterize o sobrepreço ou o superfaturamento. 

Trata-se de uma previsão incomum, dado que geralmente os objetivos das licitações são previstos de forma positiva: assegurar igualdade, gerar a contratação mais vantajosa, promover o desenvolvimento, mas até então não havia objetivo negativo previsto para uma licitação, do tipo: fazer o procedimento para evitar superfaturamento, algo que deveria estar pressuposto, dado que o superfaturamento viola princípios da Administração. 

Outrossim, a ideia da lei também foi no sentido de prever regras mais rígidas para nomeação de administradores de empresas estatais, no intento de supostamente evitar desvios decorrentes de um eventual aparelhamento político (no sentido negativo) da estatal. Aqui cumpre asseverar que o uso político da estatal, com o aparelhamento para a prática de desvios de recursos é um sentido negativo, mas o uso da estatal para a realização de política tarifária razoável, que garanta a universalização do serviço, bem como para a promoção do desenvolvimento, pelo estímulo, economicamente sustentável, da tecnologia brasileira de produção e oferta de produtos ou serviços, seriam usos positivos da estatal para realização de políticas públicas setoriais. Daí porque a expressão uso político da estatal pode ser ambígua.  

A Lei das Estatais (Lei 13.303/2016), que foi regulamentada pelo Decreto 8.945/2016, teve como destaque acentuado a intensificação da fiscalização a partir da previsão de regras de governança para garantir maior segurança, sobretudo aos investidores privados. Logo, a fiscalização é um ponto central da disciplina legal. 

Ocorre que a lei errou quando pretendeu equiparar o regime de tratamento das estatais, não diferenciando, à revelia da determinação constitucional, empresas que prestam serviços públicos das que atuam no domínio econômico. Também a preocupação com conflito de interesses, que é uma das tônicas legais, ao disciplinar mais transparência e prestação de contas, é voltada muito mais para o equacionamento dos problemas que são vivenciados pelas sociedades de economia mista, que abrem parcela do capital para a iniciativa privada, do que propriamente para a realidade das empresas públicas. 

Assim, a Lei das Estatais parece ter sido engendrada muito mais para solucionar alguns problemas que são correntes na realidade das sociedades de economia mista, não sendo tão adequada, gerando até complexidades difíceis de equacionar, para a circunstância das empresas públicas, que agora se submetem também à sua disciplina e terão de se adaptar no prazo legal estabelecido.  

Apesar de consensual e reiterada a orientação de que as empresas públicas podem adotar qualquer forma admitida em direito, o decreto que regulamenta a Lei das Estatais determina no art. 11 que a empresa pública adotará, preferencialmente, a forma de sociedade anônima, que será obrigatória para as suas subsidiárias. 

O Estatuto das Estatais e de suas subsidiárias deve ser estabelecido, conforme determina o art. 6º da lei, em observância às regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, às práticas de gestão de riscos e controle interno, e à composição de administração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção constates na lei. 

Também se determinou que o estatuto social preveja que a área da compliance se reporte diretamente ao Conselho de Administração em situações em que se suspeite de envolvimento do diretor-presidente em irregularidades ou quando este se furtar a tomar medidas em situações a ele relatadas. 

A lei faculta aos executivos editarem atos (normativos) que disciplinem regras de governança destinadas às suas respectivas estatais, sendo que, na ausência de edição de tais regras em 180 dias a partir da publicação da lei, as respectivas empresas serão submetidas às regras de governança prevista na Lei das Estatais. Com a nova disciplina, a lei pormenorizou e padronizou uma série de relatórios de execução de orçamento, riscos, execução de projetos, sendo exigida a publicidade dos documentos.  

A auditoria interna deverá auxiliar o Conselho de Administração da empresa ou, se não houver, de sua controladora, sendo responsável por aferir a adequação do controle interno, a efetividade do gerenciamento dos riscos e dos processos de governança e a confiabilidade do processo de coleta, mensuração, classificação, acumulação, registro e divulgação de eventos e transações, visando ao preparo de demonstrações financeiras. 

Como exigências mínimas de transparência, houve a previsão no art. 8◦, entre outros: da elaboração de carta anual, subscrita pelos membros do Conselho de Administração, contendo recursos e impactos econômicos dos compromissos de cumprimento das políticas públicas, adequação do estatuto social à autorização legal de criação; e também a exigência de uma carta anual de governança corporativa. 

A carta anual de governança corporativa deve consolidar documento escrito, em linguagem clara e direta, com informações relevantes, de forma tempestiva, acerca das atividades desenvolvidas (dados operacionais), estrutura de controle, fatores de risco, dados econômico-financeiros, comentários dos administradores sobre o desempenho, políticas e práticas de governança corporativa e descrição da composição e da remuneração da administração. 

De acordo com o art. 9º da Lei das Estatais, a empresa pública e a sociedade de economia mista adotarão regras de estruturas e práticas de gestão de riscos e controle interno que abranjam: (1) a ação dos administradores e empregados, por meio da implementação cotidiana de práticas de controle interno; (2) área responsável pela verificação de cumprimento de obrigações e de gestão de riscos; e (3) auditoria interna e Comitê de Auditoria Estatutário. 

O Comitê de Auditoria Estatutário, novidade trazida pela lei, está previsto no seu art. 24 como órgão auxiliar do Conselho de Administração, ao qual deve se reportar diretamente, competindo-lhe: 

opinar sobre a contratação e destituição de auditor independente; 

supervisionar as atividades dos auditores independentes, avaliando sua independência, a qualidade dos serviços prestados e a adequação de tais serviços às necessidades da empresa pública ou da sociedade de economia mista; 

supervisionar as atividades desenvolvidas nas áreas de controle interno, de auditoria interna e de elaboração das demonstrações financeiras da empresa pública ou da sociedade de economia mista; 

monitorar a qualidade e a integridade dos mecanismos de controle interno, das demonstrações financeiras e das informações e medições divulgadas pela empresa pública ou pela sociedade de economia mista; 

avaliar e monitorar exposições de risco da empresa pública ou da sociedade de economia mista, podendo requerer, entre outras, informações detalhadas sobre políticas e procedimentos referentes a: (a) remuneração da administração; (b) utilização de ativos da empresa pública ou da sociedade de economia mista; e (c) gastos incorridos em nome da empresa pública ou da sociedade de economia mista; 

avaliar e monitorar, em conjunto com a administração e a área de auditoria interna, a adequação das transações com partes relacionadas; 

elaborar relatório anual com informações sobre as atividades, os resultados, as conclusões e as recomendações do Comitê de Auditoria Estatutário, registrando, se houver, as divergências significativas entre administração, auditoria independente e Comitê de Auditoria Estatutário em relação às demonstrações financeiras; 

avaliar a razoabilidade dos parâmetros em que se fundamentam os cálculos atuariais, bem como o resultado atuarial dos planos de benefícios mantidos pelo fundo de pensão, quando a empresa pública ou a sociedade de economia mista for patrocinadora de entidade fechada de previdência complementar. 

O Comitê deve possuir meios para receber denúncias, inclusive sigilosas, internas e externas à empresa pública ou à sociedade de economia mista, em matérias relacionadas ao escopo de suas atividades, possuindo também autonomia operacional e dotação orçamentária para conduzir ou determinar a realização de consultas, avaliações e investigações, inclusive com a contratação e utilização de especialistas externos independentes. 

Segundo o art. 15 da lei o acionista controlador da estatal responderá por abuso de poder nos termos da lei das Sociedade Anônimas, sendo que a ação de reparação pode ser proposta pela sociedade, pelo terceiro prejudicado ou pelos demais sócios, independentemente de autorização da Assembleia-Geral dos acionistas. Tal ação prescreverá em seis anos, contados da prática do ato abusivo. 

O Código de Conduta e Integridade, por sua vez, será elaborado e divulgado, devendo dispor sobre: (1) princípios, valores e missão da estatal, bem como orientações sobre a prevenção de conflito de interesses e vedação de atos de corrupção e fraude; (2) instâncias internas responsáveis por sua atualização e aplicação; (3) canal de denúncias que possibilite o recebimento de denúncias internas e externas relativas ao descumprimento desse código, bem como das demais normas internas éticas e obrigacionais; (4) mecanismos de proteção que impeçam qualquer espécie de retaliação a pessoa que utilize o canal de denúncias; (5) sanções aplicáveis em caso de violação às regras do código; e (6) previsão de treinamento periódico, no mínimo anual, e sobre a política de gestão de riscos, a administradores. 

É facultado pela lei, regulamentada pelo Decreto, o uso de arbitragem para solucionar as divergências entre acionistas e sociedade, ou entre acionistas controladores e acionistas minoritários, nos termos previstos em seu estatuto social. 

Além do controle interno, fortalecido pela lei, há a previsão da fiscalização pelo Estado e pela sociedade, sendo tal matéria disciplinada pelos arts. de 85 a 90 da lei e pelos arts. de 45 a 50 do Decreto 8.945/2016. De acordo com o art. 85 da lei, os órgãos de controle externo e interno fiscalizarão as estatais, quanto à legitimidade, à economicidade e à eficácia da aplicação de seus recursos, sob o ponto de vista contábil, financeiro, operacional e patrimonial. 

Por conseguinte, os órgãos de controle devem ter acesso irrestrito aos documentos e às informações necessários à realização dos trabalhos, inclusive aqueles classificados como sigilosos pela empresa conforme a Lei de Acesso à Informação. A informação não pode ser recusada aos órgãos de controle, que receberão a informação sigilosa. 

A estatal fará a classificação do grau de confidencialidade da informação que será disponibilizada aos órgãos de controle, que serão corresponsáveis pela manutenção desse sigilo. Não se pode opor confidencialidade contra os órgãos de controle (interno e tribunais de contas), os quais terão acesso inclusive a informações contratuais referentes a operações de perfil estratégico ou que tenham por objeto segredo industrial, sem prejuízo da responsabilização administrativa, civil e penal do servidor que der causa à eventual divulgação dessas informações. 

O decreto estabelece também que os critérios para a definição do que deve ser considerado sigilo estratégico, comercial ou industrial serão estabelecidos por decreto específico. Trata-se de determinação controvertida, pois pode abrir ampla margem de discricionariedade para a regulamentação da opacidade em detrimento do princípio da transparência administrativa. 

Os órgãos de controle competentes também terão acesso em tempo real a bancos de dados eletrônicos atualizados com informações das licitações e contratos das estatais, incluindo base de preços. 

Conforme enfatizam Edgar Guimarães e José Anacleto Abduch Santos,7 essa exigência já existia, com maior intensidade, no entanto, na Lei de Acesso à Informação. O art. 8º, § 1º, inciso IV, da Lei 12.527/2011 institui o dever de os órgãos e entidades públicas promoverem, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas; devendo constar, no mínimo, as informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos celebrados. 

Tendo em vista essa exigência da Lei de Acesso à Informação, que deve ser interpretada em conjunto com a Lei das Estatais, o acesso aos dados contratuais e de licitações não deveria ser franqueado apenas aos órgãos de controle, pois tais informações devem fazer parte da transparência ativa do órgão, que deve disponibilizar ao público, no geral, em local de fácil acesso, conforme visto. 

Aliás, qualquer cidadão é parte legítima para impugnar edital de licitação por irregularidade de aplicação da lei. No entanto, curiosamente, o art. 46 do Decreto 8.945/2016 reitera a orientação legal restritiva no sentido de que as informações relativas às licitações e contratos das empresas estejam acessíveis aos órgãos de controle externo e interno da União, afirmando, ainda, que o acesso será restrito e individualizado

Trata-se de orientação infralegal que não se coaduna com o princípio constitucional da publicidade, que é associado à exigência de transparência. Note-se que a previsão de controle social da estatal viabiliza o controle pela sociedade, que deveria ter condições também de controlar as contratações e licitações da empresa, que, por ser estatal, também é constituída sobretudo por patrimônio público, apesar de sua natureza jurídica de direito privado. 

Também as demonstrações contábeis auditadas da empresa pública e da sociedade de economia mista serão disponibilizadas no sítio eletrônico da estatal na internet, inclusive em formato eletrônico editável. Para que haja controle social, a execução dos contratos e orçamentos das estatais deve ser disponibilizado ao público por meio eletrônico, sendo mensalmente atualizada, admitindo-se, pela lei, um retardo de até dois meses na divulgação das informações. 

As estatais deverão demonstrar a legalidade e a regularidade da despesa e execução dos contratos e demais instrumentos aos órgãos e sistema de controle interno bem como ao tribunal de contas competente, nos termos da Constituição. Pode ser solicitado, a qualquer tempo, tanto pelos tribunais de contas, como por órgãos integrantes do sistema de controle interno da empresa, documentos de natureza contábil, financeira, orçamentária, patrimonial e operacional. 

A supervisão ministerial que recai sobre a estatal, o que inclui também a supervisão do Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União, deve se ater aos limites da atividade de tutela, não podendo haver ingerência do órgão supervisor na administração e no funcionamento do ente da Administração Indireta. Às estatais deve ser assegurado o exercício de suas competências, como foco na realização de políticas públicas transparentes e em harmonia com seus objetivos sociais e com as diretrizes do Plano Plurianual. 

Por conseguinte, os órgãos de controle externo e os Ministérios supervisores não terão ingerência sobre a gestão das estatais, devendo respeitar suas competências e a definição própria da forma de execução das políticas públicas setoriais, conforme dispõe ao art. 50 do decreto que regulamenta a Lei das Estatais. 


Notas

1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Prestação de serviços públicos e Administração indireta, p. 101. Também em: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 203. 

2 BRASIL. Tribunal de Contas da União – TCU. Governança Pública: referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública e ações indutoras de melhoria, p. 19. 

3 NOHARA, Irene Patrícia. Reforma administrativa e burocracia, p. 97. 

4 PINTO, Bilac. O declínio das sociedades de economia mista e o advento das modernas empresas públicas. Revista de direito administrativo: seleção histórica, pp. 257-270 (publicada originariamente na RDA 32/9). 

5 Depois art. 170, § 1º, da Emenda Constitucional 1, de 1969. Trata-se de artigo que foi deixado de lado propositadamente pela Constituição de 1988, conforme explica GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade, p. 228. 

6 DUTRA, Pedro Paulo de Almeida. Controle de empresas estatais, p. 52. 

7 Expressão utilizada por Caio Tácito para explanar que tais movimentos, de idas e vindas das concessões de serviços públicos, são pendulares no Direito Administrativo. TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, pp. 721-733. 

8 GUIMARÃES, Edgard; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das Estatais, p. 304. 

Referências

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Prestação de serviços públicos e Administração indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. 

__________________. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.  

BRASIL. Tribunal de Contas da União – TCU. Governança pública: referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública e ações indutoras de melhoria. Brasília: TCU/Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, 2014. 

DUTRA, Pedro Paulo de Almeida. Controle de empresas estatais. São Paulo: Saraiva, 1991. 

GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade. Belo Horizonte: Fórum, 2009. 

GUIMARÃES, Edgard; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das Estatais. São Paulo: Fórum, 2017. 

NOHARA, Irene Patrícia. Reforma administrativa e burocracia. São Paulo: Atlas, 2012. 

PINTO, Bilac. O declínio das sociedades de economia mista e o advento das modernas empresas públicas. Revista de direito administrativo: Seleção Histórica. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. 

TÁCITO, Caio. Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

Citação

NOHARA, Irene Patrícia. Fiscalização das empresas estatais. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/116/edicao-2/fiscalizacao-das-empresas-estatais

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017

Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

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