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Intervenção do Estado na ordem social
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Carolina Zancaner Zockun
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Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022
Neste estudo, buscar-se-á aclarar a noção de ordem ou domínio social dada pela Constituição de 1988.
Partiremos da premissa, pois, de que a intervenção estatal na ordem social tem por objetivo assegurar a concretização dos direitos sociais, previstos no art. 6º da Constituição de 1988.
Ao final, analisaremos as formas de intervenção do Estado na ordem social, a saber, os serviços públicos para a concretização dos direitos sociais e o fomento ao terceiro setor, que incidir sobre tais direitos.
1. Do Estado social1
No Estado Social, a ordem jurídica estabelece obrigações positivas para que o Estado aja em prol de seus cidadãos, corrigindo os naturais desvios do individualismo clássico liberal, para que se possa alcançar a verdadeira justiça social.
O Estado Social é, pois, aquele que “busca realmente, como Estado de coordenação e colaboração, amortecer a luta de classes e promover, entre os homens, a justiça social, a paz econômica”.2
O Brasil é, por determinação constitucional, um Estado Social, em virtude do disposto, dentre outros, nos arts. 1º, III, 3º, I, III e IV; 5º, LV, LXIX, LXXIII, LXXIV, LXXVI; 6º, 7º, I, II, III, IV, VI, X, XI, XII; 23; 170, II, III,VII e VIII.3
Além disto, a Constituição de 1988 colocou o Estado como provedor dos direitos sociais.
Dentre seus deveres, o Estado tem, portanto, que assegurar os denominados direitos sociais que, em nossa Constituição, encontram-se albergados no art. 6º.
1.1. Da ordem social na Constituição de 1988
Geraldo Ataliba nos explica que o caráter orgânico das realidades que compõem o mundo e o caráter lógico do pensamento humano levam o homem a tratar as realidades que deseja estudar, sob critérios unitários, com proveito científico e conveniência pedagógica, distinguindo a composição coesa e harmônica de diversos elementos em um todo unitário, integrado em uma realidade maior. “A esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina sistema”.4
O sistema é, portanto, “uma unidade global organizada de inter-relações entre elementos ações ou indivíduos”.5
A ordem consiste em uma divisão interna de um sistema. “A ordem é, pois, um pré-requisito funcional sempre presente, uma disposição interna que viabiliza a organização de um sistema”.6
A organização do sistema se dá por meio de ordens, que visam a apartar elementos com características próprias para verificar quais são as regras e princípios que são comuns aos elementos estudados.
Pois bem, a ordem social está prevista no Título VIII da Constituição da República, separadamente da ordem econômica, estando os direitos sociais disciplinados em capítulo próprio, afastado da ordem social.
Os direitos sociais encontram-se no Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), Capítulo II (“Dos Direitos Sociais”). Neste capítulo, há previsão dos direitos sociais no art. 6º e dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais nos arts. 7º a 11.
Apesar de os direitos sociais estarem afastados geograficamente da ordem social, não ocorre uma ruptura radical, como se os direitos sociais não estivessem inseridos na ordem social. O art. 6º demonstra claramente que aqueles são conteúdo desta, quando diz que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.7
Muitos dos direitos sociais previstos no art. 6º estão especificados no título da ordem social. Esta cisão da matéria, realizada pelo constituinte, não atendeu aos melhores critérios metodológicos, mas permite ao jurista extrair, de um lado e de outro, aquilo que compõe a substância dos direitos relativos a cada um daqueles objetos sociais, deles tratando no art. 6º, deixando para abordar, na ordem social, segundo José Afonso da Silva, seus mecanismos e aspectos organizacionais.8
Por outro lado, entendemos que a ordem social, tal qual prevista na Constituição Federal, dispõe sobre inúmeros aspectos da sociedade, tratando de assuntos que não têm ligação direta com os direitos sociais, tais como ciência e tecnologia (arts. 218 e 219), comunicação social (arts. 220 a 223), meio ambiente (art. 225) e índios (arts. 231 e 232).
A ordem social, na Constituição de 1988, é, pois, a disposição interna do sistema constitucional que trata de diferentes aspectos da sociedade brasileira.
Também denominada de domínio social pela doutrina,9 a ordem social é um reflexo da sociedade brasileira, visto que abrange diferentes assuntos sob um mesmo título, quais sejam, seguridade social (arts. 194 e 195), saúde (arts. 196 a 200), previdência social (arts. 201 e 202), assistência social (art. 203), educação (arts. 205 a 214), cultura (arts. 215 e 216), desporto (art. 217), ciência e tecnologia (arts. 218 e 219), comunicação social (arts. 220 a 223), meio ambiente (art. 225), família, criança, adolescente e idoso (arts. 226 a 230) e índios (arts. 231 e 232).
A Constituição Federal, ao tratar da ordem social, quis, em última análise, tratar da sociedade brasileira e não apenas dos mecanismos de implantação dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal.
O que ocorre é que a Constituição Federal ao dispor sobre a ordem social abordou, além dos instrumentos de implementação e aspectos organizacionais de alguns dos direitos previstos no art. 6º, também outras matérias que não dizem respeito diretamente aos direitos sociais.
Aqui, por opção metodológica, trataremos da atuação estatal apenas quando este intervém na ordem social para concretizar os direitos previstos no art. 6º da Constituição Federal, por entendermos que a intervenção estatal no domínio social institui um dever inescusável quando sua atuação visa a fornecer meios para que os administrados possam ter acesso integral à “educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
2. Da intervenção estatal na ordem social
Considerando, como dito, que a intervenção do Estado na ordem social tem por finalidade efetivar os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Maior, tem-se que esta se dá por meio das seguintes atividades: (i) prestação de serviços públicos de educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância; e (ii) fomento de particulares que atuam no denominado Terceiro Setor.
Antes de adentrarmos nas formas de intervenção estatal propriamente ditas, analisaremos, brevemente, a posição jurídica dos direitos sociais na Constituição de 1988.
2.1. Dos direitos sociais
Inicialmente, saliente-se os direitos sociais possuem posição de destaque no texto constitucional.
Os direitos sociais estão inseridos no Capítulo II do Título II da Constituição da República, que traz arrolados os direitos e garantias fundamentais.
Os direitos sociais são direitos fundamentais de segunda geração e demandam uma interferência estatal para sua concretização. Assim, o Estado sai de uma posição inercial e passa a atuar positivamente visando a fornecer aos cidadãos condições dignas de existência, para que, reduzindo-se as desigualdades sociais, seja construída uma sociedade justa e solidária.
Com efeito, a Constituição expressamente assegurou aos direitos e garantias fundamentais efetividade máxima, ao estabelecer, no § 1º do art. 5º, que: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Foi, contudo, em outra passagem que a Constituição de 1988 erigiu ao status jurídico máximo os direitos e garantias fundamentais, quando os colocou como “cláusulas pétreas” no art. 60, § 4º, IV.
A força jurídica dos direitos sociais é tamanha que constituem crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra o exercício dos direitos sociais, consoante art. 85, III do Texto Maior.
Logo, desde o preâmbulo até o último art. da Constituição Federal, verifica-se, ao longo de todo o texto constitucional, a preocupação em se construir um Estado Social, garantidor dos direitos sociais e prestador de atividades positivas que visam a reduzir as desigualdades sociais e regionais existentes.
Não pairam dúvidas, pois, que o princípio do Estado Social e os direitos fundamentais sociais integram os elementos essenciais, ou seja, a identidade da Lei Maior.
Ademais, na esteira dos ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet, há que se ressaltar que todos os direitos fundamentais, acolhidos na Constituição de 1988 (mesmo os que não integram o Título II) são, na verdade e em última análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva. “É o indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim como é o indivíduo que tem direito à saúde, assistência social, aposentadoria etc.”10
Deveras, os direitos sociais reportam-se indiscutivelmente ao indivíduo, na medida em que é ele o titular dos direitos subjetivos públicos previstos no art. 6º da Constituição.
Logo, os direitos sociais não deixam de ser, em alguma medida, direitos individuais, pois se deve levar em consideração que o uso e o gozo desses direitos são de fruição singular e, portanto, os direitos sociais possuem uma dimensão inegavelmente individual.
Se isto é verdade, então, os direitos sociais foram alçados, em sua integralidade, à condição de cláusula pétrea pelo art. 60, § 4º, IV, quando este dispôs ser insuscetível de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
Isto porque os direitos sociais também são considerados direitos individuais de uma coletividade e, assim sendo, repise-se, estariam abrangidos pelo art. 60, § 4º, IV da Lei Maior.
É justamente neste sentido a lição de Carlos Ayres Britto,11 para quem “as cláusulas pétreas, caracterizando-se como afirmadoras daquele princípio de estabilidade ínsito a cada Estatuto Supremo, elas é que devem ser interpretadas extensivamente. Generosamente ou mais à solta”.
Assim, a expressão “direitos e garantias individuais”, tal como consagrada no art. 60, § 4º, da Constituição da República, inclui também os direitos sociais (arts. 6º a 11), os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13) e os direitos políticos (arts. 14 a 17).
Desta forma, os direitos sociais não podem mais ser considerados como meros enunciados que dependem, sobretudo, da boa vontade do legislador. A plenitude de seus efeitos foi consagrada expressamente pela Constituição de 1988, de tal sorte que é sempre atual a lapidar frase de Herbert Krüger,12 no sentido de que hoje não há mais falar em direitos fundamentais na medida da lei, mas sim em leis na medida dos direitos fundamentais.
Logo, como o direito é de fruição imediata, qualquer embaraço ou omissão em sua prestação confere ao cidadão o direito de exigir, via judicial, sua prestação instantânea.
Visto que os direitos sociais são cláusulas pétreas que possuem aplicabilidade imediata, estando, pois, situados no patamar mais alto do ordenamento jurídico, vejamos quais são esses direitos.
A Constituição de 1988 dividiu os Direitos Sociais em três partes: na primeira, identificou os direitos sociais em sentido estrito (art. 6º), na segunda, esmiuçou os direitos individuais dos trabalhadores urbanos, rurais e domésticos (art. 7º); e, na terceira, disciplinou os direitos coletivos desses trabalhadores (arts. 8º, 9º, 10 e 11).
Os direitos fundamentais de natureza social são, consoante o art. 6º da Constituição de 1988, educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância.
2.2. Da prestação de serviços públicos
Inicialmente, cabe mencionar o que entendemos por serviço público. Nisto estamos integralmente com Celso Antônio Bandeira de Mello13 para quem serviço público é “toda a atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente14 pelos administrados.” O serviço público é prestado pelo Estado, ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime jurídico de Direito Público.
Com isto, restringe-se a noção de serviço público aos denominados serviços uti singuli, ou seja, aqueles individual e singularmente fruíveis por cada um dos administrados, em contraposição ao conceito de serviço público em sentido amplo, que albergaria também os serviços uti universi, cujo gozo não é particularizado, como ocorre, por exemplo, com o serviço de iluminação pública.
Para os fins deste trabalho, interessam-nos apenas os serviços uti singuli, já que são estes que mais concretamente garantem os direitos subjetivos públicos constantes do rol do art. 6º da Constituição da República.
Como o serviço público é bem relevantíssimo da coletividade, o Estado avoca tais atividades para si por serem consideradas imprescindíveis, necessárias ou convenientes para a sociedade, em determinado tempo histórico, retirando-as, salvo exceções, das mãos da iniciativa privada.15
Com efeito, como bem acentuou Dinorá Grotti,16 “cada povo diz o que é serviço público em seu sistema jurídico”. Trata-se, pois, de política legislativa alçar à condição de serviço público determinada atividade.
O conceito de serviço público é, portanto, jurídico-positivo.17
Assim, a qualificação de uma atividade como serviço público varia conforme o tempo, o lugar e as necessidades de cada sociedade.
No Brasil, nosso Texto Maior erigiu algumas atividades à condição de serviço público. O rol, contudo, não é exaustivo, pois, dentro de sua área de atuação, isto é, sem adentrar indevidamente na esfera econômica,18 que é reservada à livre iniciativa, a União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderão avocar para si determinada atividade, passando a qualificá-la como serviço público.
A Constituição Federal expressamente tratou do modo de efetivação de alguns dos direitos sociais dispostos no art. 6º por meio da instituição de seus correlatos serviços públicos.
Assim, estão previstos nominalmente no Texto Constitucional os serviços de previdência social, assistência social, seguridade social, educação e saúde.
Todos os direitos sociais têm sua forma de sua efetivação por meio do “oferecimento, aos administrados em geral, de utilidades ou comodidades materiais singularmente fruíveis pelos administrados”,19 sob um regime jurídico de Direito Público, que deve obediência aos princípios correlatos ao serviço público.
Nesta seara, cumpre destacar que, via de regra, estes serviços devem ser prestados gratuitamente, mas, em havendo contraprestação pelo particular, esta terá que obedecer ao princípio da modicidade, sendo que sua cobrança jamais poderá frustrar o direito do particular a seu gozo.
Assim, os serviços necessários à concretização dos aludidos direitos sociais são serviços públicos, embora como tal não estejam expressamente arrolados na Constituição da República.
Vê-se, pois, que a Constituição erigiu como serviços públicos inúmeras atividades que considerou de especial relevância para a coletividade.
Entretanto, para os fins deste estudo, fizemos um corte metodológico dentre os serviços públicos existentes e trataremos apenas daqueles serviços públicos garantidores dos direitos sociais, previstos no art. 6º da Constituição Federal.
Todos os direitos sociais são efetivados, por parte do Estado, através dos serviços públicos, estejam ou não previstos expressamente como tal pela Constituição 1988.
Isto porque, quando a Constituição “estatui os fins que devem ser atendidos, ou, por definição do legislador ordinário, determina ao Estado que deva prestar determinada atividade, institui um serviço público”.20
Assim, além dos serviços públicos relativos à educação, saúde, previdência social, assistência social e seguridade social, já expressamente previstos, o Estado tem o dever de implementar serviços públicos que garantam a fruição do direito ao trabalho, moradia, transporte, alimentação, lazer e proteção à maternidade e à infância.
Cumpre destacar que a titularidade de todos os serviços públicos é sempre do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), o que não significa que deva obrigatoriamente prestá-los por si ou por pessoa por ele criada.
O Estado reservou a si a titularidade dos serviços públicos justamente para que possa satisfazer o leque de direitos e garantias individuais e sociais previstos na Constituição de 1988.21
A Constituição da República considerou de assinalada importância a prestação de serviços públicos, especialmente dos que concretizam os direitos sociais, colocando-os como dever inarredável do Estado.
É direito do administrado exigir a prestação adequada dos serviços públicos, consentânea com os princípios informadores deste instituto jurídico e que vise a atender satisfatoriamente às suas necessidades básicas.
Ainda, o serviço público é um dos instrumentos mais eficazes para a valorização da dignidade humana, bem como para a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais.
Com efeito, o Estado, por meio dos serviços públicos, especialmente os voltados à efetivação dos direitos sociais, fornece ao cidadão as condições necessárias para uma sobrevivência decente, promovendo sua inclusão social e auxiliando na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que todos possam ter garantida a sua dignidade, bem como possam exercer de forma plena sua cidadania.
Bem se vê, portanto, que o serviço público é um instrumento de concretização dos direitos sociais, cuja finalidade última é alcançar a justiça e o bem-estar sociais, prestigiando, ainda, o princípio da isonomia, ao conferir oportunidades àqueles economicamente menos favorecidos.
O papel do serviço público na efetivação dos direitos sociais é, portanto, essencial, sendo um meio necessário para a realização dos objetivos fundamentais da República, já que atua na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV da Constituição de 1988).
Desta forma, os serviços públicos são os elementos responsáveis pela materialização dos direitos sociais de educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança (seguridade social), previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência social.
Ora, os direitos sociais constituem, como vimos, limites materiais à reforma constitucional e, portanto, são considerados cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, CF).
As cláusulas pétreas garantem a estabilidade da Constituição contra alterações aniquiladoras do seu núcleo essencial por meio da irrevisibilidade de determinadas normas fundamentais à estrutura do Estado.22
Assim, a colocação de determinadas disposições sob o manto da imutabilidade revela, pois, seu status jurídico máximo.
As cláusulas petrificadas são, como todas as demais normas constitucionais, de cumprimento obrigatório, mas têm em relação a elas um plus, que consiste em sua reforçada proteção constitucional.
Os direitos sociais fazem parte das normas constitucionais que foram alçadas à elevação máxima, sendo sua efetivação um dever inafastável do Estado, que não poderá, em hipótese alguma, postergá-los ou diminuí-los.
Cumpre destacar que aos direitos sociais foi, ainda, conferida função primordial no ordenamento jurídico, por serem eles, ao mesmo tempo, um objetivo e um pilar estruturante do Estado Social.
O fato de os direitos sociais serem cláusulas pétreas lhes confere caráter de essencialidade no sistema. Esta essencialidade jurídica é concretizada no mundo fenomênico por meio dos serviços públicos.
Com efeito, a estática dos direitos sociais é posta em movimento pela dinâmica dos serviços públicos, que realizam na prática os preceitos da Constituição.
Desta forma, parece razoável inferir: quando a Constituição de 1988 alçou à condição de cláusulas pétreas os direitos sociais, quis não apenas proteger esses direitos materiais em si, mas também os instrumentos que os solidificam.
Isto porque de nada adiantaria assegurar a existência dos direitos sociais se os meios pelos quais eles são concretizados não gozassem de igual proteção.
Os instrumentos indispensáveis para a realização dos direitos sociais, como visto, são os serviços públicos, que podem conjugar os elementos necessários para dar consistência à prescrição constitucional garantidora desses direitos.
Ora, se quem quer os fins, quer os meios, então quem quer os direitos sociais, quer, com igual veemência, os serviços públicos.
Daí que, sendo a força motriz dos direitos sociais precisamente o serviço público, a ele deve ser conferida também a estatura de cláusula pétrea.
É claro que não são todos os serviços públicos que gozam desta proteção reforçada, mas apenas aqueles que servirem de intermediários para a consecução dos direitos sociais.
Assim sendo, são cláusulas pétreas (implícitas, evidentemente) os serviços públicos de educação, saúde, trabalho, moradia, alimentação, transporte, lazer, seguridade social, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência social.
Desta forma, a intervenção na ordem social para assegurar a efetivação dos direitos sociais é dever do Estado e sua concretização dá-se por meio da prestação dos serviços públicos de educação, saúde, acesso ao trabalho, fornecimento de moradia, lazer, seguridade social, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência social.
Se o Estado se nega a fornecer os serviços públicos omite-se em seu dever constitucional.
Ainda, a má prestação dos serviços públicos também enseja responsabilização estatal pelos danos causados aos usuários ou a terceiros por eles atingidos.
O serviço público é, pois, a mais importante forma de intervenção estatal na ordem social, estando este instituto assegurado constitucionalmente como cláusula pétrea.
Vejamos agora a outra forma de intervenção estatal na ordem social, que se dá por meio das atividades de fomento.
2.3. Da atividade de fomento
O Texto Constitucional prevê a possibilidade de o Estado incentivar a atuação do particular na consecução do interesse público.
O fomento, objeto de nosso estudo, será unicamente aquele voltado à intervenção na ordem social, razão porque não trataremos, pois, da atuação estatal incentivadora da ordem econômica, nos moldes previstos pelo art. 174 da Constituição da República.
Pretende-se, assim, fornecer um esboço do fomento estatal frente ao Terceiro Setor.
Terceiro Setor é a nomenclatura dada às entidades que não fazem parte do setor estatal, isto é, não se vinculam direta ou indiretamente à Administração Pública, nem se dedicam às atividades empresariais, cuja finalidade não é lucrativa e cuja atuação é voltada para a consecução de objetivos sociais.
Logo, ao lado do Primeiro Setor (Estado) e do Segundo Setor (Mercado), surgiu um grupo destinado a propiciar desinteressadamente o desenvolvimento social.
A doutrina costuma identificar a “subsidiariedade” como princípio norteador da atividade de fomento. Por este princípio, o Estado somente deverá intervir na sociedade quando esta for incapaz de satisfazer seus próprios interesses, restringindo-se a atuação estatal ao incentivo e fomento dos grupos sociais.
Entendemos de modo diverso. É certo que o Estado poderá fomentar as atividades dos particulares, mas isto não o desonerará de suas missões constitucionais.
Nesse sentido, a lição de José Roberto Pimenta Oliveira,23 para quem o princípio da subsidiariedade não autoriza a “mera e desvirtuada” substituição do aparelho administrativo.
Assim, o Estado, apesar de ter a faculdade de fomentar as atividades do terceiro setor referentes à educação, saúde, assistência, trabalho, moradia, lazer e proteção à maternidade e à infância, não poderá se eximir de oferecer os serviços públicos correspondentes, tendo em vista a missão que lhe foi constitucionalmente imposta.
A este propósito, cumpre destacar que não há um dever constitucionalmente atribuído ao Estado de fomentar as atividades privadas. Trata-se, pois, de política legislativa, que permite ao Estado optar pelas atividades de relevância social que receberão ou não incentivo estatal.
Com efeito, as atividades de fomento exigem, direta e indiretamente, o aporte de recursos estatais que são transferidos à sociedade para que os particulares, observadas determinadas diretrizes, possam validamente perseguir o interesse público.
Para que esses recursos estatais possam ser consumidos nesse propósito, é necessária a existência de prévia dotação na lei orçamentária anual. E bastaria recordar o princípio da exclusividade24 e da legalidade financeira25 para corroborar o que restou dito acima.
Não obstante isso, o Texto Maior, pretendendo ser didático, previu em seu art. 165, § 6º, que o projeto de lei orçamentária deverá ser acompanhado do demonstrativo do impacto financeiro decorrente da outorga de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia, dentre outros.
Assim, sem a previsão orçamentária desses incentivos de natureza econômica, a atividade de fomento não poderá ser validamente realizada.
Aliás, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), editada para regulamentar os arts. 163 e 169 da Constituição Federal, veio justamente para regular a execução da política fiscal do país, controlando as despesas pelo critério de disponibilidade de caixa, impondo metas a serem alcançadas e cominando sanções pelo descumprimento das normas ali estabelecidas.26
De toda sorte, ultrapassada a etapa legislativa de instituição desses benefícios (autorizadores de atividade de fomento), ingressa-se na efetiva e concreta irradiação dos seus efeitos.
Nesta seara, cabe salientar que o fomento de entidades beneficentes27 é importante instrumento de intervenção estatal na ordem social, pois permite que o Estado atinja um grande contingente de pessoas necessitadas, sem realizar os mesmos gastos que despenderia se não contasse com o apoio e a estrutura de particulares.
As atividades do Terceiro Setor são realizadas de forma voluntária, não sendo possível que o Estado obrigue o particular a desempenhar atividades de benemerência, mas havendo sua participação espontânea, o Estado poderá auxiliá-lo na consecução de interesses sociais, preenchidos determinados requisitos previamente estipulados em lei.
Se o Estado optar por fomentar determinada atividade, nasce para ele o dever de fiscalizá-la, a fim de verificar se os recursos públicos oferecidos ao particular estão sendo efetivamente empregados na consecução das finalidades de interesse público para os quais foram cedidos.
Assim, o fomento público às atividades privadas faz eclodir o dever estatal de avaliar não somente a utilização dos recursos públicos, mas se a entidade privada ainda ostenta a condição de entidade de interesse social, para que, em não sendo o caso, se possam retirar os benefícios econômicos eventualmente gozados, fazendo-a ressarcir os cofres públicos pelos valores por ela aproveitados.
O direito positivo prevê, pois, diversos mecanismos para o implemento das atividades de fomento, cujos principais serão tratados a seguir.
Cumpre destacar que o elemento juridicamente aglutinador de todas as formas de fomento é a possibilidade de concessão de benefício econômico que, de modo direto ou indireto, realizará a supressão ou redução dos custos financeiros suportados pela pessoa jurídica beneficiária, para consecução de suas finalidades.
3. Intervenção estatal: serviços públicos e fomento - dever e faculdade
A intervenção estatal na ordem social pode se dar por meio da prestação de serviços públicos ou pela atividade de fomento ao Terceiro Setor, realizados para a concretização dos direitos sociais.
A prestação de serviços públicos de educação, saúde, trabalho, moradia, alimentação, transporte, lazer, seguridade social, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência social é obrigatória para o Estado, que não pode, portanto, se eximir de sua concretização, ainda que por meio de fomento ao Terceiro Setor.
Bem se vê, desta forma, que, se a prestação de serviços públicos é obrigatória para o Estado, a atividade de fomento é facultativa, uma vez que não há, na Constituição de 1988, obrigação de incentivo ao particular, mas de prestação direta desta atividade.
Para que o Estado possa realizar a atividade de fomento, deverá verificar a vantajosidade de se incentivar o particular, em detrimento da ampliação das atividades diretas por ele fornecidas.
Notas
1 As considerações ora apresentadas foram mais amplamente tratadas em nosso ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da Intervenção do Estado no domínio social. Neste verbete, entre outras observações, procedemos as atualizações legislativas necessárias.
2 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, p. 187.
3 ZANCANER, Weida. Razoabilidade e moralidade. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, p. 621.
4 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro, p. 4.
5 MORIN, Edgar. La Méthode 1, p. 99.
6 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo e PRADO, Ney. Uma análise sistêmica do conceito de ordem econômica e social. Revista de informação legislativa, ano 24, nº 86, p. 124.
7 Cumpre destacar que este art. 6º foi alterado pelas Emendas Constitucionais 26/2000, 64/2010 e 90/2015, para fazer constar, dentre o rol dos direitos sociais, a moradia, a alimentação e o transporte, respectivamente.
8 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 285.
9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 841.
10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 385.
11 BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e o monitoramento de suas emendas. Direito do Estado – Novos rumos, t. 1, p.66.
12 KRÜGER, Herbert apud MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, p. 311.
13 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 699.
14 Cesar A. Guimarães Pereira, em excelente trabalho sobre o tema, põe em destaque a posição do usuário na definição de serviço público, afirmando que “Só haverá serviço público na medida em que seja possível identificar um usuário que possa fruí-lo de modo singular e individual. Além disso, ao mesmo tempo em que se afirma o caráter coletivo do serviço público (que torna ‘instrumental’ a posição do usuário), destaca-se o papel individual do usuário na relação concreta de serviço. Essa afirmação não nega que o serviço público seja dirigido ao público em geral, a uma pluralidade indeterminada de usuários em potencial. Mas se baseia em que o ‘usuário efetivo’ é determinado e integra uma relação jurídica concreta. Por isso é que somente os serviços fruíveis singularmente é que podem ser caracterizados como serviços públicos”. (Usuários de serviços públicos, p. 34).
15 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 698.
16 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988, p. 87.
17 CINTRA DO AMARAL, Antonio Carlos. Concessão de serviço público, p. 17.
18 Para melhor compreensão da matéria, ver: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, pp. 822-829.
19 Idem, p. 669.
20 OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Serviços Públicos e tributação. Natureza jurídica da contraprestação de serviços concedidos e permitidos. Serviços públicos e direito tributário, p. 178.
21 ZANCANER, Weida. Limites e confrontações entre o público e o privado. Direito administrativo contemporâneo. Estudos em memória ao Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, p. 342.
22 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 888.
23 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro, p. 531.
24 Segundo o qual a lei orçamentária não conterá dispositivo estranho à fixação de despesas e previsão de receitas.
25 Segundo o qual não poderá ser realizada despesa não prevista em lei orçamentária.
26 “O planejamento orçamentário e a ampla divulgação do que se pretende fazer e, depois, do que realmente se fez com o dinheiro da sociedade, constituem, ambos, estratégias para assegurar os dois grandes objetivos da LRF: a prevenção do déficit e a redução da dívida. Para isso, a boa gestão fazendária requer as seguintes responsabilidades: 1 – Cumprimento de metas e resultados entre receitas e despesas. (...) e 2 – Obediência a limites e condições para variáveis básicas das finanças públicas” (TOLEDO JUNIOR, Flávio C. de.; ROSSI, Sérgio Ciquera. Lei de Responsabilidade Fiscal, pp. 11-13).
27 Oportuno esclarecer que entidade beneficente é gênero da qual entidade filantrópica é espécie. Nas palavras de José Eduardo Sabo Paes “Entidades sem fins lucrativos ou entidades beneficentes são aquelas que buscam interesses de outrem ou atuam em benefício de outrem que não a própria entidade ou os que a integram. Entidade filantrópica é aquela que atua em benefício de outrem com dispêndio de seu patrimônio, sem contrapartida ou, em outras palavras, pelo atendimento sem ônus direto do beneficiado”. (Fundações, associações e entidades de interesse social, p. 646).
Referências
CINTRA DO AMARAL, Antonio Carlos. Concessão de serviço público. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
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Citação
ZOCKUN, Carolina Zancaner. Intervenção do Estado na ordem social. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/110/edicao-2/intervencao-do-estado-na-ordem-social
Edições
Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1,
Abril de 2017
Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2,
Abril de 2022
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