• Improbidade administrativa e dano ao erário

  • Luciano Ferraz

  • Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

O sentido gramatical da palavra improbidade deriva do latim improbitas, a significar má qualidade, imoralidade, malícia. Para os romanos, a improbidade impunha aos indivíduos a ausência de existimatio, responsável por atribuir aos homens o bom conceito social. E sem a existimatio, os indivíduos se converteriam em homines intestabiles, aqueles sem a capacidade ou idoneidade para a prática de certos atos.1  

O Dicionário Houaiss define a improbidade como “ausência de probidade; desonestidade; ação má, perversa; maldade, perversidade2 ; e o Dicionário Aurélio, na mesma linha, como “mau caráter, desonestidade”.3  A improbidade, portanto, revela a qualidade do homem que não sabe proceder, do desonesto, do sem caráter, daquele que age indignamente, que não atua com decência. O homem ímprobo é, nesse sentido, o transgressor das regras da lei e da moral.4 

Com efeito, no âmbito do Direito (em especial do Direito Administrativo), a noção de improbidade administrativa resulta de um acoplamento entre os campos normativos do direito e da moral. Este acoplamento não vai ao ponto de tornar o Direito (Administrativo) um subproduto da moral – tendência verificada ultimamente no Brasil e denunciada sistematicamente por Lênio Streck em sua coluna “Senso Incomum” no site Conjur: –, mas exige que a caracterização do delito correspondente (delito de improbidade) apresente repercussão negativa e simultânea no âmbito do Direito (legalidade) e da Moral (moralidade = princípio da moralidade administrativa). 

Decerto, não há na doutrina brasileira maiores controvérsias quanto à interdependência existente entre a probidade e a moralidade administrativas, porquanto

“(...) o conceito de improbidade administrativa está delimitado na Constituição apenas de maneira implícita. A Carta do país relaciona o conceito de ato de improbidade com a atuação administrativa contra o princípio da moralidade. As severas penas previstas na Constituição para aqueles que praticam ato de improbidade (art. 37, parágrafo 4º) já conduzem à conclusão de que ato de improbidade não é uma simples violação da ordem jurídica. A moralidade administrativa, para fins de probidade, não pode ser considerada como sinônimo de legalidade”.5 

José Afonso da Silva, nesse sentido, enfatiza que a imoralidade administrativa é gênero do qual a improbidade administrativa é espécie: 

“A probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa que mereceu consideração especial da Constituição, que pune o improbo com a suspenção do direito político (art. 37, § 4º). A probidade administrativa consiste no dever de o “funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades dela decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer”. O desrespeito a esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao improbo ou a outrem”.6 

Assim parece óbvio que o objetivo do legislador constituinte, ao tratar dos atos de improbidade administrativa, foi o de proteger o princípio da moralidade administrativa, expressamente previsto no caput do art. 37 da Constituição da República. Como diz Carvalho Filho: “diante do direito positivo, o agente ímprobo sempre se qualificará como violador do princípio da moralidade”.7  

Realmente, a qualificação de um dado ato jurídico como portador da pecha da improbidade administrativa (com as consequentes imputações) não se pode dar exclusivamente no campo de incidência do princípio da legalidade, reclamando imprescindivelmente a intromissão da causa ou dos efeitos desse ato no raio de proteção do princípio da moralidade administrativa. 

É que a extraordinária gravidade das sanções cominadas pela Constituição (art. 37, §4º) e pela Lei 8.429/1992 aos atos de improbidade administrativa não se coaduna com condutas imbuídas de boa-fé, com ilícitos de menor ou de nenhuma repercussão no campo normativo da moral, como também não se coaduna com potenciais divergências sobre a melhor interpretação do Direito (delitos de exegese). 

Esta parametrização (que segrega improbidade de ilegalidade) decorre diretamente da Constituição da República e deve iluminar a interpretação da legislação infraconstitucional (Lei 8.429/1992), fundamentalmente para definir o elemento subjetivo necessário para o fim de tipificar atos de improbidade administrativa.


 1. Fundamentação


1.1. Modalidades de improbidade administrativa e elemento subjetivo


Com o intuito de regulamentar o art. 37, § 4º, da Constituição da República, a Lei 8.429/1992 dividiu os atos de improbidade administrativa em três espécies: (a) atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito (art. 9º da Lei 8.429/1992); (b) atos de improbidade que causam prejuízo ao erário (art. 10 da Lei 8.429/1992); (c) atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11 da Lei 8.429/1992). 

Recentemente, a Lei Complementar 157/2016 acresceu o art. 10-A à Lei 8.429/1992, criando uma nova espécie de ato de improbidade administrativa:  “ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõem o caput e o § 1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003”. O dispositivo somente terá vigência a partir de 30 de dezembro de 2017, por força do que dispõe o art. 6º c/c art. 7º, § 1º, da LC 157/2016.

É consenso na doutrina e na jurisprudência que as espécies de improbidade administrativa, previstas nos arts. 9º e 11 da Lei 8.429/1992 somente se podem configurar mediante conduta dolosa (aquela praticada com a intenção deliberada). A nova espécie prevista no art. 10-A deverá seguir o mesmo caminho e a razão é simples: nenhum desses arts. prevê expressamente modalidade culposa para a configuração da improbidade administrativa, havendo de prevalecer orientação semelhante à que dimana da chamada “excepcionalidade do crime culposo”, constante do art. 18, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro.

Com efeito, as regras de improbidade administrativa – como de resto as regras pertencentes ao âmbito do direito administrativo sancionador – devem ser interpretadas de acordo com os princípios básicos norteadores do direito penal, porquanto o poder punitivo do Estado possui origem comum que engloba os delitos criminais, disciplinares e de improbidade, sendo certo que as normas penais, em razão de sua maior severidade, devem outorgar garantias mais amplas aos cidadãos.8   

Na verdade, o problema se coloca efetivamente a propósito da espécie de ato de improbidade prevista no art. 10 da Lei 8.429/1992 (atos que causam lesão ao erário), cuja norma expressamente prevê a possibilidade de configuração mediante “qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa”.

A modalidade culposa de improbidade administrativa, contida no art. 10 da Lei 8.429/1992, segundo se compreende, não tem compatibilidade com o conceito normativo constitucional da espécie. Se a improbidade deve ser entendida como ilegalidade qualificada pela afronta simultânea ao princípio da moralidade e da boa-fé (consoante sustentado no tópico anterior), é impossível a sua configuração se perfaça sem a presença do intuito desonesto do agente público.

Segundo José Armando da Costa:

“Não sendo concebível que uma pessoa enriqueça ilicitamente, que cause prejuízo ao erário ou que transgrida os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e deslealdade às instituições públicas, por ação meramente culposa (negligência, imprudência ou imperícia), forçosamente haveremos de concluir que o elemento subjetivo do delito disciplinar da improbidade é o dolo”.9 

Francisco Octavio de Almeida Prado também critica a modalidade culposa de improbidade administrativa, embora admita a sua configuração em hipóteses muito excepcionais:

“Observa-se, portanto, que os atos de improbidade administrativa, ao contrário do que sucede com as faltas disciplinares, encontram-se muito mais no domínio do dolo que da simples culpa. A ideia de culpa, traduzida na imprudência, imperícia ou negligência, é incompatível com a noção de improbidade, que, pressupondo um desvio de ordem ética e merecendo uma qualificação infamante, só muito excepcionalmente poderá admitir modalidade meramente culposa. Chega a ser difícil imaginar uma conduta que, eivada de mera negligência, possa erigir-se em ato ímprobo, incluindo-se no âmbito da nova categoria de ilícitos que a Constituição de 1988 veio contemplar”.10 

A Primeira e a Segunda Turmas do Superior Tribunal de Justiça chegaram a sinalizar entendimento neste sentido, ao condicionarem a configuração da improbidade administrativa necessariamente à presença de má-fé. E assim deve ser:

STJ, REsp 480387/SP1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 16.03.2004, DJ 24.05.2004.

“É cediço que a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. Consectariamente, a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade, o que não restou comprovado nos autos pelas informações disponíveis no acórdão recorrido, calcadas, inclusive, nas conclusões da Comissão de Inquérito”. 

STJ, REsp 269.683, 2ª Turma, rel. Min. Paulo Media, DJ 03.11.2004.

“O ato de improbidade, a ensejar a aplicação da Lei nº. 8.429/1992, não pode ser identificado tão somente com o ato ilegal. A incidência das sanções previstas na lei carece de um plus, traduzido no evidente propósito de auferir vantagem, causando dano ao erário, pela prática de ato desonesto, dissociado da moralidade e dos deveres de boa administração, lealdade e boa-fé”.

Todavia, quando a matéria foi julgada em sede de embargos de divergência, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que o dolo somente seria necessário para a configuração dos atos de improbidade administrativa previstos nos arts. 9º e 11 da Lei 8.429/1992, bastando o elemento anímico culpa para tipificação dos casos previstos no art. 10:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. TIPIFICAÇÃO. INDISPENSABILIDADE DO ELEMENTO SUBJETIVO (DOLO, NAS HIPÓTESES DOS ARTIGOS 9º E 11 DA LEI 8.429/1992 E CULPA, PELO MENOS, NAS HIPÓTESES DO ARTIGO 10). PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS DA 1ª SEÇÃO. RECURSO PROVIDO”.11 

Um ano depois, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, sob a mesma relatoria anterior, teve de enfrentar a matéria em sede de julgamento originário de ação de improbidade administrativa movida em face de membros do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região. O órgão máximo do STJ decidiu que a tipificação das condutas previstas no art. 10 demandaria a presença de culpa grave:

“Não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos arts. 9º e 11 da Lei 8.429/1992, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do art. 10”.12-13 

Ressalte-se que o ordenamento jurídico brasileiro não consagrou, expressamente, a categorização da culpa segundo a sua gravidade (levíssima, leve e grave), embora essa gradação seja comumente levada em consideração para fins de fixação de verba indenizatória em ação cível (art. 944, p. u., do Código Civil14 ) e até mesmo para reconhecimento da responsabilidade civil em casos específicos, como a do transportador desinteressado (Súmula 145/STJ 15). 

A falta de previsão normativa sobre a graduação da culpa dificulta a sua conceituação, obrigando o intérprete a recorrer a outras fontes do direito, em ordem a obter a desejada precisão de conceitos. Na jurisprudência, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça já se manifestou pela equiparação entre culpa grave e dolo em matéria de responsabilidade civil em acidente aéreo.16  Na doutrina, Carlos Frederico Brito dos Santos adere à tese da equiparação e, citando os ensinamentos de Jean-Jacques Dupeyroux, define os elementos positivos e negativos em que ela se decompõe:

“Positivos: a) gravidade excepcional, de modo a ultrapassar o que comumente ocorre, mesmo no âmbito das falhas; b) consciência do perigo a que o empregado foi exposto; e c) caráter voluntário do ato ou da omissão, que não pode ser fruto de simples inadvertência.

 Negativos: a) falta da intenção de provocar o dano: se há intenção o caso é de dolo e não de culpa grave; e b) ausência de toda e qualquer causa justificadora para expor o empregado a risco extraordinário”.17 

A equiparação entre culpa grave e dolo pode até ser pouco relevante no campo do direito civil, uma vez que o Código Civil não distingue tais figuras para fins de configuração de ato ilícito e, consequentemente, do dever de indenizar (arts. 186 e 927). Todavia, na seara do direito punitivo – a seara a que pertence a improbidade administrativa – a distinção entre conduta culposa e dolosa é fundamental para a própria configuração do tipo infracional, mercê da já citada excepcionalidade do crime culposo (art. 18, p. u., do Código Penal). O que se sustenta, afinal, é que a expressão “culposa” contida no art. 10 da Lei 8.429/1992 é incompatível com a noção constitucional da improbidade administrativa, a despeito do entendimento consagrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 


1.2. O ato de improbidade previsto no art. 10 e a figura do dano in re ipso


Para além do elemento subjetivo, tratado no tópico anterior, o art. 10, caput da Lei 8.429/1992 exige, para configuração do ato de improbidade administrativa nele previsto, a ocorrência de lesão ao erário, consistente em desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de bens ou haveres. O dano ao erário é, portanto, elemento objetivo do tipo de improbidade administrativa em questão, conforme expressamente exigido pela cabeça do art. 10 da Lei 8.429/1992. Dessa forma, as condutas descritas nos incisos do dispositivo não devem ser interpretadas como tipos autônomos de infração, senão como tipos conectados com o caput da regra, a exigir, portanto, a presença efetiva do dano ao erário. 

Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça chegou a pacificar sua jurisprudência, em decisões da Primeira e da Segunda Turma, no sentido de que “as condutas descritas no art. 10 da LIA demandam a comprovação de dano efetivo ao erário público, não sendo possível caracterizá-las por mera presunção”.18  

A tese é acertada, pois os elementos do tipo têm como uma de suas funções, justamente, a de garantir as liberdades individuais e limitar o poder punitivo estatal. O jurisdicionado deve ter a segurança de que só será punido caso venha a praticar efetivamente a conduta vedada com todos os contornos definidos pela legislação de regência. Presumir a ocorrência de algum dos elementos do tipo infracional é, em última instância, presumir a própria ocorrência da infração.19  

Sem embargo disso, de uns tempos para cá – na onda da equivocada submissão do direito à moral – vem sendo construída uma nova jurisprudência na Corte Superior Federal (STJ), que admite a figura do denominado dano in re ipso, ou, em outras palavras, a figura do dano presumido (com caráter punitivo), para fins de tipificação do ato de improbidade administrativa prevista no art. 10 da Lei 8.429/1992, notadamente nos casos de indevida dispensa ou de licitação.

No dia 2 de fevereiro de 2017, por exemplo, este entendimento foi noticiado no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, com a manchete “[m]antida multa aplicada a ex-prefeito de Ubatuba (SP) por compra de automóvel sem licitação”. Segundo a publicação, “a defesa do ex-prefeito alegou que a compra do automóvel não causou prejuízo ao erário, de forma que a conduta não se enquadraria na hipótese do art. 10, VIII”, mas “o relator Ministro Gurgel de Faria não acolheu o argumento”, uma vez que “a jurisprudência do STJ é firme no sentido de considerar que ‘’o prejuízo decorrente da dispensa indevida de licitação é presumido, consubstanciado na impossibilidade da contratação da melhor proposta’”.20

Cabe aqui um parêntesis para dizer que graça no âmbito da jurisprudência brasileira uma crença de que a licitação é, por si só, uma garantia de contratações honestas e eficientes; por outro lado, também se crê inadvertidamente que a contratação direta, sem licitação, é ipso facto uma conduta ilícita e de privilégio. Assim sendo, quando a licitação é feita (pode ser uma licitação meritoriamente imperfeita ou fraudulenta) há presunção de legitimidade da conduta; se, ao contrário, a licitação é dispensada (ou inexigida) há presunção em sentido oposto. Trata-se de um pensamento formalista, simplista e equivocado. Existem contratações ilegítimas precedidas de licitação e contratações eficientes feitas diretamente, com também existem as situações inversas, num e noutro caso.

Retornando à questão do dano in re ipso em matéria de improbidade administrativa (que na verdade é uma criação interpretativa do STJ, segundo as mais recentes composições de suas turmas), convém enfatizar a decisão proferida pela Segunda Turma no julgamento do AgRg nos EDcl no AREsp 419.769/SC (2ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, j. 18.10.2016, DJe 25.10.2016), no qual se destaca a seguinte passagem: “a fraude à licitação tem como consequência o chamado dano in re ipsa, reconhecido em julgados que bem se amoldam à espécie”. 

Neste julgado, o voto condutor do Acórdão faz referência – inadvertida a bem da verdade – a outros dois precedentes da própria Segunda Turma do STJ, ambos da relatoria do Em. Min. Mauro Campbell Marques (REsp   1.280.321/MG, DJe 09.03.2012 e REsp 1.190.189, DJe 10.09.2010), além de citar um julgado da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Min. Marco Aurélio (RE 160.381/SP, DJ 12.08.1994). 

O primeiro acórdão citado como precedente (REsp 1.280.321/MG) foi prolatado em sede de ação civil pública comum e não em sede de ação de improbidade administrativa. Conquanto seja questionável a condenação ao ressarcimento sem a ocorrência de efetivo dano, seja qual for a ação judicial, o fato é que, no precedente, o Superior Tribunal de Justiça não admitiu – e nem poderia – a tipificação do ato de improbidade administrativa por dano presumido. Apenas decidiu sobre a nulidade do ato administrativo impugnado e sobre a obrigação de ressarcimento (que independe da tipificação da responsabilidade por ato de improbidade).

Os dois últimos (REsp. 1.190.189 e RE 160.381) também não foram prolatados em sede de ação de improbidade administrativa, senão em sede de ação popular (que não é ação judicial de caráter punitivo). A Lei 4.717/1965 prevê, no art. 4º, hipóteses de atos presumidamente lesivos ao patrimônio público, mas a disposição tem o efeito prático (e jurídico) apenas de inverter o ônus de prova sobre a legitimidade das condutas, jamais de possibilitar a condenação ao ressarcimento sem efetivo dano ao erário. 

O aresto citado (que inaugurou perigoso ciclo de reprodução em cadeia no repertório do STJ) é impertinente e revela certa dose de “punitivismo” em matéria de improbidade administrativa, contrariando frontalmente o entendimento firmado pela própria Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça em sede de embargos de divergência, no sentido de que, mesmo em ação popular, é necessária a prova da lesão efetiva para que o agente público seja condenado a ressarcir ao erário.

“ADMINISTRATIVO. AÇÃO POPULAR. CABIMENTO. ILEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. LESIVIDADE AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO. NECESSIDADE.

1. O fato de a Constituição Federal de 1988 ter alargado as hipóteses de cabimento da ação popular não tem o efeito de eximir o autor de comprovar a lesividade do ato, mesmo em se tratando de lesão à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural.

2. Não há por que cogitar de dano à moralidade administrativa que justifique a condenação do administrador público a restituir os recursos auferidos por meio de crédito aberto irregularmente de forma extraordinária, quando incontroverso nos autos que os valores em questão foram utilizados em benefício da comunidade.

3. Embargos de divergência providos”.21 

A matéria, como se vê, apresenta relevante controvérsia e certa dose de imprevisibilidade (contrárias à necessária segurança jurídica nos atos administrativos), Bem por isso está a merecer cuidados mais específicos, fundamentalmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, cujas decisões mais recentes terminam por transformar a exigência de efetiva lesão ao erário (para a imputação do dever de ressarcimento) numa presunção de prejuízo que definitivamente não consta do art. 10 da Lei 8.429/1992. 


Notas

1 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, p. 416.

2 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.

3 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 925.

4 SILVA, De Plácido e. Op. cit., p. 416.

5 PORTO NETO, Benedicto Pereira; PORTO FILHO. Pedro Paulo de Rezende. Violação ao dever de licitar e a improbidade administrativa. Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais, pp. 114-116.

6 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 668-669.

7 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, pp. 984-985.

8 GARCIA, Émerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa, p 457. No mesmo sentido, vide: REsp 513.576/MG, 1ª Turma, rel. Min. Francisco Falcão, rel. p/ Acórdão Min. Teori Albino Zavascki, j. 03.11.2005, DJ 06.03.2006, p. 164.

9 COSTA, José Armando da. Contorno jurídico da improbidade administrativa, pp. 22-23.

10 PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade administrativa, p. 37.

11 STJ, ERESP 479812/SP, 1ª Seção, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 25.08.2010.

12 STJ, AIA 30/AM, Corte Especial, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 21.09.2011.

13 Mais recentemente, no caso emblemático das admissões de parentes por agente político para cargos em comissão ocorridas em data anterior à lei ou ao ato administrativo do respectivo ente federado que a proibisse e à vigência da Súmula Vinculante 13 do STF, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua Primeira Turma, voltou a afirmar que “a improbidade é uma ilegalidade qualificada pelo intuito malsão do agente, atuando com desonestidade, malícia, dolo ou culpa grave”. (REsp 1.193.248-MG, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 24.04.2014)

14 “Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”.

15 Súmula 145: “No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”.

16 STJ, REsp 23.875/SP, 3ª Turma, rel. Min. CASTRO FILHO, j. em 14.02.2006, DJ 10.04.2006, p. 168.

17 SANTOS, Carlos Frederico Brito dos. Improbidade administrativa: reflexões sobre a Lei nº 8.429/1992, pp. 37-38.

18 STJ, REsp 1.228.306/PB, rel. Min. Castro Meira, j. 09.10.2012,  REsp 621.415/MG, rel. Min. Eliana Calmon, j. 16.02.2006; REsp 805.080/SP, 1ª Turma, DJe 06.08.2009; REsp 939.142/RJ, 1ª Turma, DJe 10.04.2008; REsp 678.115/RS, 1ª Turma, DJ 29.11.2007; REsp 285.305/DF, 1ª Turma; DJ 13.12.2007; REsp 714.935/PR, 2ª Turma, DJ 08.05.2006; REsp 1.038.777/SP, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, DJ 03.02.2011, Dp 16.03.2011.

19  Sobre o tema, Luiz Alberto Machado ensinava: “Maurach aponta, como funções do tipo formal, as de garantia das liberdades individuais e de fundamentação limitativa do jus puniendi do estado de direito democrático moderno. Soler afirmou que, através do tipo, o direito penal constitui-se em um sistema truncado, descontínuo, de ilicitudes; em uma imagem quase poética, o mestre argentino falou em arquipélago de ilicitudes em um mar de legalidade. Bruno concordou com essas funções do tipo, mostrando, ao demais, a incompatibilidade entre o tipo e a analogia integradora. Dessas funções fundamentais poder-se-iam extrair outras: fixação do conceito de consumação e de tentativa; ajuste da censurabilidade à figura penal; instituição de um regime de estabilidade e segurança. A importância do tipo está ressaltada por Beling, ao afirmá-lo fundamental para o direito punitivo: dá-lhe certeza, segurança, permitindo que os administrados fiscalizem a atuação da administração pública na aplicação da norma criminal (preceito), porque conhecem suas proibições. Na verdade, o tipo fixa o limite de atuação da administração pública na esfera do direito criminal. É o poder político, no aspecto do monopólio da coerção física, como ensina Bobbio, perfeitamente visível para o administrado” (MACHADO, Luiz Alberto. Tipo formal. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 46).

20 Disponível em: , acessado em 07.03.2017.

21 STJ, EREsp 260.821/SP, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, rel. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, j. 01.12.2011.


Referências

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011.

COSTA, José Armando da. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

GARCIA, Émerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Versão Online. Disponível em . Acesso em: 23.02.2017.

MACHADO, Luiz Alberto. Tipo formal. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 46, 1987.

PORTO NETO, Benedicto Pereira; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende. Violação ao dever de licitar e a improbidade administrativa. Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais. Cássio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho. 2. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2003. 

PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade administrativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

SANTOS, Carlos Frederico Brito dos. Improbidade administrativa: reflexões sobre a Lei nº 8.429/1992. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. 


Citação

FERRAZ, Luciano. Improbidade administrativa e dano ao erário. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/108/edicao-2/improbidade-administrativa-e-dano-ao-erario

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017

Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

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