Um estudo sobre o controle concentrado da constitucionalidade não pode prescindir, a partir da Lei 9.882, de 03.12.1999, da análise da arguição de descumprimento de preceito fundamental, instrumento de tutela na supremacia dos preceitos fundamentais, previsto no § 1º do art. 102 da CF, nos seguintes termos: “A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.
Primordialmente, é preciso lembrar que a interpretação da norma constitucional é indispensável para a compreensão das demais normas do ordenamento jurídico, porque a Constituição informa todo o sistema normativo, e, assim, prevista constitucionalmente de forma genérica, o constituinte determinou que o instrumento processual fosse regulamentado por lei ordinária. 
Trata-se, como se vê, de dispositivo constitucional com baixa densidade normativa, que, para atuar sua eficácia plena, necessita da edição de legislação infraconstitucional integradora. Ou seja: ao determinar a necessidade de lei, compõe a tipologia das normas constitucionais de princípio institutivo, de acordo com os ensinamentos de José Afonso da Silva, pois traça um esquema geral de estruturação e atribuição de órgãos, entidades ou institutos, a fim de que o legislador, infraconstitucional, o estruture definitivamente.1
A falta de legislação regulamentadora não impediu que fossem propostas arguições de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal, que esbarraram no entendimento de que o § 1º do art. 102 da CF não é autoaplicável e, portanto, não poderiam ser conhecidas sem a devida regulamentação legislativa.
Este entendimento foi assinalado pelo Min. Sydney Sanches, na relatoria do AgRg em Pet 1.140-TO, quando demonstrou que: 
“(...) enquanto não houver lei, estabelecendo a forma pela qual será apreciada a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente da Constituição, o STF não pode apreciá-la. Até porque sua função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, caput). E é esta que exige lei para que sua missão seja exercida em casos como esse. Em outras palavras: trata-se de competência cujo exercício ainda depende de lei. Também não compete ao STF elaborar lei a respeito, pois essa é missão do Poder Legislativo (art. 48 e ss. da CF). E nem se trata aqui de mandado de injunção, mediante o qual se pretenda compelir o Congresso Nacional a elaborar a lei de que trata o § 1º do art. 102, se é que se pode sustentar o cabimento dessa espécie de ação, com base no art. 5º, LXXI, visando a tal resultado, não estando, porém, sub judice, no feito, essa questão. Não incide, no caso, o disposto no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (atual Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), segundo o qual, ‘quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito’. É que não se trata de lei existente e omissa, mas, sim, de lei inexistente. Igualmente não se aplica à hipótese a 2ª parte do art. 126 do CPC, ao determinar ao juiz que, não havendo normas legais, recorra à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, para resolver a lide inter partes’. Tal norma não se sobrepõe à constitucional, que, para a arguição de descumprimento formal, não autoriza, à sua falta, a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito”.2  
É importante destacar que o constituinte, ao prever o novel instrumento dentre as competências do Supremo Tribunal Federal, não determinou se a arguição caracterizaria um processo objetivo ou subjetivo, se medida autônoma ou incidental, e isso em que pese ter buscado inspiração no recurso constitucional do direito alemão (Verfassungsbeschwerde) e no recurso de amparo espanhol.
No Brasil se admite a fiscalização da constitucionalidade de modo concentrado e difuso, isto é, em nosso sistema jurídico convivem a modalidade de controle concentrado, que produz efeitos (erga omnes), e o controle difuso, que pode ocorrer no curso das mais diversas ações judiciais, possibilita a defesa individual e pode chegar, por via do Recurso Extraordinário, a ser julgado pela Suprema Corte do Brasil. 
O recurso constitucional alemão é um instituto judicial cuja titularidade ativa cabe a todos os titulares de direitos fundamentais, inclusive aos estrangeiros e às pessoas jurídicas. A Lei Fundamental germânica consagra alguns direitos só aos alemães; neste caso, os estrangeiros não poderão se valer desse instrumento, sendo aplicado, tão somente, em relação aos estrangeiros europeus, em virtude do Tratado da União Europeia. E mais: no caso de pessoas jurídicas, só terão legitimidade quando titularizarem direito fundamental próprio. Melhor dizendo, a titularidade do recurso constitucional alemão está a cargo do sujeito da violação do direito fundamental por ato do Poder Público, por meio do qual invoca a tutela do Tribunal Constitucional, que pode, também, reconhecer, com eficácia (erga omnes), a inconstitucionalidade da norma cuja aplicação tenha lesado direito fundamental do requerente. Como bem enfatiza Hans G. Rupp, citado por Daniel Sarmento: 
“O processo de recurso constitucional não responde simplesmente ao objetivo de natureza subjetiva que constitui a proteção dos direitos fundamentais do cidadão em face do Poder Público: como todos os processos que se desenvolvem perante o Tribunal Constitucional Federal, ele tem igualmente uma finalidade objetiva, que é o esclarecimento dos problemas de direito constitucional pela interpretação da lei fundamental”.3  
Destarte, possuem, ao mesmo tempo, uma forma de controle concreto, proposto frente a uma lesão real, e de controle objetivo, como meio para proteção da ordem constitucional. 
Conforme lembra Walter Claudius Rothenburg, o modelo alemão da Verfassungsbeschwerde “define-se como ‘o pedido de uma pessoa, natural ou jurídica, relativo a uma violação sustentada de um direito constitucional do promovente por um titular do poder público, a um tribunal constitucional para ser decidido’”.4  
A Constituição espanhola, por sua vez, no art. 161, b, prevê que o “Tribunal Constitucional tem jurisdição em todo território espanhol e é competente para conhecer do recurso de amparo por violação dos direitos e liberdades referidos no art. 53.2, da Constituição, nos casos e formas que a lei estabelecer”, sendo admitido só quando houver ameaça ou violação a um direito ou garantia constitucional.
Nosso legislador ordinário, no art. 1º da Lei 9.882/1999, determina que a arguição deverá ser proposta perante o Supremo Tribunal Federal e admite que seu objeto visa a “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. Identifica-a, também, como instrumento autônomo de controle abstrato da constitucionalidade, compondo processo do tipo objetivo, cuja titularidade ativa para sua propositura, nos termos do art. 2º, I, da Lei 9.882/1999, é a prevista no art. 103 da CF, em decorrência do veto aposto pelo Presidente da República ao inc. II do seu art. 2º, que previa a possibilidade de seu exercício por “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público”, e isso em que pese o § 1º do dito artigo determinar que, “na hipótese do inciso II, faculta-se ao interessado, mediante representação, solicitar a propositura de arguição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo”.
Não obstante, o inc. I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/1999 previu um modelo de arguição que pode ser considerado como um tipo de incidente de descumprimento de preceito fundamental: “Caberá também arguição de descumprimento de preceito fundamental: I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”. Entretanto, é bom esclarecer que, mesmo nesta hipótese, trata-se de uma ação autônoma e não de um recurso processual.
Neste ponto é importante realçar que tal ação possui um aspecto peculiar, pois, como observam Clèmerson Merlin Clève e Cibele Dias, enquanto a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade têm como parametricidade a Constituição, a arguição tem como referencial os preceitos fundamentais da Carta Magna, fato este que não possibilita sua exclusão do rol dos instrumentos processuais abstratos de defesa da ordem constitucional, haja vista que o sistema criado pelo legislador brasileiro lhe concedeu feição marcadamente objetiva. 
Gilmar Ferreira Mendes pondera, com acerto, que: 
“(...) no caso brasileiro, o pleito a ser formulado pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará – pelo menos de forma direta – sobre a proteção judicial efetiva de posições específicas por eles defendidas. A exceção mais expressiva reside talvez na possibilidade de o Procurador Geral da República, como previsto expressamente no texto legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a arguição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista a proteção de situação específica. Ainda assim, o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados, muito provavelmente, ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo e não para a proteção judicial efetiva de uma situação singular”.5 
Por conseguinte, havendo descumprimento de preceito fundamental por ato do Poder Público, decorrente de controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição, a arguição, embasada na lesão ou na ameaça de lesão, só pode ser proposta por um dos detentores da legitimidade ativa relacionados no art. 103 da CF, perante o Supremo Tribunal Federal, segundo prevê o art. 2º da Lei 9.882/1999.
É preciso que se diga que a previsão de um novo mecanismo de controle abstrato de constitucionalidade não vem extirpar as demais formas já previstas para tanto, tampouco substituir o controle difuso, mas é impossível deixar de reconhecer que esta última hipótese propicia um modo de esvaziá-la, na medida em que, proferida a decisão no seio de uma arguição, esta incidirá sobre os diversos processos em curso.
Tem razão Gilmar Ferreira Mendes quando pondera que a Constituição de 1988 deu ênfase ao modelo concentrado: 
“(...) uma vez que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes passaram a ser submetidas ao STF, mediante processo de controle abstrato de normas. A ampla legitimação, a presteza e a celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, constituem elemento explicativo de tal tendência”.6 
É com esse mesmo sentido que se deve entender a posição defendida por Celso Bastos e Alexis Galiás de Souza Vargas, quando, ao analisarem a arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta perante o Supremo Tribunal Federal, afirmam que ela: 
“(...) faz uma ponte entre o controle concentrado e o difuso, uma vez que a decisão proferida incidirá diretamente sobre os diversos processos em curso. Com isso, permite-se antecipar o deslinde de uma questão jurídica que percorreria a via crucis do sistema difuso até chegar ao Supremo Tribunal Federal, para então, após decisão definitiva, ser comunicado o Senado Federal, que poderá suspender a eficácia da lei impugnada, para só então cessarem os efeitos da lei ou ato normativo inconstitucional”.7  
Assim, uma vez que permite decidir com eficácia vinculante e erga omnes, incide diretamente sobre os processos em curso.
Porém, a propositura da arguição liga-se ao descumprimento de preceitos fundamentais, fato que leva à necessidade de se entender qual o significado da expressão, o que, por usa vez, pode estar compreendido dentro do conceito de preceitos fundamentais decorrentes da Constituição.

1. Preceito fundamental


Como já foi visto, para estudar a arguição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no § 1º do art. 102 da CF, é preciso, inicialmente, compreender o sentido da expressão “preceito fundamental”, o que não foi aclarado nem em seu documento de origem, nem pelo legislador ordinário regulamentador, o que pode levar o intérprete a se debruçar sobre um raciocínio hierárquico para considerar as normas constitucionais.

Segundo De Plácido e Silva, o vocábulo “preceito” é derivado do latim praeceptum e exprime ordem, regra ou mandado que se deve observar. Na linguagem jurídica, é a expressão usada para designar a norma de conduta “imposta judicialmente, a uma pessoa, para que faça ou deixe de fazer certa coisa, sob cominação de pena pecuniária, se não cumpre o ordenado”.8 

Se por preceito deve-se entender o sentido de ordem, regra, comando, o vocábulo aqui analisado pode ser compreendido como sinônimo de norma, pois esta nada mais é do que um comando voltado para um comportamento, isto é, postula uma conduta que deve ser realizada. Logo, preceito quer dizer norma e, nesta situação, norma fundamental.

Maria Helena Diniz cita Alexandre Caballero para afirmar que é um fenômeno normal o da evolução dos conceitos. “Quanto mais manuseada uma ideia, mais ela fica revestida de minuciosos acréscimos, sempre procurando os pensadores maior penetração, maior exatidão”.9  

Com a falta de determinação legislativa, constitucional e ordinária do que se deve ter como preceito fundamental, a doutrina tem procurado buscar elementos para embasar a definição de seus caracteres, vale dizer, aqueles que não podem faltar por constituírem sua essência e, talvez assim, conceituá-lo, na medida em que a essência é apreendida num ato de intuição que parte de um dado concreto, sem a necessidade de recorrer a nenhuma norma para distingui-lo. Tal fato possibilita dizer que seu conceito é intuitivo, e que só poderá ser formulado a partir de uma opção quanto à sua essência ideal. 

Nossos doutrinadores têm emitido opiniões acerca do conceito de preceito fundamental e, para demonstrar tal afirmativa, procuraremos relacionar algumas opiniões sobre o assunto.

Para Alexandre de Moraes, “os preceitos fundamentais englobam os direitos e garantias fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais”. Fundamenta sua posição no objeto do recurso constitucional alemão, quando o Tribunal Constitucional analisa se houve desrespeito aos direitos fundamentais, consagrados nos arts. 1º a 19 da Lei Fundamental, ou seja: a proteção à dignidade da pessoa humana; os direitos de liberdade; a igualdade perante a lei; a liberdade de crença, de consciência e de confissão; o direito de livre expressão do pensamento; o matrimônio, família e igualdade de filhos naturais; o ensino; a liberdade de reunião; a liberdade de associação; o segredo de correspondência e de comunicação; a liberdade de circulação e permanência; a liberdade de escolha de profissão; o serviço militar e outros serviços obrigatórios e a escusa de consciência; a inviolabilidade de domicílio; o direito de propriedade, de sucessão e a previsão de expropriação; a socialização indenizável; a proteção contra perda de nacionalidade, extradição e o direito de asilo; o direito de petição; as hipóteses de perda e restrição dos direitos fundamentais e ainda outros que são assemelhados aos direitos fundamentais para a propositura do recurso constitucional, previstos nos arts. 20, item 4; 33; 38; 101; e 104 do mesmo diploma legal.

É oportuno rememorar que a arguição de descumprimento de preceito fundamental tem apenas alguma feição do recurso constitucional alemão (Verfassungsbeschwerde), pois, como bem observa Clémerson Merlin Clève, este não pode ser transplantado para o Brasil sem as devidas adaptações, mesmo porque aqui já existe o recurso extraordinário, que serve para aquela mesma finalidade.10  

André Ramos Tavares, ao examinar os preceitos fundamentais como objeto de proteção da arguição, parte da ideia de que o seu tratamento por meio de instrumento especial indica a sua fundamentalidade, admitindo que, com “uma mera proclamação jurídica de normas com superioridade hierárquica em relação às demais, a inspiração humana alcançou aquilo que se mostrara, até então, historicamente improvável: traçar valores supremos e perenes, que assumem uma importância ainda maior em relação às demais normas constitucionais, embora estejam vestidos também em roupagem constitucional”.11  

Admite, portanto, identidade entre preceito e norma e aceita que esta tanto pode veicular um princípio como uma regra, isto é, insere-se dentre os que, como nós, reconhecem que existe diferença entre princípio e regra constitucional, o que decorre da sua estrutura lógica e de sua intencionalidade. Dessa maneira, o que se reconhece é apenas uma graduação na consistência ou amplitude do conteúdo do comando normativo, pois tanto as regras como os princípios são ordens imperativas constitucionais, que apresentam diferença no grau de abstração, o que se reflete na sua capacidade de aplicação.

Para Robert Alexy, tanto as regras como os princípios podem ser concebidos como normas. As regras são normas que ordenam uma consequência jurídica definitiva, ou seja, quando cumprem determinadas condições, ordenam, proíbem ou permitem algo definitivamente ou autorizam que se faça algo. Assim, são chamados de mandados definitivos, são normas que são ou não satisfeitas, e, nesse sentido, as regras contêm determinações fáticas e juridicamente possíveis, não necessitando de ponderação. Sua forma de aplicação característica é a subsunção. Já os princípios são mandados de otimização, são normas que ordenam que algo se realize na medida do possível, segundo as possibilidades fáticas e jurídicas, o que quer dizer que os princípios podem realizar-se em diferentes graus, em virtude da necessidade de ponderá-los frente à observância de outros princípios, o que quer dizer que a convivência entre eles pode ser conflitual, o que não impede que sejam contemporizados, fato esse que, muitas vezes, já é satisfeito pela própria Constituição.12 

Então, quando se fala em preceito, se está a referir tanto a um princípio como a uma regra constitucional, não se afirmando, por isso, que existam normas constitucionais de primeira ou segunda categoria.

O raciocínio que conduz ao reconhecimento de que são comandos constitucionais imperativos leva a identificar como diferença entre um princípio e uma regra a graduação existente na amplitude do seu conteúdo normativo, o que não se choca com a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando ensina que o princípio é “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” e, mais, quando diz que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade”. Tal colocação está repleta de acerto e oportunidade, mas isso só ocorre em virtude da consistência do conteúdo normativo, sem retirar ou diminuir o grau de sua imperatividade, ou seja, da obrigatoriedade da obediência de seus comandos por parte daqueles aos quais se dirigem, sejam eles pessoas individuais, coletivas ou os próprios órgãos do Poder Público.13 

Acerta G. Zagrebelski quando assevera que é importante, dentro do universo normativo, a distinção entre regras e princípios para compreender o modo de realização imperativa de uma e do outro, pois enquanto as regras estabelecem o que se deve ou não fazer, em determinadas circunstâncias, os princípios firmam orientações gerais a serem seguidas em todos os casos. Dessarte, um princípio tem uma capacidade expansiva muito maior do que uma regra, o que não afasta a necessidade de uma atividade ulterior para concretizá-lo em casos específicos.14 

Porém, a validade concreta dos princípios não é definitiva, mas fruto de um fato político, e isso porque a Constituição coloca apenas as linhas gerais e essenciais desses fatos e não destrói a liberdade do processo político, afirmando, no âmbito das proclamações constitucionais, a hierarquia de valores sempre renováveis, ao lado das possibilidades e responsabilidade dos sujeitos que com eles operam.15  

Ensina Agustin Gordillo: “[t]udo o que a Constituição concede com sua imperatividade suprema – direitos individuais, poderes públicos – tem-se o direito de fazer, e tudo o que a Constituição exige, tem-se o dever de cumprir”.16  De consequência, tanto as regras como os princípios previstos na Lei Fundamental de um ordenamento jurídico estão plasmados com a mesma natureza e força normativa. 

André Ramos Tavares sustenta que precisa ser afastada a ideia de que “preceito fundamental” é qualquer norma contida na Lei Fundamental, pois se a Constituição denomina determinada categoria de “preceitos fundamentais”, o que só faz em um único momento ao tratar da arguição de seu descumprimento, deve haver diferença entre eles e os demais preceitos constitucionais. Assim, quando diz que são fundamentais, refere-se àqueles que se apresentam como imprescindíveis, os que integram uma categoria de normas constitucionais de especial relevância para todo o sistema jurídico.17 

Outra não é a opinião de Daniel Sarmento quando aceita que, embora não exista hierarquia entre as normas que integram a Constituição, algumas se destacam mais do que outras, e menciona Celso Bastos e Alexis de Souza Vargas para corroborar que a arguição não está vocacionada a fiscalizar a lesão a qualquer dispositivo, mas tão somente aos princípios e regras basilares da Constituição.18  

Por sua vez, Gilmar Ferreira Mendes, depois de atestar que é muito difícil, a priori, reconhecer quais os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão para justificar o processo e julgamento da arguição, mesmo porque nem a Constituição nem o legislador ordinário quiseram assumir tal encargo, observa que, intuitivamente, alguns desses preceitos estão enunciados de maneira explícita no texto constitucional.19 

Tem razão Gilmar Ferreira Mendes quando identifica como preceitos fundamentais as cláusulas pétreas, as quais estabelecem os limites materiais ao exercício do poder reformador. Ora, se nem o legislador constituinte reformador pode tocar nessas matérias por representarem as colunas mestras do ordenamento jurídico brasileiro, é lógico inferir que tais preceitos não podem, com muito maior razão, ser descumpridos por qualquer ato do Poder Público, e só um “estudo da ordem constitucional em seu contexto normativo e em suas relações de interdependência” permite identificar as disposições essenciais para a preservação dos princípios basilares que integram os preceitos fundamentais em determinado sistema. Dessa forma, coerente deduzir que a lesão não se configurará apenas quando se verificar a possível afronta a preceitos fundamentais, mas também quando concernente a disposições que atribuam densidade normativa e significado a esses preceitos.20 

A caracterização de um preceito como fundamental só estará completa quando do exercício de uma atividade ulterior para concretizá-lo em casos específicos. Essa tarefa concretizadora importa em uma atuação que compete, primeiramente, ao legislador, a quem cabe desenvolver a potencialidade dos preceitos em relação a casos específicos, bem como ao Judiciário, que terá que potencializá-lo perante o caso concreto, e, ainda, ao administrador, o que não impede que possa ser realizada objetivamente, quando então terá eficácia direta, porque conduz a resultados obrigatórios em um contexto operativo já definido, de tal sorte que como tais poderão ser consideradas todas as normas constitucionais, desde que seu descumprimento venha a afrontar um dos itens do § 4º do art. 60 da CF.

Assim, a Constituição oferece um conteúdo mínimo à expressão preceito fundamental, o que pode ser percebido, por exemplo, quanto às cláusulas pétreas e seus desdobramentos, isto é, quando, ao proteger a Federação, são elencados princípios sensíveis que, uma vez desobedecidos, acarretam a intervenção federal ou estadual, conforme determinam os princípios fundamentais do Estado brasileiro e os norteadores das relações internacionais. 

Dentro desse enfoque, revela-se o bom senso de Walter Claudius Rothenburg quando pergunta: 

“Fez bem o constituinte em não estabelecer desde logo quais os preceitos que, por serem fundamentais, poderiam ser tutelados pela arguição de descumprimento de preceito fundamental? E o legislador, deveria tê-lo seguido? Sim, agiram ambos com acerto; somente a situação concreta, no momento dado, permitiria uma adequada configuração do descumprimento a preceito fundamental da Constituição. Qualquer tentativa de prefiguração seria sempre parcial ou excessiva; e a restrição seria agravada pela interpretação restritiva que um rol taxativo recomenda. O custo está na dificuldade de reconhecimento, que implica certa dose de discricionariedade do intérprete/aplicador, o que é inafastável em sede de jurisdição constitucional”.21  

É nessa perspectiva que se deve concluir, seguindo as lições proferidas com inteligência e clareza pelo Min. Oscar Dias Corrêa: 

“Cabe exclusiva e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, porque, promulgado o texto, é ele o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obedientes ao único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los”.22 

Sendo a Constituição a Lei Fundamental do Estado e da sociedade, seus preceitos fundamentais reportam-se ao Estado Democrático de Direito e às estruturas básicas da sociedade. Todavia, é forçoso reconhecer que nem todos os sustentáculos das estruturas do Estado Democrático de Direito e da sociedade amoldam-se ao perfil de preceitos fundamentais. Portanto, fixá-los com precisão é tarefa própria do Supremo Tribunal Federal.

Se a Lei 9.882/1999 não definiu o que se deve ter como preceito fundamental, impossível deixar de registrar a observação enfocada por Sérgio Resende de Barros, no sentido de que, se em nenhum de seus artigos, parágrafos e incisos exprimiu o significado do termo, a Lei Maior, por seu turno, determinou a necessidade de o preceito fundamental ser decorrente desta Constituição, exigência essa que também não foi prevista na referida lei. Aparentemente, tal supressão fez com que essa exigência fosse afastada, não dando oportunidade de entendê-la como algo subtendido, o que leva a admitir o fato de que, de certo modo, houve, por parte da lei, alteração do conteúdo estabelecido pela Carta Magna.23 

O certo é que, ao aludir a preceito fundamental decorrente desta Constituição, nossa Lei Fundamental inclui neste contexto não só aquilo que está expresso, mas, também, o que está implícito, e assim, em decorrência do silêncio legislativo, surge a necessidade de um trabalho interpretativo, empreitada que compete ao nosso Pretório Excelso.


2. Objeto e finalidade

2.1. Objeto


Prevista a competência do Supremo Tribunal Federal para julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nos termos do art. 102, § 1º, da CF, a partir da regulamentação prevista na Lei 9.882, de 03.12.1999, instaura-se, em nosso ordenamento jurídico, mais um tipo de ação, que integra o chamado processo objetivo, voltada para garantir a supremacia da Constituição.

De acordo com o art. 1º da mencionada lei, a nova ação tem por objeto “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” e, mais, “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.

Dessa forma, a arguição pode ser utilizada para realizar tanto um controle preventivo, para evitar a lesão, como repressivo, para reparar a lesão de descumprimento de preceito fundamental. Em outros termos, o Supremo Tribunal Federal, no curso de uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e no uso de sua titularidade de guardião da Constituição Federal, poderá evitar ou reparar lesões a tais preceitos, quando causados por condutas ou comportamentos do Poder Público, o que será dedutível de uma relação normativa e valorativa.

Outra não é a lição de Jorge Miranda que, ao identificar que a constitucionalidade ou inconstitucionalidade designa conceitos de relação, afirma: 

“Não se trata, porém, de relação de mero caráter lógico ou intelectivo. É essencialmente uma relação de caráter normativo e valorativo, embora implique sempre um momento de conhecimento. Não estão em causa simplesmente a adequação de uma realidade, de um quid a outro quid, ou a descorrespondência entre este e aquele acto, mas o cumprimento ou não de certa norma jurídica”.24  

A expressão “descumprimento” é aqui empregada no sentido de qualquer desobediência a um preceito fundamental, ou seja, tomada a Constituição como Lei Fundamental do sistema jurídico, tudo que não estiver conforme com aquilo que propugna pode estar involucrado no conceito de descumprimento, por estar desconforme, ser incompatível com o que ordena ou determina.

É interessante anotar que a vontade constituinte, ao prever, no § 1º do art. 102 da CF, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, não fez qualquer referência ao fato de que estaria ligada apenas à atuação estatal, o que poderia dar lugar a admiti-la, também, em relação aos atos não estatais. Porém, a Lei 9.882/1999, ao regulamentar esse novo instrumento, restringiu seu universo aos atos do Poder Público.


2.2. Atos comissivos e omissivos


Considerando que tal ação realiza a fiscalização abstrata da concordância dos atos do Poder Público com os preceitos fundamentais da Constituição, parece não haver dúvida quanto à questão de que essas condutas ou comportamentos podem decorrer de uma ação ou omissão do Poder Público que ofenda preceitos fundamentais da Constituição Federal, isto é, pode haver atos comissivos ou omissivos tanto do Legislativo, como do Executivo e do Judiciário, enfim, de todos os entes parciais que compõem a Federação brasileira, caracterizadores de um descumprimento de preceitos fundamentais por ação e por omissão. 

Nesta trilha, Celso Ribeiro Bastos e Alexis Galiás de Souza Vargas ensinam: “Tem-se, pois, que, quando se tratar de ato, ou omissão, capaz de atingir negativamente estes valores basilares, poderá ser provocado o Supremo Tribunal Federal para decidir sobre a questão constitucional, exclusivamente”.25 

No entanto, se a lei trata de forma clara dos atos comissivos, isso já não acontece em relação aos atos omissivos, melhor dizendo, quando o descumprimento advém da inércia ou silêncio de qualquer órgão do Poder Público, que viola o preceito constitucional fundamental por não praticar o ato exigido. 

A inconstitucionalidade por omissão passa a integrar, em nosso sistema jurídico, o controle abstrato de constitucionalidade a partir da Constituição de 1988, que o previu no § 2º do seu art. 103. Até então só se conhecia o controle da constitucionalidade por ação, quando se dizia que inconstitucional é a lei ou ato normativo que ofende, no todo ou em parte, a Constituição, ou seja, quando da atuação dos órgãos do Poder.

Essa foi, talvez, uma das maiores falhas cometidas por nosso legislador constituinte originário e reformador, bem como pela própria Lei 9.882/1999, ao regulamentar esse novo tipo de ação direcionada para a proteção e respeito à nossa Lei Fundamental: ignoraram que o não cumprimento da Constituição pode advir de uma ação, quando os órgãos destinatários do poder atuam em desconformidade com as regras e princípios constitucionais, assim como de uma omissão, representada pela inércia ou silêncio, quando os órgãos permanecem inertes e não cumprem as normas necessárias para a aplicação e concretização dos preceitos fundamentais da Lei Maior.

É certo que a violação da Constituição por ação tem sido alvo de estudos e tratamento jurídico mais aprofundado, mas tal fato não autoriza a desconhecer a importância do seu descumprimento por omissão, especialmente quando se reconhece que a Lei Magna do ordenamento jurídico representa a vontade política do povo, na medida em que manifesta a consciência e os ideais de uma sociedade. Nesse sentido José Afonso da Silva afirmou: “Ter uma Constituição promulgada e formalmente vigente impende atuá-la, completando-lhe a eficácia para que seja totalmente cumprida”.26 

Assim, a Constituição só será efetivamente cumprida quando da atuação dos poderes constituídos, a fim de preencher os espaços deixados à sua atuação, o que pode significar tanto a edição de uma lei, como a realização de qualquer medida necessária a sua efetiva aplicação e cumprimento.

Seguindo o pensamento de Canotilho, é possível classificar os preceitos fundamentais em preceitos constitucionais negativos, que impõem um limite negativo, traduzidos como “a obrigação de não emanar atos contrários à Constituição”, e preceitos constitucionais fundamentais positivos, que prescrevem a adoção de medidas tendentes a fazer atuar a Constituição.27 

Ainda segundo Canotilho, a não atuação significa um não fazer algo a que estava obrigado pela Constituição: não se trata “apenas de um simples negativo ‘não fazer’, trata-se, sim, de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado”.28  

O art. 1º da Lei 9.882/1999, ao prever que a arguição será proposta perante o Supremo Tribunal Federal e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, não colide com o sentido da omissão. Como se sabe, todos os órgãos que exercem as funções do Estado podem apresentar comportamentos omissivos que venham a descumprir preceitos constitucionais fundamentais. Isso acontece com a função legislativa, quando normas constitucionais não exequíveis por si não venham a ser integradas pelo legislador, o que impede a sua efetiva aplicação. Também ocorre com a função administrativa, quando, por exemplo, o Executivo recebe da Constituição a competência para expedir regulamentos visando executar leis integrativas e não os expede, o que pode ser denominado de omissão indiretamente violadora de preceitos fundamentais, ou, ainda, quando a não expedição do regulamento impede a execução dessas leis e, consequentemente, a aplicação e realização do texto constitucional; e com a função judiciária, que tem como exemplo mais grave a denegação da justiça quando há retardamento da solução dos casos levados a sua apreciação.

A nossa Constituição Federal, no art. 103, admite que a omissão inconstitucional pode estar vinculada com o não agir dos órgãos dos três Poderes constituídos, e ressalta, ao tratar da inércia do órgão administrativo, que, uma vez declarada pelo Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade do comportamento omissivo, este terá trinta dias para agir e sanar a inércia (§ 2º).

Dentro do paralelo que pode ser estabelecido entre a ação de inconstitucionalidade por omissão e a arguição de descumprimento de preceito fundamental por omissão, é possível reconhecer que, em ambas hipóteses, esta pode decorrer tanto da inércia total, quando inexiste a emanação de ato do Poder Público tendente ao atendimento das imposições constitucionais, considerada como omissão absoluta, como, também, de uma atuação deficiente, quando os atos que propõem viabilizar a realização de dispositivos constitucionais favorecem alguns grupos em prejuízo de outros ou os excluem, total ou parcialmente, de forma expressa, configurando, assim, aquilo se conhece como omissão relativa.

Na mesma linha de raciocínio, vê-se que as duas ações em comento referem-se ao ato em tese, sem a necessidade de estarem relacionadas com um caso concreto. O que se visa é o restabelecimento da harmonia do sistema, com o devido respeito à Lei Fundamental que, pela omissão, está impedida de ser aplicada em toda sua extensão.

Não obstante a evidência dos pontos em comum, trata-se de duas ações autônomas e com objetos diversos, embora com a mesma titularidade para sua propositura: conforme reza o art. 2º da Lei 9.882/1999, “podem propor arguição de descumprimento de preceito fundamental: I – os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade”. Isso na medida em que foi vetado o inc. II, que previa a legitimidade do interessado, o qual, segundo o § 1º, só terá tal faculdade mediante representação, quando “solicitar a propositura de arguição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo”. 

Reconhecendo que existem pontos de semelhança entre a ação direta de inconstitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental, é preciso dizer que não teria sentido nossa Lei Fundamental prever dois tipos de ações distintas para um só objetivo, ou seja, para a fiscalização abstrata da constitucionalidade. Logo, infere-se que, se são instrumentos processuais diferentes, não é possível estender para a arguição de descumprimento fundamental por omissão a sistemática prevista pela Constituição Federal para a inconstitucionalidade por omissão. 

A propositura perante o Supremo Tribunal Federal da alegação de descumprimento de preceito fundamental por omissão necessita de previsão expressa na Constituição ou na lei, para que se estabeleçam o processo e os efeitos de sua decisão. A própria Lei 9.882/1999 poderia ter criado mais esse mecanismo de defesa e garantia de observância dos preceitos fundamentais decorrentes da Constituição, na medida em que o próprio legislador constituinte lhe delegou competência para regulamentar o novel instituto. 

É importante enfatizar que a previsão da arguição de descumprimento de preceito fundamental no sistema pátrio foi menos generosa do que a do recurso de amparo no sistema jurídico argentino, pois este o admite contra toda ação ou omissão de autoridades públicas ou de particulares, que, de forma atual e iminente, lesione, restrinja, altere ou ameace direitos e garantias reconhecidos pela Constituição, pelos tratados e pelas leis.29  

Não se trata de estender por via legal a competência do Supremo Tribunal Federal, pois isso não seria possível, posto que foi taxativa e exaustivamente prevista pelo texto constitucional, mas, apenas, de regulamentar, nos moldes estabelecidos pelo constituinte, os efeitos da arguição de descumprimento de preceito fundamental por omissão do Poder Público, uma vez que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade por omissão restringem-se a dar ciência ao poder competente, efeitos esses que são de pouca ou nenhuma valia jurídica.


3. Caráter da arguição


A arguição, como forma de controle concentrado de constitucionalidade, é cabível quando o ato do Poder Público é analisado abstratamente, sempre que houver a violação de um preceito constitucional fundamental.

Diante de tal afirmativa pode surgir uma indagação: tratando-se de fiscalização abstrata de constitucionalidade, cuja competência para julgar e decidir é reservada, pela Constituição, ao STF, pode o mesmo objeto ensejador de uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental ensejar, também, a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade? O que fazer quando um mesmo fato possibilita a superposição de dois institutos com finalidades idênticas?

Inicialmente, é preciso reconhecer que, de acordo com a previsão constitucional, ela deve atrair para si todos os casos de descumprimento de preceito fundamental decorrentes da atual Constituição, o que a limita frente ao universo da ação direta de inconstitucionalidade. Todavia, essa assertiva não pode dar margem para o argumento da prevalência de um instituto sobre o outro, pois ambos são previstos constitucionalmente.

É nesse aspecto que André Ramos Tavares considera que “a arguição emerge como instituto confeccionado especificamente para conferir proteção aos preceitos fundamentais, destacando-o daquela proteção realizada para as demais normas constitucionais”.30 

A Lei 9.882/1999, no § 1º de seu art. 4º, disciplinou: “Não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”. Assim, a lei regulamentadora a que se refere o art. 102, § 1º, da CF, vedou a possibilidade da arguição sempre que houver outro meio eficaz para sanar a lesividade.

Zeno Veloso procurava ressair, antes do advento da Lei 9.882/1999, que a lei a que se refere o art. 102, § 1º, da CF e que lhe dará concretude, além de estabelecer o procedimento da arguição, indicará os casos em que poderá ocorrer, “evidentemente, num campo residual, numa situação especial e excepcional, quando tenham sido esgotadas as vias normais de controle jurisdicional de constitucionalidade”.31  

Este é, igualmente, o parecer de Alexandre Moraes, quando afirma que o cabimento da arguição não exige a inexistência de outro mecanismo jurídico, mas, sim, que seu prévio esgotamento tenha demonstrado a falta de efetividade, “ou seja, sem que tenha havido cessação à lesividade a preceito fundamental”, já que a lei não previu exclusividade para a sua utilização, mas sua subsidiariedade.

Tais reflexões têm sua utilidade, porque uma leitura menos avisada pode levar a pensar que seu uso só é admissível quando não haja outra medida judicial eficaz para sanar a lesividade, o que reduziria o instituto a uma quase inutilidade. Contudo, é preciso observar que a Lei Fundamental, ao estabelecer a necessidade de criação de lei regulamentadora, não autorizou que se pudesse negar ou destruir aquilo que já foi constitucionalmente determinado.

A melhor exegese parece ser a que desconhece o caráter residual ou subsidiário da arguição, reconhecendo seu status próprio, de instrumento reservado para resguardar a observância de preceitos fundamentais, o que lhe confere a preferência para tutelá-los, e isso pela impossibilidade de o descumprimento ser sanado por outros meios processuais de controle objetivo previstos em nossa Lei Fundamental.

Porém, não há como deixar de observar que, se inexiste de per si um conceito ou um rol de preceitos fundamentais definido, legal ou constitucionalmente capaz de dar ensejo à propositura da arguição, surge a possibilidade de sobreposição de institutos com a mesma finalidade, ou, em outros termos, de processos objetivos voltados para idêntico fim.

Depois de ressaltar que, à primeira vista, pode parecer que só no caso de absoluta inexistência de qualquer meio eficaz para afastar a lesão poderia ser empregada, de forma útil, a arguição, Gilmar Ferreira Mendes conclui que: 

“(...) tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da arguição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, ou, ainda, a ação direta por omissão, não será admissível a arguição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata, há de se entender possível a utilização da arguição de descumprimento de preceito fundamental”.32 

Tal posicionamento merece atenção, pois, ainda que o caso seja de arguição incidental, a finalidade da arguição é a tutela da ordem jurídica e não a defesa de interesses concretos.

Não é descabido recordar, neste momento, que um dos motivos de sua criação foi o de antecipar as decisões do STF sobre questões constitucionais relevantes, que, até o seu advento, só seriam examinadas por nossa mais alta Corte de Justiça após longas batalhas judiciais, o que não deve ser entendido com o sentido de obstar o controle incidental de constitucionalidade em um processo comum, que tem por objeto um caso concreto.

Como pondera Daniel Sarmento, considerando que foi inspirado pelo recurso constitucional germânico, “na Alemanha, a doutrina é assente no sentido de que, quando a matéria versada no recurso constitucional for de interesse geral, não exige prévio esgotamento das instâncias ordinárias, o que representa uma exceção ao princípio da subsidiariedade do Verfassungsbeschwerde”. Conforme observou Klaus Schlaich, citando decisão da Corte Constitucional em matéria fiscal, nessas hipóteses a exaustão das vias judiciárias não é exigida, porque “a decisão esperada do recurso constitucional, além do caso concreto, irá esclarecer a situação jurídica de uma multiplicidade de casos que se apresentam de modo idêntico”.  Não obstante, como salienta Hans Rupp, “o Tribunal Constitucional alemão utiliza raras vezes desse artifício, pois só o esgotamento das vias judiciais é que pode oferecer a possibilidade de conhecer as peculiaridades do caso concreto posto nos tribunais antes de formar a sua posição”.34 

No Brasil, os controles concentrado e difuso convivem com a possibilidade de interposição, perante o Supremo Tribunal Federal, do próprio recurso extraordinário. Assim, embora o caput do art. 4º admita o indeferimento liminar da inicial quando não for o caso de arguição, por faltar algum dos requisitos prescritos na Lei 9.882/1999, o referido diploma legal previu, no art. 1º, parágrafo único, a denominada arguição incidental, sendo patente que, aqui, sua admissão só se dará quando existir relevante interesse público, isto é, um grande número de processos idênticos, que necessitam de solução objetiva da questão constitucional, pois as ações ordinárias e até os recursos extraordinários não são capazes de decidir a polêmica geral em torno da constitucionalidade de um ato normativo. Portanto, o interesse público aqui entendido não concerne à solução do caso concreto, mas à apreciação objetiva, geral, abstrata da controvérsia constitucional. 

O Min. Sepúlveda Pertence, na ADC 1, teve a ocasião de observar, analisando a convivência do sistema difuso e concentrado para o controle da constitucionalidade, que: 

“(...) a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos que, inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará, se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme, ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centena de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito”.

Dessa feita, diante do caráter objetivo da arguição, quando se fala em subsidiariedade, deve-se ter em vista os demais processos objetivos previstos em nosso sistema constitucional, porque o recurso extraordinário, na prática, não se revela plenamente eficaz para a solução geral da controvérsia, em razão do limitado resultado do julgado nele proferido, ou seja, pelo efeito causado entre as partes que lhe deram motivo.

O Supremo Tribunal Federal, dentro do enfoque ora examinado, teve como manifestar, por diversas vezes, o seu entendimento quanto à oportunidade de cabimento da arguição. Na ADPF 3, não conheceu da arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pelo Governador do Estado do Ceará, contra ato do Tribunal de Justiça do mesmo Estado, sob o argumento de que “é incabível a arguição de descumprimento de preceito fundamental quando ainda existente medida eficaz para sanar a lesividade”.

Na ADPF 4, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista, os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão e Carlos Velloso entenderam ter lugar a arguição por considerarem que a medida judicial existente – ação direta de inconstitucionalidade por omissão – não seria, em princípio, eficaz para sanar a alegada lesividade, fato que propiciou o adiamento do julgamento, tendo em vista o empate na votação.

Devido ao caráter objetivo da arguição, vê-se que a Lei 9.882/1999, ao disciplinar o novo instrumento processual, no art. 4º, § 1º, determinou que ele não será admitido quando houver qualquer outro meio eficaz para sanar a lesividade. É aí que se coloca a hipótese do controle abstrato de constitucionalidade do direito municipal e distrital em face da Constituição Federal, perante o Supremo Tribunal Federal, posto que tal fiscalização não tem assento na ação direta de inconstitucionalidade, por ação ou omissão, e na ação declaratória de constitucionalidade. 

Por sua vez, outras chances para sua propositura decorrem de postura da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tais como a que tange à análise do direito ordinário pré-constitucional. Nossa Lei Fundamental de 1988 não tratou expressamente da questão relativa à constitucionalidade do direito pré-constitucional, porém nossa mais Alta Corte de Justiça, em decisão proferida na ADIn 2-1-DF, com a relatoria do Min. Paulo Brossard, defendeu: 

“A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional, na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração”.35 

Enriquecendo o rol de hipóteses de cabimento da arguição que decorre de posicionamento jurisprudencial, merece ser elencada a que diz respeito ao controle concentrado e abstrato de constitucionalidade de atos secundários dos regulamentos. 

Tal atitude, como bem observa Walter Claudius Rothenburg, pode levar ao reconhecimento de que “uma das principais intenções do legislador da arguição de descumprimento de preceito fundamental foi superar a jurisprudência restritiva que se formou em torno do objeto da ação direta de inconstitucionalidade”.36 


4. Atos do Poder Público municipal


Buscando caracterizar a especialidade da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental nos moldes previstos por nossa Lei Maior, e depois de já haver aceito que “descumprir” é expressão que abrange um universo mais amplo do que aquele coberto pela ideia de inconstitucionalidade, pelo fato de a arguição possibilitar a fiscalização de qualquer descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição por ato do Poder Público, é preciso lembrar que a Lei Fundamental do Estado brasileiro, ao tratar, no art. 102, I, a, da ação direta de inconstitucionalidade – fiscalização abstrata que integra o controle concentrado, competência originária do Supremo Tribunal Federal –, disciplina que só a lei ou ato normativo federal ou estadual pode motivar tal ação e que só a lei ou ato normativo federal pode dar ensejo à propositura da ação declaratória de constitucionalidade.

Contudo, é necessário registrar que, se o universo da arguição, por um lado, é mais amplo do que o reservado à ação direta de inconstitucionalidade, de outro, é mais restrito, uma vez que o descumprimento se liga apenas a preceitos fundamentais, enquanto a ação direta pode ser proposta por violação de qualquer dispositivo constitucional. Assim, pode-se concluir que os objetos da ação direta de inconstitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental não se confundem.

Quando o art. 1º da Lei 9.882/1999 declara que podem ser objeto da arguição todos os atos do Poder Público, quer dizer que podem dar ensejo a esse novo instrumento de fiscalização abstrata: os atos normativos municipais, inclusive os anteriores à Constituição, os atos administrativos e os atos de execução praticados pelo Poder Público, até as políticas públicas e os atos jurisdicionais, desde que descumpram preceitos constitucionais fundamentais. 

É preciso ressaltar, ainda, que a jurisprudência de nossa mais alta Corte de Justiça já havia se pronunciado, por diversas vezes, no sentido de que só poderiam ser objeto do controle concentrado e abstrato pelo Supremo Tribunal Federal as leis ou atos normativos federais e estaduais, isto é, atos primários, decorrentes diretamente da Constituição, tais como as leis, os regimentos internos das casas legislativas e dos tribunais e as medidas provisórias.

Nessa relação não estava inserido o controle de constitucionalidade, em tese, em face da Constituição Federal, das leis e atos normativos municipais, tampouco os regulamentos, pois, a respeito, o Pretório Excelso já havia sedimentado posição no sentido de que as normas secundárias, em virtude da necessidade de estarem fundamentadas em outras normas, além de na Constituição, não poderiam ensejar a fiscalização abstrata de constitucionalidade, na medida em que haveria sempre uma questão prévia de legalidade.

É de conhecimento geral que, até o advento da Lei 9.882/1999, não era possível o controle abstrato da constitucionalidade das leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal, sujeitando-se apenas ao controle difuso. O controle abstrato ficava restrito em face das Constituições estaduais, realizado pelos Tribunais de Justiça, conforme disciplina prevista no art. 125, § 2º, de nossa Lei Fundamental. Porém, sendo a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição uma forma de controle concentrado de constitucionalidade sobre atos do Poder Público, normativos ou não, encontram-se aí inseridos os atos de todos os entes federativos parciais que compõem a Federação brasileira. 

Agora o controle abstrato das leis municipais frente às normas constitucionais federais – quando constituam preceitos fundamentais – pode ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal. É esclarecedora a lição de Celso Bastos e Alexis Galiás de Souza Vargas, ao assegurarem que isso está claro pelo teor do art. 1º da lei, isto é, ao fazer referência a “'ato do Poder Público’, sem restrições categóricas, e dispor de maneira expressamente exemplificativa que também caberá a arguição de descumprimento de preceito fundamental diante de ‘lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição’. Com isso, fica afastada qualquer interpretação tendente a restringir os atos abarcados pela arguição de descumprimento, tal qual se operou perante a ADIn”.37 

A simples leitura do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/1999 propicia a aceitação de que ao Supremo Tribunal Federal cabe exercer o controle abstrato das leis ou atos normativos municipais frente à Constituição Federal, ou seja, controlar a produção normativa do Legislativo do Município, e isso desde sua lei orgânica até suas leis ordinárias, inclusive o regimento interno da Câmara Municipal.

Deve-se registrar a observação feita por Gilmar Ferreira Mendes que, ao admitir a possibilidade de controle de constitucionalidade do direito municipal no âmbito desse processo, afirma: 

“Ao contrário do imaginado por alguns, não será necessário que o Supremo Tribunal Federal aprecie as questões constitucionais relativas ao direito de todos os Municípios. Nos casos relevantes, bastará que decida uma questão-padrão com força vinculante. Se entendermos, como parece recomendável, que o efeito vinculante abrange os fundamentos determinantes da decisão, poderemos dizer, com tranquilidade, que não apenas a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade no município ‘A’, mas toda e qualquer lei municipal de idêntico teor não mais poderá ser aplicada”.38 

Mas é oportuno perguntar: ao disciplinar que terá como objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, o legislador permite considerar que se encontram aí incluídos os atos não normativos, em outras palavras, todos os atos do Poder Público municipal que descumpram preceito fundamental decorrente da Constituição Federal?

A leitura do dispositivo legal elencado permite aceitar que, sendo a arguição uma forma de fiscalização abstrata integrante do sistema concentrado de controle da conformação dos atos do Poder Público em face da Constituição Federal, estão incluídos neste panorama todos os atos normativos e os não normativos que compõem a Federação brasileira. Portanto, o instituto atinge todos os atos do Poder Público municipal, sejam eles normativos ou não.39  

O fato do art. 102, I, a, não ter feito referência a atos não normativos “não significa a impossibilidade de tais actos violarem diretamente a Constituição”. A forma de controle abstrato previsto no citado artigo deixava de lado a fiscalização da constitucionalidade de “actos de aplicação” do direito praticados pelo Executivo e “actos de realização do direito decorrentes do Judiciário”. As agressões à Constituição produzidas pelos atos administrativos ou “eram remediadas através de instrumentos de controlo não jurisdicionais da tutela administrativa, controlo parlamentar, responsabilidade da administração, ou atacadas perante as jurisdições ordinárias ou administrativas”, por meio de um controle judicial autônomo, diverso daquele próprio para a fiscalização de constitucionalidade dos atos normativos.40 


5. Atos normativos secundários: regulamentos


Até a criação da Lei 9.882/1999, nosso ordenamento jurídico não previa o controle abstrato de constitucionalidade dos atos normativos secundários, isto é, dos regulamentos, atos normativos do Executivo, na medida em que não poderiam dar lugar à propositura de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade, caracterizadoras do típico processo objetivo. Segundo o Supremo Tribunal Federal, em tais casos, a questão se cinge a atos normativos secundários, ou seja, não primários, que configuram hipóteses de ilegalidade ou, ainda, de inconstitucionalidade indireta, por não haver violação direta da Constituição. 

O Min. Celso de Mello, ao relatar a ADIn 1.347-5, considerou: 

“Se a instrução normativa, em decorrência de má interpretação das leis e de outras espécies de caráter equivalente, vem a positivar uma exegese apta a romper a hierarquia normativa que deve observar em face desses atos estatais primários, aos quais se acha vinculada por um claro nexo de acessoriedade, viciar-se-á de ilegalidade – e não de inconstitucionalidade –, impedindo, em consequência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. Precedentes: RTJ 133/69; RTJ 134/559”.41 

E mais: 

“O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que se acha materialmente vinculado poderá configurar insubordinação administrativa aos comandos da lei. Mesmo que desse vício jurídico resulte, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-ia em face de uma situação meramente reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada”.42 

Vê-se com acerto, dentro da realidade já aqui apontada, Clèmerson Merlin Clève, em seu estudo sobre a “fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro”, afiançar que o regulamento: 

“(...) pode ofender a Constituição, não apenas na hipótese de edição normativa autônoma, mas também quando o exercente da atribuição regulamentar atue inobservando os princípios da reserva legal, da supremacia da lei e, mesmo, o da separação dos poderes. É incompreensível que o maior grupo de normas existentes num Estado caracterizado como social e interventor fique a salvo do contraste vantajoso operando por fiscalização abstrata. Não seria demais, mantida pelo STF a sua jurisprudência, cogitar-se da criação de um processo objetivo de controle da legitimidade da normativa regulamentar”.43 

Jorge Miranda reconhece que tanto a inconstitucionalidade como as ilegalidades caracterizam violações de normas jurídicas por atos do Poder Público, o que acontece quando infringem a Constituição, a lei ou qualquer outro preceito por ele próprio editado, desde que a ele fiquem necessariamente adstritos. “Não divergem de natureza, divergem pela qualidade dos preceitos ofendidos.” Se estes constarem da Constituição, o ato será inconstitucional; se tais requisitos se encontrarem na lei, o seu desrespeito os tornará meramente ilegais. Entretanto, dificuldades podem surgir no que tange a esse raciocínio, quando se vê que o ato em parte busca seu fundamento na Constituição, como, por exemplo, quanto à forma e à competência, e, em parte, na lei, como, por exemplo, no que diz respeito ao conteúdo que deva ter.44  

Isso porque: 

“(...) a Constituição é a base da ordem jurídica, o fulcro das suas energias, o fundamento da actividade do Estado. Estatuto definidor da vida pública, o ordenamento estadual vai entroncar nas suas disposições e nos seus princípios; e, assim como as leis anteriores recebem da Constituição a possibilidade de subsistir, os actos posteriores não podem, directa ou indirectamente, opor-se aos seus comandos. Mas disto não decorre que se projecte com a mesma intensidade e a mesma extensão sobre todos os actos, nem que qualquer desarmonia se traduza em inconstitucionalidade relevante para efeito de arguição”.45  

Logo, tudo reside na medida em que se possa individualizar uma relação imediata e autônoma de desconformidade entre o ato e certo preceito constitucional fundamental.

Ao abordar a temática da fiscalização abstrata de constitucionalidade de regulamentos – atos normativos secundários de competência do Chefe do Executivo –, é ainda oportuno sublinhar a opinião de Hans-Jürgen Papier, citado por Gilmar Ferreira Mendes, que, ao reconhecer que qualquer inconstitucionalidade de lei restritiva de direito configura afronta aos direitos fundamentais, defende que: 

“(...) Administração e Justiça necessitam, para intervenção nos direitos fundamentais, de uma dupla autorização: além da autorização legal (gesetzliche Ermächtigung) para a intervenção, deve-se exigir também uma autorização constitucional para a limitação dos direitos fundamentais. (...) Então se afigura lícito admitir que, de uma perspectiva jurídico-material, os direitos fundamentais protegem contra restrições ilegais ou contra limitações sem fundamento legal levadas a efeito pelo Poder Executivo ou pelo Poder Judiciário. A legalidade da restrição ao direito de liberdade é uma condição de sua constitucionalidade; a violação à lei constitui uma afronta aos próprios direitos fundamentais”.46 

Na ADPF-MC 88, o Ministro Gilmar Mendes, na qualidade de relator concluiu que, no direito brasileiro: 

“(...) não há óbice para que se analise, em condições especiais, a constitucionalidade de atos regulamentares em face da Constituição, pois a questão constitucional, muitas vezes, é posta de forma tal que se afigura possível a ofensa aos postulados da legalidade e da independência e da separação de poderes, os quais merecem proteção suprema. (...) o tema revela-se complexo, especialmente em face dos limites – ainda não precisamente definidos – da argüição de descumprimento de preceito fundamental”.47  

Em boa hora a Lei 9.882/1999 instaura, no ordenamento jurídico nacional, o sistema de fiscalização abstrata dos atos do Poder Público em face da Constituição de 1988, enriquecido com a possibilidade do controle por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição, quando se vê que a intenção do referido diploma legal é submeter, ao controle concentrado e abstrato, as lesões à Lei Fundamental resultantes de outros atos que não só os normativos, pois estes, quando decorrentes de leis ou atos normativos federais e estaduais, ensejam a propositura de ações diretas. 

Logo, depreende-se que era necessário, para tornar mais eficiente o já complexo sistema de controle da constitucionalidade em nosso Estado, cuidar das lesões nascidas de outros atos do Poder Público, o que possibilita a propositura da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, conforme dispõe o já citado art. 1º da Lei 9.882/1999, pois, como bem observou Clèmerson Merlin Clève, seria incompreensível que o maior grupo de normas existente num Estado “fique a salvo do contraste vantajoso operado por via de fiscalização abstrata”.48 


6. Políticas públicas


As políticas públicas, como atos do Poder Público, podem servir de pretexto à propositura da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição. 

Para embasar tal assertiva é preciso, antes de qualquer coisa, que se tenha em mente um conceito do que se denomina como “políticas públicas”.

Quando se fala em política se está a referir à forma de atuação da autoridade pública, de modo a conduzir a Administração para a realização do bem comum.

Maria Garcia, depois de registrar o pensamento de Samuel H. Jameson quando ensina que “as diretrizes da Administração Pública de um país refletem a sua filosofia dominante de sociedade e de governo”, afirma: “Tais diretrizes constituem o que se denomina de políticas públicas, ou seja, princípio, ‘metas coletivas conscientes’ que direcionam a atividade do Estado, objetivando o interesse público”; ou, em outros termos, o atendimento dos interesses individuais compartilhados e coincidentes em um grupo majoritário, como sendo o interesse da comunidade, que deve prevalecer sobre os interesses individuais, sem, contudo, aniquilá-los, pois não pode ser tido como interesse público aquele em que o indivíduo não encontre ou não identifique a sua porção concreta de interesse individual.49  

O interesse público é definido pela ordem jurídica, isto é, pela Constituição e pelas leis, e seu atendimento é objetivo do Estado, é dever imposto pela ordem jurídica.

É dentro dessa linha que Celso Antônio Bandeira de Mello leciona, quando faz menção à função administrativa: quem a exerce está adstrito a satisfazer interesses públicos e, tendo em vista esse assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos, as prerrogativas da Administração não devem ser vistas como “poderes” ou como “poderes-deveres”. “Antes se qualificam e melhor se designam como ‘deveres-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações.”50  

O atendimento do interesse público, por meio de políticas públicas, é um dever que necessita exercitar-se em conformidade com o que dispuserem a Constituição e as leis. 

É certo que a Constituição de 1988 impõe ao Estado a realização de tarefas e fins, cujo atendimento passa a ser responsabilidade dos órgãos do Poder Público, e, só para citar alguns deles, neste sentido há determinação no art. 3º, quando trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil; no art. 196, ao prever que a saúde é direito de todos e dever do Estado; no art. 205, quando diz que a educação é direito de todos, é dever do Estado e da família; no art. 226, ao considerar que a família é a base da sociedade e preceituar que tem especial proteção do Estado; no art. 170, ao colocar a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego entre os princípios informadores da ordem econômica.

Os exemplos aqui mencionados são caracterizadores de normas constitucionais do tipo programáticas, que se referem a atos políticos sociais. O que as distingue não é só o fato de conterem uma linha de desenvolvimento, um programa, mas sua capacidade de aplicação, isto é, não dizem como se deve fazer ou decidir, mas em que direção se deverá procurar a decisão.51  

Canotilho, ao visualizar a possibilidade de ser adotada uma política pública que fira a Constituição, considera que em Portugal “poderíamos recortar como objeto do controlo da inconstitucionalidade (por acção ou por omissão) uma política sectorial (de saúde, do ensino, da habitação). Neste sentido a policy seria também um padrão de conduta (standard) constitucional definidor de um fim a alcançar através de realizações de tarefas económicas, sociais e culturais”. Pensa que “poder-se-ia afirmar que a nossa política de educação tem sido até agora inconstitucional porque passados mais de vinte anos ainda não foi criado um sistema público de educação pré-escolar (CRP, art. 74/2/c)”.52  

Canotilho ressalta, ainda, que a inconstitucionalidade de políticas públicas não é desconhecida naquele país, nem pela doutrina nem pela jurisprudência constitucional.  apolítica da saúde (taxas moderadoras), embora o objecto de controlo fosse aí reconduzido a normas e não a políticas. Voltou a abordar o assunto no Ac. 148/94 (Lei das Propinas). No plano doutrinário, salienta a efetiva vinculação jurídica pretendida através de normas, tarefa que implica que o objetivo ou programa é retirado da livre escolha, do desiderato ou do fim, pelos órgãos políticos, o que, em geral, é característica das escolhas políticas. Afirma que, assim como acontece no Brasil, o modesto relevo da inconstitucionalidade por omissão é prova das dificuldades do controle das políticas públicas.

Porém, deve-se observar, como faz o mestre português, que os juízes não podem se transformar em conformadores sociais e obrigar, jurisdicionalmente, os órgãos políticos a cumprirem determinados programas de ação, mas podem censurar, por meio do controle da constitucionalidade, os atos normativos que instrumentalizam uma política contrária à fixada nas normas-tarefa da Constituição.53 

O que se verifica é que a censura de leis ou atos federais e estaduais que instrumentalizam políticas que não atendem às tarefas e aos objetivos fixados na Constituição Federal podem dar lugar à propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade, por ação ou omissão, e, quando tal política integrar a competência municipal, as leis ou atos normativos que a instrumentalizem em discordância com o estabelecido na Lei Fundamental da Federação brasileira e, bem por isso, descumpram preceitos fundamentais dela decorrentes poderão dar lugar a uma arguição que será processada e julgada em abstrato pelo Supremo Tribunal Federal.

As políticas públicas podem ser instrumentalizadas por atos legislativos e atos executivos. 

Quando sua efetivação depende de atos legislativos é necessario enfatizar que ao se referir a uma determinada parcela da sociedade, não pode violar o princípio da igualdade, nem criar qualquer tipo de discriminação, isto é,  em que pese possa estar restrita a uma determinada parcela de indivíduos, separada dos demais integrantes do grupo, como, por exemplo, as políticas públicas afirmativas que possuem um destinatário específico, devem respeitar os princípios constitucionais.

Portanto, é possível que venham conflitar com a Constituição e dar ensejo ao controle de sua constitucionalidade, seja por excesso ou ausência, entendida como omissão. Porém, não poderá ocorrer em um caso concreto, pelo indivíduo vitimado por sua adoção.

Por exemplo: um candidato preterido no ingresso em uma instituição pública de ensino superior, por outro que se incluía em um grupo agraciado por uma política pública afirmativa. A tutela jurisdicional diz respeito ao interesse coletivo e não individual, porque a reserva de cotas não foi imposta contra ele, mas a favor de um determinado grupo e faltaria a tal candidato o interesse de agir, pois o vestibular não visou excluí-lo e, portanto, não veio a tolhir nenhum direito subjetivo, haja visto que pode se increver e competir nas mesmas condições daqueles que se encontravam em sua situação e que os resultados foram estabelecidos de acordo com as regras previamente determinadas. 

Neste sentido existe o voto do Desembargador Federal Roger Raupp Rios, da 4ª, Região Federal, no Agravo de Instrumento 2009.04.00.004495-0/SC, quando entendeu: “[f]alta-lhe legitimidade ativa para prosseguir em juízo, ancorado em tais fundamentos. A correta aplicação do sistema de ações afirmativas por reserva de vagas sociais não é direito individual que assiste a alguém em específico, salvo daqueles que teriam direito a matrícula porque, matriculados nas vagas reservadas por critério social, viram seu direito à matrícula preterido em virtude da inclusão que não faria jus a estas vagas”, quando, então se questionaria a política pública.

No caso específico, a tutela jurisdicional pode ser buscada por via de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, por seus legitimados, conforme previsto no art. 2, da lei 9882/99.


7. Arguição incidental


O art. 1º, parágrafo único, I, da Lei 9.882/1999, ao regulamentar a arguição de descumprimento de preceito fundamental, em cumprimento ao previsto no § 1º do art. 102 da CF, dispõe: “Caberá também arguição de descumprimento de preceito fundamental: I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.

A doutrina tem considerado que, na hipótese, se está diante de uma arguição incidental, “paralela a um processo qualquer já instaurado e que surge em função deste”.54  

É preciso, antes de qualquer coisa, determinar o sentido da incidentalidade aqui referida, levando-se em conta o emprego da expressão quando se trata da via de defesa ou exceção.

Na via de defesa ou exceção, o objeto da ação não é o vício de validade, mas a reparação de um direito. O lesado quer apenas subtrair-se dos efeitos de uma lei tida como inconstitucional, ou seja, o objeto da ação não é o julgamento da constitucionalidade em si, mas de uma relação jurídica que, envolvendo a aplicação de uma lei cuja validade pode ser contestada frente à Constituição, exige a apreciação da sua constitucionalidade.

Dessa feita, diz-se que a alegação surge por incidente em um processo judicial comum, sendo assim levantada e discutida na medida em que seja relevante para a solução do caso.

Clèmerson Merlin Clève aponta: 

“É preciso ter algum cuidado com a expressão ‘exceção de inconstitucionalidade’. É que o Código de Processo Civil prevê algumas hipóteses de exceção de incompetência, de suspeição ou de impedimento do juiz – arts. 304 a 314 do CPC. Configuram exceções em sentido estrito, ditas ‘instrumentais’, processadas em apenso aos autos do processo (art. 299 do CPC). Com efeito, as exceções referidas constituem meios de defesa indireta, voltados contra o processo principal, configurando um ‘incidente processual’”.55 

Portanto, proposta uma ação em juízo, o Judiciário poderá, como preliminar, no curso do processo, analisar a constitucionalidade ou não da lei ou do ato normativo, já que a questão constitucional não é o objeto principal da ação.

É com o sentido de que a análise incidental da inconstitucionalidade não constitui o objeto principal da ação que o Min. Celso de Mello, no AgRg-MC-MS 21.077-GO, j 09.05.1990, ponderou: 

“O mandado de segurança não é sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade. Essa circunstância, porém, não inibe a parte, com legítimo interesse moral ou econômico, de suscitar o controle incidental ou difuso de constitucionalidade das leis, cuja aplicação – exteriorizada pela prática de atos de efeitos individuais e concretos – seja por ela reputada lesiva ao seu patrimônio jurídico. A impossibilidade jurídica de um simples particular discutir, em abstrato, a legitimidade constitucional de atos do Poder Público não lhe suprime o direito, inquestionável, de postular, pela via formalmente adequada, a sua invalidação judicial”.56 

Tem-se designado como incidental a hipótese de arguição de descumprimento de preceito fundamental insculpida no inc. I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/1999, quando existir relevante controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal em processos submetidos a qualquer juízo ou tribunal, cuja controvérsia esteja sendo questionada por intermédio de controle difuso e concreto de constitucionalidade, e que passa a ser apreciada abstrata e concentradamente pelo Supremo Tribunal Federal, o qual se manifestará tão somente sobre a questão constitucional, objeto da ação de arguição, resolvendo-a sem decidir o caso concreto. 

Entretanto, a ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, mesmo quando se trata de arguição incidental, é uma ação autônoma, suscitada por petição inicial, que, nos moldes do art. 3º da Lei 9.882/1999, deverá conter: “I – a indicação do preceito fundamental que se considera violado; II – a indicação do ato questionado; III – a prova da violação do preceito fundamental; IV – o pedido, com suas especificações; V – se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado”.

Outro argumento a favor da posição acima assumida, de que, mesmo no caso do art. 1º, parágrafo único, I, da Lei 9.882/1999, a arguição é sempre uma ação específica, é o que diz respeito a sua titularidade ativa, dependendo sua propositura da iniciativa de um dos sujeitos habilitados pelo art. 103 da CF, segundo o disposto no art. 2º da referida lei. 

Ainda assim, não parece haver dúvida quanto à aceitação da posição de Daniel Sarmento, quando sustenta que o: 

“(...) objetivo do novo instituto é antecipar decisões do Supremo Tribunal Federal sobre controvérsias constitucionais relevantes, que antes só chegariam a seu conhecimento muito depois, após o percurso das tortuosas vias recursais. Evita-se com isso que, neste ínterim, seja criada e alimentada uma situação de incerteza jurídica, congestionando os tribunais, ensejando a possibilidade de decisões discrepantes e permitindo a consolidação no tempo de situações subjetivas que possam vir a contrariar a orientação que, depois, o Supremo Tribunal venha adotar em relação a certas questões de índole constitucional”.57 

Jorge Miranda dá ênfase às possíveis atuações dos tribunais no que tange às questões de inconstitucionalidade, relacionando quatro hipóteses, a saber:

a) quando existe a incompetência dos tribunais para conhecer e decidir – é o modelo de matriz francesa;

b) quando existe a competência dos tribunais para conhecer e decidir, com recurso para o tribunal superior – é o sistema norte-americano;

c) quando os tribunais têm competência para conhecer, mas não para decidir, e “por isso cabe a um tribunal situado fora da ordem judicial, o Tribunal Constitucional – é o regime resultante da atenuação ou modificação do molde austríaco, feito em 1929;

d) quando há competência para conhecer e decidir, com possibilidade de interposição de recurso, isto é, recurso possível ou necessário, para um tribunal situado fora da ordem judicial – é o sistema adotado em Portugal.

Jorge Miranda identifica o incidente de inconstitucionalidade como um pressuposto da fiscalização abstrata, cujo escopo abarca tanto a fiscalização concreta como a abstrata. No entanto, ao considerar a fiscalização que é exercida por todos os tribunais, pondera que esta se exerce “nos feitos submetidos a julgamento, nos processos em curso em tribunal, incidentalmente, não a título principal”. Nesses casos, a questão de constitucionalidade só poderá e deverá ser conhecida e decidida quando existir um nexo “incindível” entre ela e o objeto principal do processo. Trata-se, aqui, de uma questão prejudicial imprópria, que se acumula com a questão objeto do processo, cujo julgamento cabe ao mesmo tribunal, que não a devolve para outro processo ou tribunal. É o juiz que conhece da constitucionalidade em qualquer fase de processo, de modo que tal questão necessita ser suscitada antes de esgotado o poder judicial sobre a matéria, não podendo ser exercitada somente nas alegações de eventual recurso para o Tribunal Constitucional.58  

Por sua vez, Canotilho, ao examinar o modelo de controle de constitucionalidade atualmente consagrado no direito português, afirma que este admite o controle difuso, concreto e incidental dos atos normativos, cuja competência continua a ser reconhecida a todos os tribunais, “judiciais, administrativos, fiscais (cf. arts. 204 e 277), que, quer por impugnação das partes, quer ex officio pelo juiz ou pelo Ministério Público, julgam e decidem a questão da inconstitucionalidade das normas aplicáveis ao caso concreto submetido a decisão judicial”. Não obstante, reconhece que o sistema português é dotado de originalidade: de um lado, por não consagrar o modelo puro do judicial review, pois também admite um sistema concentrado de apreciação de inconstitucionalidade; de outro, porque não segue um sistema de mero incidente inconstitucional, pois os tribunais têm competência plena para decidir e não só “para apreciar e admitir o incidente, remetendo, como acontece em alguns sistemas – alemão e italiano –, a decisão para o TC”.59  

É preciso aclarar que a arguição tida como caracterizadora de um incidente de inconstitucionalidade – prevista no art. 1º, parágrafo único, I, da Lei 9.882/1999 –, por constituir o objeto principal de uma ação autônoma, que alega o descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição, não caracteriza a incidentalidade do modelo italiano.

A Constituição italiana permite que o controle se exerça por dois modos: por via de ação direta e por via de exceção. A impugnação da validade normativa na via de ação direta é reservada ao Governo da República e às Regiões, devendo ser exercida dentro de um lapso de tempo determinado, conforme dispõem o art. 127 da Constituição e a Lei Constitucional de 09.02.1948. Fora desses casos, a apreciação da inconstitucionalidade só pode ser feita, incidentalmente, no curso de um juízo, por qualquer das partes ou, mesmo de ofício, pela própria autoridade judicial.

Quando a inconstitucionalidade é levantada por uma das partes de forma incidental, o juiz deverá decidir se tal alegação é manifestamente infundada; se não for assim considerada, suspenderá o procedimento e o remeterá à decisão da Corte Constitucional. Dessa forma, a inconstitucionalidade é decidida primeiramente pelo juiz, já que, ao considerar a lei como válida, aplicá-la-á ao caso, fato esse que pode ser revisto no juízo superior. Porém, julgando-a inconstitucional, remetê-la-á à apreciação da Corte Constitucional, que decidirá com eficácia erga omnes.

O Brasil, no afã de desenvolver instrumentos de controle de constitucionalidade, tem procurado instituir o chamado “incidente de inconstitucionalidade”, para permitir que seja apreciada pelo Supremo Tribunal Federal a controvérsia sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive dos atos anteriores à Constituição, com vistas a antecipar as decisões relativas a controvérsias constitucionais relevantes e evitar que elas venham a ter desfecho definitivo só após longos anos, quando muitas das situações por elas criadas já se tiverem consolidado. 

Ao argumento de que tal instituto viria desmerecer os níveis inferiores de nosso Judiciário, Gilmar Ferreira Mendes defende que: 

“(...) ao contrário do que ocorre nos modelos concentrados de controle da constitucionalidade, nos quais a Corte Constitucional detém o monopólio da decisão sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei, o incidente de inconstitucionalidade não altera, em seus fundamentos, o sistema difuso de controle de constitucionalidade introduzido entre nós pela Constituição de 1891. Juízes e tribunais continuam a decidir também a questão constitucional, tal como faziam anteriormente, cumprindo ao STF, enquanto guardião da Constituição, a uniformização da interpretação do Texto Magno, mediante o julgamento de recursos extraordinários contra decisões judiciais de única ou última instância”. 

Dessa maneira, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões do STF viriam a fornecer a diretriz segura para os casos de teor idêntico aos editados pelas diversas entidades comunais.60 

Há que se destacar que em 1934 se adotou a chamada cisão funcional de competência, que permitia que, no julgamento da inconstitucionalidade perante os Tribunais, o Plenário ou o Órgão Especial julgasse a constitucionalidade ou não da norma, cabendo ao órgão fracionário decidir em conformidade com o que tivesse ficado assentado no julgamento da questão constitucional.

A revisão constitucional de 1994 pretendeu, sem êxito, introduzir em nosso sistema jurídico o incidente de inconstitucionalidade, desde que houvesse perigo de lesão à segurança, à ordem ou às finanças públicas, quando, então, o Supremo Tribunal Federal, acolhendo o incidente, poderia determinar a suspensão dos processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal. 

Diga-se, de passagem, que a previsão apresentada no § 5º do art. 107 do substitutivo de autoria do Deputado Jairo Carneiro previa, ainda, a possibilidade de a controvérsia versar acerca de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.

Não se trata, neste momento, de analisar a oportunidade ou a vantagem de tal instituto, mas de verificar se pode ter assento no inc. I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/1999.

Como se sabe, a ação de arguição, conforme previsão constitucional, só pode ter como objeto o descumprimento de preceito fundamental, o que limitaria o universo da previsão acima registrada, isto é, a controvérsia teria de versar, obrigatoriamente, sobre preceito fundamental, o que significa dizer que não seria a não observância de qualquer dispositivo constitucional que daria ensejo a sua propositura.

Outro ponto que merece destaque, quando se lê o inc. I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/1999, é o que concerne ao controle incidental de constitucionalidade, por via da arguição, quando for relevante o fundamento da controvérsia sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição. O art. 102, § 1º, da CF prevê, dentre as competências originárias do Supremo Tribunal Federal, o processar e julgar “a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição”. Logo, tal dispositivo, além de reservá-la para os casos de descumprimento de preceitos fundamentais, limita-os aos decorrentes da Constituição, melhor dizendo, aos da Constituição de 1988. 

Portanto, só é possível admitir a constitucionalidade de previsão legal que inclua os fundamentos importantes das controvérsias anteriores à Constituição de 1988 quando estes ainda tenham lugar no texto da atual Lei Fundamental, ou seja, quando tais preceitos ainda permaneçam com a condição de fundamentais na atual Lei Maior, pois, se já não tiverem o mesmo status, não podem dar lugar à propositura do instrumento processual ora em comento, que, por natureza, é um instrumento de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade.

De acordo com o que determinou o Supremo Tribunal Federal na ementa da ADI 03-DF, cuja relatoria coube ao Min. Moreira Alves, “esta Corte já firmou jurisprudência no sentido de que a ação direta de inconstitucionalidade não é cabível quando a arguição se faz em face de Constituição já revogada, nem quando o ato normativo impugnado foi revogado antes da propositura dela”.61 

Com grande clareza defendeu o Min. Moreira Alves “a já firme orientação desse Tribunal em não admitir a declaração de inconstitucionalidade, em tese, de leis e outros atos normativos quando contrastados com Constituição já revogada”, ponderando que se, “em casos concretos, o interesse na declaração de inconstitucionalidade pode persistir mesmo que a norma não esteja mais em vigor, a situação é oposta no caso de declaração em tese, para a qual é essencial a atualidade, isto é, a vigência da lei ou do ato normativo de outra espécie”.62 

Não se condena, simplesmente, o incidente de inconstitucionalidade, mas se observa que está deslocado no que diz respeito ao âmbito da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição. Essa opinião parece reforçada quando se constata a existência de proposta de emenda constitucional apresentada pelo Executivo para inserir um § 5º ao art. 103 da CF com o seguinte teor: 

“O Supremo Tribunal Federal, acolhendo incidente de constitucionalidade proposto pelas pessoas ou entidades referidas no caput, poderá, em casos de reconhecida relevância, determinar a suspensão de todos os processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão, com eficácia e efeito previstos no § 2º do art. 102, que verse exclusivamente sobre a matéria constitucional suscitada”. 

Portanto, a Lei 9.882/1999, ao prever a arguição quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, ampliou, indevidamente, o universo constitucional do instituto, incluindo entre os procedimentos de controle concentrado um verdadeiro incidente nos processos em curso, com a possibilidade de exercê-lo até sobre norma anterior à Constituição de 1988, e, o que é ainda pior, com decisão com eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais atos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da referida lei.

Sobre o assunto, e para embasar tal entendimento, é oportuno o registro da opinião do Min. Moreira Alves, proferida ao apreciar o RE 91.740-RS: “O controle de constitucionalidade in abstrato (principalmente em países em que, como o nosso, se admite, sem restrições, o incidenter tantum) é de natureza excepcional, e só se permite nos casos expressamente previstos pela própria Constituição, como consectário, aliás, do princípio da harmonia e independência dos Poderes do Estado”.63  

Por conseguinte, só a Constituição pode prever, expressamente, os casos de controle da constitucionalidade em tese, abstratamente, dissociados de um caso concreto. A Lei 9.882/1999 não tem este poder, o que permite deduzir que o inc. I do parágrafo único do art. 1º ofende frontalmente o § 1º do art. 102 da Lei Fundamental.

Não se pode olvidar que a lei da arguição permite que o acesso ao Supremo Tribunal Federal, no caso previsto no inc. I do parágrafo único do art. 1º, venha a ser obstado quando for considerado irrelevante o fundamento da causa.

Trata-se de condição de procedimentalidade da arguição incidental, o que leva à necessidade de determinar um critério para a identificação da relevância.

Eis a abalizada observação de André Ramos Tavares sobre o que seria conveniente para o cabimento da arguição: 

“O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal fixou, no art. 327, § 1º, para todos os efeitos, quando se considera relevante uma questão federal, normatizando no sentido de que ‘entende-se relevante a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal’. Assim, relevante, para fins de cabimento da arguição incidental, é aquilo que tem fundamento, que é legítimo, razoável, que se mostra admissível, evidente, insuperável, características que fazem com que a controvérsia suscitada atinja o interesse público, isto é, um interesse diferente daquele subjetivo que é próprio das partes envolvidas em processo judicial subjetivo”.64 


7.1. Atos normativos anteriores à Constituição


Considerar que só a Constituição é que deve prever o incidente de inconstitucionalidade, inclusive aquele voltado para a análise de descumprimento de preceitos fundamentais por atos pré-constitucionais, não retira a oportunidade de se tecerem algumas considerações a respeito.

Assim, quando se diz que não é possível o controle abstrato de constitucionalidade por meio da arguição, quando o seu objeto é ato do Poder Público em face da Constituição revogada, se está frente a um contexto distinto daquele que se refere à desconformidade material entre a Lei Fundamental e os atos anteriores à sua promulgação.

Tal aspecto é, também, núcleo do art. 1º da Lei 9.882/1999, previsto no inc. I do seu parágrafo único, ao preceituar: “... quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.

É importante lembrar que esse é um tema controvertido, em que pese o Supremo Tribunal Federal ter, não raras vezes, reafirmado que a desconformidade material entre a Constituição e os atos normativo anteriores à sua promulgação acarreta mera revogação destes, em consequência do que não seria idônea, para a hipótese, a ação direta de inconstitucionalidade.

Tal posição foi magnificamente defendida pelo Min. Paulo Brossard, quando relator da ADI 2, o que não impediu que os Ministros Neri da Silveira, Marco Aurélio Mello e Sepúlveda Pertence apresentassem em seus votos – vencidos, diga-se de passagem – posicionamento diverso. 

A ementa do julgado é a seguinte: “Constituição – Lei anterior que a contrarie – Revogação – Inconstitucionalidade superveniente – Impossibilidade”.

Instado a divulgar as razões de seu voto vencido, o Min. Sepúlveda Pertence publicou-o nos Arquivos do Ministério da Justiça. 

Disse o Ministro: 

“Se quer chamar a hipótese de revogação, tudo bem. Não será, contudo, caso simples de revogação, supostamente idêntica àquela que resultaria da incompatibilidade entre duas normas de gradação ordinária, na constância de um mesmo ordenamento constitucional. Será, então, sim, revogação qualificada, porque derivada da inconstitucionalidade superveniente da lei anterior à Constituição”.65  

Do exposto, é necessário esclarecer o que se entende por inconstitucionalidade superveniente, para que se possa concluir se tal hipótese se realiza no caso ora analisado.

Jorge Miranda ensina que “o fenômeno da inconstitucionalidade surge por causa da contradição entre normas legais e normas e princípios constitucionais, e, em face de cada situação ou acto, é função do juízo de valor que se faça com base nos comandos constitucionais vigentes”.66  

Diante disso, é possível falar em inconstitucionalidade originária e em inconstitucionalidade superveniente, e neste ponto são identificáveis casos de conflito entre as normas infraconstitucionais e a Lei Fundamental de um ordenamento jurídico.

Quando se fala em inconstitucionalidade originária, se está a referir àquela que realiza o conflito normativo entre a legislação ordinária inferior e a nova Constituição, que acontece a partir do momento da criação da norma infraconstitucional, isto é, quando a lei ordinária contradiz ab initio a Lei Fundamental, apresentando, desde então, a condição de invalidade. 

Outra coisa é fazer referência à inconstitucionalidade superveniente, quando a lei fica sendo inconstitucional em um momento subsequente ao da sua produção, e isso em virtude do surgimento de um novo princípio ou norma constitucional, sem fazer menção ao fato de que, no instante em que surge este novo princípio ou norma constitucional, a lei ordinária, automaticamente, tem sua subsistência cessada.

Não obstante tal diferenciação, outra análise é pertinente: não há dúvida que o surgimento de uma nova Constituição acarreta o desaparecimento não só da Constituição anterior, mas da legislação infraconstitucional anterior que com ela conflite. Todavia, a Constituição pode ser reformada ou revisada por um poder criado e disciplinado pela própria Lei Fundamental, passando-se a indagar: quando se identifica um conflito entre normas infraconstitucionais, que até certo momento se encontravam de acordo com os dispositivos constitucionais, e uma norma ou princípio constitucional novo, que surge devido a uma alteração do texto constitucional por via de um processo de reforma constitucional, o que acontece? É nesta hipótese que se menciona a inconstitucionalidade superveniente, ou seja, quando o conflito entre normas de hierarquia diferente surge não em virtude de uma nova Lei Fundamental, fruto do exercício do poder constituinte originário, mas de uma alteração pontual, aposta pelo poder constituído, pelo poder reformador.

Como já se viu, não é pacífico o juízo tendente a qualificar o fenômeno que aqui se realiza. Há os que falam em revogação, em caducidade, em ineficácia, e, como bem observa Jorge Miranda, a escolha não é somente uma questão acadêmica, pois se reveste de interesse prático, na medida em que os tribunais podem ou não decidir acerca da inconstitucionalidade.

Registra Clèmerson Merlin Clève que nosso Supremo Tribunal Federal entende que o: 

“(...) vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes, revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias”.67  

Oportuno manifestar que o surgimento de uma nova Constituição, fruto do exercício do poder constituinte originário, revoga não só a anterior Lei Fundamental, mas, em bloco, todo o ordenamento jurídico nela embasado.

Entretanto, esse raciocínio não se desenvolve com tal desenvoltura no que tange à alteração parcial da Constituição, fruto do trabalho do poder reformador, quando cada alteração vai agir sobre uma ou algumas normas preexistentes, sem prejuízo de sua repercussão sistemática.

É preciso recordar que uma nova Lei Fundamental “não faz tábua rasa do direito ordinário anterior”, porque recriar ou reconstruir tudo a partir da nova base seria esforço demasiadamente pesado e impossível em curto espaço de tempo, além de haver o perigo do comprometimento da segurança jurídica. Dessarte, a Constituição nova recepciona todo o direito ordinário anterior que com ela for compatível, propiciando uma novação, isto é, a mudança de seu fundamento de validade, sendo sua força jurídica, a partir de agora, validada pela nova Constituição.68  

Contudo, na hipótese de alteração pontual da Constituição, advinda do trabalho do reformador ou revisor, não se opera tal novação: a alteração pontual ou circunstancial da Lei Fundamental só tem efeitos negativos sobre as normas ordinárias anteriores. No caso, não existe espaço para recepção, mas só para invalidação, decorrente da contradição. É só aqui que se pode falar em inconstitucionalidade superveniente.

A inconstitucionalidade se manifesta pela contradição entre as normas ordinárias e as normas e princípios constitucionais, quando se pode falar em inconstitucionalidade originária ou superveniente, na proporção da desconformidade com a Constituição originária ou com normas constitucionais derivadas, fruto do exercício do poder reformador, ou que implique em tratamento distinto, porque, segundo tem decidido o Supremo Tribunal Federal, o controle da constitucionalidade em tese, “por sua própria natureza, se destina tão somente à defesa da Constituição vigente, não configurando parâmetro idôneo ‘a aferição da constitucionalidade da lei anterior”.69  

Logo, evidencia-se que a hipótese deve ser verificada no âmbito do direito intertemporal, pois não se realiza uma inconstitucionalidade, mas uma revogação.70  

Em regra, a ideia de revogação surge da substituição de normas, da sucessiva regulamentação da mesma matéria por normas de igual hierarquia, “salvo assunção ou avocação da totalidade da disciplina pela norma superior – rara, mas sempre possível, visto que à norma superior cabe definir a sua própria área de concretização –, apenas uma norma de igual posição hierárquica substitui, de ordinário, outra”.  Nada obstante, no caso de conflito entre duas normas de hierarquia diferenciada, cabe falar em revogação por inconstitucionalidade. 

Na verdade, optar, em se tratando de arguição, por um caso de inconstitucionalidade superveniente ou de revogação só traz como diferencial o fato de que, na primeira hipótese, poderá ter cabimento a análise abstrata da desconformidade do ato do Poder Público com o preceito constitucional – a qual permitirá a solução da controvérsia com efeitos erga omnes –, e, na segunda, só com o passar dos anos e esgotadas todas as instâncias e recursos seria alcançada uma solução definitiva. 

Assim, enquanto no direito português a Constituição admite expressamente, em seu art. 282.2, a inconstitucionalidade superveniente, o Tribunal Constitucional espanhol admitiu uma fórmula partilhada de competências entre ele e a magistratura ordinária, ao afirmar: “Puede decirse que la inconstitucionalidad de las leyes anteriores conduce a unas consecuencias que pueden ser concurrentemente la derrogación y la nulidad”. Entretanto, Eduardo García de Enterría assinala que a diferença entre uma via e outra é clara: a sentença do Tribunal Constitucional resolve definitivamente o problema, de modo que todos os poderes devem acatar sua decisão, enquanto a dos tribunais inferiores só surte efeitos no caso concreto.72 

O importante é reconhecer que a temática é das mais complexas e, ainda, sem uma conclusão satisfatória por parte dos nossos tribunais, o que leva a aceitar que o controle em tese dos atos normativo anteriores à Constituição mereceria, para dissipar qualquer dúvida, tratamento constitucional e não legal, como o fez o inc. I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/1999.

Não é possível deixar de sublinhar que, atualmente, pela técnica de interpretação conforme a Constituição, a incompatibilidade entre a norma impugnada e a nova Lei Fundamental poderia ser contornada, de modo a harmonizá-las com vistas à preservação da segurança jurídica.


7.2. Efeitos da decisão na arguição de descumprimento de preceito fundamental


Preliminarmente, é preciso reavivar a ideia de que a ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental apenas se assemelha à ação direta de inconstitucionalidade quando o objeto do pedido se refere a um ato do Poder Público que descumpre um preceito fundamental da Constituição, isso porque não visa unicamente declarar que uma ação está de acordo com a Lei Fundamental, mas “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” (Lei 9.882/1999, art. 1º).

Dentro deste universo, a Lei 9.882/1999 determinou, no § 3º do art. 10: “A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público”; e, em seu art. 11: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

Dessa feita, inicialmente, cabe analisar o § 3º de art. 10 da Lei 9.882/1999, para depois, em um segundo momento, examinar o alcance dos efeitos da decisão, conforme dispõe o art. 11 da mesma lei.


7.2.1. Efeito vinculante


Como se vê, o dispositivo legal prevê que a decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, o que conduz à necessidade de observar se o efeito erga omnes obedece à lógica dos instrumentos processuais de tutela dos interesses coletivos, difusos ou de grande significado social, tal como acontece com a ação popular, a ação civil pública, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. Cumpre, ainda, destacar que o efeito vinculante foi implantado no sistema constitucional brasileiro pela EC 3/1993, ligado à ação declaratória de constitucionalidade, no que diz respeito às decisões definitivas de mérito, segundo estatuem o art. 102, I, a, e o art. 102, § 2º, da CF. 

Sobre o assunto, Elival da Silva Ramos releva que é preciso explicitar o significado de efeito vinculante e defende que a expressão pode ser empregada no sentido de que se cria uma “obrigação funcional para os demais magistrados ou funcionários e autoridades do Poder Executivo de acatar o decidido, tomando as providências adequadas para que, no âmbito de suas atribuições, seja implementado o efeito contra todos, inerente à coisa julgada material em sede de ações coletivas”.73 

Válido anotar que as decisões do Supremo Tribunal Federal em sede do controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos, que produzem coisa julgada oponível erga omnes, isto é, para além das partes que integram uma relação processual objetiva, têm razão de ser em face da coisa julgada formal ou material que a elas adere, devem ser respeitadas pelo próprio Supremo e pelos demais órgãos do Judiciário. Contudo, tal ocorrência não chega a engessar, de modo definitivo, a decisão da Suprema Corte, pois a alteração das circunstâncias fáticas pode “autorizar o deslocamento da compreensão constitucional dada à matéria”, de acordo com a lição de Clèmerson Merlin Clève.74  

Mas, a par da eficácia erga omnes que lhe era imanente, não se reconhecia, até o advento da EC 3/1993, o efeito vinculante. A partir de então começam a ser identificadas algumas diferenças entre o efeito vinculante e o dito erga omnes, o que significa um plus em relação a este.

Conferir efeitos vinculantes às decisões dos tribunais superiores é uma tendência universal e consiste em lhes dar maior eficácia, além da eficácia erga omnes, própria das proferidas em jurisdição concentrada. De consequência, todos os órgãos judiciários e administrativos ficam a elas vinculados, obrigados a respeitar o que já foi decidido pela Suprema Corte, o que possibilita a igualdade de efeitos pela submissão de todas as causas a seus termos, incluindo as que ainda estão em andamento.

Propugna-se, hodiernamente, por conferir eficácia vinculante às decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal, o que tem dividido a opinião dos operadores jurídicos, posto que sua introdução no sistema constitucional brasileiro pela EC 3/1993, no que diz respeito às decisões proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade, não beneficiou as decisões definitivas em ações diretas de inconstitucionalidade.

O Min. Francisco Rezek, quando de sua atuação como membro do Supremo Tribunal Federal, em voto proferido na ADC 1-1-DF, ao analisar os seus efeitos vinculantes, e lastimando o fato de não estarem previstos para as decisões de mérito em ações diretas de inconstitucionalidade, assim se manifestou: “A única coisa que me pergunto é por que esse efeito vinculante não preexiste, por que não vimos trabalhando com ele na ação declaratória de inconstitucionalidade?”75 

Por sua vez, o Min. Moreira Alves, como relator da ADC 1-DF, esclareceu que dizer que uma decisão tem efeitos erga omnes significa que seus efeitos aproveitam a todos, se fazem sentir em face de todos, e que sua eficácia se exaure na declaração de que o ato normativo é inconstitucional ou constitucional, “o que implica a possibilidade de o Poder Judiciário, por suas instâncias inferiores, poder continuar a julgar, em concreto, hipótese em que, às partes prejudicadas nos casos concretos, só resta, em recurso extraordinário, ver respeitada, pelo Supremo Tribunal Federal, sua decisão na ação direta de inconstitucionalidade sobre o ato normativo que dele foi objeto”.76 Porém, quando se fala que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública, admite-se um plus em relação aos efeitos erga omnes acima referidos.

Mas o que caracteriza esse plus aqui referido? Clèmerson Merlin Clève observa que o efeito mais importante da adoção da força vinculante é o que permite obstar a sua reedição, “ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal”, pois “tanto a coisa julgada quanto a força de lei com eficácia erga omnes não lograriam evitar esse fato”, acarretando, por consequência, a impossibilidade de aplicação da lei de igual conteúdo em outro Estado. Consequentemente, quando se trata da arguição de descumprimento de preceito fundamental, existe a impossibilidade de aplicação de atos do Poder Público de igual conteúdo, também, por exemplo, na esfera dos demais municípios que não participaram nem deram origem à ação. Isto é: a decisão “alcança os atos normativos de igual conteúdo daquele que deu origem a ela, mas que não foi seu objeto, para o fim de, independentemente de nova ação, serem tidos como inconstitucionais”.77 É importante externar, segundo Clèmerson Merlin Clève, a possibilidade de tais consequências se encontrarem ligadas aos efeitos vinculantes que defluem dos fundamentos determinantes da decisão, e que, no caso brasileiro, a vinculação se restringe “às decisões definitivas de mérito”, abarcando apenas a parte dispositiva.

Não é demais repetir que, em nosso sistema jurídico, o controle abstrato da constitucionalidade de uma lei pode ser realizado no curso de uma ação direta de inconstitucionalidade, no de uma ação declaratória de constitucionalidade e agora, também, no de uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental. Todavia, nem o legislador constituinte originário, nem o reformador previram o efeito vinculante para todas as decisões proferidas no que concerne ao controle de constitucionalidade, reservando-o para as proferidas em ação declaratória de constitucionalidade, conforme dispôs a EC 3/1993.

Clèmerson Merlin Clève afirma: 

“O constituinte reformador poderia ter ido mais longe. Conferindo tratamento normativo diferenciado para as ações de constitucionalidade e de inconstitucionalidade, ele acabou por proporcionar, incompreensivelmente, resultados distintos para as duas ações. Sim, porque, atribuindo efeito vinculante apenas às decisões definitivas de mérito proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade, teremos o seguinte: lei declarada constitucional ou inconstitucional por decisão preferida em ação direta de inconstitucionalidade produz efeito erga omnes. Se, entretanto, a decisão for proferida em ação declaratória de constitucionalidade, produzirá eficácia erga omnes e efeito vinculante”.78 

Outro é o pensamento de Ives Gandra da Silva Martins. 

Se o controle concentrado em que a Suprema Corte decide in abstrato, provocado por ação direta de inconstitucionalidade, não implicasse a eficácia erga omnes e o efeito vinculante, à evidência, teriam a mesma conformação de um controle difuso, sequer declarando a ‘lei’ entre as partes, sempre que o autor fosse entidade não representativa de segmento da sociedade, mas do próprio Poder Público, como o Procurador-Geral da República e até mesmo o Presidente da OAB, que é uma autarquia federal.

Não obstante a referência constitucional expressa aludir somente à ação declaratória, há de se entender que implicitamente tais efeitos são ínsitos à direta de inconstitucionalidade, até porque as duas ações configuram facetas complementares do mesmo fenômeno de salvaguarda da Lei Suprema.

Com efeito, sempre que não provida a ação direta de inconstitucionalidade, implica uma declaração de constitucionalidade, com efeitos erga omnes que representam os que lhes são próprios. Por outro lado, sempre que não provida uma ação declaratória de constitucionalidade, equivale a dizer que existe uma declaração de inconstitucionalidade, porém seus efeitos, em que pese idênticos àqueles da ação direta de inconstitucionalidade, ganham contornos diferentes.

Desta forma, no controle concentrado a eficácia é sempre erga omnes, assim como o efeito vinculante, não dependendo, tais decisões, de resolução senatorial para ganhar tal perfil.79  

Reiterando ilação anterior, é bastante lógico o pensamento de Ives Gandra Martins, porém é deveras perigosa a dedução interpretativa por ele realizada, de um lado porque, no admitir que o efeito vinculante pode alcançar, em razão de pura exegese, a decisão proferida nas ações direta de inconstitucionalidade, está desconsiderando que o objeto das duas ações é diferente e que possuem processos totalmente diversos; de outro lado, porque o constituinte reformador poderia ter previsto que o efeito vinculante também beneficiaria as decisões proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade, o que não fez.  

Semelhante raciocínio deve ser desenvolvido quando se analisa o efeito da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental: é inquestionável que o legislador reformador, ao criar a EC 3/1993, poderia tê-la agraciado com efeitos vinculantes, porém não o fez, embora prevendo que ela “será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.80

A pergunta que se deve fazer, neste momento, é a seguinte: a lei regulamentadora poderia, em virtude dessa disposição constitucional, prever efeitos vinculantes para as decisões proferidas em arguições de descumprimento de preceito fundamental? 

Aqui é preciso ter alguma precaução, na medida em que prever o efeito vinculante às decisões definitivas de mérito no curso de uma ação declaratória de constitucionalidade foi tarefa absorvida pelo constituinte reformador, que o implantou com status de natureza excepcional, e, portanto, ao chamar a si tal aptidão, buscou vinculá-lo à sua competência. Aliás, considerando que a vontade do legislador é aquela objetivada na norma e estabelecendo um paralelo histórico-temporal entre a entronização pelo legislador constituinte reformador do efeito vinculante em nosso sistema jurídico ligado à ação declaratória de constitucionalidade, vê-se que, a despeito da redação por ele utilizada para disciplinar a arguição, a ela não estendeu os efeitos vinculantes previstos para a ação declaratória de constitucionalidade.

Assim, não chocaria ao intérprete reconhecer que está, mais uma vez, frente ao que se chama de silêncio eloquente, ou seja, no caso em questão não se deve falar em lacuna ou omissão do reformador que possa vir a ser preenchida por norma supletiva da Constituição, mas de uma vontade dirigida a este fim, isto é, de não presentear as decisões na arguição com o efeito vinculante, apesar de determinar que ela será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.

É neste diapasão a opinião de Elival da Silva Ramos quando diz: 

“Ao teor do disposto no atual § 1º do art. 102 da Carta Magna, explicitamente dotado as decisões prolatadas quando do julgamento de arguições de descumprimento de preceito fundamental de efeito vinculante, não pode o Legislativo Ordinário, a pretexto de interpretação autêntica, pretender extrair do abúlico comando constitucional tal consectário, alargando o espectro das exceções ao princípio da separação dos Poderes e à independência que dele deriva para o desempenho funcional dos demais agentes e órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo”.81 

Nesta perspectiva, o valioso juízo de Ingo Wolfgang Sarlet: “No que diz com a arguição de descumprimento, o efeito vinculante não foi expressamente limitado aos órgãos do Poder Executivo e Judiciário, havendo como cogitar-se, ao menos em tese, de eventual extensão aos órgãos legislativos, já que o art. 10, § 3º, do citado diploma legal se refere genericamente ao Poder Público”.82  

A certeza da observação não pode apagar a necessidade de um certo cuidado com a interpretação, posto que, primeiramente, o constituinte reformador, ao prever o efeito vinculante para a ação declaratória de constitucionalidade, não incluiu dentre os que a ele ficariam adstritos o Legislativo, porque isso poderia constituir ofensa ao princípio da separação dos poderes, ainda que tal hipótese seja admitida em diversos sistemas constitucionais.83  

Outra não pode ser a conclusão: o efeito vinculante previsto no § 3º do art. 10 da Lei 9.882/1999, para as decisões definitivas prolatadas no curso de uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, padece do vício da inconstitucionalidade.


7.2.2. A arguição e a omissão inconstitucional parcial


Como já analisado é possível identificar a omissão inconstitucional parcial, quando determinadas normas são insuficientes para tutelar norma constitucional ou para atender todas as pessoas ou grupos delas beneficiários. É o que passa, por exemplo, com a determinação do valor do salário mínimo, que não é o suficiente para realização do preceito constitucional (art. 7º, X).

Ora, a declaração de nulidade da lei não resolve o problema e pode até agravá-lo caso se retire o benefício já gerado, em que pese sua insuficiência. Cabe aqui o raciocínio: ruim com ele, pior sem ele.

Fica a pergunta: existe um modo de completar a norma, é possível o Judiciário suprir a falta do legislador?

Luiz Guilherme Marinoni considera que: 

“(...) a inação do Legislativo, exatamente por não ser vista como discricionariedade ou manifestação de liberdade e sim como violação de dever, deve ser suprida pelo Judiciário mediante a elaboração de norma que deixou de ser editada. É necessário cautela para não confundir dificuldade em elaborar judicialmente a norma com vedação à elaboração judicial da norma. Argumenta-se que o Judiciário não poderia elaborar determinada norma, ou teria dificuldade em relação a outra, para tentar fazer acreditar que ele estaria proibido de elaborar a norma, ainda esta revele descaso do legislador com a Constituição.É certo que, diante da ação de inconstitucionalidade por omissão, o Judiciário não poderá elaborar as normas que demandam insubstituível intervenção do legislador e que, portanto são insupríveis. (...) quando a norma não exigir a atuação insubstituível do legislador, o não cumprimento do prazo pelo Legislativo abre ao Judiciário, como regra geral, a possibilidade de elaborar norma faltante para suprir a inércia do legislador, evitando que o seu desprezo à Constituição gere um estado consolidado e permanente de inconstitucionalidade, com o qual o Estado de Direito não pode conviver”.84 

Seria, então, apta para suprir a falha aqui apreciada, a ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental?

A Lei 9.882/1999 ao impor no artigo 4º a regra da subsidiariedade e, ao dizer, no art. 10, que “julgada a ação far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental”, abre, como alternativa, a possibilidade de seu uso para suprir a falta do Legislativo pelo Judiciário.85 


7.2.3. Alcance dos efeitos da declaração de descumprimento de preceito fundamental


Como já salientado, em decorrência da análise abstrata do seu objeto, os efeitos da decisão da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental atingem toda a coletividade, tendo, portanto, efeitos erga omnes. No entanto, estes se projetam não só em relação à sua importância, mas, também, em relação ao tempo, o que propicia indagar: limitam-se para o futuro ex nunc ou operam retroativamente ex tunc?

Antes de mais nada, para desenvolver estudo neste sentido, é preciso destacar, como já analisado no curso deste trabalho, que tem sido motivo de análise, por parte da doutrina, o fato de se considerar a lei inconstitucional nula ou anulável, a partir, é verdade, de considerações próprias de posicionamento da teoria civilista. Porém, é oportuno recordar que, no campo do direito público, especialmente no do controle de constitucionalidade, entende-se que não pode caber tal consideração, mesmo porque a inconstitucionalidade é a forma mais séria de invalidade. Assim, a lei ou ato do Poder Público que viole dispositivos constitucionais não deve ser tido como nulo ou anulável, mas inconstitucional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, durante muito tempo, sem medo de errar, considerou a lei inconstitucional nula de pleno direito e, por isso, incapaz de gerar efeitos.86 

Entretanto, para melhor esclarecer o leitor, deve-se lembrar que lei nula é aquela que o é desde o início, que sempre foi nula, e, por isso, não pode produzir efeitos, pois o nulo não pode gerar direitos. Dentro do campo da anulabilidade, diz-se que a lei tem plena vigência e obrigatoriedade até o pronunciamento do órgão competente acerca de sua invalidade.

Assim, consideramos que, diante da necessidade do reconhecimento da inconstitucionalidade por um órgão e do fato de a decisão nesse sentido se referir à lei em tese, dissociada de um caso concreto, é que se toma emprestada a teoria das nulidades ou anulabilidades do direito privado, para determinar se seus efeitos se fazem sentir para o futuro ou se operam retroativamente.

Considerando a abrangência temporal dos efeitos da decisão no aspecto da inconstitucionalidade, registramos, oportunamente, que os sistemas jurídicos se têm polarizado entre dois pontos, no da retroatividade e no da irretroatividade.

Cappelletti, analisando a temática, afirma existir um duplo posicionamento, havendo uma contraposição entre eles. Um encabeçado pelo sistema norte-americano e o outro, pelo sistema austríaco. O primeiro, o norte-americano, aceita que a norma inconstitucional é nula e que a sentença que a reconhece tem caráter apenas declaratório, isto é, reconhece uma nulidade preexistente, e que por isso sua eficácia opera retroativamente. Já para o austríaco, a lei é válida e obrigatória até o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, e a decisão que assim a reconhece opera seus efeitos para o futuro. 

Gilmar Ferreira Mendes ensina: 

“A Corte Constitucional austríaca detém ampla margem de discrição para dispor sobre as consequências jurídicas de suas decisões. Ela tanto pode estabelecer que a lei não é mais aplicável a outros processos ainda não cobertos pela coisa julgada (Constituição da Áustria, art. 140, VII, 2º período) ou fixar prazo de até um ano dentro do qual se mostra legítima a aplicação da lei, dispensável a adoção de outras técnicas de decisão no direito austríaco. (...) O modelo americano – restrito ao caso concreto – não se afigura compatível, em princípio, com essas novas técnicas de decisão. Todavia, em tempos recentes, pode-se identificar, nos Estados Unidos, a tendência da jurisprudência dos tribunais inferiores no sentido de não se limitarem a proferir a cassação das providências editadas pelo Executivo ou pelo Legislativo, mas também de imporem-lhes obrigações positivas. Caso as autoridades legislativas ou administrativas não cumpram o estabelecido no julgado, os tribunais podem assumir a responsabilidade pela execução do julgado”.87  

No sistema germânico, a Corte Constitucional, em certas circunstâncias, diz que a consequência da lei inconstitucional é a sua nulidade desde o início, com efeitos ex tunc, atingindo todos os atos nela fundamentados. Porém, o Tribunal Constitucional alemão desenvolveu a hipótese de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade da lei, embora a Lei do Bundesverfassungsgericht não explicite quando deve abster-se de declarar a nulidade. O posicionamento sobre essa questão foi tomado em decisão relativa à nacionalidade dos filhos provenientes dos chamados “casamentos mistos”, quando se tornou evidente que, sem a aplicação provisória da lei inconstitucional, haveria um vácuo jurídico-legislativo. Desde então, a Corte Constitucional alemã reconhece a aplicação provisória da lei viciada de inconstitucionalidade, quando razões de índole constitucional, estribadas em motivos de segurança jurídica, tornam imperiosa a sua vigência temporária, o que se verifica pelo exame do caso em concreto.

O sistema constitucional português adota, segundo expressão de Jorge Miranda, um regime multifacetado, o que reflete o papel de diferentes princípios e institutos e a variedade de situações de vida.88 

Ao lado dos efeitos ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, o art. 282, n. 1 e 2, da Constituição portuguesa reconhece a obrigatoriedade do respeito às normas inconstitucionais até decisão em contrário, além de garantir o respeito à coisa julgada, exceto no que diz respeito à matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e de conteúdo menos favorável (art. 282, n. 3).

Cabe registrar que a Lei Fundamental portuguesa, no art. 282, n. 4, prevê a possibilidade de fixação da extensão dos efeitos da inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, quando assim o exigirem a segurança jurídica ou razões de equidade ou de interesse público de excepcional relevo.

Nosso sistema seguiu, tradicionalmente, o entendimento norte-americano, haja vista a época em que Alfredo Buzaid asseverava que é retroativa a decisão do Supremo Tribunal Federal em ações diretas de inconstitucionalidade, devendo abranger todos os atos praticados sob o império da lei declarada inconstitucional, retroagindo, portanto, ex tunc, à data da publicação da lei ou ato, isso porque, segundo o autor, outra interpretação levaria à conclusão “verdadeiramente paradoxal de que a validade da lei si et in quantum tem a virtude de ab-rogar o dispositivo constitucional violado: em outros termos, considerar-se-iam válidos atos praticados sob o império de uma lei nula”.89 

Já Lúcio Bittencourt, partindo da posição daqueles que consideravam que a lei declarada inconstitucional é como se não tivesse existido, ponderou: como ficariam aquelas leis que por ela foram revogadas? Explica que, se a lei é ineficaz desde seu início, pois a sentença que decretou sua inconstitucionalidade o fez de modo absoluto, admitindo sua retroatividade, deve-se aceitar que esta também é inoperante quanto à revogação e, por conseguinte, a lei por ela revogada deve ser revigorada. Conclui, então, com todo o acerto possível, que o princípio pelo qual os efeitos da decisão declaratória devem retroagir ab initio, como se a lei nunca tivesse existido, não pode ser aceito em termos absolutos, porque as relações jurídicas que se tenham constituído de boa-fé, “à sombra da lei, não ficam sumariamente canceladas em consequência do reconhecimento da inconstitucionalidade, nem a coisa soberanamente julgada perde, por esse motivo, os efeitos que lhe asseguram a imutabilidade”.90 

Assim, a admissão da retroatividade absoluta da sentença deve ser feita com reservas, pois não se pode esquecer que a lei inconstitucional foi eficaz até consideração nesse sentido, e que ela pode ter tido desdobramentos que não seria prudente ignorar, e isso, principalmente, se considerarmos que nosso sistema jurídico não determina um prazo para a arguição de tal invalidade, podendo ela ocorrer dez, vinte ou trinta anos após sua entrada em vigor.91  

Nunca aceitamos posição radical no que tange aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e já tivemos o ensejo de defender que a boa norma deve levar a evitar radicalismos, os quais devem ser substituídos por uma visão mais realista do problema. O que não pode ser desvirtuado é a finalidade do direito, que, proporcionando harmonia na convivência social, traz à sociedade a satisfação de suas necessidades de segurança e estabilidade em seus relacionamentos.92 

Gilmar Ferreira Mendes, depois de afirmar ser da tradição do direito brasileiro o dogma da nulidade da lei inconstitucional, de que é nula ipso jure, manifesta que a decisão no sentido da inconstitucionalidade tem efeitos ex tunc (retroativos), quando todos os atos praticados com base na lei inconstitucional estão igualmente eivados de ilicitude. Entretanto, identifica na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal “tentativa no sentido de, com base na doutrina de Kelsen, abandonar a teoria da nulidade em favor da anulabilidade”, o que se verifica pelo fato de estabelecer diferença entre o plano da norma e o plano concreto, para, a partir deste, excluir, como forma de proteção à segurança jurídica, a possibilidade de anulação do ato normativo que lhe dá respaldo. Complementa, para embasar tal assertiva, que o Supremo Tribunal Federal, após declarar a inconstitucionalidade de lei concessiva de vantagens e benefícios a segmentos do funcionalismo público e, em especial, aos magistrados, afirmou que “a irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados garante, sobretudo, o direito que já nasceu e que não pode ser suprimido sem que sejam diminuídas as prerrogativas que suportam o seu cargo”; e, mais recentemente, acrescentou que “retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional – mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade”.93  

Clèmerson Merlin Clève, acatando a nulidade ipso jure e ab initio da lei declarada inconstitucional, observa que isso pode acarretar sérios problemas, resultantes da inexistência de prazo determinado para a pronúncia de nulidade, vigorando a lei, antes de ser assim considerada, durante longo tempo, tendo oportunizado durante este período a consolidação de um sem-número de situações jurídicas. Conclui, como nós, que “é induvidoso que nesses casos o dogma da nulidade absoluta deve sofrer certa dose de temperamento, sob pena de dar lugar à injustiça e à violação do princípio da segurança jurídica”.93  

Reconhecemos a necessidade de um diploma legal para acabar com a incerteza no que tange à capacidade de determinar no tempo o alcance dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, para coroar nossa expectativa, surgem, no ano de 1999, as Leis 9.868 e 9.882, que tratam, respectivamente, do processo das ações diretas de constitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade e da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, dispondo no art. 27 e no art. 11, respectivamente, sobre a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos da inconstitucionalidade, tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, delimitando que a decisão só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.95  

A forma de previsão adotada não permite que se saibam quais efeitos e quais espécies de restrições devem ser considerados, o que pode acarretar, também, grande insegurança jurídica, o que já foi apontado como motivo ensejador de tal medida. Porém, é preciso que se busque a maior proteção possível para os direitos fundamentais, e não é o medo de inovar que vai trazer o seu atendimento. Logo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm, a partir dos diplomas legais aqui referidos, a incumbência de realizar estudos para propiciar o melhor atendimento da finalidade do direito.

Certo é que a fórmula esposada pelo legislador infraconstitucional é indeterminada, pois usa expressões como “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, o que dá ao Supremo Tribunal Federal competência para determinar que uma lei ou ato do Poder Público, que, manifestamente, descumpra preceito fundamental, continue sendo aplicada, cobrada ou executada por meses a fio, depois de detectada a sua inconstitucionalidade. Não obstante, isso não justifica a viabilidade de ocorrer situação inversa, ou seja, que alguém, tendo adquirido um direito por meio de uma lei e assim vivendo ano após ano, venha depois de muito tempo, por exemplo, por uma decisão em tese da Corte Suprema acerca da sua inconstitucionalidade, desfazer ou anular um período de sua vida. É exatamente esta linha de pensamento que leva à necessidade de flexibilização dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, considerando caso por caso.


7.2.4. Linguagem jurídica. Conceitos jurídicos indeterminados


Quando se vê a utilização, por parte do legislador, de expressões vagas e imprecisas, deve-se analisar, ainda que de maneira tênue, a linguagem jurídica, no que concerne ao que se chama de conceitos jurídicos indeterminados, sem esquecer que o direito não possui, como a matemática, uma linguagem própria, mas se utiliza da linguagem vulgar. 

Preleciona Genaro Carrió que “a linguagem é a mais rica e complexa ferramenta de comunicação entre os homens; entretanto, nem sempre esta ferramenta funciona bem”.96  

Como demonstra o citado autor, em dado instante a linguagem tem um propósito descritivo para informar sobre certo fenômeno ou estado de coisas, e é dentro deste enfoque que cabe perguntar se as expressões usadas são verdadeiras ou falsas.

Em outros momentos, pode-se identificar, além deste propósito descritivo, uma função expressiva da linguagem, quando a utilizamos para provocar certos sentimentos, que podem ser solidários ou não, para despertar compaixão, admiração, raiva, para modificar uma atitude frente ao sucesso ou insucesso de uma pessoa, para infundir resignação ou otimismo. Tais expressões têm a virtude de despertar determinadas emoções na maioria dos homens e são empregadas comumente nos discursos políticos, como, por exemplo, liberdade, democracia, imperialismo. É dentre esses vocábulos, que possuem uma tremenda imprecisão e que são aplicados com grande carga ideológica, que se localizam os termos “direito” e boa parte dos dele derivados.

Cabe, ainda, apontar que possui função operativa a utilização da linguagem voltada para dirigir, induzir alguém a fazer ou não fazer alguma coisa, como, por exemplo, a usada para a outorga de um testamento – que pressupõe a existência de um sistema de regras vigentes –, o que equivale a dizer, segundo certas convenções, “eu o saúdo cordialmente”, independentemente do grau de sinceridade que haja por detrás de tal saudação.97 

O significado das palavras depende do contexto linguístico em que aparecem e da situação humana dentro da qual são empregadas: assim é que se fala em conferência pesada, personalidade opaca etc., mas é preciso reconhecer que o uso de termos não fornece um guia seguro para clarificar ou entender os casos duvidosos, principalmente quando a imprecisão é deliberada ou proposital.

Algumas expressões jurídicas possuem textura própria para que sejam aplicadas em consonância com o contexto em que são utilizadas. No entanto, é preciso questionar: essa textura aberta da linguagem normativa pode comprometer a sua observância?

Luís Roberto Barroso, estudando a interpretação das normas constitucionais, e após afirmar que a linguagem constitucional, por natureza, apresenta maior abertura, maior grau de abstração e, consequentemente, menor densidade jurídica, assegura que “conceitos como os de igualdade, moralidade, função social da propriedade, justiça social, bem comum, dignidade da pessoa humana, dentre outros, conferem ao intérprete um significativo espaço de discricionariedade”.98  

Tais termos, assim como “razões de segurança jurídica” ou “excepcional interesse social”, devem ser compreendidos sempre na perspectiva dos princípios, valores e interesses constitucionalmente relevantes, pois, em que pese a larga margem de conformação, ao intérprete não é permitido transfigurar o conceito de modo a que cubra dimensões qualitativamente distintas daquelas que caracterizaram a intenção do legislador – no máximo, propiciam ao intérprete, na medida em que incorporam objetivos e valores, maior margem para concretização, consoante as variações de conjunturas sociais.

É com o emprego de expressões deste tipo que se pode falar em ordem jurídica temporalmente adequada, uma vez que permitem adaptação às circunstâncias de tempo e lugar, sem haver necessidade de alteração da legislação vigente.

O juiz é quem, em última análise, deverá explicitar qual o núcleo essencial da expressão “dignidade da pessoa humana” quando da realização de sua tarefa de dizer o direito em relação a um determinado caso. Assim, também caberá ao Supremo Tribunal Federal determinar o alcance no tempo dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, tarefa esta que, sem sombra de dúvida, exigirá a observância de parâmetros, haja vista que a função jurisdicional deve aqui ser entendida como um dever/poder de conformação voltado para a proteção dos indivíduos, de modo a garantir os direitos fundamentais e os princípios básicos do Estado Democrático de Direito.

Como já registrado anteriormente, Walter Claudius Rothenburg, ao tratar da modulação dos efeitos da decisão na ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, constata que ela pode ocorrer em relação a quatro dimensões: (a) quanto à eficácia subjetiva da decisão (alcance da decisão em relação ao universo de pessoas afetadas); (b) quanto à eficácia temporal da decisão, isto é, quanto ao alcance da decisão em relação ao período de abrangência; (c) quanto à eficácia vinculante da decisão, isto é, quanto ao alcance da decisão em relação a outros aplicadores do direito; e (d) quanto à eficácia material da decisão, ou seja, ao alcance do conteúdo da decisão.99 

Em todas essas dimensões de modulação apresentadas por Walter Claudius Rothenburg, existe a necessidade de limitar sua abrangência, para que não possa haver a livre manipulação dos efeitos da declaração, pois esta, acrescida pelo efeito vinculante das decisões, poderá desestabilizar o equilíbrio entre os órgãos que exercem o poder estatal. 

É assim que a Constituição portuguesa prevê, no n. 4 do art. 282: “Quando a segurança jurídica, por razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n. 1 e 2”. 

1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.

2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.

3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo disposição em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

O respeito a certas situações decorrentes da aplicação da lei inconstitucional também acontece na Espanha, quando se vê que o art. 161.1 de sua Constituição determina que “a declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica com força de lei, interpretada pela jurisprudência, afetará esta, mas a sentença ou sentenças apreciadas não perderão o valor de coisa julgada”.

Nesse diapasão de respeito a situações originadas durante o império da lei declarada inconstitucional pela Corte Constitucional Espanhola, o art. 40 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional estabelece, como limite da retroatividade da sentença, as decisões com força de coisa julgada, ressalvando as penais ou o contencioso administrativo, quando poderá ser aplicada a regra resultante da nulidade se mais favorável ao condenado.

Na Itália é a Constituição, no seu art. 136, que dispõe, expressamente, sobre o início dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 

A Alemanha, por sua vez, ao lado da declaração de nulidade, prevista no § 78 da Lei do Bundesverfassungsgericht, prevê, desde 1970, que o Tribunal pode declarar a constitucionalidade, a nulidade ou a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, distinguindo lei inconstitucional de lei nula.

Todavia, a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade gera, ainda, insegurança na doutrina, na medida em que os dispositivos acima referidos não explicitam quando é preciso abster-se de declarar a nulidade. 

Gilmar Ferreira Mendes pondera: “A renúncia à declaração da nulidade só poderia ser entendida dogmaticamente como uma opção para que o legislador encontre diretamente a solução para o caso, uma vez que a tarefa de concretização da vontade constitucional foi, em primeira linha, a ele confiada”. E defende: 

“A aplicação continuada da norma que teve sua inconstitucionalidade declarada pelos órgãos estatais revela-se inadmissível, uma vez que, tal como o legislador, estão a Administração e os Tribunais obrigados a observar o disposto no art. 1º, III, e 20, III, da Lei Fundamental, que consagra o princípio do Estado de Direito. Eles estão autorizados a agir apenas em conformidade com a Constituição”.100  

Contudo, reconhece que a completa suspensão da aplicação da lei inconstitucional suscita problemas, pois sem a aplicação provisória da lei inconstitucional haveria um vácuo legislativo. Aliás, 

“(...) a Corte Constitucional reconhece a legitimidade da aplicação provisória da lei declarada inconstitucional se razões de índole constitucional, em particular, motivos de segurança jurídica, tornam imperiosa a vigência temporária da lei inconstitucional, a fim de que não surja, nessa fase intermediária, situação ainda mais distante da vontade constitucional do que a anteriormente existente”.101 

Como se vê, a modulação nos efeitos da decisão que reconhece o vício da inconstitucionalidade, tanto lá como aqui, não dá azo a posição unânime. Porém, diferente seria se a Constituição determinasse a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal restringir, em nome da segurança jurídica ou de excepcional interesse social, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou até decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado.

Quando se assevera que seria diverso o posicionamento se a modulação dos efeitos fosse prevista constitucionalmente, não se pode olvidar que, neste ponto, também seria necessário seguir uma linha de demarcação máxima para atuação do Supremo, na medida em que nossa Lei Fundamental prevê, no art. 60, § 4º, limites ao exercício do poder reformador, o que conduz a admitir que só o poder constituinte originário é ilimitado e só ele seria capaz de firmar a extensão dos efeitos de forma ampla.102  

É sabido que, entre nós, a postura relativa a aceitar a nulidade ab initio da lei inconstitucional não advém nem da Constituição, nem da lei, mas de posicionamento jurisprudencial, o que não pode levar a considerar como inconstitucional a previsão legal da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e do descumprimento de preceito fundamental. Assim, não se busca rechaçar a flexibilização dos efeitos, mas a simples constatação de que a forma como foi implantada no direito positivo dá causa a diversas posições e questionamentos, o que, seguramente, não propiciará tranquilidade e segurança, finalidades precípuas do direito.

É preciso enfatizar que, na ausência de previsão estabelecida pelo constituinte originário, os efeitos do juízo acerca da inconstitucionalidade formulado na arguição de descumprimento de preceito fundamental devem respeitar os limites determinados pelo sistema constitucional. Portanto, neste aspecto, a decisão só poderá alcançar certos indivíduos. Desde que não ofenda o princípio da isonomia, como “no combate à omissão parcial, quando contemplado apenas um segmento de pessoas (por exemplo, certas categorias profissionais ou parcela do funcionalismo público), a modulação dos efeitos subjetivos da decisão da arguição poderia permitir que se alcançasse apenas os indevidamente excluídos”; além disso, deverá respeitar a decisão anterior com força de coisa julgada, a não ser nos casos de sentença penal condenatória fundada em lei declarada inconstitucional.103 

Tal entendimento deflui do § 3º do art. 5º da Lei 9.882/1999, que prevê que a liminar na arguição poderá determinar a suspensão do andamento dos processos e os efeitos das decisões judiciais, estas só enquanto não definitivas: “A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada”.

Saber dentro de quais parâmetros deve agir o Supremo Tribunal Federal no tocante à modulação dos efeitos da decisão da ação de arguição, ciente de que existe escassa produção doutrinária e inexistente jurisprudência, é tarefa que deve integrar ponderação responsável e mais aprofundada.

Analisando o art. 11 da Lei 9.882/1999, verifica-se que a redação peca por confundir os instrumentos previstos pela Constituição para sua proteção.

Embora considerando que o descumprimento de preceito fundamental integra o universo da inconstitucionalidade e que a ação de arguição se caracteriza por realizar um processo do tipo objetivo, com a apreciação em tese do descumprimento, desvinculado de um caso concreto, identifica-se uma imprecisão de linguagem quando se refere a “declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de descumprimento de preceito fundamental”, uma vez que a arguição aprecia apenas o descumprimento de preceitos fundamentais e não qualquer inconstitucionalidade; e, mais, o citado artigo apresenta outra imprecisão ou deficiência linguística, no que tange à referência expressa apenas à lei ou ato normativo, parecendo não lembrar que o art. 1º do mesmo diploma legal fala em descumprimento resultante de ato do Poder Público, o que abrange tanto os atos estatais normativos, como os não normativos. Assim, tal postura só pode levar à aceitação de que, no caso, cabe uma interpretação normativa, com vistas a incluir os demais objetos da arguição ao amparo do dispositivo legal em comento.


Notas

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p.126.

2 “Direito constitucional, civil e processual civil – Arguição de descumprimento de preceito fundamental: art. 102, § 1º, da CF de 1988 – Decreto estadual de intervenção em município” (STF, AgRg em Pet 1.140-7-TO, rel. Min. Sydney Sanches, j. 02.05.1996, DJ 31.05.1996, p.18.803).

3 SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Revista de direito administrativo, v. 224, p. 98-99.

4 ROTHENBURG, Walter Claudius. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p.201.

5 MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio eficaz. Revista jurídica virtual, n.13.

6 MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, nº 760, pp.12-13. 

7 BASTOS, Celso Ribeiro; VARGAS, Alexis Galiás de Souza. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Revista de direito constitucional e internacional, nº 30, p.70.

8 DE PLACIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário jurídico, p.417.

9 DINIZ, Maria Helena. Norma jurídica III. Enciclopédia Saraiva do direito, v. 54, p. 411. 

10 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, p. 408.

11 TAVARES, André Ramos. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e na lei. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 49.

12 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas, pp. 213-214.

13 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, pp. 629-630.

14 ZAGREBELSKI, Gustavo. Manuale di diritto constituzionale, v.1, apud ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto costituzionale: il sistema delle fonti del diritto, p. 107.

15 ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto costituzionale: il sistema delle fonti del diritto, p. 109.

16 GORDILLO, Agustín. Princípios gerais de direito público, pp. 94-95.

17 TAVARES, André. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e na lei. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 52.

18 SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 91. 

19 MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: parâmetro de controle e objeto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, pp. 128-132. 

20 Idem, pp.128-132.

21 ROTHENBURG, Walter Claudius. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, pp. 212-213. 

22 CORRÊA, Oscar Dias. A Constituição de 1988: contribuição crítica, p. 157.

23 BARROS, Sérgio Resende. O nó górdio do sistema misto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 196.

24 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, p. 247. 

25 BASTOS, Celso Ribeiro; VARGAS, Alexis Galiás de Souza. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Revista de direito constitucional e internacional, nº 30.  

26 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 216. 

27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional, p. 441.

28 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e a vinculação do legislador, p. 335.

29 Ver Constituição argentina. No mesmo sentido: GOZAÍNI, Osvaldo. El derecho de amparo, p. 23 apud MORAES, Alexandre. Direito constitucional, p. 613.

30 TAVARES, André Ramos. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e na lei. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 44. 

31 VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional da constitucionalidade, p. 327.

32 MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio eficaz. Revista jurídica virtual, nº  13

33 SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Revista de direito administrativo, v. 224, p. 105.

34 RUPP, Hans G. El tribunal constitucional federal alemán: tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales, p. 400. 

35 “Constituição – Lei anterior que a contrarie – Revogação – Inconstitucionalidade superveniente – Impossibilidade” (STF, ADIn 2-1-DF, rel. Min. Paulo Brossard, j. 06.02.1992, DJ 21.11.1997, p. 60585).

36 ROTHENBURG, Walter Claudius. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 205.

37 BASTOS, Celso Ribeiro; VARGAS, Alexis Galiás de Souza. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Revista de direito constitucional e internacional, nº 30, p. 70. 

38 MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: parâmetro de controle e objeto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 142.

39 BASTOS, Celso Ribeiro; VARGAS, Alexis Galiás de Souza. Op. cit., p.71. 

40 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, pp. 828-829.

41 “Ação direta de inconstitucionalidade – Instrução normativa – Portarias 24/94 e 25/94 do Secretário de Segurança e Saúde do Trabalho – Prevenção contra situações de dano no ambiente de trabalho – Controle médico de saúde ocupacional – Ato desvestido de normatividade qualificada para efeito de impugnação em sede de controle concentrado de constitucionalidade – Ação não conhecida” (STF, ADIn 1.347-5-DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 05.09.1995, DJ 01.12.1995).

42 Inf. STF 15, 27.11-01.12.1995; ADIn 360-DF, rel. Min. Moreira Alves, j. 21.09.1990, DJU 26.02.1993; ADIn 519, DJU 11.10.1991; ADInMC 1.253-DF, rel. Min. Carlos Velloso, j. 30.06.1994, DJU 25.08.1995; ADIn 1.258-PR, rel. Min. Néri da Silveira, j. 26.05.1995, DJU 20.06.1997; ADInMC 1.383-RS, rel. Min. Moreira Alves, j. 14.03.1996, DJU 18.10.1996; ADInMC 1.590-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 19.06.1997, DJU 15.08.1997; ADIn 1396-SC, rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.06.1998.

43 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, p. 212. 

44 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, pp. 324-325. 

45 Idem, pp. 325-330. 

46 MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: parâmetro de controle e objeto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 133. 

47 ADPF–MC 88, rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática. DJ 06.04.2006.

48 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, p. 212. 

49 GARCIA, Maria. Políticas públicas e atividade administrativa do Estado. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, v. 4, nº 15, pp. 65-66.

50 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo, pp. 31-32.

51 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas, p. 217.

52 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p.833.

53 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição.

54 TAVARES, André Ramos. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e na lei. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 62. Ver, nesse mesmo sentido, na obra aqui citada, a opinião de SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 87; BARROS, Sérgio Resende. O nó górdio do sistema misto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 203 e ss. 

55 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, p. 97.

56 “Mandado de segurança – Impetração contra medida provisória editada pelo Presidente da República – Plano econômico do governo – Restrição da liquidez dos ativos financeiros – Medida Provisória 168, de 15.03.1990 – Ato em tese – Utilização imprópria do writ como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade – Inviabilidade – Agravo regimental improvido” (STF, AgRg-MC-MS 21.077-GO, rel. Min. Celso de Mello, j. 09.05.1990, DJ 03.08.1990, p. 7235).

57 SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 88 

58 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, pp. 437-439. 

59 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 809. 

60 MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, nº 760, pp. 36-37. 

61 “Ação direta de inconstitucionalidade – Decretos 94.042 e 94.233, de, respectivamente, 18.02.1987 e 15.04.1987, atacados em face da EC 1/69” (STF, ADIn 3-DF, rel. Min. Moreira Alves, j. 07.02.1992, RTJ 142/363, nov. 1992).

62 Idem, Min. Moreira Alves, p. 364.

63 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle da constitucionalidade, pp. 334-335.

64 TAVARES, André Ramos. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e na lei. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, pp. 74-75, com a ressalva de que tal artigo do RISTF foi alterado pela ER 21/2007.

65 PERTENCE, José Paulo Sepúlveda. Ação direta de inconstitucionalidade e as normas anteriores: as razões dos vencidos. Arquivos do Ministério da Justiça, v. 180, nº 45, p. 151.

66 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, p. 287. 

67 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, p. 220.

68 MIRANDA,Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, p. 275. 

69 “Representação de inconstitucionalidade – Subordinação do Ministério Público ao Poder Judiciário” (STF, Representação 1.012-SP, rel. Min. Moreira Alves, j. 27.09.1979, RTJ 95/990, mar. 1981).

70 Ver: ADInMC 1.360-DF, rel. Min. Moreira Alves, j. 26.10.1995, DJU 24.11.1995; ADIn 30-PR, rel. Min. Marco Aurélio, j. 11.06.1997, DJU 15.08.1997.

71 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, p. 288. 

72 ENTERRÍA, Eduardo García de. La constitución como norma y el tribunal constitucional, p. 94. 

73 RAMOS, Elival da Silva. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: delineamento do instituto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p.119.

74 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, p. 161. 

75 REZEK, José Francisco. Ação declaratória de constitucionalidade 1-1 (voto). Ação declaratória de constitucionalidade, p. 206.

76 MOREIRA ALVES, José Carlos. Ação declaratória de constitucionalidade 1-1 (relatório). Ação declaratória de constitucionalidade, pp. 195-196.

77 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Sobre a ação direta de constitucionalidade. Cadernos de direito constitucional e ciência política, v. 2, nº 8, p. 46. 

78 Idem, p. 47. 

79 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Distinção entre suspensão de vigência e eficácia de norma inconstitucional e materialidade do direito suspenso em processo cautelar de ação direta de inconstitucionalidade com liminar concedida: parecer. Cadernos de direito constitucional e ciência política, v. 3, nº 9, p. 105.

80 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, pp. 180-181. 

81 RAMOS, Elival da Silva. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: delineamento do instituto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 120.

82 SARLET, Ingo Wolfgang. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: alguns aspectos controversos. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 154.

83 Tal como na Alemanha e em Portugal, esta é também a posição de CLÈVE, Clèmerson Merlin; DIAS, Cibele Fernandes. Algumas considerações em torno da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Hermenêutica e jurisdição constitucional

84 SARLET, Ingo Wolfgan; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional, pp. 1298-1299.

85 O STF teve a oportunidade de se pronunciar acerca do tema, ou seja, sobre o valor do salário mínimo, quando, em um primeiro momento revelou um empate entre o entendimento dos Ministros. À vista do empate e adiado o julgamento, sobreveio o voto do Min. Néri da Silveira que conheceu da arguição, entendendo que, não sendo a ação direta de inconstitucionalidade por omissão adequada ao caso, não se aplica o § 1º do art. 4º da Lei 9.882/99 ADPF 4, Pleno, j. 17.04.2002, rel. Min. Octavio Gallotti.

86 Para assegurar a afirmativa, registram-se algumas decisões de nossa Suprema Corte nesse sentido: 1. “Sendo inconstitucional, a regra jurídica é nula – Não incidindo sobre o fato, nela visto ou previsto, não há fato jurídico e, via de lógica consequência, o fato não produz qualquer efeito jurídico – Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE 93.173, 1982); 2. “Declaração de inconstitucionalidade em ação direta – Efeito ex tunc – Assim reconhecido pelo órgão local – Inocorrência de ofensa à Constituição Federal – Dissídio não demonstrado na forma regimental – Recurso extraordinário que se deixa de conhecer” (RE 93.356, 1981).

87 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, p.189, nota 5.

88 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, p. 371. 

89 BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, pp. 137-138.

90 BITTENCOURT, Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, p.147.

91 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, p. 212. 

92 Idem, pp. 214-215.

93 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, p.258.

94 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Declaração de inconstitucionalidade de dispositivo normativo em sede de juízo abstrato e efeitos sobre os atos singulares praticados sob sua égide. Cadernos de direito constitucional e ciência política, v. 5, nº 19, pp. 288-289.

95 Deve-se registrar que, sendo objeto desse estudo da arguição de descumprimento de preceito fundamental, a lei que a disciplinou, apesar de beneficiá-la com o efeito vinculante e a eficácia contra todos, não previu, como o fez o art. 28, parágrafo único, da Lei 9.868/1999, tal característica quanto à interpretação conforme a Constituição e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, pelo menos não expressamente.

96 CARRIÓ, Genaro Ruben. Notas sobre derecho y lenguaje, p. 3.

97 Idem, pp. 16-17.

98 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação das normas constitucionais, pp. 101-102.

99 ROTHENBURG, Walter Claudius. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 227.

100 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, pp. 219-220.

101 Idem, p. 220.

102 Tramitam no Supremo Tribunal Federal a ADIn 2.231-8, questionando a inconstitucionalidade total da Lei 9.882/1999, e a ADIn 2.258-0, questionando a constitucionalidade do art. 11, § 1º, e dos arts. 21 e 27 da Lei 9.868/1999.

103 ROTHENBURG, Walter Claudius. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99, p. 228. De 27 de janeiro de 2000 à 30 de novembro de 2016, foram autuadas no STF 436 ADPF e 165 aguardavam julgamento em 5 de dezembro de .2016, conforme a Sec. de Tecnologia da Informação – Ass. De Gestão Estratégica

Referências

BARROS, Sérgio Resende. O nó górdio do sistema misto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei 9.882/99. André Ramos Tavares e Walter Claudius Rothenburg (orgs.). São Paulo: Atlas, 2001.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

BASTOS, Celso Ribeiro; VARGAS, Alexis Galiás de Souza. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Revista de direito constitucional e internacional, nº 30, jan./mar., 2000.

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Citação

FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/10/edicao-1/arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental

Edições

Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017

Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022

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